Alteridade, subjetividade e · PDF fileapreender o outro na plenitude da sua dignidade, ... pode prescindir da minha filosofia e teologia ... na sua casa de BMW,

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  • SOCIOLOGIA - 1 ANO - Apostila n 4 (4 Bimestre) - Prof. Renato Fialho Jr.- Pgina 1

    Alteridade, subjetividade e generosidade

    por Frei Betto

    A dificuldade, dentro da tica neoliberal, trabalhar a

    dimenso da alteridade. O que alteridade? ser capaz de

    apreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus

    direitos e, sobretudo, da sua diferena. Quanto menos

    alteridade existe nas relaes pessoais e sociais, mais

    conflitos ocorrem.

    A nossa tendncia colonizar o outro, ou partir do princpio

    de que eu sei e ensino para ele. Ele no sabe. Eu sei melhor

    e sei mais do que ele. Toda a estrutura do ensino no Brasil,

    criticada pelo professor Paulo Freire, fundada nessa

    concepo. O professor ensina e o aluno aprende.

    evidente que ns sabemos algumas coisas e, aqueles que

    no foram escola, sabem outras tantas, e graas a essa

    complementao vivemos em sociedade.

    Possivelmente, a cozinheira do meu convento sabe muitas

    coisas que no sei, e eu sei muitas coisas que ela no sabe.

    Mas se pesar na balana, e perguntar quem pode prescindir

    do conhecimento do outro, tenho certeza de que no posso

    prescindir da culinria dela para sobreviver. E ela,

    seguramente, pode prescindir da minha filosofia e teologia

    para sobreviver.

    Numa sociedade de tamanho apartheid social como a

    brasileira, predomina a concepo de que aqueles que

    fazem servio braal no sabem. No entanto, ns que

    fomos formados como anjos barrocos da Bahia e de Minas,

    que s tm cabea e no tm corpo, no sabemos o que

    fazer das mos. Passamos anos na escola, samos com

    Ph.D., porm no sabemos cozinhar, costurar, trocar um

    equipamento eltrico em casa, identificar o defeito do

    automvel... e nos consideramos eruditos. E o que pior,

    no temos equilbrio emocional para lidar com as relaes

    de alteridade. Da por que, agora, substituram o Q.I. para o

    Q.E., o Quociente Intelectual para o Quociente Emocional.

    Por qu? Porque as empresas esto constatando que h,

    entre seus altos funcionrios, uns menines infantilizados,

    que no conseguem lidar com o conflito, discutir com o

    colega de trabalho, receber uma advertncia do chefe e,

    muito menos, fazer uma crtica ao chefe.

    Bem, nem precisamos falar de empresa. Basta conferir na

    relao entre casais. Haja reaes infantis...

    Quem dera que fosse levada prtica aquela idia de, pelo

    menos a cada trs meses, cada setor de trabalho da

    empresa fazer uma avaliao, dentro da metodologia de

    crtica e autocrtica. E que ningum ficasse isento dessa

    avaliao. Como Jesus um dia fez, ao reunir um grupo dos

    doze e perguntar: O que o povo pensa de mim? E depois

    acrescentou: E o que vocs pensam de mim?

    Quem de ns capaz disso? Sempre acho que o outro

    pensa de mim aquilo que eu gostaria que pensasse. E

    morro de medo de ele falar aquilo que realmente pensa.

    Por isso mantenho o meu ego aprumado, pois, se ele falar,

    verei no olhar dele uma imagem que no aquela que eu

    gostaria de projetar.

    A questo da alteridade sria. No temos mais alteridade

    com a natureza. Essa uma perda irreversvel da nossa

    civilizao. No sei se um dia ser resgatada, duvido muito.

    A nossa relao com a natureza de sujeito para objeto. S

    temos relao de sujeito a sujeito, como o ndio tem, at os

    cinco anos de idade. Veja o exemplo de uma criana

    lidando com um cachorro bravo. Ela monta no cachorro

    como se fosse cavalo, enfia a mo na boca, sem risco,

    porque o cachorro percebe que a relao de alteridade.

    de sujeito para sujeito.

    A partir dos cinco anos, perdemos a alteridade frente ao

    animal e ele percebe. A relao passa a ser de sujeito para

    objeto. O ndio no. Ele mantm com a rvore, o rio, a

    mata, uma relao de sujeitado para sujeito. Da a

    dificuldade dos telogos cristos de entenderem. "Ah, isso

    animismo, isso superstio". No, isso relao de

    alteridade. Ou seja, o outro to sagrado e dotado de

    dignidade e direitos quanto eu.

    Eis a dificuldade que temos de entender o outro na sua

    dimenso. Mesmo nas filosofias progressistas, h sempre

    algum marginalizado. O marxismo, por exemplo, convoca

    a classe trabalhadora como sujeito histrico, mas no os

    ndios, no os desempregados, que no sculo passado eram

    chamados de lumpemproletariado. Em todas as culturas h

    sempre um setor secundrio, considerado objeto, no

    sujeito histrico.

    Quem, a meu ver, na cultura ocidental, melhor enfatizou a

    radical dignidade de cada ser humano, inclusive a

    sacralidade, foi Jesus. O sujeito pode ser paraltico, cego,

    imbecil, intil, pecador, mas ele templo vivo de Deus,

    imagem e semelhana de Deus. Isso uma herana da

    tradio hebraica. Todo ser humano, dentro da perspectiva

    judaica ou crist, dotado de dignidade pelo simples fato

    de ser vivo. No s o ser humano, todo o Universo. Paulo,

    na epstola aos romanos, assinala: Todo a Criao geme

    em dores de parto por sua redeno". Os catlicos rezam

    no Credo "creio na ressurreio da carne". Hlio Pellegrino

    dizia que no h nada mais revolucionrio do que

    proclamar a ressurreio da carne. Portanto, a ressurreio

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    no do esprito. A carne representa a materialidade do

    Universo.

    No podemos, pois, partir do princpio de que isso aqui o

    fim da histria, como quer Fukuyama, idelogo do

    neoliberalismo. A nossa humanidade muito recente,

    neste Universo de 15 bilhes de anos. H apenas 2 milhes

    de anos apareceu o ser humano. absurdo achar que esse

    modelo neoliberal de sociedade definitivo. Basta dizer

    que um fator to natural e elementar, como a necessidade

    animal de comer, ainda privilgio entre os 6 bilhes de

    habitantes do planeta. Sobretudo no Brasil. Aqui o

    escndalo maior. Estamos entrando no sculo XXI,

    convivendo com a fome num pas que tem potencial de trs

    colheitas por ano. Os europeus esto vindo plantar uva em

    Pernambuco, porque em nenhum lugar da Europa d, como

    ali, duas ou trs safras de uva por ano. Somos o maior

    produtor mundial de frutas, o sexto produtor mundial de

    alimentos, e possivelmente o nico pas do planeta, com

    dimenso continental, sem nenhuma catstrofe natural.

    No temos furaco, ciclone, maremoto, vulco ou deserto.

    Nosso nico problema que no temos governo. Por culpa

    nossa, que votamos mal.

    Nossas concepes ticas so forjadas por um processo

    social onde o capital, um bem finito, tem mais prioridade

    do que os bens infinitos - a dignidade, a tica, a liberdade, a

    paz, a experincia espiritual etc.

    Estamos perdendo a vida interior, e entrando em outra

    anomalia, a hipertrofia do olhar e a atrofia do escutar.

    Estamos perdendo a experincia do silncio. A perda da

    experincia do silncio a perda da possibilidade de

    encontro consigo mesmo. Quanto menos apreenso tenho

    do meu ser, mais dependente fico do meu ter. A ponto de a

    relao ser humano-mercadoria-ser humano se inverter.

    Passa a ser mercadoria-ser humano-mercadoria. Se chego

    na sua casa de BMW, tenho um valor A. Se chego de

    nibus, eu tenho um valor Z. Sou a mesma pessoa, mas a

    mercadoria que reveste o meu ser humano passa a ter mais

    valor do que eu, e passa a me imprimir valor. a sndrome

    da grife. O bem que eu porto que imprime valor minha

    qualidade como ser humano.

    Dentro desse quadro, o desafio que se coloca para ns

    como transformar essas cinco instituies pilares da

    sociedade em que vivemos: famlia, escola, Estado (o

    espao do poder pblico, da administrao pblica), Igreja

    (os espaos religiosos) e trabalho. Como torn-los

    comunidades de resgate da cidadania e de exerccio da

    alteridade democrtica? O desafio transformar essas

    instituies naquilo que elas deveriam ser sempre:

    comunidades. E comunidades de alteridade.

    Aqui entra a perspectiva da generosidade. S existe

    generosidade na medida em que percebo o outro como

    outro e a diferena do outro em relao a mim. Ento sou

    capaz de entrar em relao com ele pela nica via possvel

    porque, se tirar essa via, caio no colonialismo, vou querer

    ser como ele ou que ele seja como sou - a via do amor, se

    quisermos usar uma expresso evanglica; a via do

    respeito, se quisermos usar uma expresso tica; a via do

    reconhecimento dos seus direitos, se quisermos usar uma

    expresso jurdica; a via do resgate do realce da sua

    dignidade como ser humano, se quisermos usar uma

    expresso moral. Ou seja, isso supe a via mais curta da

    comunicao humana, que o dilogo e a capacidade de

    entender o outro a partir da sua experincia de vida e da

    sua interioridade.

    A nossa identidade construda pela nossa histria. A

    minha histria a minha histria, e ningum ter uma

    histria idntica minha. E isso que faz a minha

    identidade.

    Quando eu estava preso na ditadura, vivi uma experincia

    pela qual nunca passei antes nem depois. Foi to marcante,

    que nunca mais esqueci, e talvez isso me faa entender um

    pouco melhor os povos indgenas hoje, porque eles, com

    muita freqncia, vivem essa experincia.

    Fiquei algumas semanas privado da possibilidade de ver o

    meu rosto num espelho. uma experincia terrvel: no se