12
ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO Maria de Fátima Almeida Martins Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO O artigo apresenta inicialmente o contexto histórico do Movimento da Alternância no Brasil, bem como o seu nascedouro iniciado nas primeiras décadas do século XX na França, quando agricultores e agricultoras, preocupados com a escolarização e o futuro dos filhos no campo empreenderam esforços para criar uma escola, cujo funcionamento possibilitasse a permanência dos mesmos junto à família. Pela significância e correspondência na mediação entre trabalho e escola na vida dos trabalhadores rurais franceses, é que, em meados deste mesmo século houve um processo de expansão dessa experiência para vários outros países. Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação da escola do campo, essa metodologia passa a ser assumida na universidade, por ser esta uma das condições de acesso e integrar dois espaços intrínsecos às escolas do campo. Assim é que considerando a especificidade da formação de professores do campo, e, tendo em vista os sujeitos envolvidos, a forma metodológica da alternância foi assumida para a organização dos tempos e espaços. Na formação destes, a incorporação ao processo de ensino aprendizagem, a prática cotidiana, assim como os contextos referentes à reprodução ampliada do capital que se realiza no campo passam a ser centrais. E isto só foi possível com o processo de formação por alternância. É importante frisar que, no caso da formação de professores para o campo, alcançar com objetividade uma aprendizagem significativa, é fundamental ter o campo e suas dimensões econômicas, sociais, culturais e políticas como base para a formação, mas é também importante a interdisciplinaridade para a orientação do trabalho pedagógico. Palavras-chave: Alternância, Licenciatura em Educação do Campo, Formação de Educadores Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 00917

ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

  • Upload
    others

  • View
    2

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO

CAMPO

Maria de Fátima Almeida Martins

Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

O artigo apresenta inicialmente o contexto histórico do Movimento da Alternância no

Brasil, bem como o seu nascedouro iniciado nas primeiras décadas do século XX na

França, quando agricultores e agricultoras, preocupados com a escolarização e o futuro

dos filhos no campo empreenderam esforços para criar uma escola, cujo funcionamento

possibilitasse a permanência dos mesmos junto à família. Pela significância e

correspondência na mediação entre trabalho e escola na vida dos trabalhadores rurais

franceses, é que, em meados deste mesmo século houve um processo de expansão dessa

experiência para vários outros países. Na sequencia, por ter tido a alternância uma

importância na formação e estruturação da escola do campo, essa metodologia passa a ser

assumida na universidade, por ser esta uma das condições de acesso e integrar dois

espaços intrínsecos às escolas do campo. Assim é que considerando a especificidade da

formação de professores do campo, e, tendo em vista os sujeitos envolvidos, a forma

metodológica da alternância foi assumida para a organização dos tempos e espaços. Na

formação destes, a incorporação ao processo de ensino aprendizagem, a prática cotidiana,

assim como os contextos referentes à reprodução ampliada do capital que se realiza no

campo passam a ser centrais. E isto só foi possível com o processo de formação por

alternância. É importante frisar que, no caso da formação de professores para o campo,

alcançar com objetividade uma aprendizagem significativa, é fundamental ter o campo e

suas dimensões econômicas, sociais, culturais e políticas como base para a formação, mas

é também importante a interdisciplinaridade para a orientação do trabalho pedagógico.

Palavras-chave: Alternância, Licenciatura em Educação do Campo, Formação de

Educadores

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300917

Page 2: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO

CAMPO

Maria de Fátima Almeida Martins

Universidade Federal de Minas Gerais

A alternância e sua historicidade no Brasil

A Alternância enquanto metodologia tem uma de suas raízes fincadas e iniciadas nas

primeiras décadas do século XX na França, quando agricultores e agricultoras,

preocupados com a escolarização e o futuro dos filhos no campo empreenderam esforços

para criar uma escola, cujo funcionamento possibilitasse a permanência dos mesmos junto

à família. Pela significância e correspondência na mediação entre trabalho e escola na

vida dos trabalhadores rurais franceses, é que, em meados deste mesmo século houve um

processo de expansão dessa experiência para vários outros países.

No Brasil, a primeira experiência foi efetivada em 1969 na cidade de Anchieta no Estado

do Espírito Santo. Esta experiência se iniciou como pratica educativa alternativa, isto é,

fora do sistema oficial de ensino. Porém ao longo das décadas subsequentes foram sendo

estabelecidos diálogos com o sistema público, que, sensibilizado passou a ofertar as séries

finais do ensino fundamental e o ensino médio articulado à formação profissional.

A partir destas experiências, o que há hoje na escola básica é a articulação a nível nacional

através dos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs), congregando as

Escolas Famílias Agrícolas (EFA), as Casas Familiares Rurais (CFR) e as Escolas

Comunitárias Rurais (ECOR) somando 247 experiências, espalhadas por mais de 20

estados do país. Contudo, estas experiências, embora possam reforçar as evidencias da

pratica por alternância que é a de possuir “uma das características, [mas] às vezes mais

evidente e a mais ignorada, [que] é a diversidade” como bem argumenta (MAYEN, 2012,

p. 188). Já para Queiroz (2004) a alternância é a condição vital para as experiências de

formação dos CEFFAs.

Pela riqueza, seja na organização, seja na efetivação da prática docente, a alternância não

significa apenas um alternar físico, um tempo na escola separado por um tempo em casa.

Esse movimento representa e constituísse como a espinha dorsal dos CEFFAs. Os

processos de ir e vir estão baseados em princípios fundamentais, tais como: a vida ensina

mais do que a escola; e isto e se aprende também na família, a partir da experiência do

trabalho, da participação na comunidade, nas lutas, nas organizações e nos movimentos

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300918

Page 3: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

sociais. O conceito de alternância vem sendo definido, entre muitos autores, Begnami

(2003) ressalta-o como um processo contínuo de aprendizagem e formação na

descontinuidade de atividades e na sucessão integrada de espaços e tempos. Neste sentido,

a formação está para além do espaço escolar e, portanto, a experiência vivida e

incorporada ao processo se torna um lugar com estatuto de aprendizagem e produção de

saberes, em que o sujeito conquista um lugar de ator protagonista, apropriando-se

individualmente do seu processo de formação.

Como princípio, compreendemos que a alternância agrega necessariamente o movimento

do sujeito no mundo em seus diferentes contextos e ritmos nos quais estejam inseridos.

Desta forma, a alternância propicia a integração entre o trabalho e a formação. Nesta

perspectiva analítica e prática, na alternância, a realização das atividades é entendida, não

como complementar, mas de interação permanente entre as atividades formativas e o

trabalho do formador no processo educativo, onde os sujeitos e os sistemas constituem-

se num movimento dinâmico de formação e não uma mera transmissão de conhecimentos.

Neste sentido, os alternantes são considerados pessoas autônomas, responsáveis e autoras

de si mesma no processo formativo.

Como espaços de realização destas práticas, os CEFFAs buscam estabelecer uma

dinâmica entre a família e a escola. No Tempo Comunidade, ou Tempo Socioprofissional,

os educandos trabalham e convivem com a família e a comunidade. No tempo Escola, os

educandos reelaboram, discutem e refletem sobre o Plano de Estudo, ou seja, a pesquisa

realizada na família e na comunidade. No retorno para a família os educandos levam

consigo o compromisso de aplicar o que aprofundaram na escola. O processo como um

todo se organiza no Plano de Formação que, por sua vez, está ancorado na tríade

“Observar, Refletir, Agir/Transformar”.

A experiência dos CEFFAs nos ajuda observar, refletir e transformar a alternância em três

perspectivas. A primeira diz respeito à centralidade na relação família e escola, onde o

eixo deste plano de Formação é a participação das famílias no processo de construção das

práticas pedagógicas desenvolvidas na família e na escola. Da experiência dos CEFFAS

podemos ter como referência a consolidação da alternância na perspectiva da relação

família - escola.

A segunda nos informa sobre os diferentes formatos que essa relação assume no que diz

respeito à participação das famílias na escola. Assim, é possível encontrar uma série de

experiências e teorias educacionais que utilizam o princípio da alternância e vão

caracterizando as variações da Pedagogia da Alternância. Queiroz, (2004) descreve-a nos

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300919

Page 4: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

seguintes formatos:

• Alternância justapositiva: caracteriza-se pela sucessão dos tempos ou períodos

consagrados a uma atividade diferente: trabalho ou estudo. Estes dois momentos não têm

nos casos extremos, nenhuma relação entre eles: nenhuma lei os rege e o conteúdo de um

não tem repercussão sobre o conteúdo do outro.

• Alternância associativa: trata-se de uma associação por alternância de uma

formação geral e de uma formação profissional. Este tipo de alternância permanece

equilibrado e se descobre aí a existência da relação entre a atividade escolar e a atividade

profissional, mas, é de fato constituída por uma simples adição e este vínculo aparece

apenas no nível institucional.

• Alternância real ou copulativa ou integrativa: é a compenetração efetiva de meios

de vida sócio-profissional e escolar em uma unidade de tempos formativos. Esta

alternância supõe uma estreita conexão entre estes dois momentos de atividades a todos

os níveis, quer sejam individuais, relacionais, didáticos ou institucionais. Os componentes

do sistema alternante recebem um lugar equilibrado, sem primazia de um sobre o outro.

Além disso, a ligação permanente que existe entre eles é dinâmica e se efetua em um

movimento de perpétuo ir e vir, facilitado por essa retroação, a integração dos elementos

de uma a outra. É também a forma mais complexa da alternância, seu dinamismo

permitindo uma evolução constante. As relações alternantes são essencialmente

dinâmicas.

A terceira nos informa sobre a possibilidade do uso da alternância no segundo segmento

do ensino fundamental e no ensino médio profissionalizante. A duração das atividades

varia entre três e quatro anos, em regime de semi-internato, com a adoção do método de

alternância, onde os jovens passam duas semanas na propriedade, no meio profissional

rural, e uma semana no Centro de Formação. Isto representa 14 semanas por ano em

atividades letivas presenciais no Centro de Formação e 28 semanas de atividades práticas

à distância nas propriedades rurais de suas famílias, acompanhados por monitores e

técnicos, visto que a propriedade agrícola funciona de forma ininterrupta durante o ano.

Em 2006, os Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFA), entidade que

agrega diferentes experiências de alternância entre escola/família, conseguiram aprovar

o Parecer CNE/CEB nº 1/2006, que considera como dias letivos o tempo de estudo na

família. Este é, sem dúvida, uma conquista que fortalece a experiência do CEFFAs, bem

como outras práticas vinculadas a (à) Educação do Campo.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300920

Page 5: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

A alternância na formação de Professores

Considerando a especificidade da formação de professores do campo, e, tendo em vista

os sujeitos envolvidos apresentamos como forma metodológica para a organização dos

tempos e espaços para a formação destes, a incorporação ao processo de ensino

aprendizagem, a prática cotidiana, assim como os contextos referentes à reprodução

ampliada do capital que se realiza no campo. É importante frisar que, no caso da formação

de professores para o campo, alcançar com objetividade uma aprendizagem significativa,

é fundamental ter o campo e suas dimensões econômicas, sociais, culturais e políticas

como base para a formação, mas é também importante a interdisciplinaridade para a

orientação do trabalho pedagógico.

Os tempos e espaços, como contexto da e na alternância neste sentido, tornam-se

estruturantes para a viabilidade e concretização das atividades do curso de licenciatura do

campo, ou seja, são concebidos a partir de uma dimensão que é pratica para que possam

dialogar com os sujeitos e suas práticas e, ao mesmo tempo, realizar o movimento

reflexivo para pensar o seu espaço e o próprio fazer. Em outras palavras, descobrir como

os elementos constitutivos da vida no campo entram no processo de ensino e

aprendizagem.

A denominação TE – Tempo Escola e TC – Tempo Comunidade surge no contexto das

experiências desenvolvidas com apoio do Programa Nacional de Educação na Reforma

Agrária (PRONERA). A alternância, nesta experiência aconteceu para atender à

necessidade de formação dos monitores, que residiam nos assentamentos, para atuarem

como alfabetizadores de adultos. Esta experiência foi importante, para o desenvolvimento

deste processo nas universidades que juntamente com os movimentos sociais elaboraram

projetos pedagógicos, prevendo a formação em alternância. Nestes, os educadores se

deslocavam para os campi universitários, em períodos trimestrais e/ou semestrais.

Através desses encontros, que variavam segundo o nível de ensino, os professores

habilitavam os alfabetizadores. O formato se estendeu para as habilitações no nível

médio, profissionalizante, superior e, mais recentemente, nos cursos de pós-graduação.

Esse acumulo de experiência leva a Educação do Campo à Secretaria de Educação

Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão/Ministério da Educação

(SECADI/MEC), a organização em TE/TC que já era realidade em diferentes regiões

brasileiras. Na criação do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300921

Page 6: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

Educação do Campo (Procampo) e do Programa Saberes da Terra – Pro Jovem Campo -

a organização em TE/TC se constituiu como princípio e diretriz para organização dos

processos formativos. As universidades que implantaram o Curso de Licenciatura em

Educação do Campo, no caso, as Universidades Federais de Minas Gerais, Universidade

de Brasília, adotaram como matriz curricular a organização em TE/TC. Estas

universidades foram as que primeiro tornaram o Curso de Licenciatura como oferta

regular, e o fizeram mantendo a alternância como matriz organizadora dos tempos e

espaços formativos (Antunes-Rocha, 2010).

Sendo assim, o par TE/TC foi-se constituindo como uma prática que pode na atualidade

ser considerada como um princípio na Educação do Campo. Nessa condição

consideramos a relevância desta reflexão, tendo em vista contribuir para os projetos em

andamento, bem como para àqueles em processo de gestação. Vale ressaltar que a

condição instituinte do formato em alternância está exigindo sistematizações e reflexões

em torno das experiências em desenvolvimento, visto que é a partir desse trabalho que

fortaleceremos princípios, conceitos e metodologias para compor a luta pela Educação

como uma política pública que reafirme o direito dos povos do campo.

A importância deste estudo reside, sobretudo, na sua contribuição para a compreensão da

alternância como forma metodológica e pedagógica na formação de educadores do campo

nas universidades que oferecem curso de Licenciatura em Educação do Campo hoje na

sociedade brasileira.

Por ter tido o campo francês a primeira experiência de constituição de um processo de

escolarização em alternância, a experiência de alternância no campo neste país acontece

na medida em que as mudanças neste espaço com processo de globalização foram

bastante significativa redefinindo todo o processo de trabalho, especialmente com a

modernização e a tecnificação.

No campo teórico ancoramos nossa análise sobre a alternância com de seus ritmos,

tempos e formas, ou seja, seus espaços e tempos formativos, ou seja, a incursão teórica

será através dos conceitos de: território, territorialidade e espaço. Para alcançar essa

proposição, utilizaremos o aporte teórico de autores como: LEFEBVRE (2000),

SANTOS, 1998, HAESBAERT ( 2007), MAYEN (2013) RAFFESTIN(1993), bem como

na categoria trabalho ( MARX).

A alternância na territorialidade da Escola do Campo

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300922

Page 7: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

Nesta pesquisa adotaremos a noção de território, tal como trabalhada por Fernandes

(2006), como referência analítica para refletir sobre os significados da alternância para a

construção dos princípios, conceitos e práticas na Educação do Campo. Para Fernandes,

o conceito de território permite a compreensão do espaço como articulado pelas

dimensões produtivas, culturais, educacionais, políticas e sociais. Sendo assim,

analisando o movimento entre o Tempo Escola -TE e o Tempo Comunidade –TC, se

coloca como o encontro entre dois territórios: o território do campo e o território da

escola. No encontro entre ambos é que poderemos ver as conflitualidades e os consensos,

isto é, a dinâmica entre sujeitos, princípios, conceitos e práticas que se articulam no

paradigma da Educação do Campo.

Compreendemos que o território do campo é onde se produz a experiência seminal da

Educação do Campo, é também onde vem sendo constituído o momento e o movimento

da luta pela terra,

[...] onde se realizam as diversas formas de organização do campesinato e também as

formas de organização da agricultura capitalista [...] Enquanto o agronegócio organiza o

seu território para a produção de mercadorias [...] o campesinato organiza o seu território

para realização de sua existência, necessitando desenvolver todas as dimensões

territoriais [...] Exatamente porque o território possui limites, possui fronteiras, é um

espaço de conflitualidade (FERNANDES, 2006, p. 28, 29, 33).

A Educação do Campo nasceu na luta do campesinato, se constituindo na atualidade

como um território imaterial, na acepção de Fernandes (2006). Vinculada ao conceito de

território, temos a noção de Territorialidade – como se constrói o território, como funciona

–, pode ser entendida como o que se encontra no território, estando sujeito à sua gestão,

como, ao mesmo tempo, o processo subjetivo de conscientização da população de fazer

parte de um território, de integrar-se a um Estado. Segundo Andrade (1995, p. 20), [...] a

formação de um território dá às pessoas que nele habitam a consciência de sua

participação, provocando o sentido da territorialidade que, de forma subjetiva, cria uma

consciência de confraternização entre elas.

Com esta referência, podemos dizer que os conceitos de território e territorialiade

permitem ver o TE/TC como articulações entre o campo e a escola como territórios, isto

é, organizados em múltiplas dimensões. Nesse processo, a Educação do Campo se

constitui também como território. Enfim, um conjunto complexo que exige atitudes dos

sujeitos que estão materializando as práticas.

Nessa compreensão, a organização em TE/TC joga sentidos para dimensões territoriais

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300923

Page 8: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

do campo, da escola e da Educação do Campo. Essas dimensões podem ser apreendidas:

na estruturação da relação tempo/espaço, na articulação entre os saberes produzidos pelos

sujeitos em suas realidades e os saberes elaborados na escola, na produção/socialização

dos conhecimentos e na organização da prática pedagógica.

Relação tempo/espaço

Para início de conversa, o TE/TC não pode ser compreendido como termos e/ou práticas

separadas, mas são distintos no que diz respeito ao espaço, tempo, processos e produtos

relacionados à formação pedagógica. Vale ressaltar que a diversidade com relação ao

formato da distribuição das horas guarda relação com a distância da universidade ao local

de moradia dos alunos, a dispersão em termos geográficos dos locais de residência dos

educandos, a disponibilidade dos educadores e a negociação do espaço nas universidades.

Existem projetos em que a alternância se concretiza através de uma intensificação de

carga horária no Tempo Escola. Em alguns, todo o tempo previsto na legislação é

realizado no Tempo Escola.

Os projetos pedagógicos elaborados na perspectiva da Educação do Campo afirmam que

não se trata de um alternar físico, um tempo na escola separado por um tempo em casa.

Neste sentido, como princípio, a alternância agrega necessariamente o movimento do

sujeito no mundo, nos diferentes contextos em que esteja inserido, onde os processos de

ir e vir estão baseados em princípios fundamentais, tais como: a produção da vida (em

casa, no trabalho, na rua, nos movimentos sociais, na luta, dentre outros) é um espaço

educativo tal qual a escola. Nesta perspectiva analítica e prática, a realização das

atividades é entendida não como complementar, mas de interação permanente entre as

atividades formativas e o trabalho do formador no processo educativo, onde os sujeitos e

os sistemas constituem-se num movimento dinâmico de formação, e não uma mera

transmissão de conhecimentos. A formação está no e para além do espaço escolar e,

portanto, a experiência se torna um lugar com estatuto de aprendizagem e produção de

saberes, em que o sujeito conquista um lugar de ator protagonista, apropriando-se do seu

processo de formação.

Compreender a educação a partir de sua relação com o espaço, como ação formadora do

homem moderno, como bem afirma Milton Santos (1996; p. 44), contempla conceitos e

categorias como: “tempo, espaço e mundo [como] realidades históricas..., [que] em

qualquer momento, o ponto de partida é a sociedade humana em processo, isto é,

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300924

Page 9: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

realizando-se. Essa se dá sobre uma base material: o espaço e seu uso: o tempo e seu uso;

a materialidade e suas diversas formas; as ações e suas diversas feições.”

Ao falar da vida moderna, das pressões existentes nesta sociedade, Maria Rita Kehl

ressalta como as temporalidades, ou seja, as diferentes formas de organização e percepção

subjetiva do tempo, nesta sociedade, têm importância fundamental. Para Kehl (2009;123),

O homem contemporâneo vive tão completamente imerso na temporalidade urgente dos

relógios de máxima precisão, no tempo contado em décimos de segundo, que já não é

possível conceber outras formas de estar no mundo que não seja as da velocidade e da

pressa.

Para outro importante teórico contemporâneo, Henri Lefebvre

L'emploi du temps comporte des agréments et des désagréments, des pertes ou des

économies de temps, donc autre chose que des signes: une pratique. La consommation de

l'espace se donne des caractères spécifiques. Elle diffère de la consommation des choses

dans l'espace, mais ce n'est pas une simple différence de sgnes et des significations.

L'espace enveloppe le temps. On le scinde: on écarte le temps; celui-ci ne se laisse pas

réduire. A travers l'espace, un temps social se produit et se reproduit; mais ce temps social

se réintroduit avec ses traits et ses déterminations: répétitions, rythmes, cycles, activités.

(LEFEBVRE, 2000, 391-392)

Essas referencias que se tem sobre tempo e espaço, concebidas nas suas mais amplas

acepções, é que nos fazem pensar que, estes dois conceitos nos ajudam a compreender os

sujeitos, a natureza, a cultura e a sociedade como relações que educam, podendo ser

constituídas como “forma de praticar uma pedagogia da possibilidade, fundada num

conhecimento situado entre a teoria e a realidade.” (PEREZ, 1999, p.30).

Ainda trilhando o percurso teórico sobre estes conceitos, dois autores brasileiros como

Paulo Freire e Milton Santos, importantes estudiosos do mundo contemporâneo,

ressaltam em suas análises esses conceitos e categorias e, por isso, nos ajudam a

problematizar e desvendá-lo. Assim, para Paulo Freire, “o homem se identifica com sua

própria ação: objetiva o tempo, temporaliza-se, faz-se homem história.” (FREIRE, 1979,

p. 31). Neste sentido, essa ação cotidiana do “viver-fazer humano” constitui a base da

produção do espaço, que, mediada por relações e técnicas, marcam as diferentes

temporalidades e identificam os tempos históricos do homem moderno. Ou, como

anuncia Milton Santos: “todos os dias o povo se renova; [renovando] cotidianamente o

seu estoque de impressões, de conhecimento, de luta.” (SANTOS, 1998, apud PEREZ,

1999, p. 30).

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300925

Page 10: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

Considerações finais

Desta forma e ancoradas nestas concepções, entendemos que a Educação do Campo,

aproximada da dimensão cotidiana, da imediaticidade do acontecer da vida, do fazer e ser

do sujeito do campo, aqui entendido como o tempo empiricizado, como território do uso,

onde marcam suas lutas e conquistas, ganha maior significação como proposição

pedagógica, concretizando uma aprendizagem significativa e transformadora.

Nesse sentido, e, tendo como principio a formação como sujeito de sua história, é que a

educação do campo ganha sua acepção mais ampla e ultrapassa as formas adjetivadas.

Sabemos que, alcançados pelos ritmos do trabalho, orientados pelas temporalidades

imediatas, dos meios de comunicação, das novas tecnologias, da luta pela sobrevivência

e por uma vida digna, os povos do campo vivenciam dimensões histórico-culturais,

consideradas como ultrapassadas. O relógio da natureza, o espaço como lócus para

produzir e reproduzir a existência e a manutenção de valores e hábitos seculares dialoga

com a urgência da internet, da produção da vida como mercadoria e da cultura

massificada. No TE/TC, essas diferentes formas de produzir a vida são inquietadoras e

seguem produzindo desafios e possibilidades.

As principais motivações da realização desta reflexão são oriundas da pesquisaque tem

como referencia o fazer da experiência vivida durante nove anos de acompanhamento de

constituição do curso de formação de professores do campo. Como coordenadora do curso

desde de 2010, tenho me debruçado sobre a prática de realização e organização dos

tempos Escola e Comunidade deste curso. A cada momento de realização destes tempos,

temos agregrado a cada tempo subseqüente, elementos novos a partir da experiência

vivida pelo anterior. Por ser um processo ainda muito recente nas universidades

brasileiras, essa formação por alternância, esse estudo terá um alcance bastante

significativo para o debate na formação de educadores do campo no Brasil.

Considero também que a produção bibliográfica decorrente do desenvolvimento da

pesquisa contribuirá para o debate sobre a Educação do Campo, sua constituição,

enraizamento e a afirmação como proposição efetiva não apenas formativa, mas

principalmente sua dimensão inclusiva, como forma de inserção da população do campo

aos processos formativos como direito a escola e a educação superior. A realização dessa

pesquisa, também contribuirá para a problematização de concepções em torno dessa

prática da alternancia, pensando nos significados que esta toma hoje nos debates sobre a

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300926

Page 11: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

constituição da forma metodológica como prática legítima na instituição escolar.

Consideramos que, embora no Brasil a alternância tenha iniciado em meados da segunda

metade do século XX, esta foi por muito tempo uma experiência circunscrita apenas a

escola básica. A importância desta pesquisa é descrever e avaliar como a alternância no

ensino superior no Brasil vem sendo configurada, ou melhor, qual e quais as diversidades

de formas estão sendo conformadas na formação de professores do campo no ensino

superior no Brasil.

REFERÊNCIAS

ANTUNES-ROCHA, Ma. Isabel. Desafios e perspectivas na formação de educadores:

reflexões a partir do Curso de Licenciatura em Educação do Campo desenvolvido na

Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais. In SOARES, Leôncio et

al. Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: Educação

do Campo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. (p 389-406)

BEGNANI, João B. Pedagogia da Alternância. In Revista Presença Pedagógica. Belo

Horizonte: Editora Dimensão, 2010 (p. 31-38).

CALDART, R. S. (2002) Pedagogia da Terra: formação de identidade e identidade de

formação. Cadernos do ITERRA. Veranópolis, RS, v. 2, n.6.

FERNANDES, Bernardo M. Os campos da pesquisa em Educação do Campo: espaço e

território como categorias essenciais. In MOLINA, Monica C. Educação do Campo e

Pesquisa: questões para reflexão. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário,

2006. (p. 27-39)

HAESBAERT Rogerio. O território em tempos de globalização etc, espaço, tempo e

crítica. Revista Eletrônica de Ciências Sociais Aplicadas ISSN 1981-3732 http:

//www.uff.br/etc 15 de Agosto de 2007, n° 2 (4), vol. 1

MAYEN, Patrick Formações por Alternância: diversidade de situações e perspectivas

dos usuários. In: Revista Trabalho e Educação – Revista do Núcleo de Estudos sobre

trabalho e educação da Faculdade de Educação/ UFMG, v. 12, n. 3 set/dez 2012, ISSN

1516-9537/ e-ISSN 2238-037X.

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. São Paulo, 1979.

KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo,

2009.

LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300927

Page 12: ALTERNÂNCIA E FORMAÇÃO NA LICENCIATURA EM …uece.br/endipe2014/ebooks/livro3/104 ALTERNÂNCIA E...Na sequencia, por ter tido a alternância uma importância na formação e estruturação

Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000).

Primeira versão: início - fev.2006.

PEREZ, Carmem Lúcia. Ler o espaço para compreender o mundo. Presença

Pedagógica, v. 5. N. 28, jul/ago. 1999.

QUEIROZ, João Batista. Construção das Escolas Famílias Agrícolas no Brasil: ensino

médio e educação profissional. (Tese de Doutorado). UnB, 2004.

SANTOS, Milton Santos. Técnica espaço tempo: globalização, e meio técnico –

cientifico informacional, Ed. Hucitec, São Paulo, 1998.

SANTOS, Milton Santos. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção.

Ed. Hucitec São Paulo, 1996.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. Editora Ática, São Paulo, 1993.

Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade

EdUECE - Livro 300928