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Arquivos Catarinenses de Medicina - Volume 41 - Suplemento 01 - 2012 150 ALOENXERTO NO TRATAMENTO DAS QUEIMADURAS DE SEGUNDO GRAU PROFUNDAS DA CRIANÇA ALLOGRAFT IN THE TREATMENT OF DEEP SECOND-DEGREE BURNS IN CHILDREN MARCOS RICARDO DE OLIVEIRA JAEGER 1 , TIAGO FALCÃO CUNHA 2 , NILO AMARAL-NETO 3 , JEFFERSON ANDRÉ PIRES 4 , EDUARDO CHEM 5 , PEDRO BINS ELY 6 RESUMO Queimaduras de segundo grau normalmente não são tratadas por enxerto de pele. O aloenxerto proporciona uma cobertura cutânea temporária e de baixo custo nas áreas afetadas, auxiliando na cicatrização da ferida e reduzindo a dor. Este artigo demonstra de que forma crianças portadoras de queimaduras de segundo grau profundas podem se beneficiar podem se beneficiar dos aloenxertos. DESCRITORES: 1. Homoenxerto; 2. Pele; 3. Queimadura. ABSTRACT Second degree burns are usually painful in children and may get deeper with erroneous dressing application. The allografts may provide cost effective skin coverage in the affected areas, reducing pain and possibly infection. The present report shows how allograft may help children with deep second degree burns. KEYWORDS: 1. Allograft; 2. Skin; 3. Burns. INTRODUÇÃO As queimaduras na pele ocasionam dor e perda da integridade funcional, independente da fonte emissora dessa energia (química, elétrica, térmica ou irradiação) (1-2) . A infecção é conseqüência desta quebra de barreira. O enxerto autólogo (do mesmo indivíduo) é muito utilizado quando a queimadura ultrapassa o limite da derme profunda, mas pode ser utilizada em crianças quando a queimadura de segundo grau acontece nas dobras de extensão. Os aloenxertos ou homoenxertos (pele de indivíduos geneticamente diferentes da mesma espécie) podem ser utilizados a fim de se obter cobertura cutânea temporária quando não se existe zona doadora disponível (3-8) . OBJETIVO O objetivo deste trabalho é demonstrar de que forma a aplicação dos aloenxertos pode beneficiar crianças que apresentam menor área de superfície corporal queimada, e cuja epitelização lenta ocasiona dor e risco de infecção. MÉTODOS Caso 1 A.S.M., 1ano e 7 meses, masculino, branco, vítima de queimadura por óleo quente, buscou atendimento no ambulatório de Cirurgia Plástica do Hospital Santo Antonio da Santa Casa de Porto Alegre um mês após o acidente. Apresentava área cruenta de aproximadamente 80 cm2, com tecido de granulação, em hemitórax esquerdo, envolvendo o complexo areolomamilar, queixando- se de muita dor Não havia sinais de infecção. Caso 2 VR.A., 2anos e 6 meses, apresentando área alternadas de segundo grau profunda e superficial, muito dolorosas, devido à queimadura por água quente. A região da dobra de flexão estava parcialmente poupada no antebraço esquerdo. As áreas de queimadura profundo mediam 13x 6cm aproximadamente cada uma. Observava-se um grau de aprofundamento das áreas queimadas com o passar dos curativos realizados fora do ambiente hospitalar. Não havia sinais de infecção. Uma vez que se tratava de queimaduras muito dolorosas, em regiões de difícil troca de curativos fora do ambiente hospitalar, optou-se pela aplicação de aloenxerto do banco de pele para cobertura local temporária, no intuito de aguardar a epitelização e diminuir os riscos de infecção. 1. Preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica do Complexo Hos- pitalar da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Professor Substituto em Anatomia Humana da Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós-Doutorado (em cur- so) junto à Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-EPM) 2. Médico Residente do Programa de Cirurgia Plástica da Irman- dade Santa Casa de Misericórdia 3. Cirurgião Geral Membro do Colégio Brasileiro de Cirugiões 4. Acadêmico de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) 5. Chefe do Banco de Pele Roberto Correa Chem da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre 6. Chefe do serviço de Cirurgia Plástica da Irmandade Santa Casa de Misericórdia

ALOENXERTO NO TRATAMENTO DAS QUEIMADURAS DE …Um dos principais problemas no tratamento dos queimados é o uso de um substitutivo dérmico quando não existe possibilidade de utilização

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Arquivos Catarinenses de Medicina - Volume 41 - Suplemento 01 - 2012150

ALOENXERTO NO TRATAMENTO DAS QUEIMADURASDE SEGUNDO GRAU PROFUNDAS DA CRIANÇA ALLOGRAFT IN THE TREATMENT OF DEEP SECOND-DEGREE

BURNS IN CHILDRENMARCOS RICARDO DE OLIVEIRA JAEGER1, TIAGO FALCÃO CUNHA2, NILO AMARAL-NETO3, JEFFERSON ANDRÉ PIRES4,

EDUARDO CHEM5, PEDRO BINS ELY6

RESUMO

Queimaduras de segundo grau normalmente não são tratadas por enxerto de pele. O aloenxerto proporciona uma cobertura cutânea temporária e de baixo custo nas áreas afetadas, auxiliando na cicatrização da ferida e reduzindo a dor. Este artigo demonstra de que forma crianças portadoras de queimaduras de segundo grau profundas podem se beneficiar podem se beneficiar dos aloenxertos.

DESCRITORES: 1. Homoenxerto; 2. Pele; 3. Queimadura.

ABSTRACT

Second degree burns are usually painful in children and may get deeper with erroneous dressing application. The allografts may provide cost effective skin coverage in the affected areas, reducing pain and possibly infection. The present report shows how allograft may help children with deep second degree burns.

KEYWORDS: 1. Allograft; 2. Skin; 3. Burns.

INTRODUÇÃO

As queimaduras na pele ocasionam dor e perda da integridade funcional, independente da fonte emissora dessa energia (química, elétrica, térmica ou irradiação) (1-2). A infecção é conseqüência desta quebra de barreira. O

enxerto autólogo (do mesmo indivíduo) é muito utilizado quando a queimadura ultrapassa o limite da derme profunda, mas pode ser utilizada em crianças quando a queimadura de segundo grau acontece nas dobras de extensão. Os aloenxertos ou homoenxertos (pele de indivíduos geneticamente diferentes da mesma espécie) podem ser utilizados a fim de se obter cobertura cutânea temporária quando não se existe zona doadora disponível (3-8).

OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é demonstrar de que forma a aplicação dos aloenxertos pode beneficiar crianças que apresentam menor área de superfície corporal queimada, e cuja epitelização lenta ocasiona dor e risco de infecção.

MÉTODOS

Caso 1A.S.M., 1ano e 7 meses, masculino, branco,

vítima de queimadura por óleo quente, buscou atendimento no ambulatório de Cirurgia Plástica do Hospital Santo Antonio da Santa Casa de Porto Alegre um mês após o acidente. Apresentava área cruenta de aproximadamente 80 cm2, com tecido de granulação, em hemitórax esquerdo, envolvendo o complexo areolomamilar, queixando-se de muita dor Não havia sinais de infecção.

Caso 2VR.A., 2anos e 6 meses, apresentando área

alternadas de segundo grau profunda e superficial, muito dolorosas, devido à queimadura por água quente. A região da dobra de flexão estava parcialmente poupada no antebraço esquerdo. As áreas de queimadura profundo mediam 13x 6cm aproximadamente cada uma. Observava-se um grau de aprofundamento das áreas queimadas com o passar dos curativos realizados fora do ambiente hospitalar. Não havia sinais de infecção.

Uma vez que se tratava de queimaduras muito dolorosas, em regiões de difícil troca de curativos fora do ambiente hospitalar, optou-se pela aplicação de aloenxerto do banco de pele para cobertura local temporária, no intuito de aguardar a epitelização e diminuir os riscos de infecção.

1. Preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica do Complexo Hos-pitalar da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Professor Substituto em Anatomia Humana da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós-Doutorado (em cur-so) junto à Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-EPM)

2. Médico Residente do Programa de Cirurgia Plástica da Irman-dade Santa Casa de Misericórdia

3. Cirurgião Geral Membro do Colégio Brasileiro de Cirugiões4. Acadêmico de Medicina da Universidade Federal de Pelotas

(UFPEL)5. Chefe do Banco de Pele Roberto Correa Chem da Irmandade

da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre6. Chefe do serviço de Cirurgia Plástica da Irmandade Santa Casa

de Misericórdia

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Arquivos Catarinenses de Medicina - Volume 41 - Suplemento 01 - 2012 151

RESULTADOS

Os pacientes foram operados sob anestesia geral, seguindo as recomendações de antissepsia para utilização de enxertos de pele do banco de pele, que consistia principalmente de três lavagens de 10 minutos com Soro Fisiológico 0,9%. A quantidade de pele necessária foi determinada e o aloenxerto foi fixado utilizando-se sutura contínua com Monocryl® 4.0. A seguir, foi aplicado curativo não aderente (ADAPTIC®). Não se observou presença de infecção no período de pós-operatório e, após três semanas aproximadamente, houve completa epitelização da ferida sob o enxerto que começara a desprender-se uma semana antes (Figuras 1-7).

Figura 1: Detalhe do trans-operatório no manuseio do aloenxerto.

Figura 2: Área do hemitórax com aprofundamento da queimadura devido à aposição diária de curativos.

Figura 3: Aloenxerto posicionado sobre a área queimada.

Figura 4: Resultado obtido após um mês.

Figura 5: Áreas esparsas de queimadura de II grau no antebraço e braço.

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Figura 6: Aloenxerto posicionado.

Figura 7: Resultado após um mês.

DISCUSSÃO

As queimaduras são causa freqüente de morte mesmo nos países desenvolvidos. Conforme a Organização Mundial da Saúde , a maior parte das mortes devido a queimaduras acontece nos países em desenvolvimento (9).

Um dos principais problemas no tratamento dos queimados é o uso de um substitutivo dérmico quando não existe possibilidade de utilização dos enxertos de pele. Existe uma gama de produtos que promovem cobertura imediata da ferida, mesmo sem área doadora disponível, sem gerar mais áreas cruentas em pacientes críticos, o que pode também favorecer a menor contração cicatricial da ferida e melhor aspecto estético (10). Dentre estes produtos, podemos citar os aloenxertos (orirundos de cadáveres frescos e de folheto de bolsas amnióticas) e os xenoenxertos (pele porcina, rã) e o uso de materiais aloplásticos (3). Os efeitos benéficos dos aloenxertos tem sido documentados por muitos estudos na Alemanha,

Holanda, no Reino Unido, e nos EUA (2,7,11,12).A principal desvantagem é a rejeição. Devida

ao fato de que os indivíduos (doador e receptor) são geneticamente diferentes, a pele será rejeitada em um período de 2 a 3 semanas, apesar de que existem relatos de que a pele integrada torna-se permanente no local (13).

Os bancos de pele utilizam como métodos de armazenamento e preservação o glicerol e a criopreservação. Ambas técnicas têm suas próprias vantagens e desvantagens, mas uma diferença essencial entre a criopreservação e a preservação em 85% de glicerol é o nível de viabilidade do tecido preservado: preservação em glicerol preserva a morfologia das células, mas elas não são viáveis, enquanto que a criopreservação permite um certo nível de viabilidade mesmo após o descongelamento (14). O Banco de Pele Dr. Roberto Corrêa Chem, do Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre, localizado em Porto Alegre-RS é pioneiro na utilização do alonxertos e utiliza a preservação em 85% de glicerol. O banco de pele hoje capta, armazena, protege e envia pele para todas as regiões do país em centros que tratam indivíduos queimados.

No presente relato, a existência de queimaduras profundas e muito dolorosas nas duas crianças motivou-nos a utilizar o aloenxerto. O tempo necessário para a epitelização destas ;áreas queiamdas demostradas geraria muito sofrimento nas crianças. Em ambos os casos, a aplicação desta modalidade de tratamento proporcionou proteção à área lesada, enquanto se aguardou a epitelização. Após cerca de três semanas da realização do procedimento, já havia rejeição completa da pele enxertada e se visualizava a epitelização da ferida.

CONCLUSÃO

O aloenxerto de pele proporcionou cobertura cutânea temporária nos dois casos de queimaduras de segundo grau profundas em criança apresentados neste relato, reduzindo a dor e possivelmente evitando a infecção da área queimada.

REFERÊNCIAS

1 - Khoo TL, Halim AS, Saad AZ, Dorai AA. Burns. The application of glycerol-preserved skin allograft in the treatment of burn injuries: an analysis based on indications. 2010;36(6):897-904.

2 - Leon-Villapalos J, Eldardiri M, Dziewulski P. The use of human deceased donor skin allograft in burn care. Cell Tissue Bank. 2010;11(1):99-104.

3 - Lazic T, Falanga V. Bioengineered skin constructs and their use in wound healing. Plast Reconstr Surg. 2011;127 (Suppl 1):75S-90S.

4 - Burd A, Chiu T. Allogenic skin in the treatment of burns. Clin Derm, 2005(23):376-87.

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Arquivos Catarinenses de Medicina - Volume 41 - Suplemento 01 - 2012 153

5 - Kua EH, Goh CQ, Ting Y, Chua A, Song C. Compar-ing the use of glycerol preserved and cryopreserved allogenic skin for the treatment of severe burns: dif-ferences in clinical outcomes and in vitro tissue vi-ability. Cell Tissue Bank. 2011 12.

6 - Girdner JH. Skin grafting with graft taken from the dead subject. Med Rec 1881,20:119–20.

7 - Vloemans AF, Middelkoop E, Kreis RW. A historical appraisal of the use of cryopreserved and glycerol-preserved allograft skin in the treatment of partial thickness burns. Burns, 2002,28(Suppl 1):S16–S20.

8 - Moerman E, Middelkoop E, Mackie D, Groenevelt F. The temporary use of allograft for complicated wounds in plastic surgery. Burns, 2002,28(Suppl 1):S13–S5.

9 - Crisóstomo MR, Serra MCVF, Gomes DR. Epide-miologia das queimaduras. In: Lima Júnior EM, Serra MCVF, eds. Tratado de queimaduras. São Paulo:Atheneu;2004. p.31-5.

10 - Costa, L. A. L. ; Ferreira, M. T. ; Weissheimer, L. ; Ruschel, F. F. ; Leonardi, Dilmar Francisco ; Chem, R. C.;Chem, R . Aloenxerto de pele um novo substi-tuto dérmico?. Arquivos Catarinenses de Medicina, 2007:(36);29-32.

11 - Madhuri A. Gore and Anuradha S. De . Deceased do-nor skin allograft banking: Response and utilization. Indian J Plast Surg. 2010 :43(Suppl): S114-S20.

12 - Blome-Eberwein S, Jester A, Kuentscher M, Raff T, Germann G, Pelzer M. Clinical practice of glyc-erol preserved allograft skin coverage. Burns, 2002;(8):S10-2.

13 - Banks ND, Milner S. Persistence of human skin allograft in a burn patient without exoge-nous immunosuppression. Plast Reconstr Surg. 2008;121(4):230e-1e.

14 - Hermans, MH. Preservation methods of allografts and their (lack of) influence on clinical results in par-tial thickness burns Burns, 2011;37(5):872-80.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIAMostardeiro, 780 - Porto Alegre - RSCEP: 90430000 E-mail: [email protected]