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FERNANDO VIDAL VARIANI ÁLVARO DO CARVALHAL E EÇA DE QUEIRÓS: AMOR INTERDITO E ATMOSFERA GÓTICA Trabalho de monografia apresentado como conclusão do curso de bacharelado em Letras-Português - Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Orientador: Antonio Augusto Nery CURITIBA-DEZEMBRO 2013

álvaro do carvalhal e eça de queirós

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FERNANDO VIDAL VARIANI

ÁLVARO DO CARVALHAL E EÇA DE QUEIRÓS: AMOR INTERDITO EATMOSFERA GÓTICA

Trabalho de monografia apresentadocomo conclusão do curso de bachareladoem Letras-Português - Estudos Literáriospela Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Antonio Augusto Nery

CURITIBA-DEZEMBRO

2013

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SUMÁRIO

Introdução.............................................................................................................................................3

1. Honra Antiga....................................................................................................................................9

2. O Defunto.......................................................................................................................................21

3. Considerações Finais......................................................................................................................33

Referências Bibliográficas..................................................................................................................41

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Introdução

Eça de Queirós (1845-1900), maior representante do que convencionou-se denominar de

Realismo em Portugal, dedicou-se também à produção de diversas narrativas de teor fantástico,

sobrenatural ou maravilhoso. Dentre elas, nos propomos a analisar o conto "O Defunto" publicado

postumamente no volume Contos (1902). Passando-se na idade média e aproximando-se em muitos

momentos de um conto de horror, "O Defunto" é uma dessas narrativas que diferem da imagem

mais recorrente associada a Eça de Queirós, consolidada principalmente a partir de seus mais

conhecidos e aclamados romances, como O Primo Basílio (1878) e O Crime do Padre Amaro

(1875).

Muito menos consolidada na tradição da historiografia literária portuguesa é a imagem de

Álvaro do Carvalhal (1844-1868), cuja obra se resume a uma peça dramática e um volume

publicado também postumamente, intitulado igualmente Contos (1868). Conhecido como um dos

autores do século XIX português mais dedicados à produção de literatura fantástica, sua obra é

muitas vezes caracterizada como "frenética" ou mesmo grotesca, pela exploração de temas e

enredos que chocavam o público de sua época, ainda que estivesse fortemente ligada a uma tradição

de literatura gótica, ou negra, que encontrava grande repercussão especialmente no teatro português

da primeira metade do século. Da concisa obra desse autor, destacamos o conto "Honra Antiga", no

qual encontramos diversos pontos de possível comparação com o conto de Eça de Queirós

anteriormente mencionado.

Buscaremos, neste trabalho, realizar uma análise dos contos dos dois autores, tomando

como ponto de contato a exploração de um tema de enorme recorrência (não apenas) na literatura

Romântica: a do amor interdito e seu potencial desenlace trágico. Para tanto, faremos alguns

apontamentos acerca de características de ambos os textos, analisando de que modo cada um dos

autores desenvolve essa temática. Primeiramente, em elementos incontornáveis, como narrador,

espaço, tempo, enredo e personagens. A partir dessas características extremamente elementares e do

estudo comparativo, acreditamos ser possível uma leitura do modo como cada autor constrói sua

narrativa ficcional a partir do aproveitamento de certa tradição da literatura gótica portuguesa, assim

como da problematização proposta por cada uma das narrativas.

É preciso ter em vista, em primeiro lugar, que estamos tratando de dois autores que

ocupam lugares muito distintos na historiografia literária portuguesa, especialmente a partir da

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perspectiva muitas vezes adotada por essa historiografia, que tende a enxergar o Romantismo como

um obstáculo a ser superado para atingir o patamar do Realismo. São significativas, nesse sentido,

as observações de Massaud Moisés no segmento dedicado a Eça de Queirós, em A Literatura

Portuguesa (1960).

Segundo o crítico, as primeiras obras realistas de Eça documentam "o aparecimento do

romance, strictu sensu, em Portugal, livre da contaminação novelesca ainda comum no

Romantismo." (MOISÉS, 1960). Para Moisés essas obras configurariam o início do que o crítico

chama de "segunda fase" no conjunto da obra queirosiana, sendo a primeira ainda demasiadamente

contaminada de Romantismo e a terceira detentora de certo apaziguamento de homem casado e

convertido, na qual se destacaria o virtuosismo estilístico à contundência crítica, de modo que a

melhor parte de sua produção estaria na fase intermediária, justamente aquela entendida por ele

como uma espécie de "fase realista"1.

Importante para nossa reflexão é o fato de que, embora tenha indiscutivelmente se

engajado na "implantação" do Realismo na literatura portuguesa, e que parte significativa de sua

produção se aproxime dos pressupostos e recursos estéticos atribuídos a essa escola, Eça de Queirós

dedicou-se, muitas vezes, a produções que não se encaixam no modelo comumente pensado como

Realista. Seria preciso, antes de qualquer discussão nesse sentido, destrinchar uma delicada

ambiguidade incluída no conceito de "realismo". Por "realista", no sentido mais cotidiano da

palavra, entende-se uma postura que se mantém fiel à "realidade", e não dada a devaneios, que

nesse mesmo sentido cotidiano, embora não explicitamente, estariam mais próximos de uma atitude

romântica ou idealista.

Esse sentido se extende, muitas vezes, para o da representação ficcional, levando-nos a

entender a representação "realista" como aquela que pinta a realidade "como ela é". Ponto crucial

nessa discussão é o de que realidade estamos falando. Ao falarmos em uma "representação realista"

na ficção, o movimento mais imediato é associar essa realidade, ainda que muitas vezes de forma

inconsciente, à realidade determinada pela vitória do empirismo, da perspectiva científica herdeira

do Iluminismo, que assumiu cada vez mais uma postura totalitária no modo como encaramos e nos

relacionamos com o mundo.

Uma maneira mais abrangente de compreender o termo "realista" na literatura, mas que

ainda está pautada numa percepção bastante corrente no imaginário literário, é o da literatura que

tende à crítica, ao desvelamento de relações presentes no jogo social e político, ou seja, uma

1 Movimento semelhante parece ser realizado por Roberto Schwarz ao ocupar-se de José de Alencar e Machado deAssis na Literatura Brasileira - estudo que, evidentemente, foge aos interesses mais imediatos deste trabalho emencionamos apenas como ilustração do que acreditamos ser um movimento recorrente na análise retrospectiva datradição literária de língua portuguesa.

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literatura engajada na denúncia ou problematização de aspectos da vida em sociedade. São

significativas para a reflexão acerca desse emprego do termo "realismo" na literatura, obras como

Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880) de Machado de Assis e O Mandarim (1880) de Eça de

Queirós, apenas para citar algumas narrativas que se utilizam de recursos que extrapolam a

realidade aceita como natural (na primeira a presença de um narrador defunto e na segunda a

proposta mágica que oferece ao protagonista a possibilidade de, tocando uma campainha, matar um

mandarim chinês e herdar sua fortuna) para problematizações de questões sociais que talvez não

fossem tão contundentes a partir de outro tipo de abordagem.

De um modo geral, esses dois possíveis entendimentos do termo "realismo" andam juntos,

ignorando-se os recursos mencionados em obras emblemáticas como o narrador-defunto em

Memórias Póstumas de Brás Cubas ou a apresentação subjetiva da realidade, de modo que a

realidade em si do universo ficcional torne-se inapreensível, como em Dom Casmurro (1899). No

caso de Eça, romances como O Crime do Padre Amaro (1875) e O Primo Basílio (1878) parecem

mais próximos desse duplo "realismo", ao apresentar um narrador em terceira pessoa,

pretensamente distante e objetivo em relação ao conteúdo narrado. Por outro lado, obras como O

Mandarim e A Relíquia (1887), além de utilizarem-se de elementos que poderiam ser associados ao

fantástico e ao sobrenatural, apresentam narradores em primeira pessoa, que fornecem uma visão

bastante subjetiva dos acontecimentos. É interessante notar esse paralelo entre o conteúdo das obras

e os tipos de narradores, embora em obras menos fantásticas Eça também recorra à primeira pessoa,

como em A Cidade e as Serras (1901), num movimento que António José Saraiva e Óscar Lopes

pertinentemente apontam como uma biografia, ou mesmo “autobiografia de certa personagem que

é, ao cabo, muito reveladora para além do nível de consciência do próprio narrador” (SARAIVA E

LOPES, 1996, p.864)

Por todas essas questões, é interessante voltar-se para as obras de Eça que parecem

distanciar-se do que mais frequentemente entende-se por Realismo, analisando em que medida a

contundência crítica é efetivamente atenuada nesse tipo de narrativa, como afirma Massaud Moisés

a respeito de A Relíquia - e como é possível deduzir que julgue O Mandarim, uma vez que esta obra

não recebe uma única palavra de análise em A Literatura Portuguesa, embora conste na bibliografia

de Eça fornecida pelo crítico. Nesse sentido, optamos pelo conto "O Defunto" por tratar-se de um

conto que se aproxima das noções de conto fantástico (embora no incontornável esquema de

Todorov2 esteja mais próxima do conceito de maravilhoso), com recurso a um distanciamento

temporal medievalista e à atmosfera gótica ao tratar de um tema geralmente associado ao

Romantismo: o amor interdito e sua tendência ao desenlace trágico. Veremos, ainda, que embora

2 Introdução à Literatura Fantástica (1970), Tzvetan Todorov.

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configure o cerne da pequena narrativa, o amor em "O Defunto" está diretamente ligado a um

tratamento dado pelo narrador ao amor do protagonista por sua santa predileta, de modo que a

religião acaba por assumir um papel decisivo no conto.

Se o estudo de Eça nos leva à necessidade de lidar com uma série de aspectos consolidados

na tradição da crítica de literatura portuguesa, como uma possível "fase realista" e uma possível

"contaminação" romântica em suas obras de juventude, o estudo de Álvaro do Carvalhal é

problemático no sentido diametralmente oposto: a ausência de menções ao autor, ainda que

classificatórias, em manuais de literatura portuguesa como o já citado A Literatura Portuguesa e

História da Literatura Portuguesa (1955), de António José Saraiva e Óscar Lopes.

Se seguíssemos a cronologia proposta pela maior parte desses esquemas historiográficos, a

obra de Álvaro do Carvalhal, produzida entre 1865-1868, estaria situada na passagem entre um

momento de esgotamento do que denominou-se Ultra-romantismo e o Realismo que dominaria a

década seguinte. Na mesma década de 60, Eça de Queirós publicava os textos reunidos

posteriormente sob o título (exigência de Eça) de Prosas Bárbaras (1903), justamente aqueles em

que, segundo Massaud Moisés, ainda é possível notar uma forte contaminação romântica e que são

de menor interesse, a não ser para conhecer a juventude do autor (MOISÉS, 1960).

Maria Leonor Machado de Sousa, em O "Horror" na Literatura Portuguesa (1979) - um

dos poucos estudos encontrados a deter-se em Álvaro do Carvalhal – aponta que a literatura gótica

em Portugal esteve inicialmente ligada ao teatro da primeira metade do século, que acabou por

originar os chamados "melodramas", associados ao que denominou-se Ultra-romantismo, devido

aos enredos trágicos, às paixões exageradas e a uma retórica excessiva. Nos contos de Álvaro do

Carvalhal também encontramos todos esses elementos, mas associados muitas vezes a uma espécie

de metanarrativa ultra-retórica que, a exemplo dos romances de Camilo Castelo Branco (1825-

1890), não se limita a utilizar-se do grande conhecimento de uma tradição à beira do esgotamento,

mas o faz expondo os próprios ridículos dessa tradição, pagando seu tributo, mas de certa forma

mantendo uma distância jocosa que brinca com as expectativas do público e com a própria

construção ficcional.

Outro aspecto que diferencia os contos de Carvalhal do drama e dos romances históricos -

segundo Leonor Machado de Sousa ligados à mesma tradição - da primeira metade do século, é a

ausência de qualquer conteúdo que possa ser entendido como histórico no sentido de voltar-se para

o passado, o chamado "efeito de recuo" que tantas vezes aproximou a literatura gótica do romance

histórico na tradição literária portuguesa. É preciso notar ainda que embora na maior parte dos

contos de Carvalhal não exista nenhuma referência à localização espacial ou temporal da narrativa,

os tipos e figuras sociais mais recorrentemente representados são perfeitamente compreensíveis

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como contemporâneos do autor, talvez especificamente como pertencentes ao contexto português da

época.

Esse movimento pode ser compreendido como uma transição no tipo de personagem

representada, que mantém os enredos trágicos, as paixões exacerbadas e a retórica excessiva (que

ganha uma dimensão autoreflexiva característica do gênero romance), mas deixa de representar

personagens e situações históricas e tende em diversos momentos mais para o grotesco do que para

o trágico. Uma citação do dramaturgo Dürrenmatt, encontrada no livro O Grotesco (1957) de

Wolfgang Kayser, embora se refira à impossibilidade do trágico no século XX, talvez seja uma boa

ilustração do tipo de movimento que leva ao "grotesco", caracterização muitas vezes atribuída em

tom depreciativo aos contos de Álvaro do Carvalhal:

A tragédia pressupõe a culpa, a miséria, a medida, a visão conjunta e aresponsabilidade. Mas já não existem culpados nem responsáveis nas chouriçadasde nosso século, nessa liquidação da raça branca. Todos são inocentes e nãoquiseram que as coisas fossem assim. Tudo corre realmente sem que cada um hajafeito a sua parte. Tudo é arrastado pela correnteza e fica pendurado em algumancinho. Somos por demais culpados coletivamente, estamos coletivamente pordemais deitados sobre os pecados de nossos pais e antepassados. Somos tãosomente netos. Eis o nosso azar, não a nossa culpa: a culpa só se dá como esforçopessoal, como ato religioso... a nós advém apenas a comédia. Nosso mundo levousimultaneamente ao grotesco e à bomba atômica, do mesmo modo são igualmentegrotescos os quadros apocalípticos de Hieronymus Bosch. Mas o grotesco é apenasuma expressão sensível, um paradoxo sensível ou seja, a figura de uma não-figura,o rosto de um mundo sem rosto. E tal como o nosso pensamento parece não podermais prescindir do paradoxo, o mesmo ocorre com a arte e com o nosso mundo,que só existe porque existe a bomba, isto é, pelo medo que se tem dela.(Dürrenmatt apud Kayser, 1986, p.9)

Pensando nos termos de um estudo considerável como Mímesis: a representação da

realidade na literatura ocidental (1946), de Erich Auerbach, acreditamos estar lidando com uma

espécie de passagem, ou melhor, de mescla, entre uma representação trágica da humanidade, de

“estilo elevado”, e uma representação “mais baixa”, ou seja, uma representação em que nada é

somente trágico nem confortavelmente cômico. Da tragicidade, restariam a retórica expressiva dos

discursos e dos gestos das personagens, os enredos cheios de reviravoltas, revelações e desenlaces

que poderiam suscitar a empatia ou a piedade, não fosse o caráter mesquinho e muitas vezes

ridículo de personagens que nem de longe assumem um papel decisivo no decorrer da História

Universal (como é o caso da utilização de personagens históricas ou lendárias no drama anterior).

No contexto português, julgamos encontrar nos contos de Álvaro do Carvalhal uma espécie

de testemunho dessa transição para aquela que seria as visões algumas vezes degradantes do homem

apresentadas por certa tradição literária do final do século XIX. Maria Leonor Machado de Sousa

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aponta para uma continuidade poucas vezes considerada entre os romances góticos e históricos da

primeira metade do século e o que mais tarde denominou-se Naturalismo em Portugal. Entre os

elementos que podem ser entendidos como parte dessa continuidade (o que não exclui

evidentemente uma porção de rupturas), estariam justamente a atmosfera, os temas góticos, a

representação de paixões exacerbadas e o interesse pelos "subterrâneos da alma" (SOUSA, 1979).

Tendo em vista todos essas questões, nos voltaremos para os contos "Honra Antiga" de

Álvaro do Carvalhal e "O Defunto" de Eça de Queirós, com a intenção primordial de realizar uma

análise literária de cada conto. Num segundo momento, faremos uma reflexão comparativa entre as

duas obras, especialmente no que diz respeito ao modo como são representados dois temas

extremamente comuns não apenas na tradição da literatura gótica em Portugal, mas também no

imaginário mais frequentemente associado ao Romantismo.

É interessante, de partida, termos em mente que Eça de Queirós, na tradição da crítica

literária, é indiscutivelmente o grande nome do Realismo português, ao passo que Álvaro do

Carvalhal, embora praticamente não apareça nos grandes manuais, está associado à literatura

fantástica, de horror e, pelo excesso passional e retórico de suas personagens e narradores, ao Ultra-

romantismo. Veremos o tratamento dado por cada um desses autores, especificamente nos contos

escolhidos, ao tema do amor interdito permeado por uma atmosfera gótica e seu potencial desenlace

trágico. Uma análise mais detida do modo como cada autor lida, nos contos selecionados, com esse

tema, pode permitir-nos entrever a maior complexidade que há, para além dos rótulos e

classificações, quando nos confrontamos com as obras literárias em si.

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1. HONRA ANTIGA

Antes de passarmos à análise específica de "Honra Antiga", faremos algumas

considerações acerca do que dizem alguns dos poucos estudos críticos que encontramos dedicados à

obra de Álvaro do Carvalhal. Embora fosse desejável fazer um balanço mais consistente dessas

percepções e incluir em nossa análise pormenores de outros contos do autor, nos limitaremos a

levantar aspectos que serão mais imediatamente significativos para a análise do conto escolhido: o

aproveitamento de uma tradição temática e o tratamento estilístico dado por Carvalhal.

Em O "Horror" na Literatura Portuguesa, Maria Leonor Machado de Sousa afirma que

"Álvaro do Carvalhal é o único autor português que tratou o 'horror' com a consciência de se

integrar numa escola, cujas linhas fundamentais apreendeu nas suas leituras de Shakespeare,

Radcliffe, Byron, Sue, Soares de Passos, etc [...]" (SOUSA, 1979). A investigação biográfica de

Gianluca Miraglia3 faz diversas referências ao interesse que Carvalhal demonstrava pelos

dramaturgos portugueses da sua época e da imediatamente anterior à sua. No artigo Álvaro do

Carvalhal: o que pode nos informar um autor menor? (2011), Maria Cristina Batalha busca uma

citação de João Manuel Gomes mais uma vez sobre a propriedade com que Carvalhal utiliza-se de

uma tradição:

Segundo o autor João Manuel Gomes (1978), esta peça revela no jovem dedezenove anos uma leitura apurada dos dramaturgos dos anos 40 e 50 que tiverammuito sucesso em Lisboa. Mais tarde, Carvalhal iria “[...] transformar em literaturao que nos dramaturgos frenéticos é mera francaria”, demonstrando conhecerperfeitamente os folhetinistas frenéticos franceses e os portugueses. (BATALHA,p.160-161).

Finalmente, citaremos o estudo O Fantástico nos Contos de Álvaro do Carvalhal (1992),

de Maria do Nascimento Oliveira, que faz uma breve mas pertinente introdução à presença do

fantástico no romantismo português para posteriormente dedicar-se à análise do fantástico em cada

um dos contos que compõem a coletânea Contos de Carvalhal. No segmento dedicado ao conto "Os

Canibais", a autora propõe uma interessante reflexão. Ao perguntar-se se o estilo apontado como

excessivamente retórico de fato revelaria "o credo de Carvalhal numa lição aprendida na tradição",

3 Inserido na edição dos Contos de Carvalhal publicada pela editora Assírio & Alvim em 2004.

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ou se existiria "na sua arte um propósito de charge e de divertimento que o leva a procurar a

expressão obsoleta e irremediavelmente decadente", Maria do Nascimento Oliveira acaba por

concluir da seguinte maneira:

Perante os repetidos esforços do autor-narrador para envolver de inverosimilhançaa acção, as personagens e o próprio espaço que encena, encaramos como coerente atese de M. João Gomes ao admitir ser a forma do barroco vocabular em Álvaro doCarvalhal acima de tudo "uma técnica parodística". Possuído de uma vontadeinequívoca de zombar do artificialismo de um género que mantém em vida umuniverso pouco plausível, o autor acrescenta-lhe uma linguagem excessiva eantiquada com intuitos parodísticos. (OLIVEIRA, 1992, p.81)

Acreditamos, como mencionado anteriormente, que essa "consciência da tradição"

funciona em Carvalhal, assim como em Camilo Castelo Branco, como um arcabouço a partir do

qual o autor constrói suas narrativas, mas também como alvo de uma espécie de jocosidade

distanciada, a partir da qual justamente esse conhecimento da tradição permite aos narradores

brincar constantemente com os clichês correspondentes às expectativas do leitor. Contudo, admitir

que Carvalhal o faz deliberadamente como crítica ao "artificialismo de um gênero que mantém em

vida um universo pouco plausível", talvez seja um passo que o conjunto de sua obra não sustente de

maneira plena. Essa questão não é crucial para nossa discussão, mas pode demonstrar um certo

enviesamento que torna a análise de "Honra Antiga" apresentada em O Fantástico nos Contos de

Álvaro do Carvalhal, um pouco apressada:

Honra Antiga é, à boa maneira camiliana, a história de uma paixão única eabrasadora, que vive sob o signo da impossibilidade do amor, dadas as diferençassociais dos amantes e sobretudo a prepotência de um pai tirano. Será o filhoilegítimo desses amores, o narrador distante e irônico, que se lança na aventura denos contar o segredo familiar. Desde logo se adivinha que o principal eixo não é oterror sobrenatural, mas a ameaça e a vingança de um pai que lavará a sua honraem sangue – punição última para quem transpõe os umbrais da interdição.(OLIVEIRA, 1992, p.102-103)

Em primeiro lugar, seria interessante mencionar de partida que a "boa maneira camiliana"

não é algo tão monolítico quanto a tradição da crítica literária portuguesa tantas vezes propôs.

Embora o tema do amor interdito seja muitas vezes o eixo a partir do qual Camilo desenvolve seus

romances, uma análise mais cuidadosa das diversas situações que se desenvolvem em torno desse

mote (que afinal de contas encontrava grande popularidade entre o público da época), mesmo em

narrativas tidas como emblemáticas do chamado Ultra-romantismo, como Amor de Perdição

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(1862), pode revelar uma complexidade muito maior do que uma leitura rápida e enviesada pode

sugerir. Acreditamos que o mesmo ocorra com o conto "Honra Antiga".

Oliveira aponta para o fato de que é o "filho ilegítimo" quem narra os acontecimentos do

conto. Porém, sua análise não se esforça em compreender quais são os pressupostos deste narrador,

em destrinchar o modo como constrói a narrativa e, principalmente, em buscar nas entrelinhas a

problematização que pode ser apreendida a partir de seus movimentos. Sua leitura, que define o

conto como "uma novela orientada por paradigmas literários já gastos, nomeadamente ao explorar

os pormenores melodramáticos e violentos das paixões", parece atentar especialmente para a

segunda parte da narrativa, ignorando uma série de problemas propostos pela primeira e pela

terceira.

A tripartição do conto pode ser entendida como uma primeira parte introdutória, na qual o

narrador Cristóvão fala de si mesmo, de Petronilha (sua mãe) e do alferes (avô). Além disso, nesse

segmento temos a tentativa mal-sucedida do alferes de casar a filha com Estêvão Ribô e a revelação

da relação pecaminosa entre Petronilha e o jovem conde (pai do narrador), a "desonra". A segunda

parte é aquela em que o já mencionado conhecimento da tradição melodramática por parte de

Álvaro do Carvalhal vem à tona. Esse segmento está permeado pelos clichês do gênero: a natureza

ameaçadora, a espera noturna pelo amado, o surgimento do encapuçado demoníaco (que acaba por

revelar-se como o próprio pai), a postura violenta, o diálogo dramático do alferes com o conde

surpreendido em flagrante e, finalmente, o assassinato. Na terceira parte, Cristóvão narrará a manhã

seguinte à tragédia, quando o alferes entrega o bebê (filho do pecado e narrador) a sua mulher (avó

de Cristóvão), conta que matou a própria filha em nome da honra e entrega-se à execução. A seguir,

fará uma longa reflexão acerca do progresso, de elementos que profetizam o relativismo do século

XX, da necessidade do luxo (tema recorrente na obra de Carvalhal) e, inesperadamente, terminará o

conto defendendo deliberadamente a atitude do avô.

Ao lermos o conto do início, tendo em mente o rumo que a reflexão de Cristóvão tomará

no final, percebemos que, embora nunca omita a limitação e mesmo os aspectos violentos do

alferes, esse complexo narrador não está o tempo todo assumindo a postura que se esperaria de um

verdadeiro narrador romântico. Na realidade, é difícil afirmar plenamente qual é seu

posicionamento. Pois, se no final fará uma defesa explícita da atitude violenta (mas, segundo ele,

honrada) de seu avô, o modo como apresenta a interdição ao amor de seus pais, parece inclinar-se

para uma postura mais libertária, em consonância com os ideais românticos:

Sou filho do pecado. Devo a existência a uma insignificante distracção de minhamãe. Perdera-se, a desavisada, perdera-se de amores por um simpático moço, decondição muito sobranceira à sua. Se era mulher!

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E qual é o anjo, que não tem na esplêndida madeixa o selo duma passageiramácula?Entre ela e o meu pai não se encapelavam oceanos, nem revolitavam montanhas decadente areia, nem se alongavam continentes, nem se encadeavam cordilheiras.Maior, muito maior era o obstáculo que se interpunha: uma coroa de conde, e umaorigem feudal.A paixão encurtou as distâncias, que o nascimento assinalara, e uniu-os num doceamplexo. O prejuízo do século obstava todavia a que se santificasse perante omundo o que, perante a natureza, estava santificado. (CARVALHAL, 2004, p.102)

Esse trecho é bastante ilustrativo do movimento altamente contraditório que Cristóvão

realiza frequentemente. Primeiro afirma-se "filho do pecado". Em seguida afirma que sua existência

deve-se a "uma insignificante distração de minha mãe". Chamar o "pecado" de insignificante, tanto

pode soar irônico, quanto pode realmente querer dizer que foi um ato pequeno, que não justificaria

o assassinato, o que estaria em consonância com a afirmação de que "o prejuízo do século obstava a

que se santificasse perante o mundo o que, perante a natureza, estava santificado". Essa tendência a

contestar os interditos sociais funcionaria aliada ao embelezamento da relação de seus pais, como

ao afirmar que "a paixão encurtou as distâncias, que o nascimento assinalara, e uniu-os num doce

amplexo".

Contudo, é preciso trabalhar constantemente com a noção de que Cristóvão, o narrador,

está se apropriando de certo imaginário romântico para, num movimento de espelhamento

metanarrativo, ironizá-lo simultaneamente. Para desenvolvermos essa hipótese, voltemos às

primeiras palavras do texto, onde a imagem da água aparece em destaque e a própria arte (inclusive

o lirismo) é vista como mero passatempo:

Não há castor ou hipopótamo, que me sobreexceda no amor às águas.Desde pequenino se manifestou em mim esta afeição, pois que, ainda não tinhaquinze dias, quando me chimpei de mergulho na onda fresca dum lago.O lago era a pia baptismal.Mergulhei buliçoso como uma enguia, e emergi radiante como um querubim.Mas prendas desta polpa e calibre não se baldam em meros exercícios de ginásticacomo a equitação, a dança, a esgrima: nem tão-pouco se limitam como a música, odesenho e o lirismo a misteres de galanteio e passatempo.Têm mais prestimoso alcance.O pescador de pérolas mergulha, por entre florestas de corais, para extrair do fundodos mares os tesoiros, que lhe tentam a cobiça; o pescador de truitas mergulha para,das cavidades dos rochedos, ou dentre as torcidas raízes dos amieiros, extrair,apreendido pelas guelras, um mimo de boa culinária; eu mergulhei, se não para mecolmar de pérolas, ou para me regalar de truitas, ao menos para fazer aquisiçãodum nome.Chamo-me Cristóvão. Pesquei um nome de romance, sonoro como qualquermadrigal. E, com ele filado à minha grave personalidade, vou vivendo, por não termais nada, que fazer. O nome de meus pais, esse é que ficou nas águas turvas,ainda por algum tempo. (CARVALHAL, 2004, p.101)

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O fato de o conto ser iniciado com uma declaração de "amor às águas" nos remete

imediatamente ao imaginário romântico. O fato de fazê-lo citando castores e hipopótamos nos leva

a supor imediatamente que o fará de modo sarcástico. A medida que o texto segue, fortalecemos a

suspeita. A imagem da água mais recorrente e significativa para o imaginário romântico – seja ele o

Romantismo "profundo" ou o sempre ridicularizado "romantismo oco" – é a marítima. A mera

contemplação das ondas a despertar o sentimento do sublime, da saudade da terra natal, do amor

perdido; em um sentido mais estritamente português, a nostalgia do passado glorioso das grandes

navegações; ou, ainda mais emblematicamente, o suicídio marítimo, permeiam obras como Os

Trabalhadores do Mar (1866) de Victor Hugo (1802-1886), Amor de Perdição de Camilo Castelo

Branco (1825-1890), ou contos como O Véu (1865) de Teófilo Braga (1843-1924), O Canto da

Sereia (1870) de Júlio Dinis (1839-1871) e A Ladainha da Dor (1866) de Eça de Queirós. A

imagem aquática na qual mergulha Cristóvão, no entanto, é "a onda fresca de um lago", e o lago,

por sua vez, é "a pia batismal".

A afirmação de que com o nome "filado" à sua "grave personalidade", Cristóvão vai

vivendo "por não ter mais nada que fazer", pode ser significativa em dois sentidos. Primeiro por dar

a impressão de alguém que não trabalha. Os jovens de Álvaro do Carvalhal, de um modo geral,

vivem às custas dos pais, sejam eles ricos ou - mais recorrentemente - decadentes. Essa perspectiva,

no entanto, não pode ser afirmada plenamente e funciona mais como especulação em torno da

personalidade do narrador. A ideia da "grave personalidade", que pode passar despercebida numa

primeira leitura, parece apontar para uma continuidade em relação à postura do alferes, cuja

caracterização inicial é um ponto interessante a ser abordado:

Era o meu avô um velho de rija têmpera peninsular. Como voluntário gladiara naspelejadas lutas da liberdade, e sempre introduzira a espada valorosa até ao maisluzido e nervudo das inimigas falanges. Donde procedeu, restabelecida a paz,voltar a suas magras terras, tão magras, que mal davam para um passadio decente,levando na escarcela carta patente e honra de alferes, e no rosto nobres cicatrizes aatestarem os feitos do soldado. Melhorando de posição, nem por isso deixava deconsiderar como evidentemente necessária a escala das jerarquias, tal qual atradição lha transmitia. Filho do povo, não consentiria em mesclar seu sangue como sangue dum nobre, nem talvez à custa da própria vida. E só uma coisa estimavamais do que a vida – a honra.Pouco habituado a discernir por si, pensava na maioria dos casos o que seus avósquiseram, que pensasse. Seguia-lhes na esteira, de olhos fechados, fanático epertinaz, duvidando da luz, que doutro lado lhe fizessem, porventura, resplandecer.Em matéria de honra era como um reflexo de Catão. Era a honra em pessoa, mas ahonra consoante a entendia ele, tal como nós a não entendemos hoje. Tão seguroestava de si que, nem por sombras se lembrara de que na sua família podiainocular-se um fermento de corrupção. (CARVALHAL, 2004, p.102-103)

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O avô era um homem do povo que alçou-se à condição de alferes nas "lutas pela

liberdade". Embora seja difícil discernir exatamente a que se refere o narrador quando fala de "lutas

pela liberdade", é possível supor que trate-se de uma das muitas revoltas contra a monarquia

ocorridas em Portugal ao longo do século XIX. A vitória lhe concede um título, mas não a liberdade

em relação a um ideário baseado no nascimento, que em última instância é a motivação principal do

assassinato. Poderia-se argumentar que trata-se na realidade da desonra da filha ao engravidar antes

do casamento, mas a própria literatura da época está repleta de casos onde isso ocorre e, embora não

seja algo insignificante, o casamento acaba por apaziguar a questão. O próprio conde, ao ser

surpreendido em flagrante, implora ao alferes a possibilidade de casar-se com Petronilha, inclusive

argumentando que sua família é honrada pelos feitos bélicos e não seria indigna de misturar-se ao

seu sangue, mas o avô está decidido que, uma vez nascido plebeu, casar sua filha com um conde

representaria "uma dívida de honra à custa duma desonra" (CARVALHAL, 2004, p.115).

Nesse sentido, se lidarmos com a possibilidade de que essa "luta pela liberdade" trata-se de

uma das revoltas liberais do século XIX (e a argumentação final em torno do progresso em termos

iluministas nos impede de levantar a possibilidade do sempre evocado passado glorioso contra os

mouros), o autor estaria, a exemplo do que sutilmente faz Camilo em Amor de Perdição,

ridicularizando uma revolução liberal que, saindo vitoriosa, preserva o mesmo imaginário

aristocrático que se propôs a combater. Essa leitura do XIX português está claramente desenvolvida

no estudo Jacobinos, liberais e democratas na edificação do Portugal contemporâneo, de Amadeu

Carvalho Homem:

A configuração social do liberalismo português apresenta-nos um remanescente derecorrências históricas que iludem os pressupostos de modernização e de rupturaque seria legítimo esperar. Pesava sobre o país uma forma mentis e um trilho dehábitos comportamentais que só a interiorização de valores burgueses avançados,solidamente firmados na livre iniciativa empresarial, poderiam transformar. Masessa modificação de conteúdos de consciência e de práticas de ação não foialcançada. (...) O que o liberalismo significou no exterior de libertação de forçasprodutivas, cristalizou em Portugal no modesto cadinho de uma simplestransferência de propriedade. Desta maneira, a triunfante sociedade liberalsedimentou-se ao redor de nobilitados burgueses, na maior parte dos casos defresca data, os quais ambicionaram para si e para os seus descendentes um nichoseguro e garantido no exército dos servidores do Estado. Alheios a qualquertradição de iniciativa econômica particular e molecularmente refratários ao riscodos negócios, estes usufruturários do conservadorismo cartista procuraram asposições mais confortáveis no pequeno mundo da administração pública(HOMEM, 2000, p.346).

Esse tipo de percepção talvez forneça uma chave para compreendermos a defesa do alferes

realizada posteriormente por Cristóvão. Pois, se é verdade que, supondo tratar-se efetivamente de

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uma revolta liberal, o alferes saiu vitorioso e manteve padrões de honra pertencentes a um ideario

antigo (lembremos que o próprio título remete à "Honra Antiga"), sua atitude está muito distante da

de "nobilitados burgueses", ou seja, de homens "sem nascimento" que aproveitaram-se da situação

não para operar uma verdadeira mudança, mas para estabelecer-se como usufruturários de bens

aristocráticos antes inatingíveis. É como se o afleres preservasse o imaginário antigo, mas o

preservasse honestamente, até cegamente, e não com a hipocrisia ardilosa que levou muitos dos

revoltosos a estacionarem em cargos públicos, a partir dos quais poderiam ornar-se com o luxuoso

aparato aristocrático ao mesmo tempo em que proclamavam a necessidade do progresso.

Essa leitura vai de encontro à afirmação de que o alferes "era a honra em pessoa, mas a

honra consoante a entendia ele, tal como nós a não entendemos hoje", e de que "só uma coisa

estimava mais do que a vida – a honra". Ou seja, ele pertencia a um tipo de imaginário que na época

da narrativa já era incompreensível. Ou supostamente incompreensível, visto que embora Cristóvão

utilize o "nós" para referir-se às pessoas de seu tempo, posteriormente fará uma defesa dessa mesma

honra. Lembremos que trata-se de apenas duas gerações de distância, e a extrema individualização,

a ambição do luxo burguês e do sucesso em relacionamentos frívolos será tema não apenas da

argumentação final de Cristóvão, mas de muitos – se não de todos – dos contos de Carvalhal.

No jogo estabelecido pela narrativa, é difícil – especialmente para o leitor de hoje – unir-se

a Cristóvão na defesa do alferes. A utilização do estilo romântico e a violência do alferes,

especialmente na segunda parte, favorecem a defesa do amor de Petronilha. O alferes, contudo, não

é apenas demoníaco, e mesmo que ignorássemos a defesa final realizada por Cristóvão, há uma

certa tragicidade em seu sofrimento, em seus atos e em seu discurso. Lembremos que no último

segmento afirma não tê-la amaldiçoado, mas perdoado, e ele próprio se entrega à morte. Por tudo

isso, é difícil vermos na figura do alferes uma demonização tão simples como propõe Maria do

Nascimento Oliveira:

O pai é uma espécie de figura demoníaca e satânica que mede sadicamente o crimeque prepara, emprestando uma tonalidade de horror à narrativa tanto mais que nelese vislumbra a iminência do "monstro" das lendas ancestrais, pela suadesumanização e irracionalidade não controláveis. (OLIVEIRA, 1992, p.104)

Seus atos não são desencadeados por um frenesi completamente irracional, mas por um

código ético e moral que, embora evidentemente condenável para os nossos padrões, visaram, em

seu contexto, justamente um controle sobre o que consideravam irracional, por exemplo, as paixões.

Não é a proposta deste trabalho unir-se ao coro de Cristóvão em defesa de uma "Honra Antiga",

mas é válido enxergar que não se trata apenas de um conto Ultra-romântico batido, ou da defesa

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explícita de códigos ancestrais, mas do estabelecimento de um jogo contraditório que, após

construir-se em moldes quase confortavelmente românticos, pronuncia uma defesa do ato violento

do alferes. Esse jogo contraditório leva o leitor inevitavelmente a ter que repassar o texto e refletir

sobre um possível posicionamento, ou se afinal trata-se de uma enorme ironia que permeia o texto

como um todo.

Essa é uma boa hipótese, especialmente se levarmos em conta uma análise dos sutis

pressupostos de Cristóvão desde o início da narrativa e na caracterização não apenas do alferes,

como já mencionamos, mas também de sua mãe, Petronilha. Porém, antes da reflexão sobre a

caracterização de Petronilha, é necessário mencionar que muito provavelmente Cristóvão, o

narrador e filho de Petronilha, ouviu a história que nos conta de sua avó. Se, logo ao nascer, sua

mãe e seu pai foram assassinados, e o avô homicida entregou-se, ele próprio, à execução, apenas a

avó teria restado para contar a história. Além disso, Cristóvão explicita o hábito da avó de contar

orgulhosamente o assassinato da própria filha:

E minha avó, ainda hoje, quando é mais lauto o jantar e maior o número deconvivas, conta, entre a sobremesa e o café, conta, com orgulho de leoa, como nasua família se castiga uma afronta.Por mim, que, sem conhecer minha mãe, a imagino todavia um tesoiro valioso desensibilidade, nem censuro, nem tão-pouco louvo o rigor do selvagem alferes.(CARVALHAL, 2004, p.123)

Nesse pequeno trecho há varios elementos a serem pensados. Em primeiro lugar, a já

mencionada possibilidade de que Cristóvão baseia-se na versão de sua avó para a história. A partir

disso, pensemos no que o narrador fala a respeito de sua mãe: "um tesoiro valioso de

sensibilidade". Essa frase, que pode demonstrar afeto, exalta também a "sensibilidade",

característica que hoje pode soar positiva, mas são justo os extremos da "sensibilidade" que levam a

atitudes românticas deploráveis pelo código do alferes. Considerando que a versão que nos chega é

a da avó, que evidentemente esteve sempre do lado de seu marido, é possível notar em diversos

momentos na caracterização de Petronilha uma tendência a pintá-la como uma espécie de jovem um

pouco soberba e dada ao prazer diletante de ser flertada, esquiva ao honesto casamento. Vejamos

sua apresentação:

Petronilha, o nome de minha mãe, viçava como uma flor, que fresca desabrocha.Todas as pompas da juvenilidade se abrilhantavam nela. Também mais requestadanunca foi beleza campesina. Nem se viu moça linda tão esquiva e avessa ao santomatrimónio. Iam-se os galãs, uns após outros, feridos e estropiados na infelizcampanha. O alferes olhava de sosalio a filha, com trejeitos de nada contente, esatisfazia-se, rosnando lá consigo:

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- Há-de mudar, há-de mudar em lhe chegando a primavera. Estou pronto a apostarcom quem quiser.Mas a tal primavera parecia uma ficção, não chegava. E arriscada fora a aposta,porque os anos sobrevinham, e Petronilha continuava livre como uma toutinegra. Oalferes dava-se a perros. (CARVALHAL, 2004, p.103)

Embora esse trecho assemelhe-se muito à descrição feminina comum às narrativas

românticas mais banais, outros tornam-se mais complicados, quando Cristóvão simultaneamente se

compadece da situação da mãe, mas parece criticar sua imaginação romanesca e comentar

sarcasticamente sua "índole aristocrática". Após o argumento autoritário do pai de que casaria a

filha com o hóspede Estêvão, o narrador nos diz:

Esta linguagem rude, e sobremaneira estouvada, não se compadecia do melhormodo com a índole aristocrática de Petronilha. Em extremo humilhada pregavatimorata no alferes os grandes olhos azuis, dirigindo-os depois suplicantes para amãe. Esta mostrava-se entretida no bom serviço da mesa, e totalmente estranha àconversa. Sentia-se desamparada a pobre rapariga.Ela, ao revés dos seus progenitores, era uma romanesca imaginação. Antes quereriaser amante aviltada dum príncipe proscrito e mendigo, do que a esposa respeitáveldum rico burguês. Julgue-se do que sofreria. (CARVALHAL, 2004, p.105)

Embora não seja diretamente atacada, Petronilha também é constantemente descrita com

uma espécie de "astúcia feminina" que também é amplamente explorada em outros contos de

Álvaro do Carvalhal e, ainda que sutilmente, a afasta de um estereótipo ingênuo de "heroína,

moldada pelos figurinos românticos, digna, trágica e naturalmente amorosa", como afirma Maria do

Nascimento Oliveira (OLIVEIRA, 1992, p.103). Primeiro em relação ao pretendente, quando

decide pedir sua ajuda, Petronilha "fingiu-se tocada das vilãs frioleiras de Estêvão, e conseguiu

arredá-lo do grupo, deixando os pais a perder de vista" (CARVALHAL, 2004, p.107). Mais tarde,

ao esperar o amado: "Petronilha está no seu quarto. Debruçada sobre um móvel antigo, mira-se num

grande espelho, com certa indizível satisfação. É que realmente lhe fica a matar aquela desordem de

vestes e cabelos, com tanta arte e com tanto estudo executada. Ai, quando vier o amante, como lhe

parecerá formosa!" (CARVALHAL, 2004, p.112).

Mas, acima de tudo, a percepção constantemente repitida do sexo feminino como mais

inclinado à mácula, é um pressuposto recorrente que pode revelar uma inclinação do narrador a

assumir a defesa (ainda que possivelmente irônica) da "honra antiga" do avô. Essa noção é

frequentemente evocada, desde o princípio, e toma forma mais incisiva no último parágrafo, quando

o narrador demonstra seu desejo de que "tão soberana fosse sempre a indiginação dos pais

ofendidos", mas afirma estar seguro, todavia, "de que o alvitre viria a dar cabo do sexo amável".

Porém, acrescenta jocosamente, encerrando o conto: "se exceptuarmos, bem entendido, a granítea

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prudência das avisadas damas da minha parentela e amizade, e da parentela e amizade de quantos

ressonam, ou abrem perenal bocejo, beatificados pela cruenta narrativa" (CARVALHAL, 2004,

p.126).

O final jocoso, especialmente ao fazer referência aos receptores da história, os leitores do

conto, parece apontar para uma grande ironia que pode perpassar toda a narrativa, inclusive na

defesa de Cristóvão da atitude de seu avô. Resta saber se a ironia faz parte do discurso de Cristóvão,

ou se funciona como recurso de Álvaro do Carvalhal para expôr a violência desse código e o modo

como o próprio Cristóvão, a exemplo do que disse do avô, "pensa na maioria dos casos o que seus

avós quiseram que pensasse" – especialmente se levarmos em conta que recebe a história pela

perspectiva de sua avó. Acreditamos que essa resposta não se encontra explicitamente no texto e

que esse jogo contraditório – não é absurdo afirmar que o narrador se contradiz abruptamente mais

de uma vez ao longo da narrativa – adiciona complexidade ao conto, evitando tanto o Ultra-

romantismo desgastado quanto a perspectiva doutrinária que faria uma defesa do comportamento do

alferes e de uma "honra antiga" que não deixa de ser fortemente problematizada.

Um último aspecto que gostaríamos de ressaltar é o modo como o narrador desenvolve a

segunda parte do conto, que funciona como uma espécie de "ato" e é onde mais claramente notamos

os elementos levantados na introdução como herança do melodrama e de sua frequente atmosfera

gótica. A primeira e a última parte estão bem mais próximas do romance enquanto gênero,

especialmente pelo narrador-personagem que não se furta de fazer reflexões digressivas, ou

comentários sobre o próprio ato de narrar, mas também pelo próprio desenrolar da história.

A segunda parte, contudo, trata de uma única noite, assume um desenvolvimento passo-a-

passo dos acontecimentos, com vários recursos que provocam o suspense. A própria abertura do

capítulo começa com uma afirmação isolada extremamente significativa e se desenvolve numa

ambientação fantasmagórica. No momento em que Petronilha aparece, chama a atenção o verbo no

presente, de modo que o narrador explicitamente afirma o estilo de que se valerá, cria um cenário e,

finalmente, nos deixa diante da protagonista, presentificada, em seu quarto:

Estilo sécio.A noite desdobra-se brandamente, como o manto duma rainha, fulgurante depedraria. Porém não tarde que um borrascoso vento do sul se encrespe, frema, seatire pelo espaço e apague todos os lumes do firmamento, rolando grossas nuvensprenhadas de electricidade. O trovão traz de longe seu rugir de ameaça, que brameno povoado, como voz de extermínio. Estalam as franças dos arvoredos, e as urzesda serra tisnam-se, lambidas do relâmpago.Depois, como extenuados na luta, serenam de repente os revoltos elementos, e alua mostra, a espaços, a cor desbotada entre aquosas brumas.Não é uma vitória. É como um combate singular, cheio de alternativas, em que nãohá determinado vencedor.

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Petronilha está no seu quarto (...). (CARVALHAL, 2004, p.112)

Nessa passagem é possível notar, de imediato, a abertura que afirma "estilo sécio", palavra

que, na época, aproximava-se de outros termos muito encontrados na literatura portuguesa do XIX,

como "taful", "casquilho", "janota", e que no vocabulário atual poderiam ser entendidos como um

hiperbólico "na moda". Lembremos das considerações de Maria Leonor Machado de Sousa sobre o

tremendo sucesso dos melodramas portugueses no período imediatamente anterior e que durante a

produção de Álvaro do Carvalhal apresentavam sinais de esgotamento e tornavam-se alvo de

chacota por parte de escritores e críticos do período4. Assim, logo no início desse segmento, o autor

brinca com a tradição que emulará, abrindo o capítulo com a indicação de que trata-se de um estilo

e ambientação que o leitor da época provavelmente reconheceria como o "da moda".

Na sequência, aliás, por toda a segunda parte, surgem uma série de clichês do gênero, mas

é possível notar ainda nesse trecho uma discursividade exagerada, uma atmosfera que se aproxima

da literatura de horror e um funcionamento um pouco teatral, principalmente pela presentificação

dos verbos com que Petronilha nos é apresentada e que seguirá até o encontro com o ebuçado, outro

clichê, que o próprio narrador, ao evocá-lo, afirmará não tratar-se de um embuçado de "melodrama

piegas", demonstrando consciência da utilização de um imaginário batido e ironicamente afirmando

seu não pertencimento a ele. A aparição, que Petronilha inicialmente pensa tratar-se do amado, é

digna de qualquer figura fantasmagórica de contos de horror, e quando revela-se na realidade como

seu pai, não produz nenhuma espécie de alívio:

O embuçado, que o não era de melodrama piegas, não fez um movimento.Ela recuou indecisa. Então, como por encanto, a lua, desvendando-se, verteuatravés dos plátanos, que sombreiam a casa, ténue clarão no aposento.- Jesus! Exclama a moça num terrível calafrio.Em vez da madeixa loira e opulenta do gracioso conde, o crânio ossoso e nu dumancião; em vez dum tenro acetinado bigode, umas barbas, como estrigas, longas eeriçadas; em vez de... Santo Deus! Em vez do almejado bem, aparece-lhe umdemónio.Isto na solidão do seu quarto, quando, em profunda sonolência, jaz submersa anatureza inteira. Como um espectro, que ressurge irado de entre os mortos para vibrar a blasfémia eo anátema dos preceitos contra o algoz, tal se eleva diante da filha a agigantadafigura do alferes. (CARVALHAL, 2004, p.113)

Talvez tenha sido com base em trechos como esse que Maria do Nascimento Oliveira tenha

entendido o alferes como uma figura absolutamente demoníaca e monstruosa. Mas acreditamos que

essas cenas, e mesmo as de grande violência do alferes contra a filha que aparecerão mais adiante,

4 Massaud Moisés lembra a crítica realizada em 1863 por João de Deus (1830-1896) aos excessos do chamado Ultra-romantismo no jornal O Brejense.

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embora não deixem de funcionar efetivamente como uma caracterização negativa do avô,

funcionam nesse segmento principalmente com a função exigida pelo gênero emulado, ou seja, a do

pai enquanto figura autoritária que funcionará como obstáculo violento para a realização plena do

amor da filha. Os comentários posteriores de Cristóvão, que começam afirmando a dificuldade de

julgar esse tipo de ato e terminam fazendo explicitamente uma defesa deles, funcionam como uma

espécie de contraponto que relega ao leitor a necessidade de reflexão, em vez da absorção trivial de

uma cena Ultra-romântica às vias do esgotamento, ou do comentário conservador doutrinário.

Lembremos de um trecho já citado, logo no início da segunda parte. Ao referir-se à

natureza, o narrador diz: "Não é uma vitória. É como um combate singular, cheio de alternativas,

em que não há determinado vencedor." É difícil afirmar que a frase é colocada em meio à descrição

da natureza como um artifício do autor para explicitar o jogo a que nos referimos, mas lhe serve

perfeitamente de metáfora.

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2. O DEFUNTO

Na introdução discutimos a questão de Eça de Queirós ser frequentemente classificado

como um escritor Realista (e realista). Mencionamos também o fato de que uma parte considerável

de sua obra dedica-se a narrativas onde o sobrenatural assume papel de destaque. Fizemos uma

breve reflexão acerca das possibilidades de se compreender o termo "realista", sendo que uma delas

é a de uma "representação da realidade" pretensamente "realista" (já discutimos os pressupostos

dessa perspectiva), e a outra a do realismo como uma postura a partir da qual o autor colocaria sua

obra como meio de crítica à sociedade em que vive. Acreditamos que nessa segunda perspectiva,

muito mais abrangente, obras como O Mandarim poderiam ser classificadas como parte de um

projeto realista, visto que nessa narrativa o recurso ao elemento sobrenatural funciona como mote

para uma problematização da sociedade que começava a se consolidar no século XIX,

especialmente a partir do que chamamos hoje de "globalização" como sistema político e

econômico5.

O conto de que trataremos, "O Defunto", dificilmente será enquadrado em qualquer uma

dessas perspectivas. Após produzir uma boa parte de contos "à alemã" presentes nas Prosas

Bárbaras, "O Defunto" parece parte de um esforço do autor por escrever contos fantásticos (ou

"maravilhosos") em maior sintonia com o imaginário religioso português, onde, naturalmente, o

Cristianismo (não necessariamente o Cristianismo dogmático e clerical, mas muitas vezes o

ruralista e popular) assume papel de destaque. Esse esforço parece ter permeado toda a obra de Eça,

ora gerando uma crítica mais incisiva (aproximando-se mais da postura "realista" abrangente de que

falamos), ora de modo mais sutil.

Nesses momentos, embora não se furte de problematizar o social quando este vem à tona, o

tratamento dado ao imaginário religioso torna-se o primeiro plano. Talvez Eça tenha sido um dos

mais importantes autores portugueses dedicados ao sobrenatural a preocupar-se em lidar com o

imaginário religioso popular, sendo muito comuns na época as abordagens atemporais (como as de

Carvalhal, por exemplo), ou a criação de contos fantásticos "à alemã" (inclusive com cenários e

personagens de lendas germânicas) – basta pensar em coletâneas como a já cidada Prosas Bárbaras

e Contos Fantásticos (1865) de Teófilo Braga.

5 Conclusão a que chegamos em pesquisa de Iniciação Científica vinculada à UFPR, realizada entre 2012 e 2013, denominada Além do fantástico em O Mandarim de Eça de Queirós.

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Buscaremos realizar uma breve análise do modo como Eça de Queirós constrói essa

narrativa, especialmente a partir dos temas do amor interdito e da atsmofera gótica. Veremos se o

amor interdito aqui se dá de forma romântica, se se aproxima do melodrama, ou mesmo da

tragicidade que em certa medida podemos encontrar em Álvaro do Carvalhal. Em suma, não

realizaremos o esforço de compreender ou não esse conto maravilhoso na obra de um Realista.

Antes, nos esforçaremos por, primeiramente na análise do conto em particular, em seguida numa

perspectiva comparativa com o conto já abordado de Carvalhal, expôr os diferentes recursos

utilizados por autores tão diferentes (diferença perceptível não apenas na classificação

historiográfica, mas no contato íntimo com o texto) em torno de temas tão recorrentes na literatura

do século XIX. Vejamos o que diz a introdução ao conto "O Defunto" na Antologia do Conto

Fantástico Português (1974), organizada por Fernando Ribeiro de Mello:

Eça de Queirós: Geração de 70. O maior Romancista Português. Há quem aindahoje fale como ele escreveu há 100 anos."O Defunto" foi incluído no volume "Contos" que se pode considerar como umadas obras definidoras da renovação do conceito de conto na Literatura Portuguesa,tornando-o no que ele até por volta de 1950 ainda era: uma curta descrição de umcaso isolado proveniente da experiência pessoal do Autor (ou apresentado comotal).No entanto "O Defunto" deve muito mais, quanto à sua estrutura, ao protótipodefinido por A. Herculano, já que começa com um "efeito de recuo" colocando aacção em 1474. Mas a esse efeito é agora contraposta uma precisão de dadoshistóricos bem referenciados que revela a preocupação positiva da ciência e servetambém para conferir autoridade e verosimilhança ao fantástico-macabro-maravilhoso-milagre que vai ocorrer.A luta entre o amor puro e o amor impuro é o cerne da história que termina com avitória milagrosa do bem. (MELLO, 1974, p.219)

A pequena introdução, que parece a união apressada de diferentes perspectivas críticas

picotadas, deixa entrever a imagem emblemática que tem o autor na construção da literatura

portuguesa. Tanto o modo como escreve, influenciando o modo como "há quem ainda hoje fale",

quanto a definição do "conto" como ele foi até por volta de 1950. Mas entender o conto de Eça,

especificamente "O Defunto", como a "curta descrição de um caso isolado proveniente da

experiência pessoal do autor" é impossível. Ele nem pode "ser apresentado como tal". Essa

percepção talvez pudesse ser aplicada aos contos fantásticos, por exemplo, de Carvalhal, mas

mesmo isso exigiria uma dose considerável de ingenuidade por parte do leitor.

Talvez a evocação de Alexandre Herculano (1810-1877) seja mais coerente. O movimento

de Eça em "O Defunto" está mais próxima do de Herculano em Lendas e Narrativas (1851), quando

o autor constrói a narrativa em torno de um pequeno episódio histórico, ou pretensamente histórico,

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situado num momento recuado baseado na História (enquanto disciplina "positiva"). A proximidade

desse recurso com a literatura gótica ou de horror foi mencionada anteriormente e está bem

desenvolvida no estudo O "Horror'" na Literatura Portuguesa, de Maria Leonor Machado de

Sousa. É emblemática nesse sentido a narrativa "A Dama Pé de Cabra", de Alexandre Herculano.

Quanto à "precisão de dados históricos bem referenciados que revela a preocupação

positiva da ciência", é complicado afirmar que sirva apenas "para conferir autoridade e

verosimilhança ao fantástico-macabro-maravilhoso-milagre que vai ocorrer". A realização do

fantástico a partir de um esforço meticuloso por emprestar-lhe um verniz historiográfico – ou até

científico – é recurso comum à literatura do "gênero" (na falta de um termo melhor, assumamos,

como Todorov, tratar-se de um gênero). Esse artifício, no entanto, pode muitas vezes servir

ironicamente com o intuito de "despistar" o leitor, fazendo, por exemplo, referências a textos ou

nomes inexistentes – lembremos que a literatura fantástica surge no auge do pensamento iluminista

e parece em muitos sentidos uma espécie de reação a ele6.

Não acreditamos que em “O Defunto”, esse recurso tenha uma intenção assim tão irônica e

subversiva, mas certamente não visa uma positividade científica na precisão de seus dados

históricos. O “efeito de recuo” - esse sim um artifício inquestionável – parece funcionar mais como

uma ambientação, como a construção de um universo ficcional onde o sobrenatural tem o seu lugar

assegurado – menos cientificamente, do que no recurso ao imaginário. É, portanto, a partir de

aspectos extremamente elementares (narrador, tempo, espaço...) que buscaremos analisar esta

narrativa, que apenas uma análise superficial encararia como uma história nos moldes românticos

banais. Logo na abertura, identificamos alguns desses aspectos:

No ano de 1474, que foi por toda a Cristandade tão abundante de mercês divinas,reinando em Castela el-rei Henrique IV, veio habitar na cidade de Segóvia, ondeherdara moradias e uma horta, um cavaleiro moço, de muito limpa linhagem egentil parecer, que se chamava D.Rui de Cardenas. (QUEIRÓS, 1951, p.187)

O início do texto assemelha-se ao estilo encontrado nas crônicas historiográficas anteriores

à História enquanto disciplina (pós-iluminista). É perceptível um estilo de registro que não nega o

lugar de onde é escrito e ainda alheio à pretensa neutralidade da História: “veio habitar na cidade de

Segóvia”. De toda forma, estão estabelecidos o espaço e o tempo da narrativa. Trata-se de um conto

que se passa em 1474, no tempo de Henrique IV, em Sagóvia. Ao seguir o texto, veremos a

apresentação do moço D. Rui de Cardenas:

6 Mesmo em textos do século XX podemos perceber esse jogo irônico com a ciência e com o procedimentoacadêmico. Pensemos em contos como "Tlön, Uqbar, Orbius Tertius” (1940) e “A Trama Celeste” (1944) dosargentinos Jorge Luis Borges (1899-1996) e Adolfo Bioy Casares (1914-1999), respectivamente.

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Essa casa [herdada por D.Rui], que lhe legara seu tio, arcediago e mestre emcânones, ficava ao lado e na sombra silenciosa da igreja de Nossa Senhora do Pilar;e, em frente, para além do adro, onde cantavam as três bicas de um chafariz antigo,era o escuro e gradeado palácio de D. Alonso de Lara, fidalgo de grande riqueza emaneiras sombrias, que já na madureza da sua idade, todo grisalho, desposara umamenina falada em Castela pela sua alvura, cabelos cor de sol claro, e colo de garçareal. D.Rui tivera justamente por madrinha, ao nascer, Nossa Senhora do Pilar, dequem sempre se conservou devoto e fiel servidor; ainda que, sendo de sanguebravo e alegre, amava as armas, a caça, os saraus bem falanteados, e mesmo porvezes uma noite ruidosa de taverna com dados e pichéis de vinho. Por amor, e pelasfacilidades desta santa vizinhança, tomara ele o piedoso costume, desde a suachegada a Segóvia, de visitar todas as manhãs, à hora de Prima, a sua divinamadrinha e de lhe pedir, em três ave-marias, a bênção e a graça. (QUEIRÓS, 1951,p.187-188)

Aqui temos alguns dos principais agentes da narrativa: Rui de Cardenas, Alonso de Lara e

D.Leonor (cujo nome ainda não foi mencionado), sua jovem esposa. Talvez pudéssemos dizer que

Alonso, Leonor e Rui formam um triângulo. Porém, o verdadeiro triângulo amoroso da narrativa,

constitui-se principalmente a partir de Rui e sua relação com D.Leonor e Nossa Senhora do Pilar,

sua padroeira. No trecho citado, temos uma segunda caracterização, mais cuidadosa, de Rui de

Cardenas. É importante mencionar sua distância em relação ao tipo de protagonista mais comum a

certo romantismo. Rui não tem nada de melancólico, de reflexivo, de metafísico. É descrito como,

apesar de fiél devoto, amante dos prazeres mundanos de uma “ruidosa taverna com dados e pichéis

de vinho”, das armas e da caça. É interessante manter em vista esse tipo de oposição,

tradicionalmente caro à discussão doutrinária cristã, entre o mundano e o metafísico. Nesse sentido,

a apresentação física de D.Leonor (que somos dados a conhecer na primeira vez que Rui a encontra

na igreja), é particularmente instigante. No seguinte trecho, além disso, pode-se notar o ciúme

excessivo de seu marido, o velho Alonso de Lara:

A esta venerada igreja do Pilar vinha também cada domingo D. Leonor, a tãofalada e formosa mulher do senhor de Lara, acompanhada por uma aia carrancuda,de olhos mais abertos e duros que os de uma coruja, e por dois possantes lacaiosque a ladeavam e guardavam como torres. Tão ciumento era o senhor D. Alonsoque, só por lho haver severamente ordenado o seu confessor, e com medo deofender a senhora, sua vizinha, permitia esta visita fugitiva, a que ele ficavaespreitando sôfregamente, de entre as rexas de uma gelosia, os passos e a demora.Todos os lentos dias da lenta semana os passava a Senhora D. Leonor no encerrodo gradeado solar de granito negro, não tendo, para se recrear e respirar, mesmonas calmas do Estio, mais que um fundo de jardim verde-negro, cercado de tãoaltos muros, que apenas se avistava, emergindo deles, aqui, além, alguma ponta detriste cipreste. Mas essa curta visita a Nossa Senhora do Pilar bastou para que D.Rui se enamorasse dela tresloucadamente, na manhã de Maio em que a viu dejoelhos ante o altar, numa réstia de sol, aureolada pelos seus cabelos de oiro, comas compridas pestanas pendidas sobre o livro de Horas, o rosário caindo de entre os

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dedos finos, fina toda ela e macia, e branca, de uma brancura de lírio aberto nasombra, mais branca entre as rendas negras e os negros cetins que à volta do seucorpo cheio de graça se quebravam, em pregas duras, sobre as lajes da capela,velhas lajes de sepulturas. Quando depois dum momento de enleio e de deliciosopasmo se ajoelhou, foi menos para a Virgem do Pilar, sua divina madrinha, do quepara aquela aparição mortal, de quem não sabia o nome nem a vida, e só que porela daria vida e nome, se ela se rendesse por tão incerto preço. Balbuciando, comuma prece ingrata, as três ave-marias com que cada manhã saudava Maria, apanhouo seu sombreiro, desceu levemente a nave sonora e no portal se quedou, esperandopor ela entre os mendigos lazarentos que se catavam ao sol. (QUEIRÓS, 1951,p.188-189)

A descrição de D. Leonor, embora seja uma descrição essencialmente física, lhe dá ares de

divindade, e mesmo ao falar de “seus dedos finos”, de suas “pestanas” ou de sua “brancura”, esses

elementos corpóreos vêm imediatamente associados a figuras do imaginário religioso, como “o

livro de Horas”, o “rosário” e o “lírio”. É também de especial relevância a insinuação de uma quase

“traição” de Rui em relação à madrinha, ao apaixonar-se “tresloucadamente” por D. Leonor. Talvez

“traição” seja uma palavra excessivamente forte, mas o protagonisa parece esquecer-se por alguns

momentos de sua protetora, ao “ajoelhar-se para aquela aparição mortal”. Essa perspectiva será

importante para o desenvolvimento da narrativa. Também aqui podemos notar o movimento de Rui

em direção aos “mendigos lazarentos que se catavam ao sol”, como se sua paixão súbita o levasse à

condição de um pedinte que, à saída da igreja, espera humildemente um olhar que não lhe é negado.

Essa atitude, correlata do amor cortês, pode ou não ser encarada como romântica, pois não há

arroubo desesperado e nem a correspondência da amada num amor interdito, mas uma

contemplação distanciada que Rui não fará, de imediato, um esforço para realizar.

É importante ressaltar ainda o recurso a uma espécie de “epíteto” comum na literatura de

Eça de Queirós. Uma expressão que se repete associada a uma personagem, como a “aia

carrancuda” com olhos “mais abertos e duros que os de uma coruja”. Esse artifício dá um tom um

pouco cômico e caricatural a personagens como a aia e D. Alonso de Lara, que será sempre descrito

andando de um lado para o outro “com o bico da barba espetado para diante”, de modo a ressaltar

sua agressividade.

Esses aspectos, a divinização de D. Leonor, o “desvio” de Rui de Cardenas em relação a

Nossa Senhora do Pilar em função da devoção por Leonor e sua caracterização entre os mendigos,

se repetirão ainda algumas vezes nesse segmento da narrativa. O protagonista assume pela primeira

vez atitudes mais próximas do imaginário romântico melancólico e em sua idealização a amada

assume ares de divindade remota e inatingível. Ao mesmo tempo, surgem outras imagens muito

recorrentes no imaginário romântico português, a do casamento (ou do convento) como um cárcere,

ou mesmo como um jazigo, que encerra a mulher “morta para a vida”, e a figura do embuçado que,

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ainda que brevemente, Rui encarna ao rondar o solar habitado por D. Alonso e D. Leonor:

Toda a sua vida se tornou então um longo queixume por sentir tão fria e desumanaaquela mulher, única entre as mulheres, que prendera e tornara sério o seu coraçãoligeiro e errante. Numa esperança, a que antevia bem o desengano, começou arondar os muros altos do jardim – ou embuçado numa capa, com o ombro contrauma esquina, lentas horas de quedava contemplando as grades das gelosias, negrase grossas como as dum cárcere.Os muros não se fendiam, das grades não saía sequer um rasto de luz prometedora.Todo o solar era como um jazigo onde jazia uma insensível, e por trás das friaspedras havia ainda um frio peito. Para se desafogar compôs, com piedoso cuidado,em noites veladas sobre o pergaminho, trovas gementes que o não desafogavam.(…) Nem D. Rui já podia pensar que ela fosse desumana e fria. Era apenassoberanamente remota, como uma estrela que nas alturas gira e refulge, sem saberque, em baixo, num mundo que ela não distingue, olhos que ela não suspeita acontemplam, a adoram e lhe entregam o governo de sua ventura e sorte.(QUEIRÓS, 1951, p.191-192)

Porém, logo após a instauração de todo esse imaginário romântico com o qual Eça parece

brincar no início da narrativa, o protagonista finalmente decide que, não recebendo a atenção de D.

Leonor, não haveria o que ser feito, e afirma: “Ela não quer, eu não posso: foi um sonho que findou,

e Nossa Senhora a ambos nos tenha na sua graça!” (QUEIRÓS, 1951, p.192). D. Rui de Cardenas,

descrito como “cavaleiro muito discreto”, conforma-se com a situação e a deixa de lado. Isso fica

particularmente claro quando D. Alonso fica sabendo pela aia de olhos de coruja que Rui estaria

interessado em sua esposa. Ao observar o protagonista no momento em que D. Leonor passaria por

perto dele para ir à igreja, a atitude de Rui é de absoluta serenidade:

D. Rui já não esperava no adro a Senhora D. Leonor, nem rondava amorosamenteos muros do palacete, nem penetrava na igreja quando ela lá rezava aos domingos;e que tão inteiramente se alheava dela que uma manhã, estando rente da arcada, esentindo bem ranger e abrir a porta por onde a senhora ia aparecer, permanecera decostas voltadas, sem se mover, rindo com um cavaleiro gordo que lhe lia umpergaminho. (QUEIRÓS, 1951, p.194)

Essa serenidade, no entanto, em vez de apaziguar o velho, apenas o deixa mais preocupado

e furioso, pois “tão bem afetada indiferença só servia decerto (pensou D. Alonso) a esconder

alguma bem danada tenção” (QUEIRÓS, 1951, p.194). D. Alonso então concebe um plano para

matar Rui de Cardenas. Primeiramente, ele e D. Leonor vão para o Cabril, onde possuem uma casa,

há duas léguas de Segóvia. Chegando lá, obriga a mulher a escrever uma carta de próprio punho

enderaçada a Rui de Cardenas, dizendo-se apaixonada e convidando-o a ir até lá passar uma noite

com ela. D. Alonso pretendia manter-se escondido no quarto da esposa para, assim que D. Rui

aparecesse à janela, apunhalá-lo, numa cena que deveria ser semelhante à do assassinato do conde

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no conto de Álvaro do Carvalhal.

Antes de tratarmos do caminho de Rui de Cardenas, que ao receber a carta, reacende seu

antigo amor e dirige-se ao Cabril, onde ocorrem os eventos sobrenaturais da narrativa, gostaríamos

de ressaltar um trecho em que D. Leonor, ao tomar conhecimento dos planos do marido, encontra-se

angustiada diante das possibilidades da situação. D. Leonor é descrita com verdadeira submissão ao

marido. Nesse sentido, não é nem de longe a heroína romântica que coloca em cheque todas as

convenções em nome de um amor avassalador e proibido. Demonstra, entretanto, enorme piedade

ao preocupar-se com a possibilidade de Rui de Cardenas morrer assassinado somente pelo amor que

lhe devota - o que deduz da possibilidade de D. Rui realmente viajar até o Cabril para econtrá-la,

pois antes do plano de seu marido esse amor lhe era de fato desconhecido. Ao mesmo tempo,

Leonor tem medo de que, no confronto, D. Rui saia vitorioso, e ela se veja forçada a encontrar-se

sozinha, à noite, com um homem desconhecido em seu quarto. Esse monólogo interior de Leonor

acaba levando a uma prece à mesma Nossa Senhora do Pilar, figura para a qual convergem todos os

acontecimentos sobrenaturais da narrativa, como veremos adiante.

É no trajeto de Rui de Cardenas até o Cabril que a narrativa ganha contornos de história de

horror. O caminho mais prático até o seu destino deve passar pelo Cerro dos Enforcados, mas antes

mesmo de chegar a esse lugar, surgem uma série de pequenos sinais de que uma força superior

ajuda a guiar os passos de D. Rui, a chamar-lhe a atenção para sua santa protetora quando parecia

esquecer-se dela imerso em pensamentos sobre a noite de amor que viveria em alguns instantes:

Aquela noite era esplendidamente sua, o mundo todo uma aparência vã e a únicarealidade esse quarto do Cabril, mal alumiado, onde ela o esperaria, com os cabelossoltos! Foi com sofreguidão que desceu a escada se arremessou sobre o seu cavalo.Depois, por prudência, atravessou o adro muito lentamente, com o sombreiro bemlevantado da face, como num passeio natural, a procurar fora dos muros a frescurada noite. Nenhum encontro o inquietou até à porta de S. Mauros. Aí, um mendigo,agachado na escuridão dum arco, e que tocava monotonamente a sua sanfona,pediu, em lamúria, à Virgem e a todos os santos, que levassem aquele gentilcavaleiro na sua doce e santa guarda. D. Rui parara para lhe atirar uma esmola,quando se lembrou que nessa tarde não fora à igreja, à hora de vésperas, rezar epedir a bênção à sua divina madrinha. Com um salto, desceu logo do cavalo,porque, justamente, rente ao velho arco, temeluzia uma lâmpada alumiando umretábulo. Era uma imagem da Virgem com o peito trespassado por sete espadas. D.Rui ajoelhou, pousou o sombreiro nas lajes e com as mãos erguidas, muitozelosamente, rezou um Salve-Rainha. (QUEIRÓS, 1951, p.206-207, itálico doautor)

Logo a seguir, é interessante notar a corporeidade com que é descrita a imagem da Santa,

consideravelmente mais sensual do que as próprias descrições de D. Leonor. Pensando nos dois

polos que propusemos de início, o de uma oposição entre o mundano (corpóreo) e o etéreo

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(metafísico), a descrição da imagem da Virgem está bem mais próxima da sensualidade mundana do

que a descrição casta e evanescente de D. Leonor:

O clarão amarelo da luz envolvia o rosto da Senhora, que, sem sentir as dores dossete ferros, ou como se eles só dessem inefáveis gozos, sorria com os lábios muitovermelhos. Enquanto ele rezava, no convento de São Domingos, ao lado, a sinetacomeçou a tocar a agonia. De entre a sombra negra do arco, cessando a sanfona, omendigo murmurou: - “Lá está um frade a morrer!”. D. Rui disse uma Ave-Mariapelo frade que morria. A Virgem das sete espadas sorria docemente – o toque deagonia não era, pois, de mau presságio! D. Rui cavalgou alegremente e partiu.(QUEIRÓS, 1951, p.207, itálico do autor)

A insinuação de que a Virgem ignora, ou atinge “inefáveis gozos” a partir dos sete ferros, e

seu sorriso de “lábios muito vermelhos”, dão à imagem religiosa uma conotação bastante terrena e

sensual que, como já dissemos, opõe-se consideravelmente às descrições castas de Leonor. Após a

intervenção do mendigo que fez com que D. Rui atentasse para o retábulo dedicado à Virgem, o

sinal de que um frade morria e a oração que D. Rui dedica à sua alma tornam-se novamente bom

agouro diante do “sorriso doce” da figura religiosa (QUEIRÓS, 1951, p.208). Mas talvez o

momento em que fique mais explícita a ajuda divina que guia os passos do protagonista seja a

aparição da velha que surge numa bifurcação somente para indicar que ele havia tomado o caminho

errado:

Assim chegou ao Cruzeiro, onde a estrada se fendia em duas, mais juntas que aspontas de uma forquilha, ambas cortando através de pinheiral. Descoberto dianteda imagem crucificada, D. Rui teve um instante de angústia, pois não se recordavaqual delas levava ao Cerro dos Enforcados. Já se embrenhara na mais cerrada,quando, de entre os pinheiros calados, uma luz surgiu, dançando no escuro. Erauma velha em farrapos, com as longas melenas soltas, vergada sobre um bordão elevando uma candeia.- Para onde vai este caminho? - gritou Rui.A velha balançou mais ao alto a candeia, para mirar o cavaleiro.- Para Xarama.E luz e velha imediatamente sumiram, fundidas na sombra, como se ali tivessemsurgido somente para avisar o cavaleiro do seu caminho errado... (QUEIRÓS,1951, p.208)

Após a ajuda dessa misteriosa aparição, D. Rui segue corretamente para o Cerro dos

Enforcados. Desde uma das primeiras narrativas consideradas do gênero fantástico, (a mais antiga a

figurar na antologia de contos fantásticos do XIX organizada por Italo Calvino), O Manuscrito

Encontrado em Saragoça, de Jan Potocki (1761-1805), o enforcado faz parte do imaginário do

fantástico e do horror. O encontro do protagonista com o morto-vivo é provavelmente o ápice da

atmosfera gótica no conto. Chegando no Cerro dos Enforcados, o cenário dos cadáveres

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dependurados sob o luar, a água morta7 da lagoa das Donas, as aves de rapina pousadas sobre as

traves e uma voz misteriosa chamando o protagonista criam uma espécie de suspense que no

entanto não impedem D. Rui de checar de qual dos enforcados vinha a voz que o chamava:

Já ele virara arrebatadamente; e, rodeando o Calvário, galopou pela outra estradamas larga, até avistar, sobre a claridade do céu os pilares negros, os madeirosnegros do Cerro dos Enforcados. Então estacou, direito nos estribos. Num cômoroalto, seco, sem erva ou urze, ligados por um muro baixo, todo esbrechado, lá seerguiam, negros, enormes, sobre a amarelidão do luar, os quatro pilares de granitosemelhantes aos quatro cunhais duma casa desfeita. Sobre os pilares pousavamquatro grossas traves. Das traves pendiam quatro enforcados negros e rígidos, no arparado e mudo. Tudo em torno parecia morto como eles.Gordas aves de rapina dormiam empoleiradas sobre os madeiros. Para além,rebrilhava lividamente a água morta da lagoa das Donas. E, no céu, a Lua ia grandee cheia.D. Rui murmurou o Padre-Nosso devido por todo o cristão àquelas almas culpadas.Depois impeliu o cavalo, e passava – quando, no imenso silêncio e na imensasolidão, se ergueu, ressoou uma voz, uma voz que o chamava, suplicante e lenta:- Cavaleiro, detende-vos, vinde cá!...D. Rui colheu bruscamente as rédeas e, erguido sobre os estribos, atirou os olhosespantados por todo o sinistro ermo. Só avistou o cerro áspero, a água rebrilhante emuda, os madeiros, os mortos. Pensou que fora ilusão da noite ou ousadia de algumdemónio errante. E, serenamente, picou o cavalo, sem sobressalto ou pressa, comonuma rua de Segóvia. Mas, por trás, a voz tornou, mais urgentemente o chamou,ansiosa, quase aflita:- Cavaleiro, esperai, não vos vades, voltai, chegai aqui!... (QUEIRÓS, 1951, p.208-209)

Inicialmente D. Rui pensa tratar-se de uma “ilusão da noite” ou de um “demônio errante”,

e isso não o assusta, segue “serenamente”, no entanto, ao ser chamado novamente e perceber tratar-

se de uma voz humana, o protagonista conclui que só pode ser a voz de um dos enforcados e é com

a soberania de um nobre cavaleiro que dirige-se aos enforcados, perguntando qual deles “ousa

chamar por D. Rui de Cardenas”. Um dos enforcados responde, pede ajuda para livrar-se da corda e

explica que precisa, por ordem de Deus, acompanhar D. Rui até o Cabril. Após certificar-se, pelo

sinal da cruz, que o morto-vivo não era obra do demônio e concluir que o não sendo, só podia ser de

Deus, D. Rui consente, ainda que um pouco incomodado, que o enforcado o acompanhe.

O caminho segue numa atmosfera sombria, com D. Rui a cavalo e o morto-vivo a pé ao

seu lado, e decepcionado com a repulsiva presença numa noite que prometia maravilhas, é curioso

notar que não é por amor a D. Leonor, mas pela “galante lealdade de cavaleiro”, pelo “orgulho de

7 Segundo Moisés Espírito Santo em A Religião Popular Portuguesa (1984), no imaginário popular português a águaviva é a água corrente, principalmente de cascatas, que são de bom agouro especialmente em relação à fertilidade eao leite materno. A água morta, por outro lado, a água parada de lagos e lagoas, é de mau agouro e está associada ainfortúnios.

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nunca recuar” e por “submissão às ordens de Deus”, que o herói não realiza seu impulso de voltar

“alegremente a rédea para Segóvia” (QUEIRÓS, 1951, p.213). Em dado momento, a figura do

enforcado torna-se efetivamente um guia para D. Rui que “tão submisso se tornara àquele

companheiro, que sem outro reparo o foi seguindo rente do muro que o luar batia”. Trata-se da

chegada à casa do Cabril, onde o morto-vivo autoritariamente avisa que subirá a escada ao quarto

de D. Leonor, passando-se por D. Rui, para certificar-se. Misteriosamente, ao tomar a capa e o

sombreiro do protagonista, o enforcado assume uma aparência idêntica à dele. Novamente temos,

ainda que sutilmente evocada, a figura do embuçado, que assumindo o aspecto de D. Rui, sobe a

escada e se depara com a emboscada de D. Alonso:

D. Rui subiu, atontado, e espreitou. E - oh maravilha! - era ele, D. Rui, todo ele, nafigura e no modo, aquele homem que, por entre os canteiros e o buxo curto,avançava, airoso e leve, com a mão na cintura, a face erguida risonhamente para ajanela, a longa pluma escarlate do chapéu balnçando em triunfo. O homemavançava no luar esplêndido O quarto amoroso lá estava esperando, aberto e negro.E D. Rui olhava, com olhos que faiscavam, tremendo de pasmo e cólera. O homemchegara à escada: destraçou a capa, assentou o pé no degrau de corda! - “Oh! Lásobe, o maldito!” - rugiu D. Rui. O enforcado subia. Já a alta figura, que era dele,D. Rui, estava a meio da escada, toda negra contra a parede branca. Parou!... Não!Não parara: subia, chegava, - já sobre o rebordo da varanda pousara o joelhocauteloso. D. Rui olhava, desesperadamente, com os olhos, com a alma, com todoo seu ser... E eis que, de repente, do quarto negro surge um negro vulto, umafuriosa voz brada: - “vilao, vilão!” - e uma lâmina de adaga faísca, e cai, e outravez se ergue, e rebrilha, e se abate, e ainda refulge, e ainda se embebe!... Como umfardo, do alto da escada, pesadamente, o enforcado cai sobre a terra mole. Vidraças,portadas do balcão logo se fecham com fragor. E não houve mais senão o silêncio,a serenidade macia, a Lua muito alta e redonda no céu de Verão.Num relance D. Rui compreendera a traição, arrancara a espada, recuando para aescrudião da avenida – quando, oh milagre! Correndo através do terraço, aparece oenforcado, que lhe agarrara a manga e lhe grita:- A cavalo, senhor, e abalar, que o encontro não era de amor, mas de morte!...(QUEIRÓS, 1951, p.216-217)

Após essa cena fantástica, em que o morto-vivo sofre vários golpes de adaga, vai ao chão,

mas logo está no encalço de D. Rui para a fuga, temos mais uma cena horripilante com a cavalgada

de volta de D. Rui com o defunto na garupa, quando o protagonista teme que “se tornasse seu

destino galopar através do mundo, numa noite eterna, levando um morto à garupa8” (QUEIRÓS,

1951, p.218). O morto-vivo, no entanto, fica novamente no Cerro dos Enforcados, onde D. Rui o

ajuda a dependurar-se outra vez do modo como foi encontrado, pondo um fim à noite de “milagre e

de horror” (QUEIRÓS, 1951, p.218). Antes do retorno a Segóvia, o enforcado faz ainda um pedido

8 A cena da fuga noturna a cavalo também é recorrente nas histórias de horror e aparece tanto em poemas como oErlkönig de Goethe (1749-1832) quanto em narrativas menos frequentemente associadas ao gênero, como algunscontos de temática sobrenatural do regionalismo brasileiro, de que A Dança dos Ossos (1871) de BernardoGuimarães, é apenas um exemplo.

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a D. Rui que é explicativo em relação aos acontecimentos sobrenaturais. D. Rui, ao retornar à

cidade, retorna também à devoção de Nossa Senhora do Pilar, e pede perdão pelo impulso

pecaminoso que o levara ao Cabril:

Sumidamente, do alto, o enforcado murmurou:- Senhor, muito vos rogo agora que, ao chegar a Segóvia, tudo conteis fielmente aNossa Senhora do Pilar, vossa madrinha, que dela espero grande mercê para aminha alma, por este serviço que, a seu mandado, vos fez o meu corpo!Então, D. Rui de Cardenas tudo compreendeu – e, ajoelhando devotamente sobre ochão de dor e morte, rezou uma longa oração por aquele bom enforcado.Depois galopou para Segóvia. A manhã clareava, quando ele transpôs a porta de S.Mauros. No ar fino os sinos claros tocavam a matinas. E entrando na igreja deNossa Senhora do Pilar, ainda no desalinho da sua terrível jornada, D. Rui, de rojoante o altar, narrou à sua Divina Madrinha a ruim tenção que o levara a Cabril, osocorro que do Céu recebera, e, com quentes lágrimas de arrependimento egratidão, lhe jurou que nunca mais poria desejo onde houvesse pecado, nem no seucoração daria entrada a pensamento que viesse do Mundo e do Mal. (QUEIRÓS,1951, p.220-221)

No segmento seguinte é descrita a atitude de D. Alonso de Lara quando, não encontrando o

corpo de D. Rui onde deveria estar, vai até Segóvia certificar-se de sua morte. O velho não se

conforma ao ver D. Rui vivo. Ao procurar ouvir notícias na cidade, fica sabendo que alguém cravou

uma adaga no peito de um dos enforcados do Cerro. Descobrindo tratar-se de sua própria adaga,

retorna ao Cabril, onde adoece e acaba morrendo com os “dedos encravados no canteiro de goivos,

onde parecia ter longamente esgaravatado a terra, a procurar” (QUEIRÓS, 1951, p.226). Ao fim,

temos ainda um breve resumo do luto de D. Leonor e do que se pode chamar um final feliz, o

encontro efetivo de D. Rui e D. Leonor que casam-se agora com a bênção de Nossa Senhora do

Pilar:

Para fugir a tão lamentáveis memórias, a senhora D. Leonor, herdeira de todos osbens da casa de Lara, recolheu ao seu palácio de Segóvia. Mas como agora sabiaque o senhor D. Rui de Cardenas escapara miraculosamente à emboscada deCabril, e como cada manhã, espreitando de entre as gelosias, meio cerradas, oseguia, com olhos que se não fartavam e se humedeciam, quando ele cruzava oadro para entrar na igreja, não quis ela, com receio das pressas e impaciências doseu coração, visitar a Senhora do Pilar enquanto durasse o luto. Depois, umamanhã de domingo, quando, em vez de crepes negros, se pôde cobrir de sedasroxas, desceu a escadaria do seu palácio, pálide de uma emoção nova e divina,pisou as lajes do adro, transpôs as portas da igreja. D. Rui de Cardenas estavaajoelhado diante do altar, onde depusera o seu ramo votivo de cravos amarelos ebrancos. Ao rumor das sedas finas, ergueu os olhos com uma esperança muito purae toda feita de graça celeste, como se um anjo o chamasse. D. Leonor ajoelhou,com o peito a arfar, tão pálida e tão feliz que a cera das tochas não era mais pálida,nem mais felizes as andorinhas que batiam as asas livres pelas ogivas da velhaigreja.

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Ante esse altar, e de joelhos nessas lajes, foram eles casados pelo bispo de Segóvia,D. Martinho, no Outono do ano da Graça de 1475, sendo já reis de Castela Isabel eFernando, muito fortes e muito católicos, por quem Deus operou grandes feitossobre a terra e sobre o mar. (QUEIRÓS, 1951, p.226-227)

Essas palavras, que encerram o conto, deixam transparecer que embora trate-se de um

conto medievalista, que tem como eixo do enredo um amor (inicialmente) interdito e em vários

momentos recorra a uma atmosfera gótica, distancia-se em alguns aspectos do desenvolvimento

natural das narrativas românticas ou ultra-românticas. O que deveria ser o acontecimento de horror,

o sobrenatural, funciona sob a regência de Nossa Senhora do Pilar, e na realidade serve como

grande ajuda ao protagonista e seu amor por D. Leonor. O que deveria ser o acontecimento trágico,

o assassinato planejado de D. Rui, é evitado pela intervenção de um morto-vivo que, cumprindo

ordens da santa protetora do protagonista, o substitui no momento crucial, salvando-o.

Assim, a noite de “milagres e horrores” acaba funcionado em dois propósitos positivos: o

primeiro ao reconciliar D. Rui com sua madrinha, temporariamente esquecida por conta de um amor

terreno. Essa reconciliação, assim como os acontecimentos daquela noite, acabam também por

ocasionar a morte do velho e maldoso D. Alonso, de modo que o amor entre D. Rui e D. Leonor

deixe de ser interdito e possa realizar-se sob a bênção da divindade. Esse fim aparece

simbolicamente nas sedas roxas que substituem os antigos crepes negros de D. Leonor (mais uma

vez o casamento com o velho funcionando simbolicamente como mortificação) e no fato de que os

dois jovens casam-se na mesma igreja, dedicada a Nossa Senhora do Pilar, em que se conheceram.

Eça de Queirós parece, portanto, brincar com o imaginário romântico, das histórias de

horror e da narrativa histórica. Porém, não o faz apenas emulando-os, mas acrescentando uma dose

peculiar de Cristianismo, em que a Santa se faz valer de recursos um pouco horripilantes para

ajudar o protagonista a passar da condição de um amor interdito (e com grande potencialidade

trágica), para um amor aceito por ela e pelo contexto em que estão inseridos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resta-nos agora fazer algumas observações acerca dos dois contos a partir de uma

perspectiva comparativa. Embora partam de um tema comum e em alguns momentos utilizem-se de

uma já mencionada tradição, especialmente em relação aos cenários e à atmosfera, são

indiscutivelmente contos muito diferentes. Desde seus aspectos formais mais elementares, como o

narrador e a construção da narrativa em si, até o desenlace de enredos com forte potencialidade

trágica que, no entanto, não assumem uma tragicidade plena nos casos abordados.

Em “Honra Antiga”, pela presença de um narrador como Cristóvão, que problematiza o

tempo todo qualquer tipo de julgamento imediato que possa ser feito e cuja dimensão irônica, aliada

ao distanciamento temporal em relação aos acontecimentos narrados, acaba por tornar o conto um

jogo mais interpretativo e jocoso em relação à tradição melodramática do que uma tentativa

somente de alcançar a empatia do leitor. Em “O Defunto”, pela inserção da religiosidade,

especificamente de Nossa Senhora do Pilar, como entidade divina que rege os acontecimentos

horripilantes da narrativa com o único propósito de evitar o evento trágico esboçado pelo conto,

proporcionando uma espécie de final feliz em que o marido velho e mau morre e o amor antes

interdito passa a ser permitido e abençoado pela santa protetora do jovem casal.

Pensemos, portanto, no “amor interdito”. Embora as figuras do pai de Petronilha, o velho

Alferes, e de D. Alonso, o velho marido de D. Leonor, estejam em muitos sentidos próximas, não se

trata exatamente da mesma situação, nem do mesmo tipo de personagem. O alferes de “Honra

Antiga” representa justamente essa “honra antiga”, ou seja, seus princípios e valores estão

conectados a um código supostamente considerado “antigo” à época da narração. É justamente esse

um dos problemas centrais da narrativa, pois embora Cristóvão (narrador) afirme tratar-se de uma

“honra” já incompreendida em seu tempo, ao terminar de contar o assassinato de sua mãe, afirma

ser difícil julgar um ato como o do avô. Ao final do conto faz mesmo uma defesa deliberada desse

tipo de atitude. Além disso, existem momentos em “Honra Antiga” em que o alferes é representado

como um espírito simples e de certa bonomia, ocasionando até uma possível nostalgia dos antigos

valores, especialmente se atentarmos a trechos como o do passeio para a merenda familiar no

campo:

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O alferes, de ordinário divertido e folgazão, abraçou-se na ânfora do falerno, e fezexclamações dum cómico sobrenatural. Estava nas melhores disposições domundo. Pouco bastava para alegrar aquela natureza rude e simples. Respeitar opróximo, e bem merecer, por esse preço, igual respeito; percorrer os campos emcuidados da lavoura nos dias de trabalho; merendar, com a família, aos diassantificados, sobre os cômoros verdes; e empenhar-se, com pia intenção, emboracom limitado sucesso, em legar à posteridade numerosa progénie: tal o carreiro,que, para seu trânsito invariável, arroteara. (CARVALHAL, 2004, p.108)

Esse rápido trecho demonstra que o alferes não é descrito como tão absolutamente mau

quanto D. Alonso de Lara, cujo ciúme exacerbado é o único motivo de toda a cena trágica que é

insinuada em “O Defunto” e só não se realiza por intervenção divina. Por outro lado, embora seja

possível enxergar uma certa nostalgia dos valores atribuídos ao alferes, o trecho não passa impune a

uma grande ironia, por exemplo, pela tentativa de “empenhar-se, com pia intenção, embora com

limitado sucesso, em legar à posteridade numerosa progénie” e pelo fato de toda essa perspectiva

idealista ter sido “arroteada” pelo alfêres alcoolizado. Essa breve idealização, contudo, serve de

considerável contraponto aos ataques empreendidos por Cristóvão à necessidade “contemporânea”

de luxo, ao final do conto:

No meio do desvario, aos encontrões da política, do comércio, da indústria, daambição, do luxo, da opulência de alguns, da misérie de muitos, do aviltamento domaior número, submerge-se a família, apagam-se da memória os nativos sóbrioscostumes, e vêm a efeminação e a gangrena disputar o seu quinhão ao festim dasgentes.O luxo é o mais nocivo parto das idades cultas, sendo também o mais lógico e fatalde todos. O aparato nos atavios é para a mulher o velocino de oiro. A formosura,sem realces postiços, é como a pérola no fundo dos mares. E a mulher preza, acimade tudo, a formosura. Holandas, fitas, rendas, colares, martas... quer profusão. Senão há, com que obtê-la, negoceia com a ignomínia.O homem, na sua condição, cria necessidades duma outra ordem, mas não menosimperiosas e não menos frívolas. Em cada rua uma tentação, em cada tentação umafraqueza, em cada fraqueza uma necessidade. Em casa não resta às vezes sequeruma negra fatia de pão. A última peça foi dissolvida em champanhe. Que fazer?Jogar? É arriscado. E, que o não fosse, onde encontrar capitais? Roubar? Se apolícia fosse, como a justiça, cega! Que fazer? Ah! Uma ideia! Ainda não sevendeu tudo. Ainda resta a virgindade de duas filhas. (CARVALHAL, 2004, p.124-125)

É claro que a constante possibilidade irônica e o modo como narra a cena do assassinato no

segmento II dificultam uma leitura plana de toda a narrativa como defesa do assassinato pela honra,

cabendo ao leitor um eterno jogo de vai-e-volta a vários trechos em busca de um perfil estável de

Cristóvão, sem que isso seja plenamente possível. De toda forma, em “Honra Antiga”, esse tipo de

atitude e seu julgamento constituem o centro da narrativa, criando uma necessidade de

posicionamento do leitor, que se torna mais difícil à medida que busca estabelecer o posicionamento

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do narrador.

Em “O Defunto” pode-se falar mais propriamente de uma personagem má, D. Alonso de

Lara. Desde o início, o ciúme possessivo faz com que D. Leonor esteja constantemente trancada em

casa e é apenas por medo de ofender o confessor que D. Alonso permite que a esposa vá, uma vez

por semana, à igreja. A “aia com olhos de coruja” funciona como uma espécie de extensão de D.

Alonso, que conta a ele os olhares de D. Rui para D. Leonor, desencadeando um dos atos mais

horríveis da narrativa: o momento em que D. Alonso obriga a esposa a escrever uma carta

convidando D. Rui para sua casa. Aqui talvez residisse um ponto de encontro em que as duas

narrativas poderiam ser vistas com certa tragicidade. D. Alonso é o tirano levado a atos extremos (e

no fim, à morte) pela desmedida de suas paixões. O alferes é levado a assassinar a própria filha por

respeito a seu código de honra. No entanto, como já apontamos, nenhum ds contos assume

plenamente o caráter trágico. No primeiro, pelo distanciamento irônico do narrador. No segundo,

pela intervenção de Nossa Senhora do Pilar.

Nesse sentido, talvez seja interessante pensar que, em “O Defunto”, é um acontecimento

inerente à matéria narrada que propicia essa ressalva. Em “Honra Antiga” é o narrador, ou seja, é

um aspecto constituinte da narrativa, mas não diretamente do conteúdo narrado. Evocamos na

introdução a definição que António José Saraiva e Óscar Lopes dão para as “biografias” e

“autobiografias” jocosas dos personagens de Eça de Queirós. Mencionamos a proximidade desse

tipo de recurso com obras mais ligadas ao fantástico e ao sobrenatural. O recurso à primeira pessoa

é amplamente utilizado por Álvaro do Carvalhal em outros contos como “A Febre do Jogo” e “O

Punhal de Rosaura”, e é justamente esse recurso em “Honra Antiga” que torna a cristalização de um

julgamento tão problemática. Em “O Defunto”, por outro lado, temos um narrador que parece

menos complicado. Mencionamos uma aproximação com as crônicas históricas mais antigas,

especialmente na abertura e no final do conto:

No ano de 474, que foi por toda a Cristandade tão abundante em mercês divinas,reinando em Castela el-rei Henrique IV, veio habitar na cidade de Segóvia, ondeherdara moradias e uma horta, um cavaleiro moço, de muito limpa linhagem egentil parecer, que se chamava D. Rui de Cardenas. (QUEIRÓS, 1951 p.187) (...)Ante esse altar, e de joelhos nessas lajes, foram eles casados pelo bispo de Segóvia,D. Martinho, no Outono do ano da Graça de 1475, sendo já reis de Castela Isabel eFernando, muito fortes e muito católicos, por quem Deus operou grandes feitossobre a terra e sobre o mar. (QUEIRÓS, 1951, p.227)

Ao longo da narrativa, no entanto, a não ser que busquemos desconfiar do narrador,

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pensando que ele nos queira ludibriar com um prodígio divino que na realidade é falso (o que seria

provavelmente um esforço superinterpretativo), temos um narrador em terceira pessoa mais

simples, aparentemente interessado apenas em “contar uma história”.

Assim, faz sentido pensarmos que em uma das narrativas o julgamento do algoz, tanto por

parte do narrador quanto por parte do possível leitor, estejam em jogo e que na outra isso não é

diretamente um problema, posto que D. Alonso é indiscutivelmente condenável. O que talvez possa

ser problematizado em “O Defunto”, a despeito do distanciamento temporal, é a submissão extrema

de D. Leonor. Essa questão nos coloca novamente diante de uma reflexão em torno do “amor

interdito” nas duas narrativas. Como apontamos anteriormente, embora em Álvaro do Carvalhal

quase não existam referências a datas, temos bons motivos para pensar que Cristóvão é um

personagem do século XIX. “O Defunto” se passa no século XV. O conde e Petronilha

aparentemente se amavam, e a mãe de Cristóvão estava esperando um filho do conde quando foi

assassinada. D. Leonor, apesar de toda a devoção que D. Rui lhe dedicava, não havia nem tomado

conhecimento de sua existência.

A esposa de D. Alonso era absolutamente submissa, a ponto de escrever a carta exatamente

como ordenada pelo marido. Mesmo em seu momento de angústia, quando pensa na possibilidade

da morte de D. Rui ou de D. Alonso, sendo ambas indesejáveis para ela, há uma atitude de

prostração que, no entanto, a leva a orar a Nossa Senhora do Pilar. A mesma Nossa Senhora do Pilar

a quem D. Rui foi levado a orar durante o caminho para o Cabril. O fato, aqui, é que essas orações

funcionam, Nossa Senhora do Pilar intervém nos acontecimentos mundanos, salva D. Rui, D.

Alonso acaba morrendo e os jovens vivem então um amor abençoado.

Petronilha, por outro lado, está ciente de concepções como um “amor burguês” indesejável,

espera o amado com ansiedade à janela e reage violentamente contra o pai quando percebe suas

intenções:

Petronilha reconhece o conde, no vulto, com aquele instinto feminil, que às vezesparece maravilha. Então contrai-se numa estranha reacção.- Foge, foge! Grita, fora de si, esforçando-se por levantar a vidraça.Reprime-a o alferes, e arrasta-a dali, pondo-lhe na boca, como mordaça, a nervudamão. Ela, feroz como a loba a quem furtaram os cachorrinhos, resiste temerária.Não durou a luta. Resvalou no chão alquebrada e dorida. Mas, espumando de raiva,crava até ao osso, crava os dentes na mão, que a macerava.O alferes levou-a pelos cabelos para a alcova.Quando tornou a entrar no quarto, estava mais sinistro ainda. Enxuga a espada aum pano da cortina, e, terrível como o génio das vinganças, posta-se ao lado daporta por onde devia penetrar o conde. (CARVALHAL, 2004, p. 115-116)

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Quanto à “interdição” é preciso lembrar ainda o aspecto social. O amor entre Petronilha e o

conde de “Honra Antiga” é proibido pela diferença de classe. Embora o alferes tenha conquistado

reconhecimento na guerra e o próprio conde não considerasse o casamento ruim sob esse aspecto, o

código de honra do velho, baseado exclusivamente no nascimento, não permitia que seu sangue –

eternamente plebeu – se misturasse com o de um nobre, considerando isso uma “dívida de honra”

obtida através de “uma desonra”. A noções da ascensão social e da meritocracia, tipicamente

burguesas, são, se não alheias ao alferes, condenáveis por ele. Esse aspecto tornaria-se interessante

se fôssemos observar os contos de Carvalhal em conjunto. Contudo, nesta análise, cabe-nos

somente destacar a diferença desse tipo de interdição, irremediável pela honra do velho alferes,

daquela que impede o amor de D. Rui em “O Defunto”.

No conto de Eça de Queirós, nenhum dos dois é “do povo”. Tanto D. Rui quanto D. Alonso

possuem títulos e terras, e é muito provável que D. Leonor também os possuísse visto que casou-se

com D. Alonso. O fator que os impede é justamente o fato de D. Leonor já estar casada com D.

Alonso. Uma vez eliminado o malvado marido, os dois jovens unem-se sob a bênção de Nossa

Senhora do Pilar. Em outras palavras, esse impedimento não é “um problema” imediato a ser

considerado na narrativa. É claro que essa problematização pode surgir a partir do leitor

contemporâneo que volta-se, primeiramente para o contexto de Eça, depois para aquele em que se

passa narrativa. Porém, ao contrário do que ocorre em “Honra Antiga”, não é uma discussão

proposta diretamente pala narrativa em si. Embora certamente não se tratasse de um problema

extemporâneo, e a própria figuração do mesmo tipo de mote em “Honra Antiga” (e em diversas

outras narrativas cronologicamente próximas de “O Defunto”) nos impediria de pensar assim, Eça

parece mais interessado na criação de uma história medievalista, aparentemente de horror,

permeada por certa religiosidade cristã.

Esse interesse de Eça, de voltar-se para aspectos do imaginário religioso português - e

aproximando-os do fantástico, do maravilhoso e do sobrenatural - é característico de uma parte

considerável de sua obra, e nos leva para o segundo aspecto que nos propusemos a analisar: a

atmosfera gótica em ambos os contos. Mencionamos repetidamente o movimento demonstrado por

Maria Leonor Machado de Sousa em O “Horror” na Literatura Portuguesa, que enxerga a

atmosfera e os temas góticos como uma espécie de linha contínua que perpassa os diferentes

momentos da literatura portuguesa do século XIX. Evidentemente, não figuram em toda a literatura

portuguesa produzida ao longo do século, mas aparecem em diferentes autores, funcionando de

diversas maneiras, mas conservando alguns de seus aspectos, como os cenários noturnos, a natureza

ameaçadora, os temas e enredos que aproximam o amor e a morte, entre outros.

Em “Honra Antiga”, o diálogo com essa tradição parece vir à tona no segundo segmento da

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narrativa. Como já demonstramos, esse segmento funciona como uma espécie de “cena” única

incluída entre dois outros segmentos nos quais prevalece uma narração mais livre, quando não a

retórica reflexiva típica dos prosadores do XIX. É na cena que se abre sob a indicação do “estilo

sécio” que encontraremos todos os clichês ligados ao melodrama e ao drama histórico, tão próximos

do que Maria Leonor Machado identifica como manifestações do gótico na primeira metade do

século XIX em Portugal. O cenário noturno, a natureza ameaçadora, a figura do embuçado que

surge e leva à descrição demoníaca do alferes que, por algo que preza mais do que a própria vida (a

honra), é levado a assassinar a própria filha junto de seu amante, e até mesmo uma revelação final

da possível origem realmente aristocrática de Petronilha, quando o pai afirma tê-la adotado. Além

disso, as noções de amor e de morte, e da morte como única possibilidade de realização de uma

união desejada mas interdita - tema muito comum na tradição que mencionamos - é explicitada pelo

próprio alferes ao confessar os seus atos: “Pediu-ma o conde em casamento. Dei-lha. Dorme com o

esposo no mesmo leito. Foi magnífica a boda. Não correu o vinho em jorros, mas correram jorros

de sangue” (CARVALHAL, 2004, p.122).

Assim, no conto de Álvaro do Carvalhal, a utilização dessa atmosfera, a inserção

consciente numa tradição, se dá especialmente no segundo segmento duma narrativa tripartida,

justamente no segmento onde as ações se dão em sequencia como uma cena que é narrada do início

ao fim sem interrupções, digressões ou saltos temporais. Em resumo, como uma cena mais próxima

do teatral. Ao passo que o primeiro e o segundo segmentos servem como introdução de personagens

e da situação, do próprio narrador e de reflexões que Cristóvão propõe em torno da matéria narrada.

Ou seja, no conto de Carvalhal, os elementos característicos de uma tradição não compõem um

conto perfeitamente inserido nessa tradição, como um exemplar típico, mas insere essa própria

tradição num jogo contraditório que exige uma reflexão mais profunda por parte do leitor, seja para

compreender o posicionamento real (se é que esse é realmente apreensível) do narrador, seja para

posicionar-se, ele mesmo, diante do conteúdo narrado.

No conto de Eça de Queirós, por outro lado, a atmosfera gótica parece funcionar como

verdadeiro recurso de uma narrativa que é o conto como um todo. Através do “efeito de recuo”

temporal, Eça nos leva a um narrador que parece, ele próprio, não estar muito distante do contexto e

dos pressupostos que compõem o conteúdo narrado. Em “O Defunto”, os acontecimentos

sobrenaturais talvez sejam os aspectos principais da ação. Porém, isso também não torna o conto

um exemplar típico de uma tradição em esgotamento. Há um esforço do autor num sentido

diferente, mas que também problematiza os clichês do gênero, ao mesmo tempo em que recorre a

eles na construção ficcional. O fato de Eça criar um amor que quase assume contornos românticos,

mas não é proibido por diferenças de classe já é, em si, significativo. O momento simbólico em que

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D. Rui espera D. Leonor junto aos pedintes à saída da igreja parece brincar com a posição que o

protagonista assume ao apaixonar-se por D. Leonor. Mais significativo é o fato de que D. Rui, ao

observar o desinteresse de Leonor, acaba por decidir que é impossível concretizar o seu amor, e

simplesmente o deixa de lado. O que faz com que a história de amor continue é o ciúme de D.

Alonso, que praticamente força a esposa a voltar-se para a existência daquele que posteriormente

casará com ela.

A própria D. Leonor, candidata a heroína romântica da narrativa, é uma mulher submissa,

que respeitava o casamento e não demonstrava o menor interesse em seu candidato a amado.

Embora demonstre uma violência ainda maior justamente pela dominação sem conflito que

representa, essa talvez seja uma representação mais “realista” do contexto em questão, do que os

arroubos amorosos que levam a rebeldias e mortes trágicas nos melodramas mais comuns.

Mas o fator que mais nos aproxima da “atmosfera gótica” e do que talvez seja o aspecto

mais interessante do conto de Eça, é a intervenção de Nossa Senhora do Pilar, ao animar um defunto

e outorgar-lhe a tarefa de salvar seu protegido. Muitas vezes foram apontadas as influências das

literaturas gótica, de horror ou fantástica de origem inglesa, francesa ou alemã na literatura

portuguesa do século XIX. Estudos como os já mencionados O “Horror” na Literatura Portuguesa

e O Fantástico nos contos de Álvaro do Carvalhal trazem evidências pertinentes nesse sentido.

Uma compilação como Prosas Bárbaras de Eça de Queirós, reunião póstuma de textos publicados

entre 1866 e 1867, demonstra uma considerável influência de temas, cenários e personagens da

literatura fantástica alemã. O mesmo tipo de aproveitamento é observável nos Contos Fantásticos

de Teófilo Braga. O que Eça parece fazer em contos como “O Defunto”, e posteriormente em suas

“Vidas de Santos”, é buscar uma literatura que se aproxima do fantástico e do maravilhoso, mas que

é representativa do imaginário religioso cristão, característica incontornável de Portugal até hoje.

Ao aproximar o sobrenatural do divino, num conto que em muitos momentos parece uma

história de horror, o autor quebra também algumas expectativas do gênero. O encontro com o

morto-vivo, ápice da atmosfera gótica, do suspense, talvez mesmo do “horror” na narrativa, é

justamente o que proporcionará o amor abençoado no final. É como se a Virgem do Pilar, enquanto

entidade divina, interferisse no mundo concreto do conto, protegendo D. Rui de Cardenas. Esse

recurso pode insinuar um funcionamento que está além da realidade mais concreta, mas é validado

justamente pelos acontecimentos desencadeados pela santa neste mundo. Em última instância, o

sobrenatural, neste conto, não configura uma ameaça, mas a manifestação de uma ordem superior

que acaba beneficiando o protagonista e proporcionando um final feliz para um amor anteriormente

proibido.

Por fim, acreditamos que os dois contos, e as reflexões suscitadas por eles, problematizam

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esquemas classificatórios muito rígidos que, embora possam servir num primeiro momento para

fins didáticos, obscurecem aspectos importantes e interessantes da obra de autores como Eça de

Queirós e Álvaro do Carvalhal. Não é o propósito deste trabalho buscar uma “nova classificação”

que abarque os contos de Eça em que o sobrenatural assume papel de destaque. Tampouco nos

propusemos a buscar, numa crítica retrospectiva, afirmar que Álvaro do Carvalhal é um autor mais

importante por adiantar aspectos do Realismo. Acreditamos, contudo, ter demonstrado que elencar

uma série de características e rotular um período e seus autores a partir delas pode ser insustentável

diante de uma leitura mais cuidadosa das narrativas em si. Optamos pelo “amor interdito” e pela

“atmosfera gótica” por serem elementos comuns aos dois contos, e que podem render uma análise

que traga à tona características representativas de aspectos que julgamos relevantes na obra dos dois

autores.

No caso de Álvaro do Carvalhal, os narradores complexos, perspectivas subjetivas –

muitas vezes inseridas na fala de outras personagens – e o recurso consciente a uma tradição , sem

no entanto render-se totalmente a ela, ao ponto de tornar-se um exemplar típico. Além disso, a

inevitável necessidade de reflexão e julgamento a que o confronto - e muitas vezes a sobreposição -

de valores e perspectivas diferentes inseridas nas narrativas nos levam. No caso de Eça de Queirós,

uma faceta pouco explorada de sua obra, muitas vezes considerada de menor valor, mas que

representa um outro tipo de produção à qual o autor se dedicou em vários momentos de sua carreira,

com perspectivas diferentes, sendo o conto escolhido apenas uma entre diversas outras obras que se

aproximam do fantástico, do maravilhoso e do sobrenatural.

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