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Jorge de Almeida e Wolfgang Bader (orgs.) Pensamento alemão no século xx Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil Volume 1

ALMEIDA, BADER - Pendamento alemão no século XX

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  • Jorge de Almeida e Wolfgang Bader (orgs.)

    Pensamento alemo no sculo xxGrandes protagonistas e recepo das obras no Brasil

    Volume 1

  • Freud e a psicanlise: um trabalho de civilizao

    renato mezan

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    Este volume nos incita a reexaminar a contribuio dos pensadores alemes do sculo XX para entendermos o mundo em que vivemos. Sem dvida, um dos mais importantes desses pensadores Sigmund Freud. Para falar desse gigante do pensamento, cuja obra modicou to profundamente a viso que temos de ns mesmos, parto da arma-o que encerra a Conferncia 31 das Novas conferncias introdutrias sobre a psicanlise [Neue Folge der Vorlesungen zur Einfhrung in die Psychoanalyse]:

    [A nalidade da psicanlise] fortalecer o ego, torn-lo mais independente do superego, ampliar seu campo de percepo e desenvolver sua organizao, de modo que possa se apropriar de novas partes do id. Onde era id, que haja ego. Trata-se de um trabalho de civilizao, um pouco como a drenagem do Zuydersee.1

    Como em tantas outras ocasies, Freud utiliza um fato ento atual para ilustrar suas ideias aqui, a recuperao pelos holandeses de uma parte do mar, com a nalidade de transform-la em terra cultivvel. Qual a base para a metfora? Se o id a parte da nossa personalidade que abriga as pulses, as paixes, os desejos e as fantasias pode ser comparado ao

    1. [Die Absicht der Psychoanalyse] ist ja, das Ich zu verstrken, es vom ber-Ich un-abhngiger zu machen, sein Wahrnemungsfeld zu erweitern und seine Organisation aus-zubauen, so das es neue Stcke des Es aneignen kann. Wo Es war, soll Ich werden. Es ist Kulturarbeit etwa wie die Trockenlegung der Zuydersee.

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    mar do Norte, o ego no mais do que uma pequena parte dela, diga-mos como o territrio da Holanda. E a anlise anexa a esse territrio uma rea de alguns quilmetros quadrados, semelhante em proporo a um polder. Mas no se pense que esse trabalho de civilizao sem importncia: ele amplia as capacidades do ego, tanto porque coloca sua disposio um tanto de solo frtil conquistado ao mar do inconsciente, como porque aumenta ainda que em medida limitada o controle dele sobre as pulses.

    Assim, embora a psicanlise enfatize o aspecto pulsional ou instinti-vo do ser humano, as paixes que nos governam nossa revelia, tambm importante lembrar o complemento dessa armao, a saber, a vanta-gem de poder utilizar essas energias para nosso prprio benecio. O que Freud nos lembra que existe uma dialtica entre o lado obscuro do ser humano paixes, violncia, sexualidade, agressividade, dio pelo seu semelhante e aquilo que possibilita no sermos determinados apenas por essas caractersticas. Um melhor entendimento entre a poro racio-nal da nossa mente e as vastas reas de irracionalidade que a cercam esse o objetivo da anlise. E as implicaes disso no se limitam vida pessoal: j que as pulses tm como alvo invariavelmente o outro (ou os outros), a vida em sociedade tambm depende da forma como cada um capaz de as controlar.

    ASPECTOS B IOGRF ICOS

    Convm no esquecer que as Novas conferncias foram redigidas num pero-do muito conturbado: a dcada de 1930, que precede a tragdia da Segunda Guerra Mundial. Em 1932, Freud um homem idoso, e tambm doente, devido a um cncer na mandbula contra o qual lutou por dezesseis anos, at morrer por causa dele em setembro de 1939. Para bem situar o horizonte contra o qual se recorta a imagem do Zuydersee, convm lembrar alguns fatos histricos que enquadram a vida e as ideias do fundador da psicanlise.

    Como nasceu em 1856, boa parte da existncia de Freud transcorreu numa poca muito mais tranquila. Em sua autobiograa, Die Welt von

    Gestern,2 Stefan Zweig que nasceu em 1881 descreve o que era a vida em Viena quando ele era jovem, ou seja, na virada do sculo XIX para o XX. No captulo inicial, intitulado Die Welt der Sicherheit [O mundo da segurana], lemos o seguinte: tudo na nossa monarquia austraca quase milenar parecia feito para durar. Tudo tinha sua norma, sua medida certa e seu peso: instituies polticas que preservavam os direitos dos cida-dos; moeda estvel, garantindo um futuro tranquilo para quem seguisse as leis e soubesse poupar para a velhice; uma clara hierarquia social, cujo topo era ocupado pelo velho imperador mas caso ele morresse, sabia-se (ou se pensava) que viria um outro, sem que nada se alterasse naquela ordem to bem calculada. Ningum acreditava em guerras, revolues ou cataclismas...3

    Essa impresso de solidez, como sabemos, era supercial, pois o mundo da segurana ruiu como um castelo de cartas quando os dis-paros de um estudante contra o herdeiro da monarquia quase milenar acionaram o mecanismo das alianas militares entre as potncias rivais, mergulhando a Europa no horror da Primeira Grande Guerra. Mas verdade que os primeiros dez ou quinze anos do sculo XX a poca eduardiana, assim chamada porque em 1901 subira ao trono ingls o rei Eduardo VII foram marcados pela sensao de que o novo sculo levaria a progressos to importantes quanto os do anterior e que o m da era vitoriana acarretaria maior liberdade de costumes.4 Mais tarde, esse perodo tornou-se conhecido por um nome que mostra a nostalgia que as pessoas sentiam por ele a belle poque.

    Os anos de juventude de Zweig foram justamente esses. Freud per-tence gerao anterior: durante sua juventude, consolida-se o capita-lismo no Imprio Austro-Hngaro, no qual ele vivia, e na Alemanha.

    2. Traduzida em portugus com o ttulo O mundo que eu vi. Rio de Janeiro: Record, 1999.3. Stefan Zweig, Die Welt von Gestern. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbcher, 1977, p. 14.4. Esse tipo de impresso costuma predominar aps o trmino de um longo reinado: como se com o corpo do monarca fossem tambm enterradas as restries que sua presena impunha. Como no perodo da Regncia, que na Frana se seguiu morte de Lus xiv, ou na Repblica de Weimar, iniciada com a abdicao do Kaiser em virtude da derrota na Primeira Guerra Mundial.

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    Tambm se realizam progressos cientcos em particular na fsica e na qumica extremamente importantes: Pasteur cria a vacina contra a raiva, Koch isola o bacilo da tuberculose, Maxwell formula as equaes do eletromagnetismo, inicia-se a batalha pela aceitao das teorias de Darwin, e assim por diante.

    Invenes como a bicicleta, o pneu de borracha e o trem de ferro permitiram s pessoas uma mobilidade sem precedentes; o telgrafo, e a partir de 1851 os cabos submarinos, tornaram possvel a circulao de notcias e informaes em escala jamais vista. Enquanto antes se leva-vam meses para saber o que estava acontecendo em outros pases, agora a imprensa diria trazia o mundo para a sala de estar Hegel disse certa vez que a leitura do jornal dirio tinha se tornado a orao matinal do burgus. O mundo comea a car menor mas a mentalidade das pes-soas no acompanha necessariamente os progressos tcnicos.

    Em 1908, portanto na mesma poca das memrias de Zweig, Freud escreveu um artigo que estabelece um contraste interessante com o livro. Em O nervosismo moderno e a moral sexual civilizada, ele diz, em resumo, que o preo a pagar pela moral vitoriana era elevado demais: a hipocrisia em relao sexualidade estava produzindo neuroses em esca-la sem precedentes, porque a grande maioria das pessoas no era apta a suportar um cdigo moral to rigoroso. Resultado: desobedeciam-no. Por trs da fachada moralista, existiam o adultrio, a dupla moral para homens e mulheres, a explorao sexual das moas pobres (empregadas, costureiras, vendedoras...), e a difuso epidmica de doenas venreas, em particular a slis. Ainda no haviam sido descobertos os antibiticos e, portanto, a possibilidade de comprometer a sade tendo relaes com algum desconhecido era bastante grande.5

    A belle poque presencia o surgimento da psicanlise, mas a rigor a formao de Freud se deu no perodo imediatamente anterior, digamos de 1870 a 1890. Em 1873, aos dezessete anos, ele ingressa na Faculda-de de Medicina de Viena, na poca uma das melhores do mundo, e ali

    5. Schubert, por exemplo, morreu de slis, e a loucura de Nietzsche pode ter tido a mesma causa.

    absorve os elementos fundamentais do mtodo cientco: observao cuidadosa, vericao das hipteses, eliminao de variveis que no interessassem, cautela na formao de teorias, e assim por diante. O rigor da cincia se materializou para ele na gura de Ernst Brcke, o profes-sor de siologia mencionado em vrios momentos de A interpretao dos sonhos por causa dos seus terrveis olhos azuis, que fulminavam o jovem Sigmund a cada vez que este chegava atrasado ao laboratrio.

    O primeiro trabalho de que Brcke o encarrega descobrir onde cam os rgos sexuais da enguia macho. Freud vai para Trieste, que naquela poca era uma possesso austraca, e passa algumas semanas exa-minando as enguias que os pescadores traziam, at encontrar a localizao exata das gnadas do peixe sua primeira descoberta no campo da sexua-lidade. Como sabemos, o inventor da psicanlise no se deteve nela...

    Os anos passados no laboratrio de Brcke marcaram a viso de Freud, no s como pessoa, mas sobretudo como pensador. Como tan-tos jovens promissores, ele desejava se notabilizar por alguma desco-berta que o tornasse famoso e lhe garantisse a independncia econ-mica. Sabemos disso, porque desde Ado e Eva talvez ele tenha sido o ser humano sobre o qual mais documentos existem. Foram conservadas centenas de cartas sua noiva Martha, que morava em Hamburgo, e, na dcada de 1960, um lho do casal publicou uma boa seleo delas.6 Assim, sabemos praticamente dia por dia o que se passava na faculdade, na residncia, no laboratrio etc.

    Em 1886, Freud se casa e abre seu consultrio mdico. Um ano depois, enceta correspondncia com Wilhelm Fliess, colega que vivia em Berlim e cujas ideias muito o impressionavam. Entre outras coisas, Fliess o criador da noo de biorritmo: ele sups que o ser humano era governado por ciclos de 23 dias para os homens e de 28 dias para as mulheres, e a partir da criou uma numerologia fantstica, que permitia calcular datas para vrios eventos na vida de uma pessoa, como doenas ou momentos de particular fragilidade.

    6. Cf. Epistolario 1873-1890. Barcelona: Plaza y Jans, 1975.

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    O mais espantoso que, apesar da sua rigorosa formao de cientis-ta, Freud aceita essas teorias sem pestanejar. Infelizmente, s dispomos da correspondncia que ele enviou, pois, quando brigaram, Freud des-truiu tudo o que Fliess lhe remetera. Ao ler essas cartas, vemos entre-meadas por relatos sobre as descobertas que fazia pginas e pginas em que o inventor da psicanlise calcula quando os lhos de ambos vo ter sarampo, quando ser seu prximo perodo criativo, e outras coisas do gnero.7

    Cito esse fato, porque penso que muito importante no idealizar a gura de Freud. Foi sem dvida um homem da maior importncia prova disso que setenta anos depois de ele morrer continua-se a falar de sua obra mas tambm teve fraquezas e defeitos. Lev-los em conta evita que se torne objeto de venerao religiosa o que seria a forma mais segura de embalsam-lo, e junto com ele as suas ideias. Freud foi um acerbo opositor da religio e temia que a psicanlise se convertesse numa espcie de idolatria, com seus crentes e seus rituais receio nada absurdo, quando se pensa na virulncia das paixes (pr e contra) que ela suscitou.

    A HISTERIA

    O que aproximou Freud de Fliess foi o interesse de ambos pela histeria, que acarretou uma grande mudana no percurso prossional do primei-ro. Como se deu isso? Em 1885, j com alguns anos de prtica cientca, Freud ganha uma bolsa de estudos e decide us-la numa viagem a Paris. l que descobre as histricas. No nal do sculo XIX, por uma srie de motivos entre os quais o excesso de silncio sobre a sexualidade,

    7. A primeira edio dessas cartas foi publicada em 1950, simultaneamente em alemo e ingls (Die Geburt der Psychoanalyse, The Origins of Psychoanalysis), sob os cuidados de Anna Freud e Ernst Kris. Os editores avisavam que haviam mantido apenas as partes refe-rentes a assuntos cientcos, omitindo quase todas as que tratavam da vida pessoal dos dois amigos. A verso completa s foi publicada nos anos 1980. Em portugus, pode-se consultar Jeffrey Masson (ed.), Correspondncia completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

    sobretudo entre as mulheres , a doena da moda a histeria. Mas no devemos pensar que esse termo designava o que hoje se chama popu-larmente comportamento histrico (gritos descontrolados, escndalos pblicos etc.). Na verdade, a histeria era uma das formas que o mal-estar na cultura assumia no apogeu da civilizao burguesa.

    Assim como ocorre hoje com a depresso, discutia-se muito a origem dessa doena: seria algo orgnico (o que na poca signicava originado por leses cerebrais), ou algo mental? O professor com quem Freud estuda em Paris, Jean-Martin Charcot, alinhava-se com os partidrios da segunda opo: embora a histeria se manifestasse por sintomas corporais bastante espetaculares contraes, desmaios, tremedeiras, paralisias, cegueiras parciais ou totais ele sustentava que a origem era psquica, pois o exame anatomopatolgico de doentes de ambos os sexos no reve-lava qualquer tipo de leso.

    Para apoiar sua opinio, Charcot tinha um forte argumento: demonstrara que por meio da hipnose recurso at ento utilizado ape-nas em espetculos de seriedade mais que duvidosa, e ao qual ele foi dos primeiros a conferir dignidade cientca era possvel tanto provo-car quanto remover temporariamente os sintomas histricos. Todas as teras-feiras, procedia no auditrio do hospital da Salptrire a uma pr-sentation de malade (apresentao de doente), na qual a paciente contava sua histria, e todos podiam ver que seus sintomas eram tais e quais. Em seguida, ela era hipnotizada, e Charcot lhe dizia para fazer aquilo que minutos atrs era incapaz de fazer: por exemplo, se tivesse uma parali-sia dos membros inferiores, solicitava que andasse normalmente. Para surpresa da plateia, composta por estudantes, mas tambm por pessoas que simplesmente quisessem assistir aula, a paciente realizava o que lhe era pedido; mas, ao acordar do transe hipntico, j no lhe era possvel repetir o que acabara de fazer.

    Ainda mais espetacular era a demonstrao contrria suscitar por meio da hipnose um sintoma at ento inexistente. Por exemplo, algum sem problemas na fala recebia sob hipnose a ordem de, ao acordar, s falar gaguejando; a um estalar de dedos do mdico, porm, a gagueira desaparecia. A isso se chamava fenmeno ps-hipntico.

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    As demonstraes de Charcot provavam que era possvel suscitar um fenmeno corporal por meio de inuncia sobre a mente, e do mes-mo modo o eliminar (ainda que, no caso dos verdadeiros sintomas his-tricos, apenas por um curto perodo de tempo). At ento, aceitava-se a teoria de que o corporal podia produzir efeitos psquicos uma leso cerebral originando uma afasia, a degenerao dos nervos levando demncia senil etc. mas o inverso era tido por impossvel. O mental era visto por mdicos e cientistas como uma espcie de espuma pro-duzida pelo funcionamento do crebro, um epifenmeno de algo inva-riavelmente de ordem fsica assim como hoje alguns imaginam que todo acontecimento mental tenha causas orgnicas: busca-se o gene da homossexualidade, o gene da depresso etc. Trata-se do mesmo princpio, apenas traduzido em linguagem compatvel com o estado atual da biologia.

    Certa vez, Freud advertiu Charcot que aqueles fenmenos eram inexplicveis pelas teorias existentes. O professor respondeu com uma frase que ele nunca esqueceu: la thorie, cest bon, mais a nempche pas dexister ( bom ter teorias, mas isso no impede que algo exista). No necrolgio que escreveu para seu mestre, Freud diz que essas palavras o estimularam a observar com ateno, e no negar a realidade do que se v em nome da crena numa teoria, por mais prestigiosa que esta seja.

    Charcot pertence a uma espcie de clnicos dotados de grande poder de observao, cuja capacidade de diagnosticar com preciso suscitava o espanto dos que os viam atuar. Um deles, alis da mesma gerao, foi o dr. Alexander Bell, professor de Conan Doyle na faculda-de de medicina de Edimburgo e modelo para a criao de Sherlock Hol-mes. Aqui uma nota marginal: existe um lme interessantssimo, The Seven-per-cent Solution (direo de Herbert Ross, EUA, 1976), no qual, tendo lido em The Lancet que um certo dr. Freud estava investigando os efeitos da cocana, Watson leva seu amigo que, como sabemos pelas histrias, era usurio constante do alcaloide para se tratar com ele em Viena. (No preparado que Holmes injetava na veia, a concentrao de cocana era de 7%). Segundo o lme, foi o detetive ingls que ensinou Freud a observar.

    Lembro de uma cena hilariante: apenas olhando com ateno o consultrio, ele deduz detalhes sobre a vida do mdico dos quais obvia-mente no tinha conhecimento: por exemplo, que era um homem de princpios e que devia ter formulado alguma teoria escandalosa, a qual o indispusera com seus pares. De queixo cado, Freud lhe pergunta como podia saber isso.

    Elementar!, responde Holmes, impaciente. Olhe para os espa-os vazios entre os diplomas e certicados prossionais que adornam a sua parede. claro que o senhor retirou diversos outros. E por que fez isso? Porque deve ter brigado com as instituies que os conferiram. Isso sugere que o senhor defende ideias que elas repudiam com certeza porque so inovadoras e audaciosas. Quanto aos princpios rmes e honestidade o senhor fez isso em seu prprio consultrio, com o que evita que seus pacientes pensem que ainda pertence a elas. portanto um homem correto.

    De fato, quando, ao voltar de Paris, Freud comea a defender a hiptese de que a histeria tem origem psquica, provoca escndalo e indignao no ambiente rigidamente positivista da medicina vienense. A hiptese de Charcot era vista ali como mais uma tolice francesa, inaceit-vel para prossionais formados na boa tradio germnica. A reputao de Freud, que nos anos anteriores viagem para a Frana se dedicara a estudar os efeitos da cocana, cou ainda mais abalada por sua adeso teoria mentalista da histeria.

    A cocana acabava de ser descoberta, e ainda no se conheciam os efeitos da dependncia. Supunha-se que pudesse ter utilidades mdicas, inclusive como antdoto contra a mornomania. Freud adquire cer-ta quantidade do produto e, para observar o que acontecia a quem o tomasse, passa a consumi-lo em pequenas doses, com os efeitos eufori-zantes que se pode imaginar. Escreve artigos sobre isso e defende o uso da substncia como estimulante (o que na poca no era nada absurdo

    no incio, a Coca-Cola continha uma pequenssima dose dela, donde o nome da bebida). Esses artigos lhe granjearam o apelido de Dou-tor Coca e, quando a nocividade da droga foi cando patente, sua competncia como mdico e pesquisador chegou a ser questionada.

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    As coisas pioram quando, tentando livrar um colega da dependncia da morna, ele lhe receita injees de cocana e o amigo vem a morrer de overdose.

    Na verdade, a nica serventia da cocana para ns mdicos est no uso como anestsico em cirurgias oculares, descoberto por Carl Koller, que por este trabalho recebeu posteriormente vrios prmios. Freud havia iniciado estudos nesse sentido, mas, ansioso por ir a Hambur-go visitar a noiva, deixou-os incompletos, encarregando seu colega de vericar o assunto. Aperfeioando o mtodo sugerido por Freud, Koller conseguiu demonstrar as vantagens do uso oftalmolgico da cocana. Foi dessa forma que o futuro Herr Professor perdeu sua primeira opor-tunidade de ser tornar famoso. Ou seja: estava sempre envolvido com coisas um tanto escabrosas e o interesse pela histeria, logo aps essas pesquisas com a cocana, no ajudava muito a consolidar seu prestgio.

    O SURGIMENTO DA PS ICANLISE

    Voltando de Paris, Freud se estabelece como Nervenarzt (especialista em doenas nervosas). Comea a tratar seus pacientes com os mtodos ento aceitos para essas molstias eletroterapia, curas termais etc. e logo percebe sua completa ineccia. ento que decide recorrer ao pro-cedimento que vira funcionar to bem nas mos de Charcot. A ideia era que, sob hipnose, a pessoa se lembrasse dos acontecimentos que teriam provocado seus sintomas e, revivendo-os, pudesse ab-reagir o que ento cara sufocado, com o que os sintomas perderiam sua razo de ser.

    Por sorte, porm, ele no era bom hipnotizador, e um dia uma paciente lhe diz que podia muito bem falar do que ele queria sem ser hipnotizada. Freud concorda, e assim nasce o mtodo catrtico, ante-cessor da livre-associao. Alm de no conseguir hipnotizar com faci-lidade, Freud tinha outra razo para abandonar a hipnose: o efeito da sugesto ps-hipntica desaparecia rapidamente, e os sintomas voltavam com intensidade ainda maior.

    O objetivo do tratamento era encontrar as causas da doena, fazen-do o paciente se lembrar das circunstncias em que ela havia surgido. A hipnose era apenas um meio para isso; quando encontra outro melhor, ele a abandona sem grandes lamentaes. Aqui aparece a inuncia da formao cientca citada antes: por mais espetaculares que fossem, os sintomas histricos eram para Freud apenas a ponta de um iceberg, e era necessrio mergulhar mais fundo para descobrir o que os produzira.

    Freud se coloca uma questo aparentemente simples: se possvel provocar ou suprimir determinados comportamentos apenas falando com a pessoa, onde cam as ordens do mdico quando ela acorda do transe? E por que o hipnotizado no se lembra de que as recebeu, quando todos na plateia ouviram o mdico d-las?

    Para responder a esta pergunta em que regio da mente cam arma-zenadas as instrues recebidas sob hipnose ele vai se servir de uma ideia da qual est longe de ter sido o inventor: a noo de Unbewusste (incons-ciente). Esse conceito era corrente tanto no romantismo alemo como nos escritos de lsofos como Schopenhauer e Herbart, bem conhecidos na poca. A novidade est na interpretao que Freud lhe d: em vez de se limitar a supor que certas ideias podiam escapar percepo do sujei-to, ele sugere que o inconsciente uma localidade psquica na qual cam armazenadas as instrues do mdico. Dela no sabemos nada, mas sem uma suposio desse tipo impossvel dar conta dos fenmenos ps-hipnticos. E, uma vez admitida a existncia de uma tal regio na mente, necessrio investig-la com os recursos do mtodo cientco pois a alternativa seria acreditar em bruxaria.

    Essa deciso audaciosa foi o grande momento da vida de Freud e est na origem direta da psicanlise: supor a existncia de algo ainda des-conhecido como forma de dar conta do visvel, e partir em busca deste

    algo com os recursos da cincia. Tal atitude tinha dois precedentes, o que ajuda a compreender por que Freud aceitou correr os riscos episte-molgicos nela implicados.

    O primeiro a tabela peridica, criada pelo qumico russo Men-deleiev. Quando ele a concebeu, conheciam-se apenas cinquenta e pou-cos elementos. Metade das casas estavam vazias, o que levou muitos

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    a acharem que Mendeleiev tinha cometido um grande engano: como poderia haver lugares para elementos inexistentes? Mas o qumico no se abalou: disse que os tais elementos existiam, sim apenas no eram conhecidos ainda. De fato, nas ltimas quatro dcadas do sculo XIX, foram descobertos os que faltavam, ao ritmo impressionante de um ou dois por ano e exatamente com os pesos atmicos e propriedades previstos pelo modelo: o polnio, o germnio, o rdio etc.

    Chamo a ateno para a enormidade desse fato: a capacidade da mente humana de propor um modelo terico para o qual ainda no existe contedo emprico. Isso permite buscar algo preciso um elemento com as caractersticas necessrias para ocupar aquele lugar na sequncia e portanto se torna muito mais simples encontrar o que se procura. Onde estavam esses elementos at ento? Claro que na natureza s que nin-gum ainda os tinha visto.

    Da mesma forma, diz Freud, as histricas so incapazes de expli-car seu comportamento aparentemente absurdo, porque os verdadeiros motivos dele escapam sua conscincia mas nem por isso so menos determinantes. Dito de outro modo, o absurdo ilusrio: uma vez encontradas, as causas de tal comportamento so perfeitamente propor-cionais aos efeitos observados, assim como em qualquer ramo da cincia.

    O segundo exemplo a descoberta de Urano, em 1781, pelo astr-nomo Wilhelm Herschel outra aventura fascinante do esprito humano. Nos anos anteriores, graas ao uso de telescpios mais potentes, vinham sendo observadas certas irregularidades na rbita de Netuno s vezes, ele no estava na posio em que, de acordo com as leis de Newton, deveria aparecer no cu. De incio, pensou-se que as observaes haviam sido mal feitas, mas a repetio do fenmeno mostrou que eram exatas.

    Como um planeta no pode desaar as leis da mecnica celeste, das duas uma: ou a lei da gravitao estava errada algo difcil de acreditar, dada a imensa quantidade de fatos que ela explica ou exis-tia um corpo celeste ainda desconhecido, cuja atrao sobre Netuno ocasionava tais irregularidades. Mais: para produzi-las daquela forma e no de outra qualquer, o astro em questo devia ter tais e quais carac-tersticas: densidade, massa, rbita, e assim por diante. Os astrnomos

    se puseram a partir de ento espreita do tal corpo celeste e Herschel o encontrou! Urano exatamente como a teoria newtoniana diz que devia ser o que comprova a veracidade e a utilidade dela, pois per-mitiu prever o que ainda no se conhecia.

    Voltemos a Freud. Havia portanto pelo menos dois exemplos um na astronomia, outro na qumica para apoiar a ideia de que poss-vel haver efeitos cujas causas permanecem ocultas, mas devem ser reais, posto que produzem os efeitos observados. Freud a transporta para o domnio da psique e postula a existncia do inconsciente. nessa po-ca que comea a corresponder-se com Fliess, de modo que pelas cartas podemos acompanhar passo a passo a evoluo das investigaes freu-dianas como se fossem um dirio de bordo, ou o making of de um lme. A correspondncia se estende de 1887 a 1904 e se intensica a partir de 1893, quando a psicanlise comea realmente a ser gestada com um vocabulrio e ideias ainda incipientes, mas j no caminho que conduziria sua feio denitiva.

    Freud conta a Fliess os tratamentos que realiza, fala sobre a morte de seu pai, comunica-lhe a interpretao de inmeros sonhos seus e de seus pacientes, relata as hipteses que est formulando e as primeiras aplicaes delas a fenmenos no patolgicos, como os lapsos. Nesse ltimo caso, supor a existncia de desejos inconscientes a nica manei-ra de dar conta do que ocorreu. Freud tambm comea a reetir sobre o Witz (piada), que vai servir de base para um dos seus livros mais interes-santes: A piada e sua relao com o inconsciente.8 Para documentar, Freud reuniu cerca de 150 anedotas dos mais variados tipos, a partir de cuja anlise prope uma teoria bastante elaborada sobre o efeito cmico e sobre os processos psquicos que o originam. Tudo isso acompanhamos nessas cartas, que obviamente no eram destinadas publicao. Por isso, digo que constituem um verdadeiro making of da psicanlise o bnus do DVD, se se quiser.

    8. As razes pelas quais traduzo Witz como piada so expostas em Renato Mezan, A Ilha dos Tesouros: relendo A piada e sua relao com o inconsciente, in Abro Slavutzky & Daniel Kupermann, Seria trgico... se no fosse cmico. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005.

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    Nessa correspondncia tambm aprendemos como Freud cou surpreso com a frequncia de temas sexuais nos relatos de suas pacien-tes. Num primeiro momento, ele sente-se to chocado com isso quanto qualquer burgus com uma formao semelhante sua; mas, el a seus princpios cientcos, pe-se a investigar os motivos desse fato e des-cobre que por baixo da superfcie polida da conscincia havia um mar de lama, para usar uma expresso que conhecemos bem. Mas talvez essa no seja a forma adequada para se referir ao contedo do inconsciente, porque nada menos moralista do que os escritos de Freud. Digamos com mais preciso: ele se d conta de que a sexualidade muito mais importante na vida psquica do que se havia suspeitado at ento uma das grandes foras motrizes dos nossos desejos e fantasias.

    UMA TEORIA C IENT F ICA DA ALMA

    Na dcada que vai de 1895 a 1905, Freud publica uma srie impressionan-te de textos: A interpretao dos sonhos, Psicopatologia da vida cotidiana, o primeiro relato de um caso de histeria tratado pela psicanlise (o Caso Dora), os Trs ensaios para uma teoria sexual, e diversos outros, que for-mam os alicerces da psicanlise como sistema de pensamento. No que consiste ele? Imagine-se uma laranja com quatro gomos. A laranja a psicanlise, e os gomos so suas principais divises.

    O primeiro corresponde teoria da mente, que Freud chama metapsi-cologia. Se a psicologia a cincia que estuda nossos processos mentais, a metapsicologia a construo terica destinada a explicar como eles so possveis e por que acontecem dessa maneira e no de outra. A metapsico-logia trabalha com uma noo central: a diviso da mente em trs grandes regies, a saber, o inconsciente, o pr-consciente e a conscincia.

    A conscincia nos d a percepo de ns mesmos e do que est acontecendo no momento presente. No pr-consciente esto os con-tedos psquicos facilmente acessveis. Para exemplicar: nesse exato momento, espero, o leitor deste texto no est pensando na chapa do pr-prio carro. Mas se lhe for perguntado qual , decerto no ter diculdade

    em responder. E, se no o conseguir, estaremos diante de um lapso de memria: Freud diria que algo se ops ao desejo de lembrar aquele con-tedo um Gegenwunsch, um desejo contrrio e a contenda foi vencida por este ltimo. Por isso, uma psicanalista que conheci na Frana costu-mava dizer que no existe acte manqu (ato falho) na verdade, dever-amos dizer que se trata de um acte russi (ato bem-sucedido), porque o desejo inconsciente triunfou.

    O inconsciente, por sua vez, contm dois tipos de elementos: tudo o que fomos recalcando ao longo da vida, e os Triebe instintos ou pulses

    que so as foras que nos movem. Algumas delas empurram para este lado, outras puxam para aquele, e esse interjogo produz uma espcie de vetor, ao longo do qual transita aquilo que chega at nossa conscincia e eventualmente passa para o plano da ao.

    Usando uma metfora facilmente compreensvel para os seus con-temporneos, Freud fala de um aparelho psquico, que compara a um telescpio com suas lentes. A ideia hoje corriqueira, mas na poca era bastante audaciosa, porque propunha submeter a alma humana a leis como as da ptica ela que at ento fora o territrio dos poetas e dos romancistas, que sempre souberam que o homem movido por suas paixes.

    Essa parte da metapsicologia pode ser comparada anatomia, pois descreve os elementos estticos de que se compe a psique, assim como a anatomia descreve os elementos de que se compe o corpo. Alm disso, ela compreende algo semelhante siologia, que estuda os processos orgnicos (respirao, circulao, digesto etc.): a descrio do aparelho em funcionamento.

    Como isso ocorre? Freud arma que as pulses buscam descarre-gar-se, o que ilustra com outra metfora bem escolhida: a da corrente eltrica. O contedo da nossa mente consiste em ideias, lembranas, imagens e outras representaes. Quando investidas pela energia pul-sional, que lhes confere uma espcie de densidade, elas ganham for-a suciente para atravessar certas barreiras psquicas e chegar at a conscincia. Mas pode ocorrer que determinadas representaes ofen-dam nosso senso moral ou esttico, e, nesse caso, para evitar que se

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    tornem conscientes, precisam ser bloqueadas por outras, de sentido contrrio. O esforo do sujeito para cercear a expresso delas implica um desgaste, na verdade intil, pois, impedidas de passar pela porta, elas simplesmente entram pela janela mas sob um aspecto irreco-nhecvel, o que engana os guardies encarregados de zelar por nossa decncia interna.

    O que chega conscincia, diz Freud, pode ser comparado a um jornal tesourado por censores russos: cortam-se num artigo as partes consideradas inconvenientes para o regime, e o que sobra ca incom-preensvel. dessa forma que ele explica que tantos sonhos paream absurdos, que os sintomas neurticos no faam sentido para quem os apresenta, que nos escape a signicao de um esquecimento ou de uma gafe: parte da cadeia psquica que conduziu a tais resultados tornou-se inacessvel pela ao das defesas, mas permanece ativa no inconsciente, de onde como se dispusesse de um controle remoto codetermina o comportamento da pessoa.

    O que um sonho, nalmente? Uma sucesso de imagens, que na maior parte das vezes parecem desprovidas de signicao. Quando for-mam uma histria, sinal de que ocorreu algo a que podemos cha-mar elaborao secundria: como se os censores se envergonhassem do trabalho que tiveram de fazer e tentassem costurar os pedaos uns aos outros para formar uma sequncia. Assim, o absurdo do sonho se torna um forte argumento em favor da tese de que existem conitos entre os impulsos que provm do inconsciente e as foras que os repudiam. Essa a ideia bsica da psicanlise. Com notvel persistncia, Freud a aplica ao estudo dos sonhos, dos lapsos, das piadas, dos sintomas neurticos, da criao artstica e cientca, de fenmenos sociais como o comporta-mento das multides, os rituais religiosos ou a violncia da guerra em suma, ao conjunto da vida humana.

    Tomemos um exemplo simples: o das piadas. No existe boa ane-dota que seja politicamente correta. Por qu? Porque o humor consiste em apresentar de modo socialmente aceitvel um pensamento que, sem essa forma jocosa, ofenderia nossos valores morais, polticos ou estticos. Considere-se o seguinte exemplo: na casa da vov, a famlia se rene

    para o almoo de domingo. O vov prope que, antes de comer, todos faam uma orao. Eu no vou fazer orao nenhuma, diz o Jacozinho. A me o repreende: Mas como? Na nossa casa, sempre rezamos antes das refeies. Por que no na casa da vov?. E o menino: Porque ela sabe cozinhar!.

    O garoto est dizendo algo pesado: na casa dele, preciso rezar antes de comer porque sabe-se l o que a me preparou provavelmente, nada de gostoso. Mas por que, em vez de criticarmos o menino por ser malcriado, rimos do que ele disse? Porque, explica Freud, sempre temos alguma reclamao contra a nossa me. Quando ouvimos o que o Jaco-zinho disse sua, nos identicamos com ele e, j que ele falou em voz alta o que no ousaramos expressar, sentimo-nos autorizados a acolher um pensamento que, sem o admitir, j abrigvamos em nossa mente e o riso manifesta o alvio por poder fazer isso sem culpa.

    Nem todas as tiradas humorsticas satisfazem impulsos agressivos, mas algumas das melhores o fazem, e nisso reside o motivo do seu efeito. A necessidade de contornar a censura, no caso de o alvo da agresso ser uma gura que exige respeito, leva ao deslocamento do ataque para outras, prximas dela, porm menos capazes de gerar culpa: o caso das piadas sobre sogra. Ocorre uma ciso: as qualidades simpticas da me cam com a prpria, e as antipticas so atribudas a outra me, o que tem a grande vantagem de poupar a nossa da crtica.

    Dizem que um cidado levou toda a famlia para conhecer Jeru-salm: esposa, lhos, a bab e a sogra. No segundo dia da visita, a senhora tem um mal sbito e parte desta para melhor. Muito embaraa-do, o homem vai at uma agncia funerria, onde o encarregado lhe diz que tem duas opes: enterrar a falecida l mesmo, o que custaria 5 mil dlares, ou repatriar o corpo, o que sairia por 25 mil dlares. Depois de pensar um pouco, ele escolhe a segunda opo. Um tanto espantado, o funcionrio pergunta por que o cliente prefere gastar cinco vezes mais para resolver o seu problema. Resposta: Porque aqui j houve um caso de ressurreio.

    Por que se ri muito mais desta anedota do que da primeira? Porque ela mais ferina ou seja, contm mais agressividade, ofende mais, e ao

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    mesmo tempo faz isso de modo engenhoso, sem dar a impresso de que se trata de uma maldade. Esse ponto importante: se o homem apenas dissesse que tem medo de que a sogra retorne do alm, isso no teria graa nenhuma. a aluso que produz o efeito, pois nos surpreende-mos com a referncia (velada, mas facilmente decodicvel) a um dos dogmas centrais do cristianismo ou seja, a pilhria faz troa de vrias instituies respeitveis por meio do mesmo recurso.

    Essa forma de matar dois coelhos com uma s cajadada o que Freud chama de condensao, que, juntamente com o deslocamento, cons-titui um mecanismo tpico da lgica do inconsciente. Ele estuda esses processos, como disse, em vrias esferas o sonho, o lapso, o sintoma, a criao intelectual e assim demonstra como nosso pensamento cons-ciente apenas a parte visvel de um conjunto bem mais complexo de operaes psquicas.

    O segundo gomo da laranja uma teoria do desenvolvimento, ou seja, das etapas pelas quais a psique passa desde que nascemos at a idade adulta. Aqui importante destacar a evoluo da sexualidade as famosas fases oral, anal etc. Freud mostra como cada uma delas se ins-tala, e, ao ser sucedida pela prxima, no o faz sem deixar vestgios, que inuenciaro determinados comportamentos do adulto.9 Tambm fazem parte dessa evoluo o complexo de dipo, e a superao/represso dele quando a criana entra na fase dita de latncia, ao cabo da qual ocorre a escolha de objeto, que determinar se o indivduo ser homo ou heterossexual.

    Essa mesma ideia de etapas no desenvolvimento est na base do terceiro gomo: a psicopatologia. Em resumo, Freud vinculou as vrias espcies de problemas mentais e emocionais a transtornos ocorridos em fases especcas do desenvolvimento psicossexual: dependendo da fase em que ocorre a falha, o resultado ser uma esquizofrenia, uma para-noia, uma neurose obsessiva etc. Quanto mais cedo ocorrer a perturba-o, mais grave ser a condio resultante, que consiste simplesmente

    9. Por exemplo, o hbito de fumar e a voracidade alimentar ou intelectual so formas facil-mente reconhecveis da libido oral, que predominou na poca em que ramos lactentes.

    numa sada infeliz para o conito entre as foras pulsionais e aquelas que as recalcam.10

    Por m, quarto gomo da laranja: como possvel intervir no funcionamento psquico? Aqui encontramos hipteses sobre como e por que opera o processo analtico, e quais podem ser as causas do seu eventual fracasso. Fazem parte desse segmento da teoria noes como livre-associao, interpretao, transferncia, resistncia, insight, elaborao, entre outras. Em resumo, Freud diz que a pessoa adoece ao tentar controlar sua angstia; a neurose consegue fazer isso por-que, por meio da condensao e do deslocamento, canaliza para os sintomas grandes volumes de energia psquica, que de outro modo avassalariam o sujeito. menos incmodo ter uma fobia do que um ataque de angstia: por estranho que possa parecer, ao desenvolv-la estamos obedecendo ao princpio do prazer nesse caso, ao princpio de evitar o desprazer.

    O que o desprazer? a sensao de mal-estar que sentimos quando nossos impulsos e fantasias so frustrados pela realidade exte-rior, condenados pela moral ou por nosso senso esttico, ou quando nos fazem ter medo de perder o amor daqueles a quem queremos bem. Se eu zer tal coisa, o que mame vai dizer? O que papai vai fazer? E como vrios desses impulsos so incestuosos, a punio seria extremamente severa caso fossem satisfeitos.

    Os romancistas, dramaturgos e poetas sabiam perfeitamente que o amor e o sexo so foras fundamentais na vida do ser humano, assim como o dio, o cime, a inveja, a agressividade ou a violncia. Tam-bm sabiam que esses impulsos entram em choque com as normas que a sociedade impe para que possamos conviver de maneira civilizada uns com os outros. Pensem em Romeu e Julieta: eles se amam, mas no podem se casar porque pertencem a famlias inimigas. Tm que seguir a

    10. Essa ideia, que ainda hoje aceita (embora numa forma diferente da que lhe foi dada originalmente) serve de eixo para o trabalho mais importante de um dos discpulos de Freud, o psicanalista alemo Karl Abraham, que a exps no livro intitulado Histria da libido luz dos transtornos mentais (1924).

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    regra do sistema no qual vivem; mas, como tentam burl-la, so castiga-dos pelo destino. Na tragdia Le Cid, de Corneille, Ximne se apaixona pelo homem que matou seu pai, algo sumamente condenvel pelo cdigo de honra da nobreza medieval. O tema do amor proibido ilustra bem o conito entre as pulses e as normas, e por isso to frequente na lite-ratura de todas as naes.

    Freud d a esse antigo conhecimento uma forma cientca e mostra como ele pode ser utilizado para reverter os efeitos nefastos do que cha-mei h pouco de sada infeliz. Ao reconhecer a fora das paixes, ele um herdeiro do romantismo, que na Alemanha teve a importncia que se sabe. Mas ao postular que a tomada de conscincia das foras obscuras que nos movem tem o poder de alterar o equilbrio entre elas e a razo, obviamente em favor desta ltima ou seja, ao apostar no poder liberta-dor do conhecimento , Freud herdeiro do Iluminismo. Romantismo temperado por Iluminismo, ou vice-versa essa bem poderia ser uma sntese das suas concepes.

    Contudo, ao criar a chamada situao analtica Freud vai alm: inventa a psicologia clnica. O essencial aqui que, sozinho, ningum pode avanar no conhecimento de si mesmo alm de um certo ponto. Por qu? Porque a esse conhecimento se opem exatamente as defesas, to inconscientes quanto aquilo contra o que nos protegem. Por isso que se torna necessria a gura do analista: uma espcie de espe-lho para quem falamos, e que nos devolve, com o esclarecimento dos processos que ocorrem na sesso, uma imagem mais ntida de nossa prpria vida emocional. Na anlise, aprendemos a falar nossa prpria lngua, por meio de uma experincia intersubjetiva com algum em quem conamos e que, justamente por ser neutro, reservado, de certa forma distante embora acolhedor nos possibilita esse mergulho em ns mesmos.

    Nesse ponto, Freud um partidrio das Luzes, e as metforas da luz pontilham cada pgina de seus escritos. Uma delas compara a neurose a uma casa fechada, cheia de morcegos e teias de aranha. A experincia da anlise equivale a abrir as janelas; assustadas pela luz e pelo ar fresco, as criaturas da escurido fogem por todos os lados morcegos, ratos,

    baratas. Pela luz do qu? Do conhecimento mas de um conhecimento que no doutrinao, e sim descoberta.

    Mas, algum poderia perguntar, por que ir atrs das coisas doloro-sas? No melhor deix-las quietas, protegidas pelos sintomas que ao mesmo tempo as exprimem e as ocultam? No melhor deixar os ces dormindo? Num texto chamado Anlise terminvel interminvel, Freud responde: se h sintomas, angstia, sofrimento, sinal de que os ces no dormem, apenas esto rosnando baixo. Mais cedo ou mais tarde vo latir, e o prejuzo ser muito maior: ataques de angstia, depresses, doenas psicossomticas, loucura ou essa atividade qual nos entregamos com tanto deleite: infernizar a vida do prximo.

    Isso fundamental. Gostaramos de imaginar, escreve Freud em O mal-estar na cultura, que o ser humano essencialmente bom e generoso. Mas se observarmos com ateno a histria e o comportamento das pessoas, veremos que so dotadas de uma dose extraordinria de agressividade, que no hesitam em agredir o prximo, em explorar sem retribuio a sua capacidade de trabalho, us-lo sexualmente sem seu consentimento, provocar-lhe dor, humilh-lo, tortur-lo e mat-lo. Homo homini lupus.11

    Diante deste diagnstico sombrio, qual a nica esperana que se pode acalentar? Exatamente, a drenagem de uma pequena parte do oce-ano pulsional, e a sua anexao parte consciente da personalidade; mas no seguindo sem crtica os ditames da ideologia, e sim adquirindo mais liberdade interna, o que envolve conhecer e aceitar tanto nossas limita-es quanto os recursos de que a natureza e a civilizao nos dotaram. Muitas vezes, isso envolve alguma crtica da ideologia dominante: a an-lise nos ensina a no converter o desejo de ser como os outros em mais um sintoma neurtico. Isso no signica, claro, que estimule a delin-quncia: apenas nos faz perceber quais foras nos determinam, quais so os nossos verdadeiros anseios, para assim termos melhores condies de decidir quais deles podemos tentar satisfazer.

    11. Sigmund Freud, Das Unbehagen in der Kultur (1930), Studienausgabe, Band ix, captulo v, p. 240 (traduo espanhola de Luis Lpez-Ballesteros. Madri: Biblioteca Nueva, 1977, tomo iii, p. 3046).

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    Em outros termos, ela contribui para aumentar nossa capacidade tanto de nos autocontrolar, renunciando realizao de alguns desejos e fantasias, como de extrair mais prazer daqueles de que a realidade nos permite desfrutar. E, como evidente, tal realidade depende no s, mas tambm daquilo que fazemos na vida. isso, penso, que Freud tem em mente quando diz que a anlise , como a drenagem do Zuyder-see, um trabalho de civilizao. O que apresentei aqui tambm uma espcie de polder alguns hectares desse vasto territrio, o pensamento de Freud. Se esta pequena amostra da riqueza dele motivar o leitor a prosseguir no seu estudo, poderei me dar por satisfeito.

    A RECEPO DE FREUD NO BRASIL

    As primeiras referncias s ideias de Freud por parte de psiquiatras brasi-leiros so contemporneas da publicao de seus artigos em revistas cien-tcas alems, ou seja, datam dos anos iniciais do sculo XX. Isso porque, dado o prestgio da medicina germnica, muitos faziam seus estudos na Alemanha ou em Viena e se mantinham atualizados assinando os peri-dicos l editados. A partir de uma exposio sobre o novo mtodo feita em 1899 por Juliano Moreira, da faculdade do Rio de Janeiro, pouco a pouco vo surgindo menes aos trabalhos de Freud, porm sem destaque especial: mais um entre os psiquiatras citados, assim como Krafft-Ebing, Bleuler ou Kraepelin. Aqui e ali, temos notcias do emprego das tcnicas freudianas na prtica clnica, mas sempre isoladamente e sem continuidade.

    Na dcada de 1920, a inuncia das vanguardas europeias sobre os modernistas abre outra via para a penetrao das ideias psicanalticas: no Manifesto antropofgo, Oswald de Andrade se serve de algumas delas, e Mario de Andrade chegou a sugerir o termo sequestro para verter o nome do principal mecanismo de defesa proposto por Freud (Verdrn-gung, depois traduzido como represso ou recalque). Sai um ou outro artigo na imprensa, ouve-se uma ou outra conferncia, do mesmo modo como se fala do surrealismo ou da moda do tango: a psicanlise mais

    um assunto para as conversas de salo, sem prejuzo do emprego de tal ou qual aspecto dela em determinado caso atendido por um prossional.

    com Durval de Andrade que tem incio um esforo mais conse-quente para que as ideias freudianas deixem de ser apenas mais um item no cardpio intelectual. Ele se pe em correspondncia com Freud, funda uma Revista brasileira de psicanlise (que teve um nico nmero, em 1926),12 organiza em So Paulo a Sociedade Brasileira de Psicanlise (tambm em 1926) e busca trazer para a cidade um analista didata, capaz de realizar an-lises de verdade e assim formar um primeiro grupo de psicanalistas locais.13

    Com a chegada da dra. Adelheid Koch capital paulista no ano de 1937, encerra-se a fase diletante da psicanlise brasileira, e tem incio um novo perodo, que a meu ver se estende at meados da dcada de 1970. Durante esses anos, quem deseja se tornar psicanalista l os escritos de Freud, mas a forma desse estudo tributria dos desenvolvimentos mais amplos da psicanlise.

    Depois de 1945, muitos latino-americanos vo se formar na Inglaterra,14 onde tomam contato com o crculo de Melanie Klein e aca-bam adotando o estilo clnico que ela inaugurou. O kleinismo torna-se assim a corrente predominante nas Sociedades brasileiras; Freud vai aos poucos se convertendo numa espcie de Pai Fundador, um vulto vene-rado a cujo retrato na parede se fazem as reverncias de praxe, mas sua obra passa a ser considerada como algo de importncia histrica, com que se tem a mesma relao existente com os clssicos da arte e da lite-ratura. Na clnica, porm, empregam-se as ideias de Klein, particular-mente o modo como ela trabalha a relao transferencial.

    12. O nmero 2 s foi publicado em 1967, mas desde ento a revista vem tendo edies regulares.13. Essa importao de especialista(s) semelhante que na mesma poca ocorre na recm-fundada Faculdade de Filosoa, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, para cujas ctedras so convidados jovens professores franceses, como Claude Lvi-Strauss, Roger Bastide, Fernand Braudel e cientistas obrigados a deixar a Alemanha e a Itlia por causa das perseguies fascistas.

    14. Alm do prestgio da psicanlise inglesa e dos atrativos de passar alguns anos em Lon-dres, o Brasil e a Argentina tinham sado da guerra em situao bem melhor do que a Gr-Bretanha: a relao de cmbio favorecia suas moedas, o que barateava a formao.

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    Durante as dcadas de 1950 e 1960, a metrpole psicanaltica para os brasileiros Londres. A publicao dos trs volumes da biograa de Freud escrita por Ernest Jones, assim como dos primeiros volumes da nova tra-duo inglesa dos Gesammelte Werke por James e Alix Strachey empreen-dimento que consumiu muitos anos de trabalho, e resultou nos 24 tomos da Standard Edition of the Complete Works of Sigmund Freud estimulou alguns analistas do Rio de Janeiro a verter para o portugus os escritos do mestre. Mas a opo de traduzi-los da Standard, e no do original, resultou num trabalho sem coerncia na terminologia e eivado de erros.

    O fato de a Edio standard brasileira realizada com boa vontade, porm sem qualidade literria nem cientca ter sido recebida sem cr-ticas diz bastante sobre a posio secundria de Freud nas referncias dos analistas brasileiros de ento: se os textos da escola kleiniana tivessem sido traduzidos com a mesma displicncia, com certeza a reao teria sido outra. Somente com as novas condies mencionadas mais adiante que se percebeu como era ruim o texto disponvel na nossa lngua.

    Nas mesmas dcadas, mas ainda sem impacto sobre a psicanlise em nosso pas, Jacques Lacan empreendia na Frana o chamado retorno a Freud. O estudo minucioso dos textos, frequentemente no original alemo, resultou para os discpulos de Lacan numa grande familiaridade com o pensamento do mestre de Viena, e na transformao de Freud em um interlocutor tanto para a teorizao quanto para a prtica clnica, o que no ocorria nos pases de lngua inglesa.

    A partir de 1970, as doutrinas lacanianas comeam a ser divulgadas na Amrica Latina, em especial na Argentina. Os prossionais platinos que vinham para c primeiro como conferencistas visitantes, e aps o golpe de 1976 como emigrados polticos traziam na bagagem uma nova viso da obra freudiana, inuenciados pelo prestgio de que ela passara a desfrutar na Frana. Durante a dcada de 1980, retornam ao pas vrios analistas for-mados no ambiente gauls, ou na universidade belga de Louvain, ento um importante centro lacaniano. Eles trazem consigo um conhecimento e uma valorizao de Freud que tambm contriburam para a maior difuso do seu pensamento nas plagas tropicais. Em alguns novos cursos de formao para psicanalistas como o do Instituto Sedes Sapientiae, em So Paulo o corpus

    freudiano se torna o eixo central dos estudos, o que ainda hoje contrasta com o currculo de corte mais britnico em uso nas Sociedades de Psicanlise.

    Por m, para compreender a situao atual de Freud na cultura bra-sileira preciso mencionar outros trs processos ocorridos nos ltimos trinta anos. Em primeiro lugar, a crescente solicitao por parte da mdia para que psicanalistas expressem sua opinio acerca de comportamentos, atitudes, declaraes de autoridades polticas e cientcas, crimes parti-cularmente hediondos, e outros fatos da vida social. Nesses comentrios, no raro citada alguma ideia do fundador da disciplina, e isso contri-bui para que o grande pblico se familiarize com conceitos como o de inconsciente, complexo de dipo, entre outros.

    O segundo processo a crescente presena da psicanlise nos cur-sos de ps-graduao em psicologia. Isso deu origem a muitas teses de tima qualidade, que por sua vez terceiro processo vm sendo publi-cadas por editoras especializadas. Em virtude do que expus, tanto em teses quanto em livros so frequentes as referncias a Freud e discusses sobre as implicaes delas para o assunto tratado.

    Sinal de uma exigncia congruente com o novo papel da obra freu-diana no pensamento dos analistas brasileiros a deciso da Editora Ima-go de encetar uma nova traduo, desta vez com critrios adequados e a partir do original alemo. Sob a coordenao de Luiz Alberto Hanns, at janeiro de 2009 saram trs dos dez volumes planejados. As excelentes notas explicativas e a qualidade da traduo com certeza faro dela um instrumento de trabalho utilssimo para os psicanalistas, pesquisadores e demais interessados em conhecer o que Freud realmente disse.

    Para concluir: alm das constantes citaes em artigos, livros e con-ferncias, esse contato mais ntimo com a obra fundadora da psicanlise vem inuindo no modo como os prossionais conduzem seu trabalho clnico. A capacidade dos escritos de Freud para inspirar reexes sobre os mais variados aspectos da vida psquica, assim como para fornecer pistas que permitem compreender fenmenos dos quais ele no tratou explicitamente, parece dar razo ao psicanalista francs Andr Green, o qual, questionado certa vez sobre o que havia de novo em psicanlise, respondeu sem hesitar: Freud.