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CienteFico. Ano II, v. I, Salvador, agosto-dezembro 2002 Os contos de fadas e o desenvolvimento infantil Camila Ferrari de Almeida 1- Os contos de fadas e o desenvolvimento infantil O homem busca significações para sua vida a cada fase que vive. Esse significado reflete, na idade adulta, um ideal de maturidade psicológica encontrado após uma vivência e uma experimentação. Observa-se, cotidianamente, como muitos pais querem que os filhos já adquiram essa maturidade ainda na infância, não entendendo, portanto, que ela é decorrente de um processo - naturalmente lento e gradual. Decorre daí,uma questão: como ajudar uma criança a encontrar o seu significado? Ao se desenvolver, ela vai entendendo melhor a si mesmo e o mundo que lhe cerca; mantendo com ambos uma relação significativa. É necessário ajudá-la a desenvolver recursos internos (imaginação, intelecto e emoções) para que possa lidar com os obstáculos que poderão surgir em sua vida. Esse auxílio lhe é chegado por muitos caminhos os quais podemos destacar três vias principais: a mediação dos pais e de qualquer indivíduo que a circunde, a herança e o meio cultural e a literatura. A literatura desenvolve habilidades, entretém, informa; e, para isso, exige uma maior capacidade abstrativa por parte da criança. Para que a criança se sinta absorvida por uma estória, esta deve despertar sua curiosidade. Além disso, deve despertar também a sua imaginação, seu intelecto e suas emoções, deve propor soluções para os problemas que a perturbam e, ainda, deve tentar harmonizar seus sentimentos. Esse processo precisa ocorrer sem menosprezo de suas capacidades, bem como, deve contemplar, a valoração da sua autoconfiança. O que se encontra na literatura, que atende de forma privilegiada a essas necessidades, são os contos de fadas. Por não serem contemporâneos, os contos de fadas não ensinam muito acerca da vida moderna, do

Almeida,CF-Contos de Fadas e Desenvolvimento Infantil

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Almeida,CF-Contos de Fadas e Desenvolvimento Infantil

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  • CienteFico. Ano II, v. I, Salvador, agosto-dezembro 2002

    Os contos de fadas e o desenvolvimento infantil

    Camila Ferrari de Almeida

    1- Os contos de fadas e o desenvolvimento infantil

    O homem busca significaes para sua vida a cada fase que vive. Esse significado reflete,

    na idade adulta, um ideal de maturidade psicolgica encontrado aps uma vivncia e uma

    experimentao. Observa-se, cotidianamente, como muitos pais querem que os filhos j

    adquiram essa maturidade ainda na infncia, no entendendo, portanto, que ela decorrente

    de um processo - naturalmente lento e gradual. Decorre da,uma questo: como ajudar uma

    criana a encontrar o seu significado? Ao se desenvolver, ela vai entendendo melhor a si

    mesmo e o mundo que lhe cerca; mantendo com ambos uma relao significativa.

    necessrio ajud-la a desenvolver recursos internos (imaginao, intelecto e emoes) para

    que possa lidar com os obstculos que podero surgir em sua vida.

    Esse auxlio lhe chegado por muitos caminhos os quais podemos destacar trs vias

    principais: a mediao dos pais e de qualquer indivduo que a circunde, a herana e o meio

    cultural e a literatura. A literatura desenvolve habilidades, entretm, informa; e, para isso,

    exige uma maior capacidade abstrativa por parte da criana.

    Para que a criana se sinta absorvida por uma estria, esta deve despertar sua curiosidade.

    Alm disso, deve despertar tambm a sua imaginao, seu intelecto e suas emoes, deve

    propor solues para os problemas que a perturbam e, ainda, deve tentar harmonizar seus

    sentimentos. Esse processo precisa ocorrer sem menosprezo de suas capacidades, bem

    como, deve contemplar, a valorao da sua autoconfiana. O que se encontra na literatura,

    que atende de forma privilegiada a essas necessidades, so os contos de fadas. Por no

    serem contemporneos, os contos de fadas no ensinam muito acerca da vida moderna, do

  • cotidiano atual; mas, eles trazem lies universais para resoluo de conflitos internos, que

    se adequam a qualquer sociedade. Desse modo, a criana que est exposta ao mundo dos

    contos de fadas poder apreender estratgias para o enfrentamento dos seus prprios

    conflitos .

    Com o passar dos sculos, os contos de fadas foram recontados de maneira ainda mais

    refinada e adquiriram, com uma linguagem clara, significados encobertos e notrios. Seus

    contedos atingem a criana e o adulto, j que falam em muitos nveis da personalidade

    humana. Essas histrias se dirigem ao ego[1],ainda em formao, e o ajudam a se

    desenvolver; aliviando as foras pr-conscientes e inconscientes. Ao mesmo tempo,

    auxiliam o id a satisfazer seus anseios, entrando em um acordo com o ego e o superego. O

    papel fundamental dos contos de fadas reside no amparo dado criana - no que se refere

    compreenso das suas presses internas e lutas interiores - oferecendo solues simblicas,

    temporrias ou definitivas para estas dificuldades. Ensinam criana que esses problemas

    fazem parte da vida, pois so inevitveis para a existncia humana e colaboram, portanto,

    com seu crescimento e desenvolvimento maturacional (Bettelheim, 1980).

    Os contos de fadas se remetem a dilemas existenciais de maneira lacnica e clara,

    simplificando situaes conflitantes para a criana. Dessa forma, a criana apreende a

    elabora contextos que antes eram confusos e de difcil entendimento. Os personagens so

    tpicos e os detalhes insignificantes so deixados de lado. A dualidade bem/mal est

    presente, j que ela compe qualquer indivduo. Ambos recebem corpo, fala e aes; e se

    personificam. Essa luta ajuda a desenvolver o conceito de moral na criana e a convida para

    resolver esse conflito. (Bettelheim, 1980).

    interessante perceber que o mal colocado como maniquesta: ele possui atrativos

    (poder, glria, beleza, esperteza) que, de certa forma, envolvem a criana.

    Temporariamente, mantm-se vitorioso, ocupando o lugar do heri. Sabe-se, entretanto,

    que no final da estria sempre ser punido. Essa linguagem, alm de apresentar criana o

    conceito de moral, fornece a ela noes de justia e lhe passa a idia de que o crime no

    compensa. Dessa forma, desenvolve-se um receio da subverso - uma intimidao com

  • relao aos crimes - bem como o medo das suas conseqncias. Diante disto, a criana se

    identifica com o heri, por ter a moralidade bem desenvolvida e lutar contra todas os seus

    obstculos (Bettelheim, 1980).

    Segundo Freud (1922), a criana enfrenta problemas psicolgicos ligados ao seu

    crescimento - como os dilemas edpicos e narcsicos, rivalidades fraternas, lutos - e, ao

    mesmo tempo, desenvolve uma identidade, uma autovalorizao e a sua moral. O conto

    apresenta para a criana noes de certo e errado, bem e mal; e colabora para o

    desenvolvimento da sua prpria moral. Ele pode agir como um facilitador para que a

    criana devaneie, organize e reestruture sua compreenso, acerca de si e do mundo. Oferece

    - graas a sua forma e linguagem simblicas - a possibilidade dela imaginar, elaborar

    contedos inconscientes e adequ-los aos conscientes.

    O que se percebe, entretanto, que os pais omitem - muitas vezes inconscientemente- esse

    lado da criana, mostrando-lhe somente o lado bom e otimista da vida, s lhe apresentando

    uma viso unilateral de mundo. como se os pais quisessem que os filhos no fossem

    afetados pelo que consideram mau no mundo. Evitam desta forma, que a criana perceba

    que os fracassos da vida so conseqncias da prpria natureza humana, que muitas vezes,

    por questes de sobrevivncia, agressiva. Querem que seus filhos se vejam bons, mas os

    prprios infantes sabem que no so bons sempre, nem gostam de s-lo. Essa contradio

    faz com que elas se vejam como monstros diante de si mesmas. (Bettelheim, 1980)

    As figuras dos contos de fadas no so dbias ou ambivalentes como o ser humano; mas, a

    polarizao que se encontra nessa linguagem, tambm permeia a mente da criana (um dos

    pais, para ela bondoso; enquanto o outro mau, por exemplo). Alm disso, as suas

    escolhas se baseiam nas caractersticas com as quais a identificao se torna mais natural .

    mais fcil identificar-se com o personagem bom, simples e direto, do que com o mau. O

    heri lhe traz um apelo positivo, no qual a criana projeta o seu desejo. Ela escolhe um

    personagem e decide que quer ser igual a ele: se essa figura muito boa, seu objetivo

    tornar-se igualmente bom. (Bettelheim, 1980).

  • Os finais dos contos de fadas, geralmente, terminam com a clssica frase e viveram felizes

    para sempre. Esse final sugere para a criana que uma pessoa viveu, lutou e conseguiu

    atingir um nvel alto de segurana emocional e estabilidade. Encontrar um amor adulto

    dispensa o desejo pela vida eterna, j que a felicidade vivida aqui e agora; essa alegria

    que afasta o medo da morte na criana. Figuras como heris que partiram ss no mundo

    desconhecido; filhos que sofreram com a morte dos pais; pessoas que sofreram muitas

    frustraes, ou perderam algo muito importante na vida; mas, que conseguiram se erguer;

    so modelos para os leitores, j que, mostram que possvel encontrar um lugar seguro

    dentro e fora de si. Hoje, mais do que nunca, as crianas modernas se identificam com o

    heri que, assim como elas, se mantm algum tempo no isolamento. Algo semelhante

    acontece com a criana, que tambm se relaciona com este crculo. O heri mostra

    criana que ela pode se sentir rejeitada, desprezada ou sozinha no mundo, mas que isso

    pode ser transitrio; pode-se abrir para ela um caminho para a construo de novas relaes

    (Bettelheim, 1980).

    Ao mesmo tempo em que diverte, o conto age como um colaborador para o

    desenvolvimento da personalidade, em diferentes nveis; j que, enriquece a existncia da

    criana. Essa colaborao oferecida de forma saudvel e atraente. Durante este processo

    de crescimento, a criana pode se defrontar com uma resistncia dos pais e de si prpria, j

    que um medo de crescer sentido paralelamente ao desejo e ao fascnio que essa

    possibilidade lhe traz. Esse curso de vida culmina com a independncia psicolgica e

    maturidade moral, relacionando-se satisfatoriamente com o sexo oposto. Os contos de

    fadas, portanto, fornecem contribuies psicolgicas significativas para o crescimento

    interno do sujeito (Bettelheim, 1980).

    O prazer e o encantamento que experimentado aps o contato com um conto nico,

    singular; visto que, uma obra literria de cunho psicolgico. Por ter um significado

    simblico, o conto tem a capacidade de acessar contedos pessoais que dependem do

    momento em que ele se apresenta. possvel, desta forma, se obter diferentes

    interpretaes de um mesmo conto, se for lido com diferentes interesses (Bettelheim,

    1980).

  • Percebem-se, no entanto, contedos universais e atemporais nos contos que os

    caracterizam. No conto Joo e Maria, por exemplo, so encontrados temas como

    abandono e superao da oralidade[2]. Neste conto, as crianas devem sair, por conta

    prpria e aprender a lidar com a angstia da separao dos pais. Alm disso, a necessidade

    de transcender a oralidade evidente. Em seu contedo, elas so seduzidas por uma casa de

    biscoitos perdida na floresta. Quando a comem, so ameaados por uma bruxa que queria

    devor-los; fazendo nascer neles uma nova angstia, baseada agora na ameaa de serem

    comidos. Maria, uma menina dependente do irmo, consegue libert-los e d um enorme

    passo em direo a sua independncia. Esse conto tem um impacto benfico, j que, no

    final o inimigo ameaador exterminado. Poderia ser contado para uma criana de

    quatro/cinco anos de idade, mas seu significado simblico no se restringe a essa faixa

    etria. O medo de ser devorado, de morrer de fome, de ser abandonado pelos pais e da

    superao da oralidade so angstias que permeiam o inconsciente do homem em qualquer

    idade (Freud,1922).

    J Branca de Neve, representa a adolescente que tenta superar os desmandos e os cimes

    da madrasta, que pode representar uma me sempre fria e distante, que nega ao filho uma

    vida independente.Rapunzel parte de uma origem similar, com uma me feiticeira

    igualmente ciumenta. Apesar de tambm ser salva por um homem, Rapunzel apresenta um

    diferencial em relao Branca de Neve. Ela luta contra a bruxa e encontra um meio de

    se encontrar com o prncipe, atravs do seu prprio corpo, mostrando que este corpo pode

    ser uma fonte de segurana.

    Pode-se notar, deste modo, que os contos de fadas tem um significado psicolgico para

    qualquer indivduo, independentemente da idade, sexo ou personagens da histria; j que os

    contedos aos quais eles remetem so universais. possvel se extrair um significado rico

    e pessoal de cada conto, para cada problema enfrentado, bem como lies e modelos de

    identificao. A partir desta constatao, de que a criana o vetor diretivo, possvel que

    se leia um conto para ela que no a toque e que ela no se identifique. necessrio tentar

    outra vez, com um novo conto, para que se produza nela um entusiasmo, um

  • reconhecimento com as situaes. Por isso, ao se contar um conto, imprescindvel que se

    escute a criana e a deixe guiar a histria. Mesmo que se note a razo da identificao da

    criana com um determinado conto, deve-se guardar para si toda e qualquer forma de

    interpretao. Os contedos que emergem devem ser preservados; pois, seria muito

    invasivo tentar interpretar qualquer pensamento. Da mesma forma, tambm no se deve dar

    explicaes que acabem com o encanto da histria, ou tirem da criana a oportunidade de

    sentir suas prprias emoes. Os contos de fadas enriquecem a vida da criana, justamente

    por no lhe mostrarem a razo deste encantamento (Bettelheim, 1980).

    2- A criana e o cncer

    O confronto com a possibilidade de morte surge para a famlia quando comunicado o

    diagnstico de uma doena grave como o cncer. A partir desse momento, profundas

    alteraes nela se instalam, afetando no s a unidade familiar, mas tambm o

    relacionamento de seus membros com outras pessoas. Mesmo com todos os avanos que

    vem apontando o aumento da cura do cncer infantil, a famlia passa a viver um tempo de

    incertezas, de sentimentos de angstia, de estreitamento de seus horizontes; pois, o medo

    da morte que eclode no momento do diagnstico e que vai permear todo o perodo de

    tratamento (Carvalho, 1994).

    Neste contexto, podem explodir sentimentos dos mais primitivos na criana: o terror do

    abandono, o medo da separao, a perspectiva de perder seu papel na famlia, o desamparo

    e a tristeza. Sabe-se que, as crianas, ao longo do seu desenvolvimento, tm que conquistar

    gradualmente a sua autonomia e a sua independncia. As crianas portadoras de doenas

    graves - como o cncer - passam por mudanas que alteram seu corpo, sua vida social e a

    atividade psquica; alteraes que, de certa forma, transformam o ritmo desse

    desenvolvimento. A partir da doena, elas j no mais controlam o mundo que as cercam. A

    doena as submete a procedimentos teraputicos necessrios para a sua sobrevivncia, o

    que as faz entrar em um mundo diferente do seu, com pessoas e dores nunca antes

    apresentadas (Carvalho, 1994).

  • Muitas mudanas ocorrem. Alguns pacientes ficam internados em hospitais, separados do

    ambiente familiar. Alguns efeitos indesejveis da medicao ou da prpria doena podem

    ocorrer, tais como: nusea, vmitos, diarria, priso de ventre, dores sseas, mudana de

    humor, queda de cabelo. Tudo isso muito novo e sofrido para a criana. Entretanto,

    percebe-se que o impacto do diagnstico amenizado pelas chances de cura que lhe so

    apresentadas. Na maioria dos casos, essa esperana a move para atitudes positivas, fazendo-

    a participar ativamente do seu tratamento (Camon, 1998).

    Ciente do seu diagnstico, supomos que os sentimentos de intensa angstia, s vezes de

    pnico, que assaltam a criana em crise, no seriam devidos apenas falta de soluo para

    o novo, mas projeo com fantsticas ameaas provocadas pelas figuras aterrorizantes das

    camadas do inconsciente que emergem nesses estados de extrema tenso emocional

    (Simon APUD Carvalho 1994).Diante da sua nova realidade, alguns sentimentos povoam a

    sua mente: ela sente-se culpada por ver seus pais tristes e longe do convvio familiar, por

    estar fazendo-lhes gastar dinheiro e tempo com o tratamento; teme as recadas da doena;

    as incertezas do futuro e sente o medo da morte (Carvalho, 1994).

    Sua relao com a morte estabelecida de maneira muito particular. Numa fase anterior

    doena, a morte era vista como distante e fora da sua realidade. A partir do seu diagnstico,

    ela comea a manifestar suas preocupaes com uma possvel no cura, mas esses

    momentos so passageiros. A esperana se mantm at quase o fim da doena e

    substituda pela conformao ao perceber a sua irreversibilidade. Nesta nova fase, a criana

    aceita o seu prprio fim, mas sente dor e desespero ao pensar em separar-se das pessoas que

    ama. A figura materna, neste momento, se apresenta como a amenizadora dos seus medos,

    confortadora da sua agonia e protetora das ameaas externas. Percebe-se, muitas vezes,

    comportamentos regressivos a estgios primitivos do desenvolvimento, solicitando o

    restabelecimento do vnculo simbitico com a me. Nessa caminhada, agora solitria, a

    criana sente-se frgil e ameaada por uma doena que a cada dia lhe tira mais um pouco

    das suas foras. No h sujeito da morte. Mas, h efetivamente, um sujeito da dor, da

    agonia, da passagem (Raimbault APUD Carvalho, 1994).

  • Segundo Di Leo (1983) atravs do brincar, do criar e do desenhar, por exemplo, a criana

    conta histrias, povoadas de monstros, lobos-maus e princesas e revela traumas

    inconscientes, desejos e sonhos, plenos de sentido e emoo. Problemas emocionais

    associados a esse novo contexto, bem como fatores de ajustamento ao tratamento,

    repercusses da doena e das limitaes que ela impe, a mudana da imagem corporal e as

    relaes com a famlia so pontos que podem ser verificados em desenhos projetivos.

    3- A projeo e a linguagem grfica

    A projeo um mecanismo de defesa, no qual os indivduos atribuem aos outros,

    sentimentos que so seus e que, por valores sociais ou individuais, so considerados

    mesquinhos ou feios. Atravs desse mecanismo, os aspectos da personalidade de um

    indivduo so deslocados de dentro deste para o meio externo. A ameaa tratada como se

    fosse uma fora externa. A pessoa, ao projetar-se, pode lidar com sentimentos reais; mas,

    sem admitir ou estar consciente do fato de que a idia ou comportamento temido dela

    mesma. (Hammer, 1991)

    Sempre que caracterizamos algo de fora de ns como sendo mau, perigoso, pervertido,

    imoral e assim por diante, sem reconhecermos que essas caractersticas podem tambm ser

    verdadeiras para ns, provvel que estejamos projetando. O indivduo expulsa de si e

    localiza no outro seus sentimentos, desejos ou qualidades. A projeo se manifesta em

    situaes normais ou patolgicas (Arzeno, 1995).

    Sabe-se que o termo "projeo" foi muito usado em psicologia por Sigmund Freud, tendo-o

    mencionando pela primeira vez em 1896 (Freud APUD Ocampo, 2001). Freud o utiliza

    para designar duas classes de fenmenos: A primeira se refere a um mecanismo de defesa

    contra a angstia. Nesse sentido, a projeo consiste em proteger o ego da angstia - tanto

    se procede do plano instintivo, quanto se origina no superego ou provm do exterior; ou

    seja, do objeto - impedindo a tomada de conscincia de contedos internos perigosos,

    mediante deslocamento face o mundo externo. Mediante este mecanismo, o ego pode obter

    um alvio e uma satisfao e evitar a recriminao. A projeo foi particularmente estudada

  • por Freud na parania e tambm na origem dos sentimentos religiosos. A outra classe de

    fenmenos remete a projeo a um mecanismo de maior amplitude, que consiste de

    recordaes de nossas percepes anteriores, que tendem a influir na percepo dos

    estmulos atuais.

    A linguagem grfica foi escolhida para este trabalho por possuir vantagens importantes, tais

    como: a linguagem grfica, assim como a ldica, a que est mais prxima do inconsciente

    e do Ego corporal (Hammer,1991). Desta forma, os desenhos mostram uma produo muito

    prxima do inconsciente. Mostram muito do que h de regressivo e de patolgico na

    criana. Alm disso, a linguagem grfica oferece maior confiabilidade que a linguagem

    verbal e possui fcil administrao (Arzeno,1995).

    Atravs dos desenhos projetivos a personalidade do indivduo pode se manifestar

    (Hammer,1991). Os aspectos expressivos dos desenhos so encarados como fontes de

    contedos latentes e manifestos, que sero trazidos pela criana de maneira projetiva. No

    ato do desenho, deve-se analisar a maneira como o desenho realizado, bem como a

    estrutura e os contedos produzidos. A anlise expressiva considera o tnus das figuras,

    expresso facial e corporal e o uso de acessrios, por exemplo, como importante fonte de

    dados. A respeito da sua importncia, Di Leo (1985, p. 23) considera que cada desenho

    um reflexo da personalidade de seu autor; que ele expressa aspectos afetivos da

    personalidade, tanto quanto cognio; que ele fala, no caso de crianas, mais sobre o artista

    do que sobre o objetivo retratado; que a metodologia do examinado deve, por necessidade,

    ser intuitiva, tanto quanto analtica.

    de extrema importncia levar em considerao os comentrios da criana com relao a

    sua produo. A sua fala tem cunho esclarecedor de alguma atitude, pensamento ou

    sentimento que o desenho tenha suscitado. Entretanto, elementos como o tamanho, a

    presso e qualidade da linha; a posio na folha, a preciso, o grau e a rea de completude;

    a simetria, a perspectiva, a proporo, sombreamento e o reforo tambm fornecem

    subsdios para a anlise do contedo (Di Leo, 1985)

  • A seqncia que a criana segue na realizao do desenho fornece, de maneira contnua, os

    aspectos estruturais do conflito e da defesa. Ela oferece uma srie de comportamentos

    amostrais, que permitem avaliar o controle que a criana tem da sua energia.

    Freqentemente, os sujeitos se apresentam um tanto perturbados inicialmente, mas logo se

    acalmam e trabalham eficientemente medida que procedem do primeiro para o ltimo

    desenho. Isto , presumivelmente, apenas uma ansiedade situacional e no indica nada

    mais srio. Segundo Hammer (1926), necessrio prestar ateno seqncia, visto que

    um decrscimo psicomotor progressivo pode sugerir uma excessiva estimulabilidade.

    O tamanho do desenho fornece pistas a respeito da auto-estima, expansividade e auto-

    inflao da criana; bem como, a aceitao de si mesmo. Desenhos pequenos so muitas

    vezes realizados por sujeitos com sentimento de inadequao e retraimento, visto que se

    associam ao sentimento de inferioridade. Em outro plo, encontram-se os desenhos grandes

    demais, que chegam a ultrapassar os limites do papel, denotando elementos de expanso

    emocional. A criana que desenha uma figura excessivamente grande pode possuir uma

    forte corrente agressiva ou uma descarga motora, o que aponta que ela tende a liberar no

    seu meio circundante essa agressividade (Hammer, 1991).

    Associado ao tamanho do desenho, a presso do lpis no papel indica o nvel de energia do

    sujeito. Crianas cujos traos so fortes sugerem uma afirmao de si maior do que crianas

    com os traos leves; o que reflete um baixo nvel de energia, restrio e represso. Linhas

    pesadas, desenhadas com grande fora so usualmente produzidas por doentes orgnicos.

    Linhas leves, quase imperceptveis, so preferidas por crianas que se sentem inadequadas

    ou deprimidas. A partir da anlise do traado, pode-se inferir se a criana tem uma

    tendncia a ser impulsiva, se o trao for curto; ou se tende a ser controlada, se for longo.

    Em geral, o comprimento do movimento de um trao pode aumentar em sujeitos inibidos e

    decrescer em sujeitos excitveis. Crianas que usam linhas retas tendem a ser mais

    afirmativas e ter um humor agressivo; aquelas que so mais dependentes e emocionais

    fazem mais uso dos traos circulares, que se associam feminilidade. As linhas denteadas

    se remetem a traos hostis (Di Leo, 1985).

  • Linhas quebradas indecisas ou reforadas constituem um indicador de insegurana e

    ansiedade. Linhas firmes muitas vezes so utilizadas por pessoas tensas e discordantes. As

    linhas esboadas - quando utilizadas em excesso - refletem ansiedade, timidez, falta de

    autoconfiana e hesitao diante de situaes novas. Quando a criana apaga

    excessivamente os traos, este comportamento pode representar um correlato grfico de

    incerteza e falta de deciso ou incerteza pessoal (Di Leo, 1985).

    Com relao aos detalhes, verifica-se que o seu uso inadequado a reao grfica preferida

    de sujeitos com tendncia de retraimento. A sua ausncia transmite um sentimento de vazio

    e energia reduzida. Em contrapartida, o seu uso excessivo pode ser associado a condutas

    obsessivas-compulsivas, quando h uma tendncia a detalhar cada aspecto mnimo do

    desenho. Crianas que encaram o mundo com incerteza e imprevisibilidade tendem a

    defender-se do seu caos interior criando um mundo externo ordenado e rigidamente

    controlado. Em seus desenhos, podem criar elementos repetidos e estruturados. Suas linhas

    geralmente no so fluentes ou relaxadas e toda a sua composio feita base da fora.

    Esse comportamento reflete o esforo que se faz para segurar-se frente a um perigo

    eminente; manter-se hipervigilante para estruturar um ego fraco. (Di Leo, 1985).

    A simetria tambm deve ser analisada. A sua falta costuma indicar insegurana na vida

    emocional da criana. Com relao localizao, estudos de Alschuler e Hattwick (1947)

    apontaram que desenhos centralizados tendem a apresentar comportamento autodirigido,

    autocentrado e mais emocional. Desenhos no centralizados apontam maior dependncia e

    menor controle. A centralizao dos elementos grficos, quando no so excessivamente

    utilizados, indicam uma segurana elevada.

    No que se refere colocao da pgina, aceita-se que os desenhos colocados na parte

    superior da mesma geralmente tm padres de realizaes elevados. Os desenhos situados

    na parte inferior da pgina parecem remeter-se firmemente a enraizao, depresso ou com

    atitude de derrota. Figuras presas margem do papel so indicativas de necessidade de

    apoio, medo de agir independentemente e uma falta de autoconfiana (Di Leo, 1985;

    Ocampo, 2001)

  • O uso da cor tem se mostrado extremamente relevante na anlise dos desenhos projetivos,

    visto que o seu uso inibido ou expansivo freqentemente correlacionado a traos de

    personalidade. De uma maneira geral, aceita-se a idia de que as tonalidades mais seguras

    so o preto, marrom e o azul. Certeza interpessoal e audcia so reveladas atravs do uso do

    vermelho (que se associa sexualidade), laranja e amarelo, que so cores quentes. O uso do

    vermelho e amarelo so uma forma de expresso da espontaneidade, contrariamente ao uso

    do verde e do azul, que reflete um comportamento controlado. Sujeitos psicologicamente

    estveis usam essas cores com confiana, atravs de uma presso firme e segura. O uso

    inibido da cor demonstrado por sujeitos que apresentam dificuldades de relacionar-se. Um

    uso mais expansivo da cor pode indicar uma incapacidade de lidar com impulsos

    emocionais (Hammer, 1991).

    necessrio ressaltar que a anlise dos elementos expressivos do desenho, bem como das

    cores usadas devem ser sempre feita de maneira holstica. No de pode analisar, por

    exemplo, o uso da cor independentemente da sua composio no desenho, bem como

    dissociado dos elementos que o compe. Todos os elementos de anlise devem ser

    articulados entre si e com o discurso da criana, de modo que os sinais sejam sempre

    considerados indicadores de hipteses interpretativas, as quais podero ser confirmadas ou

    refutadas depois de reunidos e analisados todos os dados levantados. Assim, o desenho

    deve sempre ser visto como um conjunto de elementos que ir colaborar para um melhor

    entendimento acerca do funcionamento psquico da criana.

    4- O conto Joo e Maria e sua interpretao psicanaltica.

    A interpretao psicanaltica para este conto foi proposta por Bettelheim (1980). Os pais de

    Joo e Maria so pobres e no tendo condies de cri-los, resolvem abandon-los na

    floresta. A privao os torna egostas e insensveis ao sofrimento dos outros. A me, que

    antes representava a fonte da alimentao para os filhos, vista como a rejeitadora e pouco

  • amorosa. O pai, por sua vez, permanece como uma figura apagada e sem utilidade; como

    realmente o para a criana nos anos iniciais da sua vida. Quando so abandonadas pelos

    pais, elas percebem o quanto ainda precisam deles; usando sua inteligncia, Joo resolve

    deixar cair seixos para marcar o caminho. Entretanto, a volta para casa nada resolve. A

    tentativa de viver a vida como se nada tivesse ocorrido no funciona; as frustraes

    continuam e a me planeja uma nova forma de livrar-se das crianas. Implicitamente, a

    histria se remete tentativa de resoluo de problemas atravs da fuga.

    Na segunda vez, j tendo um comportamento regressivo, Joo, que sempre fora hbil e

    independente no conseguiu criar uma estratgia to eficaz como a primeira. Como

    morador prximo da floresta, ele sabia que havia pssaros na regio. Mesmo assim, usou o

    po como marcador de caminho e perdeu-se; mais uma vez, por causa de comida. Dando

    vazo a uma regresso oral, Joo e Maria encontram uma casa de biscoitos, extremamente

    atraente e irresistvel e sem pensar que estariam devorando o seu possvel abrigo, comeam

    a com-la. O teto e a janela so logo comidos fato este que reflete o desejo de comer

    rapidamente algum da casa. Esta casa representa a me boa, que oferece seu corpo como

    fonte de alimento, trazendo a tona o desejo do retorno simbiose com ela. uma me

    inexistente, idealizada, que as crianas queriam ter.

    Enquanto comiam, ouviram uma voz macia e calma - que representa a conscincia

    internalizada - perguntando-lhes o que est ocorrendo. Vivendo um enorme prazer oral, as

    crianas a ignoram e continuam devorando a casa sem se perturbar. Entretanto, entregar-se

    a um desejo descontrolado uma ameaa destruio, at mesmo coloca em risco prpria

    existncia; por isso, as inclinaes canibalsticas foram representadas por uma bruxa. A

    bruxa a personificao da destruio, via oralidade. Ela deseja tanto comer as crianas

    como estas desejam casa. Essa inteno mostra a Joo e Maria a necessidade de controlar

    os instintos do id, e deixar-se guiar pela ao do ego. Quando essa mensagem

    internalizada pelas crianas, o caminho para o desenvolvimento psquico se abre.

    Conseguem se livrar da bruxa, descobrem que h uma me boa e dadivosa dentro da me

    malvada e destrutiva.

  • Essa descoberta sugere que, ao se libertar da voracidade oral, pode-se tambm ficar

    independente da me ameaadora, da bruxa; sendo possvel ento, redescobrir pais

    bondosos. As jias que as crianas herdam da bruxa trazem a estabilidade para a famlia.

    Essa fortuna representa a mudana de papis vividos pelas crianas: quando eram

    dependentes, significavam um fardo para os pais; ao retornarem ao lar, trazem para sua casa

    um valioso tesouro, que um pensamento e uma ao independentes.

    O uso deste conto no contexto do cncer tem um significado especial. A partir desse ponto

    sero utilizados dados obtidos atravs da observao e acompanhamento de crianas

    internadas numa casa de apoio a crianas com cncer, localizada em Salvador, Bahia. As

    crianas moradoras da casa de apoio so, na sua maioria, vindas de cidades do interior do

    estado. Estando longe de casa e da sua famlia, necessrio investigar como esses

    contedos esto sendo elaborados por elas: h um sentimento de abandono, de solido?

    Como essas crianas lidam com o fato de terem que se tornar independentes e mais

    autnomas? A figura de Maria aqui representada por outras crianas que dividem o

    espao da casa com ela, e que vivem os mesmos conflitos. interessante investigar at que

    ponto o convvio com pessoas com problemas semelhantes uma boa estratgia de

    enfrentamento.

    Percebe-se que a maioria das crianas acompanhada pelas mes. Elas mostram-se sempre

    acolhedoras e pacientes com os filhos. Neste contato com a instituio, no se notou

    hostilidade por parte delas. Sempre se apresentavam realmente mes, cumpridoras deste

    papel; controlam alimentao, horrio de medicamentos e higiene. Incentivam as crianas a

    participarem das atividades propostas, querendo que elas, de certa forma, no deixem de

    brincar. No primeiro encontro com as crianas, por exemplo, elas permaneceram ao lado

    dos filhos, at ter a segurana de que o trabalho realizado seria agradvel e prazeroso para

    eles. A relao dessas mes com as outras de cumplicidade e, com as outras crianas, de

    coletividade. A impresso que se tem que todos so filhos de todas as mes.

  • 5- Metodologia

    O presente trabalho teve o objetivo de verificar os contedos inconscientes, relacionados ao

    cncer, projetados atravs da linguagem grfica, aps a leitura de um conto de fadas. Esse

    estudo foi conduzido com uma criana com cncer, moradora de uma casa de apoio. Para

    que fosse utilizada a linguagem grfica, houve a introduo de um material prvio, que foi

    selecionado de acordo com o objetivo desejado: verificar como os contedos ligados

    doena so projetados em desenhos, aps a leitura do conto Joo e Maria.

    A criana tem a liberdade de responder e deve falar tudo aquilo que lhe ocorrer, no se

    preocupando com boas ou ms respostas. Desta forma, as associaes livres da criana so

    induzidas atravs do material desencadeador, que neste caso, um conto de fadas. O sujeito

    ouve a histria e lhe pedido que faa um desenho que resuma a histria, ou que retrate

    uma cena que lhe foi marcante. A criana fica, ento, subordinada a sua prpria vontade; j

    que, o contedo e a organizao dos desenhos so tarefas suas. A criana recebe uma folha

    de papel e uma caixa com oito lpis, das seguintes cores: vermelho, amarelo, verde, azul,

    marrom, preto, violeta e laranja. dada criana a maior liberdade de escolha possvel,

    deixando claro que no necessrio pressa para a concluso do desenho. Esse trabalho

    disps de uma sesso com a criana, sendo que houve o estabelecimento de um rapport

    prvio em outros dois encontros e um encontro de carter informativo com sua me.

    6- Anlise de resultados

    Identificao: JS, 12 anos, sexo masculino.

    Escolaridade: 3 srie do 1 grau (aplicao: maio/2002)

    A criana apresentou-se tmida e introvertida. Dialoga pouco e s fala o que perguntado.

    Possui trs irmos (1 menina e 2 meninos), sendo ele o segundo filho. Mora com seus pais

  • em uma cidade do interior da Bahia. Reside h 8 meses numa casa de apoio em Salvador,

    onde acompanhado pela me.

    O primeiro elemento a ser desenhado foi uma casa, seguida pelo pai, Joo e Maria,

    todos em lpis preto. Quando lhe foi reforada a possibilidade do uso das cores, a criana

    resolve pintar apenas a casa. O marrom utilizado no telhado reflete uma ruminao, um

    pensamento recorrente, provavelmente ligado doena e ao seu futuro. O verde, utilizado

    no local onde possvel entrar em casa, uma cor fria. O amarelo, que uma cor quente,

    representa a alegria desta casa. Nota-se que no desenhou portas ou janelas. Como

    possvel, ento, entrar nesse ambiente? Embora haja um desejo de retornar ao seu lar,

    percebe-se uma dificuldade nesse particular. As pessoas aparecem sem cor, o que pode

    sugerir duas informaes importantes. A primeira dela delas que, neste momento, essas

    pessoas esto em segundo plano para JS; e segundo, as figuras humanas esto

    emocionalmente debilitadas; ou seja, h escassez de afeto.

    A casa, figura proeminente no desenho, simboliza o lugar onde ele busca carinho e

    segurana, necessidades estas que encontram lugar na famlia. Segundo Di Leo (1985), a

    partir dos 10 anos h uma mudana progressiva no desenho; como reflexo de gradual

    emancipao dos laos familiares, surge a necessidade de aumentar o crculo de interesses.

    Nota-se neste caso, que por JS estar h muito tempo longe da sua cidade, a presena

    destacada da casa em seu desenho facilmente justificada como um desejo de retornar a

    ela.

    Alm disso, Bolander (1977) considera que a metade acima da folha a rea representativa

    das perspectivas da criana em relao ao futuro. Sendo assim, a casa aparece mais uma

    vez como a projeo do seu desejo de voltar a viver nela. Ao desenh-la, a criana diz: o

    pai estava com muitas saudades dele. Nota-se que JS se remete apenas a Joo e esquece

    que Maria tambm estava perdida. Percebe-se, desta forma, uma necessidade de apoio,

    proteo, segurana, alm do desejo de retornar ao lar. Esse retorno significa a cura da

    doena que o afastou de casa, representa o xito, o sucesso do final da histria, o chamado

    final feliz".

  • A figura paterna foi desenhada com seios. Houve, dessa forma, uma sobreposio da sua

    me na figura do pai. Na histria contada, a me havia morrido, e a partir da, quem

    ocupara o papel de cuidador foi o pai. Desta forma, como no poderia desenhar a me, a

    criana prontamente desenha um pai feminilizado. Sabe-se que a sua acompanhante no

    hospital a me, mas, quem estar aguardando-o na porta de sua casa o seu pai. H ento,

    uma superposio da identificao das figuras parentais, atravs do mecanismo de

    condensao. Este mecanismo psquico permite que, de forma disfarada, contedos

    inconscientes tenham acesso conscincia e, assim, possam ser expressos sem provocar

    uma mobilizao excessiva.

    O Joo desenhado claramente a projeo do eu de JS. Ele desenha essa figura e logo

    depois pega o lpis azul e corta o corpo em trs faces. Esse corte reflete a sua imagem

    corporal fragmentada, visto que essa criana se v diferente das demais, por encontrar-se

    sem cabelo (devido ao tratamento quimioterpico) e sensivelmente emagrecida (dado

    trazido pela me). Embora a criana tenha uma doena localizada, nota-se que, quando uma

    parte do corpo est doente, todo ele afetado globalmente; j que, o organismo funciona de

    maneira nica. O seu corpo j no mais o mesmo e retornar pra casa nessas condies tm

    implicaes psicolgicas significativas. Esse corpo, certamente, carregar consigo as

    marcas simblicas do processo de adoecimento.

    Maria a ltima a ser desenhada e encontra-se no canto esquerdo da pgina. A figura do

    conto poderia ter sido associada irm ou a um dos irmos, mas JS nada fala o seu respeito

    e pode-se sugerir que algo nesta figura lhe provocou algum tipo de mobilizao cujo

    contedo foi reprimido

    Com relao seqncia, no houve decrscimo psicomotor e ele seguiu uma certa lgica.

    Os desenhos so proporcionais e equilibrados. Percebe-se, entretanto, que a figura de Joo

    diminuda com relao de Maria, o que sugere um sentimento de inadequao e

    inferioridade. Essa inferncia ratificada pela presso do lpis, que apresenta-se leve.

    Nota-se a ausncia de detalhes, o que sugere timidez e insegurana. Todas as figuras

  • encontram-se estereotipadas e rgidas, o que reflete retraimento diante de um meio

    percebido como ameaador e opressivo. No h liberdade de movimento: ele sente-se

    paralisado, imobilizado diante da sua realidade.

    7- Discusso

    A partir da anlise do caso, pode-se perceber quo importante o desenho para anlise de

    contedos inconscientes da criana. Destacam-se as associaes que ele faz entre o conto e

    a sua vida, e essa ligao percebida em seu desenho. Existem fios condutores do

    simbolismo apresentado que esto imbricados com seus medos e justificam seus traados,

    seu discurso e seu silncio. Nota-se que, diante do conto, a criana reflete uma luta do eu,

    na qual se empenha para manter um equilbrio interior, em um nvel do existencial e uma

    busca pela obteno de uma satisfao exterior, ao nvel do social. Isso significa que, ao

    mesmo tempo em que deseja e necessita curar-se, h uma vontade de sair do ambiente

    hospitalar. Esse conflito do seu mundo interno e externo perceptvel no seu desenho (Di

    Leo, 1985).

    A questo do retorno ao lar, muito presente na histria de vida desta criana, trazido

    tona pelo conto; visto que, ele tem como eixo gerador uma problemtica existencial. Ela

    vive, portanto, assolada pelo desejo de viver novamente ao lado de sua famlia.

    interessante notar que a sua esperana de retorno foi maior do que o medo; visto que, a cena

    escolhida no remete presena da bruxa ou da madrasta. A ausncia dessas figuras pode

    refletir tambm uma tentativa de negao da doena. A esperana que circula em seu

    imaginrio orienta sua luta pela vida. Da a atualidade visvel da projeo no conto de fada

    e na linguagem grfica: JS utiliza-se das personagens para que eles revivam sua histria e

    faz com que eles respondam aos seus desejos e vivam seus sonhos.

    A linguagem grfica mostrou-se eficiente para anlise de contedos projetivos, mediada

    pelo uso de conto. Esta abordagem clnica se revelou um meio rpido e eficiente para

    acessar e explorar elementos da subjetividade infantil. O desenho possui um valor potencial

    que foi comprovado pela possibilidade de tornar acessveis: tanto os elementos subjetivos

  • sobre o modo como a criana vivencia o seu processo de adoecimento, quanto sua

    expectativa quanto ao futuro prximo. De um modo geral, no houve discrepncia entre o

    desenho e os fatos da vida da criana. Mas, os dados da projeo grfica que aparecem

    diferenciados com a vida da criana esto de acordo com sua realidade psquica; realidade

    esta que considerada quando de uma anlise clnica; pois, a interpretao que dada aos

    fatos da realidade refletem a dinmica da personalidade daquele que a interpreta.

    necessrio ressaltar, entretanto, que para um melhor entendimento do caso, seria preciso

    mais tempo de trabalho e um maior contato com a criana, o que no foi possvel, visto que

    houve uma piora do seu quadro clnico e uma posterior de internao.

    Referncias Bibliogrficas: ARZENO, Maria Esther Garcia. Psicodiagnstico Clnico: novas contribuies. Ed. Artes Mdicas.Porto alegre.1995. Bettelheim, Bruno. A Psicanlise dos Contos de Fada. Ed. Paz e Terra.1980. CAMON,Valdemi Augusto Angerani. Psicologia Hospitalar: Teoria e Prtica. Ed. Pioneira. So Paulo.1998. CARVALHO, Maria Margarida M.J. Introduo a psicooncologia. Ed. Psy II. So Paulo. 1994. DI LEO, J. H. A interpretao do desenho infantil. Ed Artes Mdicas. Porto Alegre.1985. Grandes Obras da Cultura Universal. Vol 8. Contos de Perrault. Ed. Vila Rica. Belo Horizonte.1994. HAMMER, Emanuel F. Aplicaes clnicas dos desenhos projetivos. Ed. Casa do Psiclogo. So Paulo.1991. LAPLANCHE, Jean. Vocabulrio de Psicanlise. Ed. Martins Fontes. So Paulo. 2000. OCAMPO, M. L. S. et al. O processo Psicodiagnstico e as tcnicas Projetivas, Ed. Martins Fontes. So Paulo. 2001. FREUD, Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud. V. XVII. Imago Ed. Rio de Janeiro. 1996..

  • ______________ . Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade. Imago Ed. Rio de Janeiro.1920. -------------------------------------------------------------------------------- [1] Freud (1920) prope trs componentes bsicos estruturais da psique: o Id, o Ego e o Superego. O Id a estrutura da personalidade original, bsica e central do ser humano, exposta tanto s exigncias somticas do corpo s exigncias do ego e do superego. As leis lgicas do pensamento no se aplicam ao Id, havendo assim, impulsos contrrios lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro. O Id seria o reservatrio de energia de toda a personalidade. O seu material considerado inaceitvel pela conscincia. O Ego a parte do aparelho psquico que est em contato com a realidade externa. Aplaca as constantes exigncias do Id, ou seja, decidi se elas devem ou no ser satisfeitas, adiando essa satisfao para ocasies e circunstncias mais favorveis ou suprimindo-as inteiramente. O Superego atua como um juiz ou censor sobre as atividades e pensamentos do Ego. o depsito dos cdigos morais, modelos de conduta e dos parmetros que constituem as inibies da personalidade. [2] Segundo Laplanche e Pontalis (2000), a fase oral a primeira etapa da evoluo libidinal. O objeto est estritamente relacionado com a alimentao. O prazer sexual est ligado a excitao da cavidade bucal e dos lbios que acompanha a amamentao. A atividade de nutrio fornece as significaes pelas quais se exprime e se organiza a relao com o objeto.