165
José Míguez Bonino AMA E FAZE O QUE QUISERES uma ética para o novo homem

Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

  • Upload
    buihanh

  • View
    225

  • Download
    2

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

José Míguez Bonino

AMA E FAZE O QUEQUISERES

uma ética parao novo homem

Page 2: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Apresentação

"Nada se pode aceitar por definitivo". Esta frase, daobra ora apresentada, reflete a preocupação que tem oautor de caracterizar sua visão da atuação ética do novohomem.

José Míguez Bonino, metodista argentino, e um nomemuito conhecido nos meios protestantes latino-americanosbem como entre católicos. Foi, inclusive, um dos poucosobservadores protestantes convidados a participar doConcilio Vaticano II.

Seu interesse com esta obra e justamente tentarapresentar ao homem de hoje que, atônito com os rumos dasociedade e suas conseqüências, não sabe como atuar emudar esses rumos sem apelar para outra atitude que nãoaquela tão profundamente e anunciada pelo Cristo - ama efaze então tudo que quiseres.

Ao editar esta obra, a Imprensa Metodista, através desua política editorial voltada para a Igreja, se alegra emtrazer ao público cristão evangélico, mais uma obra quecertamente ajudará na reflexão de nossas atitudes éticascomo cristãos conscientes de uma nova ordem, um mundonovo, em Cristo e com o seu Reino.

Jorge Candido Pereira MesquitaEditor

Page 3: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Prólogo

ESTA pequena obra surge como parte de umasérie, preparada por diversos autores, destinada aexplorar os problemas éticos que se apresentam aohomem de nossos dias. É de esperar que este volumetraga, por si mesmo, alguma orientação. Contudo,limita-se principalmente a formular as questões éticasgerais que as outras obras, cad a uma a seu modo,analisarão com respeito a aspectos particulares: apolítica, o sexo, a vida na cidade e outros. Essestemas entram apenas como ilustração neste volume.

A série está enfocada partindo da perspectiva dafé crista. Pressupõe, portanto, o ponto de vista, asconvicções básicas e o horizonte último dessa fé.Quem não se considere crente encontrara a intençãode interpretar - que sempre se constitui, também, emconvite para participar - a problemática humana à luzda mensagem de Jesus Cristo. Não achará, porém,uma defesa, nem propaganda da superioridade destainterpretação.

Tivemos em conta a tradição que tem dado formaà maioria dos cristãos deste Continente - católicosromanos ou protestantes. A inquietação em torno dosproblemas éticos aumenta de intensidade em nossosdias. Notícias, debates, cinema, trazem-naconstantemente a nossas portas. Muitos cristãos seacham perplexos; outros, alarmados; alguns seaferram às tradições recebidas - o que também podeser um sinal de medo. Mas não podemos permanecerneutros. E não podemos esquivar-nos ao fato de que

Page 4: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

toda a ética tradicional a posta em duvida, tanto nosaspectos individuais como nos sociais. Parece que sóuma coisa é certa: que nada se pode aceitar pordefinitivo.

Esta série de obras que ora apresentamos parteda convicção de que a mensagem da Bíblia ofereceuma perspectiva pertinente e criadora para respondera este questionário. Não se trata, cremos, derespostas feitas, uma espécie de receitas culináriasque poupem a imaginação, o esforço e a criação doindividuo e da comunidade cristãos. Trata-se, porem,de uma visão do Mundo, da Historia, da Vida, doHomem, das coisas, das relações, visão essa quepermite ao cristão encontrar seu caminho.

A consideração da problemática ética poderiapartir dos problemas da sociedade. Algunsconsiderarão que, especialmente nesta hora e emnosso Continente, esse é o único ponto de partidaadmissível. Compartilha o sentido de urgência dosproblemas sociais. Concordo, inclusive, em que ohorizonte bíblico tem seu centro em um projetohumano total, o Reino de Deus, antes que na vidaética individual. Não creio, porem, que por issodevamos submeter-nos a uma ordem rígida de temas.De fato, tampouco a Bíblia o faz assim. Podemosescolher qualquer ponto de partida dentro do universoético, desde que não percamos de vista a totalidade.Preferi, nesta pequena obra, começar do ponto ondenos, cristãos latino-americanos católicos eprotestantes igualmente - temos sido iniciados, asaber, na pergunta: que devo fazer? Dai cuidaremosde avançar, guiados pelo próprio desenvolver dopensamento bíblico, para outra pergunta mais ampla e

Page 5: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

significativa: que significa ser, aqui e agora,testemunha do Reino, do governo justo e generoso deDeus? Creio que este itinerário, que é o que a maioriados que compartilhamos uma dominante preocupaçãosocial temos feito, pode ser mais útil a maior parte denossos leitores. E isso nos parece perfeitamentelegítimo.

Não nos dirigimos ao especialista. Por isso,quando estas páginas caírem em mãos do teólogo, dopsicólogo, do sociólogo, eles hão de percebergeneralizações e imprecisões. Queremos falar comsingeleza com o homem que indaga a si próprio, comseriedade, de que forma há ele de viver como homemno mundo hodierno. Queremos conversar com ocrente deveras interessado em responder fielmente,em sua vida, ao chamado de Jesus Cristo. Osproblemas com os quais essas pessoas se defrontamnão são diferentes daqueles que tomam o tempo doespecialista - se se trata de um especialista situado narealidade e não de um mero malabarista deabstrações. Todavia, o enfoque de um e de outro énecessariamente distinto. Para quem queira adentrar-se na consideração de alguns destes problemasoferecemos umas ligeiras notas de esclarecimento eindicações bibliográficas no final do livro. Estas notastambém não são estritamente especializadas; sãonotas introdutórias, destinadas a abrir o primeiropanorama ao leitor interessado num estudo maisprofundo.

Não poderíamos concluir, não obstante, como senosso tema fosse questão de simples "entendimento" -vulgar ou especializado - de certas idéias ou noções.Há uma "comprovação" mais congruente do que o

Page 6: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

profundamente intelectual, por mais que este sejaindispensável. A esse nível mais profundo apontam aspalavras de Jesus quando diz que aquele que fizesseo que ele manda conheceria sua doutrina e saberia sevem de Deus. Nem os problemas éticos nem a fécristã podem ser compreendidos em uma reflexãoneutra, para só depois tomar uma decisão. Em ambasas coisas temos primeiro uma ação, um compromissoconcreto, cujo conteúdo analisamos criticamente -como cristãos, a luz da Palavra de Deus - com afinalidade de integrar essa analise em uma nova açãoe um renovado e mais eficaz compromisso. Por essemotivo, embora a Teologia possa lançar luz sobre asdecisões éticas do crente - como esta série pressupõe- também, e talvez em primeiro lugar, e a obediênciado cristão fiel, que se compromete cada dia com todoo seu ser na ação que percebe como a vontade deDeus, o que convoca, corrige e ilumina ao teólogo.Porque a Palavra de Deus é para ser "executada", nãomeramente ouvida.

Buenos Aires, Domingo da Ressurreição de 1971.

José Míguez Bonino

Page 7: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

1. Que Fazer?

O TEATRO e a novela nos têm apresentado uma visãodo homem construída em torno dessa pergunta.Esboçam-se os caracteres, articulam-se as situações,urde-se a trama até que os personagens enfrentam ahora de decisão e a partir de sua circunstância e suaspossibilidades, de seu passado e de seu propósito,devem assumir ou atraiçoar sua própria história - emsuma, decidir o que fazer. O “suspense" gira em tornodos conflitos de lealdades, de interesses ou devalores. No simples relato provinciano argentino "Labarranca del lorero" ("O barranco dos papagaios"), aprotagonista vê o filhinho engatinhar-se para a bordado despenhadeiro, enquanto sustem a corda da qualpende seu marido que recolhe ninhos sobre a encosta:só Ihe e dado preservar uma vida, qual? A clássicahistoria de Dâmon e Pítias estabelece o conflito entrea amizade - um homem se oferece como refémenquanto o amigo, condenado a morte, se despededos seus - e o legítimo apego à vida, - tanto do queespera, que pode salvar sua vida renunciando a suaamizade, como do condenado, que pode aproveitar aocasião para fugir. Mentir ou trair a quem confiou emmim? Arriscar ou sacrificar a vida de urna pela demuitos? Comprometer a honra pela felicidade? Dar oprimeiro lugar à pátria ou à família? As variantesdestes dilemas são quase infinitas; a angústia dadecisão é a mesma. Os psicólogos utilizam-se comfreqüência destas situações para provocar respostasque revelam a orientação, os valores ou, maisprofundamente, as atitudes das pessoas.

Page 8: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Não são raras as ocasiões em que o homemenfrenta decisões dramáticas nas quais um atodetermina evidentemente todo o curso da vida. Tratar-se-á, as vezes, de uma emergência que exige umaresposta instantânea, quase automática: o motoristaesta a ponto de cruzar-se, em alta velocidade, com umveículo que vem em direção contraria; de repente,surge uma criança correndo diante dele na estrada:atropelá-Ia? enfrentar o choque com o outro carro?precipitar-se contra as árvores ao lado do caminho?Poderíamos passar horas debatendo argumentosfavoráveis ou contrários a cada uma das opções.Antes, porem, de tomar consciência sequer dasalternativas, a decisão já estará irrevogavelmenteconsumada. Decisão arbitrária? casual? O psicólogonos dirá que não é, de maneira alguma, arbitrária oucasual. É a resultante do que esse homem é: do quetem sofrido, do que tem aprendido, do que tempensado, daquilo que herdou, da totalidade de seupassado, que numa fração de segundo move a mãoque segura o volante, desloca o pé do acelerador parao freio ou fecha os olhos e atira o veículo para suaesquerda. Outras vezes é a longa decisão, umaprolongada agonia de marchas e contramarchas,angústia e arrependimento, frustração e culpa. É ocaso do casal com um filho mongolóide: Interná-Ionuma casa de atendimento deficiente - a única aoalcance de seus recursos - para vê-lo afundar-se emum pântano de animalidade, e finalmente apagá-lo damemória por vergonha, lástima, impotência? mantê-lono seio da família e deformar toda a vida familiar, arelação com os outros filhos, a saúde emocional detodos, quem sabe por quantos anos, sem a certeza de,finalmente, poder fazer qualquer coisa por ele?

Page 9: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Na maior parte das vezes trata-se, não obstante,de decisões menos dramáticas e mais rotineiras: Ondeviver? Que devo comprar primeiro? A qual escolaenviar meu filho? Como resolver a altercação comminha esposa? Onde ficará melhor minha velha mãe,dada minha situação familiar e de moradia? Às vezestemos consciência de decidir; outras, talvez em maiornúmero, fazemo-lo sem pensar. Nossas atitudes emface do matrimônio, da amizade, do dinheiro, dapolítica, da diversão, vão-se sedimentando sem que opercebamos. E talvez num bom dia, quando alguém -um filho, um amigo, um livro que lemos ou um filmeque vemos - nos pergunta por quê, e sentimos anecessidade de explicar (ou de explicar a nós mes-mos) por que cremos que isto e bom e aquilo é mau,então nos damos conta de que, afinal, temos umaética.

Por que fazer isto e não aquilo? Que é o bom?Como reconhecê-lo? Como decidir e como julgarnossos atos e os dos outros? Nenhuma pessoasensível pode deixar de formular-se estas perguntas.São inquietações que vem acompanhando aHumanidade desde quando a conhecemos. Que émais importante: a intenção que me move ou oresultado de minha ação? Devo obedecer aosimpulsos do coração ou ao calculo da razão? Existemprincípios morais absolutos, aos quais devo submeter-me, ou todas as decisões são circunstanciais? Devoaceitar uma autoridade moral, à qual obedecer, oudeterminar independentemente meus atos? É legítimobuscar a felicidade? E nesse caso, que felicidade -individual, coletiva, espiritual, material, presente,futura? As respostas se enraízam em posições

Page 10: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

filosóficas, políticas, religiosas, ideológicas. E por seuturno, muitas vezes buscamos argumentos paradefender nossas decisões e construímos ou adotamosposições que justifiquem nosso comportamento. Eassim tem surgido diversas éticas e diversos sistemaséticos. Diversas formas de responder a pergunta, tãosimples e tão quotidiana: que fazer? E a outra,indissoluvelmente ligada a condição humana: por quefazê-lo?1

A bancarrota das respostas

O ponto grave da situação que atravessamosconsiste em que, em sua maioria, as respostasclássicas a estas perguntas se mostram inadequadas,carentes de sentido ou inoperantes. Tudo parece maisdifícil e mais complexo. Bastará mencionar algunsexemplos e analisar superficialmente seu significadopara dar-nos conta da situação que enfrentamos.

Faz algum tempo, diversas pessoas e instituições cristãsnos Estados Unidos da América decidiram retirar suaseconomias e inversões e deixar de operar com o "FirstNational City Bank" porque este financiava operações dogoverno da África do Sul, as quais permitiam consolidara política de discriminação racial e repressão que estegoverno executa.

Um jovem casal pensa em sua futura família. Que deveo casal levar em conta? Seu desejo de ter uma famílianumerosa? Os recursos econômicos de que necessitarápara manter, educar e assegurar uma vida decente dosfilhos? A necessidade de população - ou o excesso de

população - de seu país? As condições de populaçãodo mundo cuja capacidade não é ilimitada? {Pense

Page 11: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

também no governante que parte do extremo oposto nalinha de perguntas, mas que também tem de chegar àpessoal: que direito tenho de influir nas decisõespessoais de um casal com respeito à sua família? mas,se não o faço, como posso levar em conta asnecessidades totais de meu pais?)

Chegou o momento de trocar meu automóvel! Não quemeu carro já não me serve mais; é que eu gostaria deoutro maior e mais novo, e viria a calhar, pois tenho osrecursos para comprá-Io. Tenho, porém, o direito defazê-Io sem considerar o problema decongestionamento de trânsito, a progressivacontaminação do ar, a destruição de materiais de que aHumanidade necessita - todo esse equilíbrio da vida eda Natureza da qual me falam todos os dias oscientistas?

Os exemplos poderiam multiplicar-se. Alguns sãomais claros, outros mais distantes e difíceis de notar.Mas alguns fatos saltam à vista:

1) As relações cada vez mais estreitas que seenlaçam entre os diferentes grupos humanos por todoo mundo. Minhas decisões e ações, que antesafetavam o círculo reduzido de minha família, minhacidade, ou, quando muito, minha nação, passam afazer parte de uma urdidura na qual milhões de ho-mens sofrem - ou desfrutam - as conseqüências. Ascolheitas ou o plantel de gado na Argentina, oMercado Comum Europeu, os excedentes daprodução norte-americana, a fome da Índia, tudo issoforma uma só trama. Um rádio transistorizado defabricação japonesa, que adquiro por ser mais barato,envolve os baixos salários do operário japonês, oscapitais norte-americanos, os conflitos políticosinternos do Japão e os internacionais do Extremo

Page 12: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Oriente, a política econômica de meu país e osconflitos nos quais se verão envoltos meus filhos. Umamanhã bem cedo, ao parar o ônibus em um pequenopovoado serrano na Argentina, ouvi dois camponesescomentando com grande interesse a recentedesvalorização da libra esterlina. Há poucos anos, malteriam sabido que existia a libra!

2) Esta simples historieta já nos conduz a outroaspecto. Hoje "sabemos" muito mais: temos os meiospara "acompanhar" nossas ações em seu percursopelo mundo, e ver como afetam a vida de outroshomens. Por conseguinte, o âmbito deresponsabilidade se ampliou; não posso alegarignorância. O seqüestro do embaixador britânico noUruguai alerta a gente na Grã-Bretanha (lembremo-nos da reportagem da BBC aos tupamaros!) de que hásetores uruguaios que consideram aquela nação comoculpada de sua opressão econômica e social.Inevitavelmente, o limite de minharesponsabilidade fica determinado por meuconhecimento das conseqüências de minhasações. Hoje, ao estender-se enormemente esseconhecimento, amplia-se a responsabilidade.

3) Esta relação entre conhecimento eresponsabilidade não se estabeleceria tão claramentese não tivéssemos ao mesmo tempo consciência dapossibilidade de modificar as coisas. Se assim nãofosse, poderíamos ocultar-nos atrás de umaimpotência para evitar certas conseqüências denossos atos. Na realidade, muitos o fazem. Mas tantoos revolucionários que propõem uma mudança totaldas estruturas sociais e econômicas existentes, como

Page 13: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

os conservadores que se desejam realizar asadaptações mínimas, afirmam que as condições devida prejudiciais ou insuficientes que existem podemser mudadas. Ambos acreditam na possibilidade deuma "engenharia social" (revolucionária ou evolutiva).É possível arbitrar os meios para corrigir os efeitos denossas ações, a curto, médio, ou longo prazo.2 É claroque aqui acrescentamos uma nova complexidade, jáque essas mudanças demandam a ação concertadade grupos humanos em diferentes níveis da so-ciedade. Não posso modificar, por uma decisãopessoal independente, as conseqüências de minhaação ao comprar o rádio de fabricação japonesa. Seposso fazê-lo mediante certas formas de ação políticae econômica, na ordem nacional e internacional. Oproblema que surge é duplo: devo continuarcomplicando-me em ações que têm - sei bemclaramente - conseqüências negativas para meupróximo? e como exercer minha responsabilidade paramudar algumas dessas condições?

Talvez estes exemplos pareçam exagerados. Nãoé absurdo pretender que me ponha a pensar em todasessas coisas cada vez que faço algo? Finalmente,teria que retirar-me do mundo, porque toda ação teriaalguma conseqüência negativa. E retirar-me do mundotambém teria conseqüências negativas. Porconseguinte, o problema deveria simplificar-se. Fazero melhor possível. .. e deixar nas mãos de Deus asconseqüências! Em certo sentido, esta tem de sernossa última resposta. Mas essa resposta não eliminao problema. Porque "fazer o melhor possível" significatomar consciência das conseqüências de meus atosaté onde me seja possível. Deus deixou certas

Page 14: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

conseqüências em minhas mãos. Quanto mais sei emais posso, tanto maior é a responsabilidade. Nãoposso fugir a ela devolvendo-a, pelo assim dizer, aDeus.

Se deixo uma arma de fogo ao alcance de umacriança, sou responsável pelo que aconteça. Não oserei, acaso, se permito que sua mente, desde ainfância, se nutra de uma televisão que oferece dosesmaciças de violência todos os dias? Se vendoconservas de cujo estado não estou seguro, souculpado de uma possível intoxicação. Sê-Io-ei se nãopercebo que meu filho adolescente freqüenta umambiente de viciados em drogas ou delinqüentes? Masse responde afirmativamente, como fazer? Porque nãoé tão simples afastar um menino ou um jovem (e emqualquer caso se trata também dos demais) de umambiente criado e mantido por urna propagandamaciça, apoiada em interesses econômicos que seimpõem por seu próprio peso a todas as esferas davida. Não posso fugir à responsabilidade, mas seuexercício desborda minhas ações individuais. Eis aíum dilema.

Examinando o assunto de outro ângulo,poderíamos dizer que hoje temos tomado consciência,mais clara do que nunca antes, do caráter social denossas decisões e nos damos conta de que nãopodemos circunscrever nossa responsabilidade moralao individual. A contradição entre uma moralidadeindividual e a imoralidade social é intolerável,precisamente porque compreendemos que não setrata de duas coisas isoláveis, mas tão inseparáveiscomo as faces de uma moeda, como um objeto e sua

Page 15: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

sombra. Ou talvez, mais precisamente, conviria dizerque são como o relâmpago e o trovão, que podem serpercebidos de maneira diferente e em momentossucessivos, todavia formam um e o mesmo fenômeno.

O entendimento desta relação constitui um dosfatos mais importantes de nossa atual problemáticamoral. Faz alguns anos, o teólogo norte-americanoReinhold Niebuhr deu a um de seus livros o título "0homem moral e a sociedade imoral".3 Seu propósitoera mostrar, em face de uma ética puramente in-dividualista, que os problemas da sociedade não seresolvem simplesmente pela oma da moralidade dosindivíduos, ou dos dirigentes ou governantes. Adinâmica de um grupo social leva indivíduosperfeitamente honestos, sinceros e altruístas em suavida pessoal, a defender interesses (de classe, gruposocial, raça, nacionalidade) em prejuízo de outros ea adotar para tanto procedimentos que jamaisadmitiriam em sua vida privada. A importância destefato se nos impõe só quando compreendemos que navida moderna boa parte da exigência do homem estaem mãos de grupos sociais. No parágrafo abaixo umautor o ilustra muito bem:

Hoje, meu poço é a água encanada; o ônibus émeu carro; e a caixa-forte do banco é o colchãoou pé de meia; o cassetete do policial substituimeus punhos. Minha vista e meu olfato delega-ram seu juízo ao inspetor de alimentos, demedicamentos, ou a companhia de gás ou deseguros. Outros se ocupam do lixo e das águasservidas, de fazer produzirem minhaseconomias, de cuidar de meus enfermos eensinar a meus filhos. O frigorífico se encarrega

Page 16: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

de meu gado, a companhia de eletricidadefabrica e acende minhas velas e corta minhalenha... 4

Todas estas coisas, porém, agora feitascoletivamente, e portanto de maneira impessoal, criamnovas estruturas e problemas éticos, nos quais amoralidade individual freqüentemente naufraga. E oque é mais grave, logo se fabricam escusas, paraencobrir com motivações aparentemente generosasaquilo que constitui interesses de grupos. No livromencionado, Niebuhr documenta até à saciedadecomo as conquistas coloniais, a exploração de grupossociais, a escravidão de uma raça, a injustiça oumesmo a destruição de grupos humanos se justificamapelando para o patriotismo, a obrigação de estendera civilização, a defesa da liberdade, e, inclusive, adefesa ou a propagação da fé cristã. Não diminui agravidade do problema o fato que as pessoas que seservem de tais argumentos sejam totalmente sinceras.

O homem de nossos dias, particularmente osjovens, não toleram mais este estado de coisas. Ahipocrisia, a irresponsabilidade, o egoísmo e afalsidade de uma situação que se recobre com belaspalavras e com declarações de honestidade edecência pessoais, atrás das quais se ocultam asfontes das mais flagrantes injustiças repugnantes aosenso de dignidade e integridade do homem. Sou res-ponsável, bem o sei, não só pelos atos isolados eindividuais, mas também pela totalidade do que sou,do que faço, de minhas relações e das estruturas asquais pertenço.

Page 17: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Somos responsáveis?

O próprio conhecimento do homem e dasociedade - a Psicologia, a Sociologia e as demaisciências do homem - que me permite compreender asrelações e conseqüências de meus atos, mostra, poroutro lado, como sou afetado, e talvez condicionado,por influências e fatores que não se acham sob meucontrole. Se um alcoólatra arruína sua vida e afundasua família na abjeção e na miséria, é ele um viciadoou um enfermo? Se um jovem de quatorze, quinze oudezesseis anos trilha, desde a choça de lata de sua fa-vela,

*um caminho semeado de vício, de roubo e de

sangue, é ele um delinqüente ou um desorientado queteve a alma deformada pelo choque com a selva semcoração de uma cidade que lhe exige o êxito sem dar-Ihe os recursos para alcançá-Io? Um casal desavindoque termina separando-se e deixando um casal defilhos sem raízes nem afeto, é culpado do egoísmo, daintolerância, da ambição ou da inconstância quedestruíram seu lar, ou ,os dois são, por sua vez,vitimas de outro lar, de professores sem amor, de umapropaganda que os faz sentir-se infelizes e frustradosquando não conseguem tudo quanto se Ihes anuncia?

Até onde é preciso retroceder na cadeia de

* No original, "Villa miséria": bairro de moradias precárias

construídas por seus próprios ocupastes com materiais de refugoem terrenos baldios, nas cercanias das grandes cidades.Argentinismo equivalente a "bidoquille" (francês), "slum" (Inglês),"favela" (português). - Nota do Autor

Page 18: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

efeitos e causas? O que ocorre com as idéias deresponsabilidade, virtude e vício quando o psicólogoretrocede a experiências da infância as tendênciashomossexuais de um jovem, ou mostra que a decisãode um homem de suicidar-se responde a uma psicosedepressiva, tão independente da vontade como umdefeito físico? Que dizer quando o sociólogo nosassinala a relação inegável entre a delinqüência e oestado de desorientação moral das populaçõesmarginais da cidade, repentinamente arrancadas dasociedade rural, suas normas e valores, e trasladadasa um mundo de leis, regulamentos, horários e relaçõesimpessoais que não entendem? Que têm a ver com obem e o mal as deficiências hormonais ou ascondições sociais que parecem desencadear atos ecomportamentos?

Finalmente, as perguntas "o que é o bem?", "oque é o bom?" tampouco se apresentam simples ouclaras. Os mesmos fatos históricos que nosaproximam e vinculam aos homens no mundohodierno puseram em estreito contacto as diferentesculturas e tradições, mostrando a diversidade decritérios e normas morais, de concepções éticas comrespeito à propriedade, à família, ao sexo e a outrosaspectos da vida humana. É certo que todos os povosdistinguem entre atos bons e maus, aceitáveis ourejeitáveis, mas longe de coincidir em quais são uns equais outros, quase não há delito em um povo ouperíodo histórico que não seja virtude - ou pelo menosaceitável - em outro, e vice-versa.

Torna-se, desse modo, inevitável a pergunta: porque não poderiam também nossas normas morais

Page 19: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

mudar, inverter-se, caducar? Que há de sagrado, depermanente, na monogamia, na fidelidade conjugal ouna indissolubilidade do matrimônio sobre as quais pelomenos teoricamente - temos fundado a família emnossa sociedade? Que razões "absolutas" há paraproibir a homossexualidade, o uso de drogas ou outrasformas de comportamento que algumas sociedadestêm praticado até com caráter religioso? Parece que oterreno cedeu totalmente sob nossas convicçõeséticas. Quando o alcance da ação ética se mostramais complexo, exigente e amplo, quando maisseguros deveríamos estar do que fazer, e quando nossentimos mais impotentes e dominados por forças quenos desbordam, quando mais inseguros estamosacerca do que realmente seria bom. Este é o gravedilema ético do qual a novela, o teatro, o cinema e atéa canção moderna se fazem contentemente eco.

Perplexidade e clareza

A situação que aí esboçamos provoca reaçõesmui diversas e até opostas. Alguns têm caído numrelativismo total. Simplesmente renunciam a qualquervalorização moral. Tudo pode explicar-se em termosde cultura, circunstâncias, condições imperantes emum determinado tempo e lugar. Em realidade, é muitodifícil ser inteiramente conseqüente nessa posição.Para formar uma família, educar filhos, exercer umaprofissão, a pessoa tem que manter certa coerênciaem suas decisões, por mais claudicante que seja seucomportamento. A vida a coloca diante de milencruzilhadas e aí não pode evitar a escolha de um

Page 20: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

caminho - e, por conseguinte, o abandono do outro.

Amiúde o relativista se deixara levar, mais oumenos conscientemente, pelas circunstancias, pelosusos e costumes da sociedade. Enviara os filhos aoscolégios aonde vão os filhos da gente de sua classe,seguirá as normas morais aceitas par seus compa-nheiros de escritório, adotara o partido políticotradicional de sua família ou de seu grupo social. Paraque fazer-se raro se tudo a igual! O melhor é fazer "oque toda gente faz", isto é, vestir os costumes dasociedade, suas normas e valores, como quem seacomoda a uma forma já feita. Tal pessoa não sepreocupará por defender tais costumes; inclusive épossível que os veja com indiferença e até com certocinismo. Mas, de fato, ao amoldar-se a elas, prolonga-as e Ihes dá mais força. O relativista acomodatícioopera, em realidade, como uma força conservadora,como um defensor - talvez involuntário, porem nãomenos eficaz - das "coisas como são".

A reação do relativista pode, também, dirigir-seem direção contrária: consciente de que as normas evalores que regem a sociedade atual são ambíguos eprecários, assume diante deles uma posição crítica.Dedica-se à defenestração dos heróis e modelos,mostrando que eles foram, também, filhos de seutempo, com suas deficiências, servos dos interesses epreconceitos de seus grupos sociais. Não será nadadifícil mostrar que algumas das virtudes ou costumesque hoje reverenciamos respondem a condiçõeseconômicas e sociais da época que as exalçou. Assima frugalidade, a dedicação ao trabalho, a pontualidadee o senso de responsabilidade de que tanto nosorgulhamos, nós os protestantes, se explicam muito

Page 21: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

bem como as formas de comportamento necessáriasao período de poupança e acumulação de riqueza exi-gidas pelos começos do sistema capitalista,coincidentes com a origem dessa ética protestante.Estão de tal modo relacionados com esse processoeconômico qual a redução de povos inteiros acondirão colonial, a exploração dos escravos e apilhagem dos recursos naturais, nos quais também seestribou o capitalismo.5 Atrás dos ideais deemancipação e liberdade da façanha daindependência dos países latino-americanos é fácilapontar a presença dos interesses econômicos danascente oligarquia crioula e a conseqüenteindiferença ante a condição do camponesadoprovinciano e dos índios. Esta ação iconoclasta deheróis e tradições opera como elemento detransformado, destruindo os controles que os modelostradicionais e as normas estabelecidas exercem sobreo comportamento. Mas o exercício desta críticaenvolve, por sua vez, a aceitação de algumas normase alguns valores, de juízos éticos que permitam, porexemplo, criticar a escravidão, do colonialismo, aeliminação sistemática da população índia ou qualqueroutra medida. Com pleno conhecimento ou não, mais:;ou menos claramente, o relativista crítico adota umaposição que por seu turno terá que justificar.

A complexidade e amplitude do problema éticotem trazido consigo uma confusão que fomenta orelativismo. Hoje é muito difícil dizer com precisão oque é bom e o que é mau. Mas é igualmenteimpossível permanecer nessa incerteza, porque aprópria aceleração da vida moderna nos obriga adecidir, força-nos a levar em conta o significado de

Page 22: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

nossas ações, exige de nós um compromisso e requercoerência em nosso comportamento. O relativismonão é uma resposta satisfatória, uma vez que o própriorelativismo se vê obrigado a adotar - por maisprovisoriamente que seja - alguma posição. Apergunta, "O que fazer?" não basta responder, "quemsabe!"

A juventude, em particular, vem manifestandocada vez com maior vigor seu protesto contra ahipocrisia, a artificialidade e a desumanidade de nossasociedade. Indigna aos jovens, sobretudo, aincoerência entre os valores que ela professa e os queverdadeiramente a governam. Entoamos louvores apaz, mas dedicamos a preparação ou ação militar asmaiores somas dos orçamentos nacionais. Declaramo-nos defensores da liberdade, mas criamos brutaissistemas de repressão, de intromissão na intimidadedo homem e, sobretudo, de uma maciça propaganda edoutrinação que viola a consciência e "lava" o cérebrodo homem desde sua infância. Falamos decristianismo, de amor e de repúdio à violência, contudosão o êxito e o poder econômico que mais realmentegovernam nossas ações, e estamos dispostos aperdoar e até mesmo defender qualquer violência re-pressiva para defendê-Ios. Atrás da fachada do"homem respeitável" se ocultam ambições, falsidades,paixões mil vezes mais torpes do que os "crimes" anteos quais nos mostramos horrorizados. Sob a superfíciede nossa "civilização ocidental e cristã" esconde-semal a exploração de grupos, classes e povos inteiros,o uso do homem como instrumento. Ajudados porintelectuais - escritores, filósofos, artistas em geral- osjovens se têm dedicado a mostrar a verdadeira face de

Page 23: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

nossa sociedade. E como contrapartida, reclamamuma total "autenticidade" de comportamento,linguagem e ações.

É fácil assinalar o ingênuo otimismo quefreqüentemente acompanha estas propostas dajuventude. Pareceriam pensar que basta libertar ohomem das coerções e tabus, das inibições e das leisque o travam, para que encontre seu verdadeiro ser. Ailusão é dupla. Por um lado, consiste em crer que épossível eliminar da vida humana a coerção, a lei, acensura moral que o grupo exerce. Por outro lado,baseia-se em uma injustificada confiança em que ohomem é natural e espontaneamente bom. Parececrer-se que, eliminada a deformação de umpuritanismo repressivo, por exemplo, a vida sexual semanifestara como comunicação e amor totais. Supõe-se que a única coisa que impede a generosa eespontânea mutualidade entre os homens é apropriedade privada. Tenta-se criar uma abertura totalao outro manifestando-se absolutamente "autênticos"

- isto e, falando e atuando totalmente "segundo osentir". Todas estas idéias já mostraram, na prática,sua ambigüidade nas amargas experiências de al-gumas comunidades "hippies". A liberdade, o amor, areceptividade que procuraram criar se envenenaramimediatamente, de dentro e de fora, mostrandopersistentes fatores humanos recalcitrantes a soluçõesaparentemente tão simples e promissoras.

É demasiado fácil, não obstante, desembaraçar-nos desta incomoda acusação juvenil assinalando suaingenuidade ou documentando alguns de seusfracassos. Há, no protesto dos jovens e dos

Page 24: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

intelectuais de nossa época, um conteúdo ético muitopreciso. No que respeita ao comportamento, o queeles pedem pode resumir-se nas palavrasautenticidade, coerência e compromisso - isto é,que o homem se coloque realmente atrás de sua pa-lavra, que a sustente com tudo o que é e tem, que nãoutilize a palavra como disfarce mas como articulaçãoclara de quem é e do que quer. Quanto ao significadoda vida humana, sua demanda se concentra emcomunicação, comunidade, amor - a ruptura do mitoda "privatividade" atrás do qual a burguesia temcamuflado seu monstruoso egoísmo, seu desejo degozar das coisas, das pessoas, e até de Deus emforma exclusiva e excludente. Na realização destasnovas condições de existência, o protesto juvenil eintelectual propõe a experimentação, aespontaneidade e a imaginação - isto é, a Iibertaçãoda criatividade humana da rigidez das estruturas, dasconvenções, do enquadramento e da onipotência doprecedente. Trata-se, em verdade, de um projeto derenovação do homem e da sociedade, seguindo umcaminho que parte da comprovação da caducidade detodo o vigente, a falência total da sociedade e damoral que temos recebido, e que avança na busca dealgo totalmente novo.6

Clareza dos cristãos?

Que diz o cristão a tudo isto? Convencido de queno Evangelho tem a resposta última - dada pelo próprioDeus - as interrogações da vida humana, o cristãoresistira a entregar-se ao relativismo. Sabe que o bem,

Page 25: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

a verdade, não constituem simples convenções oucaprichos humanos, mas a vontade do Deus criador,manifestada em Jesus Cristo. Não obstante, a partirdeste ponto costuma produzir-se uma lamentávelconfusão, historicamente compreensível, mas plena degraves conseqüências negativas tanto para os cristãoscomo para o restante da comunidade humana. Aconfusão consiste, muito simplesmente, em identificaresse firme fundamento, que e o Evangelho, com asnormas e valores, ou pior ainda, com as convenções ecostumes de nossa sociedade.

Um exemplo banal: a identificação da pompa e da aparênciapessoais desenvolvidas pela cultura burguesa com a"decência", a "limpeza" e até a "honestidade"; identificaçãoque tem levado muitas congregações cristãs, e inclusiveautoridades civis, a exigir o cabelo curto, a barba feita, agravata e o paletó como passaporte de honorabilidade;

O caráter determinante das normas culturais: a freqüênciacom que as Igrejas evangélicas julgam a moral de seusmembros mediante restrições surgidas nas condições moraisde um determinado tempo e lugar - baile, teatro, cinema,bebidas alcoólicas, inclusive "assobiar" música, em um caso.A simples variedade e incoerência destas normas mostraclaramente seu condicionamento cultural;

Menos evidente, mas sem dúvida não menos certo e maisimportante: a convicção com a qual muitos cristãos defendema idéia capitalista da propriedade privada dos meios deprodução como se fosse um postulado da fé, quando éevidente que está ausente por completo do panorama rural dopensamento bíblico, e que surge em condições econômicas esociais mui posteriores e é fortemente resistida por toda umaimportante tradição teológica.

Trata-se, dizíamos, de um equivococompreensível, porque as Igrejas cristas têm exercido,

Page 26: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

de fato, acentuada influência na formação de nossasociedade e de suas leis, particularmente nos paisesocidentais. Instituições, leis, usos culturais, normas evalores plasmados na cultura ocidental resultaram doencontro do mundo mediterrâneo com a tradição cristae da evolução que o seguiu. Nós, cristãos, nossentimos, por isso, naturalmente dispostos a defendê-los e inclusive a considerá-los a única e legítimaencarnação das demandas da fé. E os que osrepudiam por achá-los inadequados, falsos oudesumanos, renegam com eles as Igrejas que os temdefendido e defendem e renegam o Deus que sesupõe havê-los inspirado. Assim os cristãos nosvemos envolvidos com freqüência nas filas dosdefensores da tradição, da ordem estabelecida, dasinstituições vigentes e - quase sem percebê-lo - darepressão, da censura e da coerção com que se tentadefendê-las. Da defesa da fé passamos, quaseinsensivelmente, para a defesa do estado de coisasvigente.

É essa a batalha que nos cabe sustentar? É essanossa vocação como cristãos? É necessário encarar oproblema. Há, pelo menos, duas importantes verdadesna posição do cristão conservador. Uma e a convicçãode que, como cristão, tem uma responsabilidade muitoespecial em face da exigência e da confusão ética denosso tempo. A forma de viver dos cristãos foi, comefeito, uma das mais significativas contribuições que aIgreja fez ao mundo antigo e uma das causasfundamentais de haver a fé cristã triunfado nosprimeiros séculos. A perplexidade ética e a angustiosabusca de sentido para a vida que caracterizavam asociedade na qual pregaram os primeiros apóstolos e

Page 27: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

missionários cristãos encontraram no Evangelho deJesus Cristo uma resposta para a crise; a mensagemcrista emergiu, assim, muito naturalmente, como apedra de toque de toda ética que tem valor. O que ecristão e o que e moralmente bom vieram a sersinônimos. Por conseguinte, tudo quanto pretendia seraceito como bom devia, de algum modo, "fazer-sepassar" por cristão.

Também está com razão o cristão conservadorem repudiar o relativismo total ou o fácil otimismonaturalista. A medida, a meta e a origem de nossocomportamento como cristãos nos foram dadas emJesus Cristo e por maior que seja a imprecisão, afragilidade ou falibilidade que devamos admitir em nos-sos julgamentos éticos, não podemos deixar-nosarrastar por "qualquer sorte de ensino", quer no campodoutrinal, quer no ético. Em seus melhores momentos,a fé crista soube definir, sob a direção do EspíritoSanto, um projeto de vida humana, com respeito aoqual era possível dizer que "assim procedem" oscristãos ou que "tais coisas não fazem" os que são deCristo. O cristão conservador tem razão ao insistir emque tanto a seriedade como o compromisso éticopertencem à essência do ser cristão.

Onde o cristão conservador erra é em crer -dando-se ou não conta desse fato que esse Evangelhode Jesus Cristo coincide com as instituições, as leis ea ordem moral imperantes em nossa sociedade. Écerto que a instituição da família, as normastradicionalmente aceitas - em teoria, pelo menos sobreas relações sexuais, os c6digos de direito civil, certasnormas e certos regimes políticos (a democracia

Page 28: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

representativa, por exemplo) e outros muitoselementos de nossa sociedade que poderíamosmencionar, tem desfrutado a influencia do Evangelho.Mas também é certo que são produto de circuns-tâncias históricas que tem variado através dosséculos, que representam condições econômicas esociais distintas, que são feitos por homens e quepertencem, portanto, a "este mundo" que passa e queesta em constante mudança. Não fazem parte do"reino eterno". Ao confundir ambas as coisas, comete-se o grave e duplo erro de rebaixar Jesus Cristo aonível das instituições, leis ou costumes imperfeitos,caducos e transitórios, e de elevar estes a um lugarprivilegiado que a ele cabe. Jesus Cristo é o mesmoontem, hoje e sempre. Mas precisamente por isso,nenhuma outra coisa é eterna ou merece serdefendida como tal.

Este erro provém, em realidade, de outro maisprofundo e mais arraigado: o de conceber a moralcristã principalmente como um conjunto de normasimutáveis e rígidas que regulam cada ato docomportamento. Teremos oportunidade de voltar denovo a este assunto com maior detença. Vale a pena,contudo, recordar que quem é eterno (quem, não 'oque') e Jesus Cristo, o Senhor vivo que nos prometeuseu Espirito para guiar-nos a toda verdade.

Se assim é, em que consiste a resposta que, apartir do Evangelho, deve o cristão oferecer a criseética atual - supondo-se que sua contribuição nãodeva ser a defesa da tradição? Para responder a essapergunta, temos de examinar a mensagem das Escri-turas, e a isso nos dedicaremos nos próximos

Page 29: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

capítulos. Mas talvez seja útil concluir estasobservações preliminares com uma afirmação quedevemos analisar e provar mais adiante: acontribuição ética do Evangelho para a crise moral - ado primeiro século e a nossa não consiste tanto, nemfundamentalmente, em princípios, instituições ou leisnovas como em um novo homem. O que Jesus Cristocoloca neste mundo é uma nova Humanidade, umanova forma de ser homem. E essa nova Humanidadeem Jesus Cristo não se prolonga, não entra na Históriahumana primordialmente por meio de leis ouinstituições (as quais sem duvida existem e tem seuvalor), mas mediante uma mensagem que gera semcessar vida nova e mediante uma comunidade dehomens "renascidos", "ressuscitados" para uma novavida, "redimidos" (isto é, liberados), renovados (comuma nova "mente" - uma orientação total radicalmentemudada).

Se isto é assim, a demanda da juventude quelembramos anteriormente nos mostra toda a suapertinência ética. Pois sua busca se dirige,precisamente, a uma nova qualidade de vida humana,a uma forma renovada de ser homem-em-comunidade. Isto é, nos parece, o que desejadesesperadamente nossa época. Nessa perspectiva aconfusão moral não nos é apresentada apenas sob umaspecto negativo, como uma "corrupção", mastambém em seu significado positivo, como umamarcha, incerta sim, porém esperançosa e receptiva,como uma série de ensaios, frustrados muitas vezes,mas nem por isso menos significativos. A confusão éparte da busca. É bem possível interpretar nesta luz oindignado protesto da juventude, a revolução para

Page 30: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

mudar as estruturas sociais, políticas e econômicas, arevolução cultural, as novas orientações da psicologia,e incluo certas formas de religiosidade e misticismo.Tal interpretação permite um dialogo fecundo da fécom a problemática atual, na busca comum do quesignifica concretamente ser humano – para o cristão,ser "nova criatura em Cristo" - concretamente nascondições de nossa situação atual. Sem dúvida, apergunta ética - que fazer? - com seu inevitável coro-lário atual - que posição tomar? - nos conduz a umaformulação mais profunda de início: que significa serhomem?

Page 31: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

2. O Novo homem

PAULO havia visitado a Galácia7 duas vezes;mesmo em meio de sofrimentos físicos e morais quecircundaram sua estada na região, sua prédica haviagerado uma pequena comunidade cristã. Estacomunidade enfrentava, agora, sua primeira crise. Aepistola aos Gálatas a reflete. E essa crise serelacionava com a pergunta que acabamos deformular: que fazer? Em sua vida anterior de pagãos,os gálatas haviam tido obrigações religiosas muitoprecisas: festas, estações e sacrifícioscuidadosamente determinados. O que lhes cabia fazeragora, como crentes em Jesus, O Cristo? Osensinamentos de Paulo pareciam deixar um vaziosobre este assunto. Não tardaram em apresentar-semestres com uma resposta. Provinham do judaísmo esua solução era bem simples e atraente: posto queJesus Cristo provinha do povo judeu, ao aceitá-loentrava-se na órbita da lei judaica. Ali podiamencontrar-se todas as ordenanças cerimoniais ereligiosas necessárias. Ali também se achavam leismorais e civis suficientes para ordenar a vida em suatotalidade. Bastava entrar pela porta de acessoassinalada ao mundo na lei de Moises: O rito dacircuncisão. A fé seria adicionada a este sistema deordenanças como uma peça final que coroa O edifício,como o acorde que completa a partitura. Pelo anunciode Jesus Cristo haviam entrado em contato com a lei enela encontrariam a resposta a suas inquietaçõeséticas e religiosas.

Page 32: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

A reação de Paulo a este programa estoura comuma violência quase descontrolada. Acusa, roga,conjura, maldiz. Nenhuma palavra Ihe parecedemasiado dura para denunciar a enormidade do erro,e mais ainda, da traição em que os gálatas correm operigo de cair. Tudo está em jogo aqui: a fé, oEvangelho, a natureza mesma da comunidade cristã, apessoa de Jesus Cristo. Perder esta batalha era omesmo que perder tudo; seria reduzir a mensagem auma paródia. Aqui está o âmago de todo o assunto. EPaulo entra no conflito a favor do Evangelho e da fédos crentes da Galácia com todas as armas de quedispõe.

O programa que os judaizantes propõem, explicao Apóstolo, a exatamente o inverso do propósito eplano divinos. É tão absurdo como voltar damaturidade a infância, como haver sido alforriado evender-se de novo como escravo, como abandonar aposição de filho na família e ligar-se a condição deservo. A lei, com efeito, rege a infância moral ereligiosa do homem, como a governanta encarregadade acompanhar e vigiar a criança para que não semeta em perigos nem tome caminho errado. Como tal,cumpriu um propósito. Mas agora já alcançamos amaioridade e "já não necessitamos de ama seca"(3.25). Em que consiste, pois, a maturidade da fé? Emsaber-nos filhos de Deus e, portanto, livres, herdeiroslegítimos de tudo quanto Deus criou, em condições dedirigir-nos diretamente a Deus - chamá-lo 'Abba', 'meupai', tal como o chamou Jesus - e em condições desermos guiados direta e quotidianamente pelopropósito ativo e poderoso do Pai ("viver no Espírito").

Page 33: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Como, porém, isso se faz? Não há necessidadede novas leis para saber o que Deus quer? Toda aorientação de que necessitamos, responde Paulo, jáestá dada nessa nova revelação. Porque a única coisaque nos falta para guiar nosso comportamento comrespeito a Deus e aos homens é o amor. O amor não éoutra coisa senão essa nova familiaridade que nos édada em Cristo. Quem nela vive, começa a percebertodas as coisas de uma maneira nova. As velhasdistinções religiosas, sociais, raciais ou legais - judeuou grego, escravo ou livre, homem ou mulher - perdemsignificado porque todos os homens vem a ser umanova família, a dos filhos de Deus. Daí surgirão formasde comportamento, atitudes e disciplinas. Serão,porém, aquelas que o amor constitui para a plenamadureza de todos, para a edificação de uma novacomunidade de homens, não as prescrições nas quaiso indivíduo se encerra e se protege para esconder-sedo próximo e de Deus.

É por isso que Paulo se opõe a regressãojudaizante, que pretende voltar de Cristo para a lei.Pelo contrario, conhecer a Cristo - ou melhor, serconhecido por ele – é deixar para trás a infância éticae religiosa. Por Cristo se ingressa nessa nova maneirade ser homem, a dos filhos de Deus. Esta é arealidade que agora queremos investigar, a base doensino do Novo Testamento.

Duas formas de existência humana

Paulo combateu encarniçadamente uma formacaprichosa e descontrolada de viver, “a vida segundo

Page 34: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

a carne", à qual nos referiremos mais adiante. Nãoobstante, o problema da Galácia se apresenta sobuma modalidade particular de corrupção da existênciahumana: a escravidão à lei. A defesa da vida autênticase identifica, pois, com o ataque contra a vida sob alei.

Que significado e valor tem a lei? O tema foiobjeto de exacerbada polêmica entre teólogos. Emrealidade, o Novo Testamento nos apresenta toda umaserie de afirmações com respeito à lei, difíceis decoordenar em um sistema. Vejamos, entretanto, o queparecem elementos essenciais. É evidente que, paraPaulo, a lei (e por lei ele entende principalmente ocorpo de preceitos rituais e morais do AntigoTestamento, a lei mosaica, mas também às vezesprescrições e máximas do mundo gentio) não é arealidade original mais profunda da vida humana. Nãocorresponde a criação, a saber, ao propósito originalde Deus para o homem. É algo que "interveio" depois(Romanos 5.20), uma medida circunstancial eprovisória. É um longo rodeio, necessário parareincorporar o homem em seu verdadeiro ser depoisde haver ficado fora de centro, deslocado de suarealidade original e autêntica.

Qual e a realidade original e autêntica dohomem? Como se perdeu? Paulo faz referência aoensino judeu corrente, ensino que o cristianismoadotou. A realidade original é dada na criação dohomem a imagem e semelhança de Deus; o desvio e opecado, que entrou "com o primeiro homem" e agorapenetra toda a existência humana. Mas o Apostolo nãoespecula muito sobre a criação, ou o como ou o

Page 35: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

quando do pecado. Não é necessário buscar emalgum passado distante a imagem do homemverdadeiro e autêntico, porque Deus no-la mostroucom clareza meridiana em um homem: Jesus Cristo.Esta é a Humanidade original, a qualidade deexistência para a qual fomos criados. Tampouco aquiexiste abundancia de minúcias. Mas quando Paulo sevê obrigado a chamar os cristãos a essa forma devida, e a orientar-se segundo o "sentimento que houveem Cristo Jesus", ou "para o que vale no terreno deCristo", como alguém traduziu, volta uma vez e outrasobre o conteúdo fundamental dessa vida: aobediência gozosa e espontânea do amor, que seidentifica totalmente com o propósito libertador do Paie, por conseguinte, com a condição necessitada dohomem.

"A forma de ser" de Cristo é definida pelocaminho que o amor traça da glória para ahumilhação; e a disposição de "despojar-se de simesmo" (Filipenses 2), e "fazer-se pobre" (2 Coríntios8), não como um ato de disciplina ascética mas comoum ato de amor. Este caminho de Jesus Cristo àsvezes nos é descrito com relação à vontade do Pai,como uma senda de obediência; outras vezes, comrelação aos homens, como um caminho de serviço.Mas numa forma ou noutra - ambas sãocomplementares - como um ato voluntário. Não é umalei imposta, que força a vontade: é a forma de existir, oser autêntico do Filho. Tanto o quarto evangelho comoos três primeiros corroboram este quadro, ilustrando-ocom as palavras e os atos de Jesus. No quartoevangelho, esta identidade espontânea e total do Filhocom a vontade de amor do Pai aparece explicitamente

Page 36: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

a cada instante: "Minha comida consiste em fazer avontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra"(João 4.34). Os demais evangelhos não o repetem nosmesmos termos, mas o deixam claro, mostrando comoa vida de Jesus Cristo assume e leva a cabo oprograma de libertação, saúde e reconciliação doshomens que Deus prometeu no Antigo Testamento.Esta é a existência humana: a confiada, voluntária,gozosa comunicação e identidade de propósito com oPai, a plena comunicação com os semelhantes, abrir-se a eles em serviço de amor. Para quem vive dessamaneira, "não há lei": não há necessidade de umainstância intermediaria que Ihe diga o que e que Deusquer ou o de que o próximo necessita.

Em outras palavras, a verdadeira existência éaquela na qual um homem, livre e cheio de gozo,sobre barreiras e limitações convencionais, além doque demanda ou exige a lei, inclusive talvez muitoalém do que a lei permite, solidariza-se com anecessidade do próximo e responde a tal necessidade.A conhecidíssima história do Born Samaritano ilustra-ograficamente. Sacerdote e levita passam a um lado doferido no caminho. Não é difícil imaginar os motivoslegais ou rituais que justificam e enquadram seucomportamento. O samaritano não tem obrigaçõesestipuladas; por ser judia, a vítima está fora de suaresponsabilidade. Precisamente por isso, esta vítimase torna a pedra de toque de um verdadeirocomportamento humano. E a conclusão ésurpreendente: "Próximo (do homem caído) e o queteve compaixão dele. Vai e faze tu o mesmo!" (Lucas10.37). Surpreendente porque não aponta para onecessitado como oportunidade de exercer um

Page 37: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

comportamento requerido (a pergunta com a qual o"doutor da lei" havia aberto o dialogo), mas para aativa disposição de solidariedade, de aproximar-se,como a forma de existência humana - de"proximidade" - na qual verdadeiramente se expressao amor a Deus e ao homem.

É precisamente esta comunicação, estaidentidade com a vontade de Deus e a necessidade dooutro, que foi quebrada. E com esta fratura apareceuuma forma falsa, desumana, de viver, a que oApostolo chama "viver na carne". Não se trata tanto deuma serie de ações ou de vícios - embora tenhaformas muito concretas, sobre as quais voltaremos nopróximo capítulo - mas de uma classe de vida,essencialmente negativa; uma vida distante da fé e doamor. "Viver na carne" é ser governado por umavontade que não se confia ao propósito de Deus - poisisso, e não um conjunto de práticas religiosas, é o queo Novo Testamento chama, principalmente, de fé -nem se abre ao próximo. O eu se constitui a parte deum e de outro, em isolamento; o ser se curva sobre sipróprio, encerra-se em seu próprio mundo, busca umasatisfação própria e isolada, uma felicidade, umasegurança, uma plenitude que não dependam, deforma alguma, de Deus nem do próximo. As únicasrelações que admitira são aquelas nas quais não seveja ameaçado em sua total autonomia, isto é, aquelasem que mantenha controle total. Procurara, portanto,fazer do próximo e de Deus objetos subordinados ásua vontade autônoma. Deixada a si mesma, se tiverrédeas soltas, esta existência "na carne" terminara.num isolamento total do homem, no ego-ísmo (eu-ismo) absoluto. E posto que nos achamos entre outros

Page 38: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

homens, com suas próprias demandas e vontades, talexistência desencadearia uma guerra total, adesenfreada vontade de dominação. Este é o suicídioda Humanidade - literalmente o caminho para a mortetotal do homem. Deus, portanto, interpôs a lei. Suavontade de preservar o gênero humano manifestou-senesta instância reguladora da ilimitada auto-afirmaçãodo egoísmo humano. Por isso, a lei deve serconsiderada como um "dom" da misericórdia divina.

Este contraste entre "viver na carne" e "viver noamor" corresponde tão profundamente à realidade daexistência humana que de imediato percebemos seusignificado. A necessidade e urgência de retornar deuma existência falsa, alienada, submetida a demandasexteriores e artificiais e de reencontrar-nos comnosso próprio ser (não porque haja um momento naHistoria ou em nossa vida que possamos recordarcomo autentico, mas porque percebemos que essa énossa verdadeira existência), a necessidade deromper nosso isolamento e achar uma comunicaçãoespontânea e sem barreiras nem inibições com osdemais, deixam-se ver facilmente em alguns dosmovimentos mais significativos de nossos dias. São asdemandas mais evidentes dos movimentos atuais dajuventude, com insistência no amor e naespontaneidade. Equivocar-nos-íamos gravemente seos julgássemos apenas como uma tentativa de darrédeas soltas a luxuria ou a sensualidade. Quem querque tenha tido algum relacionamento com estesgrupos de jovens, dificilmente haja deixado deperceber seu profundo e patético anelo de encontrar-se com o outro, de estar em total espontaneidade comos demais, de manter-se vitalmente ligado e

Page 39: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

incorporado em uma vida comum, de compartilhar semreservas e sem limitação. Dar-se as mãos, sentir-sefisicamente juntos, são tentativas de realizar essaidentidade em amor para a qual fomos criados.Inclusive as formas que consideramos pervertidas defazê-lo (drogas, promiscuidade) atestam a intensidadedo desejo de superar a distância com o mundo, comos demais. Mas essa identidade em amor só sealcança, dir-nos-á Paulo, "em Cristo". Mais adianteteremos oportunidade de analisar mais profundamenteesta expressão. Enquanto isso, é importante ressaltarque, em nossa existência "na carne" (falsa,incomunicada, encerrada em si mesma), da qual nãopodemos sair por nossos próprios esforços, estesintentos de alcançar uma plena autenticidade ecomunicação costumam terminar em novas formas deconflito e dominação. Por isso deve "intervir" a lei. Arespeito disto também devemos voltar mais adiante.

Tampouco é difícil perceber que estas duasformas de existência constituem realidades totais enão simplesmente individuais. O "amor" e a "carne"são, por exemplo, duas maneiras radicalmentedistintas de situar-nos com relação ao mundo: àscoisas, ao trabalho humano e seu produto, asdiferentes formas de comunidade humana, em suma,a tudo quanto está criado. "O sentimento que houveem Cristo Jesus" é um projeto total da históriahumana, uma forma de ser e de relacionar-se de todosos homens e todas as coisas. "A carne" é igualmenteuma realidade global. Na terminologia do NovoTestamento, esta organização total da existência e dahistória humanas sob o signo da "carne" costumachamar-se "o mundo", ou "este século", em sentido

Page 40: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

negativo; a outra, é o Reino, ou "o mundo vindouro", "anova idade".

O mundo,8 o âmbito da "carne", é o modo deexistência caracterizado pela mentira, pelo engano,pelas trevas, pela inimizade e pelos conflitos, pelainjustiça e imoralidade. Em seu domínio o trabalho éescravidão e amargura, o próximo é inimigo, as coisascriadas são objeto de avareza e de abuso, o remorso éestéril, a alegria e a tristeza estão igualmenteenvenenadas - a desesperança e a morte reinamsoberanas. O contraste com o âmbito do Espírito, coma ordenação das coisas que correspondem ao"sentimento que houve em Cristo", é total. Trata-se deum conflito de projeções universais. Teremos queestender estas considerações no último capítulo, masé de fundamental importância que tenhamos presenteao longo de toda a nossa reflexão este caráter total deuma e outra formas de existência. Do contrário,facilmente poderíamos cair numa reduçãoindividualista ou espiritualista, tão alheia aopensamento bíblico quanta a problemática do mundoatual.

Infância e escravidão

Devemos, entretanto, voltar agora à lei que"intervém" quando o pecado desvirtua a existênciaautentica do homem. Que função desempenha? Osreformadores protestantes, sistematizando afirmaçõesdo Novo Testamento, usavam referir-se a três funçõesou "usos" da lei. Sem segui-los exatamente, vamosretomar algumas de suas reflexões.

Page 41: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

1) Tanto Jesus como Paulo e o restante do NovoTestamento reconhecem a lei como um dom de Deusa seu povo. É, portanto, boa; é um sinal da boavontade de Deus para com os homens. Paulo indica,em mais de uma oportunidade (Romanos 2.14-16;1.17 ss.), que inclusive os gentios, que não receberama lei do pacto, não foram deixados sem manifestaçõesda vontade divina, sem uma espécie de lei gravada emsuas consciências. As demandas da lei nos fazemtomar consciência da falsidade de nossa vida, dacontradição entre uma existência em que se obedececom gozo à vontade de Deus e há generosa entregaao serviço do próximo e a vida de indivíduoensimesmado e isolado que realmente vivemos. Comefeito, encerrados em nosso egoísmo, correríamos omais grave dos riscos: prescindirmos de tal modo dasrelações para as quais fomos criados, que nem sequernos perturbássemos ou inquietássemos em nossafalsa e desumana existência. O perigo de tomar porverdade a mentira da vida na carne. A consciênciaficaria, assim, "cauterizada", insensibilizada. Paralivrar-nos dessa derradeira renúncia a uma vidahumana, Deus colocou perante nos exigênciasobjetivas, precisas, que tornam concretas eexemplificam as demandas que Ele mesmo e nossopróximo têm direito a fazer-nos.

A ordem que diz "isto farás" e "isto não farás"nos acusa e nos perturba, pondo ao nu nossa falta deamor. Em sua maneira dura e intolerante nos dizem:"deves-te a Deus" - não farás para ti outros deuses,não inventaras imagens para dominar ao Senhor e suavontade, não te farás dona dos teus dias, nem de tuascolheitas, nem de teus animais: oferendarás para que

Page 42: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

saibas a quem deves amar espontaneamente emtodos os teus dias, com tudo o que fazes e com tudo oque és e possuis, e desse tato te recordes. Em suamaneira dura e intolerante nos dizem: "deves-te aopróximo" - não matarás, não furtarás, não denegrirásnem falsearás a liberdade ou a honra de teu próximo;farás que aquele que assim o fizer sinta em si mesmoa gravidade de sua agressão, darás ouvidos aosreclamos dos que não tem forças para impor-se naluta pela dominação dos demais: os pobres, osestrangeiros, os órfãos, as viúvas; em suma, escutarase responderas as demandas daqueles aos quaisdeverias estar aberto total e espontaneamente docentro mesmo de tua existência.

Somente aquele que não se tenha calejado detodo em sua sensibilidade será capaz de ouvir estasexigências da lei sem sentir-se acusado, sem percebera distorção de seu comportamento e, finalmente, adistorção de seu sentido humano. Jesus aguça aindamais o fio da lei desviando a atenção das demandasobjetivas e formais – que alguém poderia pretenderhaver observado - para a intenção mais profunda dalei. "Não matar" representa, objetivamente e de formaextrema, a exigência de não interpor entre mim e meupróximo nada que nos distancie ("encolerizar-seinsensatamente com o próximo"). "Não cometeradultério" é a prova externa da atitude que respeitacabalmente a relação única e total de amor entre umhomem e uma mulher. "Não jurar em vão" é umarecordação formal de que a palavra só há de serutilizada como sinal de comunicação genuína,respaldada por tudo quanto sou e tenho. Buscando,assim, sua intenção mais profunda, os mandamentos

Page 43: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

nos tornam conscientes de nosso pecado e daimpotência de nosso ser alienado para alcançar aforma de vida que realmente nos cabe. Assim, Luteropôde falar com razão da lei como de uma maça quedestroça a falsa segurança e suficiência que temos.

2) No Antigo Testamento, entretanto, a lei temoutra função, desta vez positiva, que não estádesvinculada da anterior. Em hebraico a lei se chamatorah, uma palavra que não se refere primeiramente auma série de preceitos, mas a um corpo de instruçãocom respeito ao lugar que cabe ao homem no mundode Deus, com relação a Deus e a seu próximo. Não sedeve entender a Torah tanto como um códigosancionado pela autoridade competente a fim dedefinir as figuras jurídicas - indicar em que consiste ecomo se configura um delito, ou um direito, ou umaobrigação - ou proferir julgamentos legais (ainda quetambém tenha essa função), mas como um livro deinstruções, um guia para orientar-se no caminho.Tanto é assim que o termo hãlãkhãh, sob o qual seinclui a totalidade do corpo de leis e comentários,significa literalmente "andar" ou "caminhar". "Para ojudeu devoto", comenta um autor, "a hãlãkhãh é umcaminho real para andar sobre ele, a senda do rei,preparada e sinalizada." Deus não quis deixar seupovo entregue a suas próprias forças para a vidahumana. Em sua misericórdia, proporciona-Iheordenanças, orientações, sinais de sua vontade. Quemas seguir não perderá a boa rota. Assim a lei, longe deser a exigência draconiana de um amo tirânico, é adireção bondosa de um pai de amor. Daí que o judeupiedoso cante agradecido a beleza da lei que Deus Ihedeu (Salmos 19, 119 etc.).

Page 44: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

3) Estes usos positivos da lei não devem,portanto, fazer-nos perder de vista seu caráter limitadoe provisório. Paulo sublinha o fato apontando quecorrespondem a "infância" do homem em relação àmaturidade para a qual Deus se propõe conduzi-lo. Devarias perspectivas podemos ver este caráterprovisório e imperfeito. Como método de ensino, e aforma em que certas dimensões básicas da vontadede Deus são gravadas na mente e no coração dopovo. Com efeito, é dessa forma que incorporamos asnoções morais que estruturam nossa consciência. Orespeito pelos demais, o cuidado do próprio corpo, ouse dos objetos, tudo isso se grava na criançamediante simples hábitos e proibições: "não te sirvasantes que os outros, lava as mãos antes das refeições,aproveita a folha toda de papel antes de apanharoutra". Entretanto, o pai inteligente não se conformarácom isso, e aproveitara toda oportunidade que tenhapara oferecer as explicações que permitam a criançarelacionar tal ou qual "ordenança" particular com umtipo mais geral de comportamento e, finalmente, comuma maneira de entender toda a vida. A lei, comométodo pedagógico, aponta, pois, para uma realidademais profunda: há uma forma de vida, uma Lei maisfundamental, que todas estas ordenanças preparam eilustram. Entender a lei e ir penetrando dasordenanças para sua raiz e descobrir essa forma decomportamento. Por isso diz Jesus que toda a lei e osprofetas se resumem em um só preceito duplo: amar aDeus e ao próximo. Quando se percebe a relaçãoentre essa intenção profunda da lei e seus enunciadosparticulares, então se alcança a capacidade de "criar"as leis, isto é, de estender a intenção da lei a áreas esituações novas. Por isso dizia Agostinho: "Ama e faze

Page 45: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

o que quiseres."9 E Lutero dizia que se estivéssemosna órbita do Espírito, poderíamos ditar leis comoMoisés. Mais adiante teremos de perguntar-nos demaneira mais concreta acerca desta relação e seusignificado concreto e prático.

Há um aspecto mais da provisoriedade da lei. Arelação que supõe com Deus e com o próximo é, emalgum sentido, indireta: não percebemos diretamente àvontade de Deus para a situação em que nosencontramos; só vemos uma demanda, uma exigênciafria, que "alguém" transmite da parte de Deus (Moisés,o sacerdote, o profeta) e que "abrange" "meu caso".Esta não é, não obstante, nem a primeira nem a últimapalavra. Que não é a primeira, já o vimos. Que não é aúltima, vislumbram-no os profetas quando anunciam oadvento de uma nova era, na qual não mais serãonecessários os mestres, porque todo o povoconhecera diretamente a Deus, uma era em que a lei"estará gravada no coração", em que o Espírito guiaratodo o povo de Deus, inclusive crianças e jovens.

4) Enquanto educadora, indicadora da intençãodivina ou preparo de uma relação mais imediata, a leianuncia sua própria interinidade, reclama suasubstituição, aponta para seu fim. Pretender perpetua-Ia é querer eternizar-se na infância, recusar aresponsabilidade e liberdade da madureza. Quando talocorre, a lei deixou de ser um instrumento da graça deDeus, um guia no caminho da vida verdadeira, e setransformou em instrumento de escravidão, em umadas modalidades da "vida na carne", em síntese, éempregando a dura expressão paulina, em "maldição".Segundo os evangelhos, esta foi à luta que Jesus

Page 46: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

sustentou com os fariseus. Poucos grupos religiososmostraram jamais uma vontade mais plena deobediência à direção divina do que os fariseus; seupropósito era modelar inteiramente sua vida e a vidade seu povo segundo a vontade de Deus. Essavontade se havia manifestado na lei; por conseguinte,a vida do fariseu era uma constante meditação -prática tanto quanto teórica, uma meditaçãoverdadeiramente comprometida - sobre a lei. Haviam,de tal modo, identificado Deus com a lei que quando oSenhor levou esta a seu cumprimento, e com Jesus oscolocou ante o reino que a lei preparava, foramincapazes de ver a realidade. Temiam arriscar a"segurança" que a lei Ihes dava (a segurança de nãocorrer o risco de interpretar mal à vontade de Deus)para lançar-se ao encontro do Reino que Jesusanunciava. Daí nascia sua desumanidade, seuegoísmo, seu formalismo e, sobretudo, o orgulho e aauto-suficiência de sentir-se a coberto da justiça divinaporque cumpriam as demandas da lei.10

Em essência, é a mesma luta de Paulo. A leichegou a ser uma maldição. Também esta afirmativase pode ver de vários pontos de vista. Em primeirolugar, a pessoa aferrada à lei perde a capacidade derelacionar-se de forma imediata e dinâmica com osdemais. Não vê a relação com Deus ou com o próximosenão em termos de deveres e direitos, através dasclausulas de uma espécie de contrato,impessoalmente. A relação se transforma em um tipode tabela de "cumprido" e "não cumprido", que faztanto do sujeito como de Deus e do próximo merosobjetos. Aos poucos a pessoa se desumanizainteiramente. É isto, certamente, que Jesus mostra na

Page 47: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

parábola do Born Samaritano – eis um homem que vêa seu próximo sem indagar-se se a lei o define comopróximo ou não. Por contraste, e também o ensino dabreve alusão sobre o irmão mais velho do filho pródigo- a relação pessoal que teve de superar oestranhamento cede seu lugar a um juízo baseado nomerecimento (Lucas 15.25-32). É o mesmo fato queinforma a polemica de Jesus sobre curar em dia desábado.

A lei chega a ser uma maldição, em segundolugar, porque leva a vida do homem a atomização. Apouco e pouco o homem deixa de ver seucomportamento como a realização de um propósitounificado, como uma missão, para dividi-Ia em atosisolados, cada um deles medido separadamente emface de uma prescrição ou lei. Esse mesmo fato obrigao legalista a buscar instruções precisas epormenorizadas para cada ato, a multiplicar einterpretar as leis (todos temos ouvido falar dascentenas de preceitos que um fariseu devia memorizarpara não pecar). A casuística católica, cujo valordestacaremos em outro contexto, exemplifica amesma tendência: é preciso ter uma prescrição atépara o mais ínfimo pormenor (quebrei o jejum setraguei um mosquito com o copo de água que me élícito beber?). Esta minuciosidade e a conseqüenteescrupulosidade (terei cumprido tudo? terei aprescrição precisa? qual será a autoridade maiscompetente para determinar a autêntica interpretaçãoda lei?) alienam o homem. Por um lado, impedem-node assumir a responsabilidade de sua própria vidamoral: limita-se a cumprir, como o empregado quemarca o ponto em um escritório, mas não toma

Page 48: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

decisão alguma, e isso equivale a renunciar a serhomem. Por outro lado, perde de vista a intenção maisprofunda e humana da lei. E, curiosamente, chega anegar e repudiar essa intenção no cumprimento daminúcia legal. "Dão o dízimo da hortelã, do endro e docominho, mas se esquecem das coisas mais básicasda lei “. diz Jesus (Mateus 23.23).

O aspecto recentemente mencionado dolegalismo conduz a um mal mais profundo. Uma vezque a demanda de Deus foi despersonalizada em leise estas multiplicadas em prescrições minuciosas,ocorrem duas coisas muito graves com as ações dohomem. Por um lado, ficam separadas do que asrealiza: não o expressam, não respondem a suaintenção, sua vontade responsável, não constituemuma projeção de sua pessoa; são atos exteriores aele, prescritos de fora, espécie de objetos queacumula sem nenhum desenho próprio. Sua vidamoral é como metal derretido despejado em moldespara construir peças cuja forma, propósito e uso nadatêm a ver com ele. Na forma extrema desta alienaçãodo comportamento se acha a aberração condenadanos julgamentos de Nurembergue dos criminosos deguerra: "Eu não sou responsável; apenas cumpriaordens."

Por outro lado, o legalista pode pretender que,ao cumprir escrupulosamente as minúcias legais,alcançou um comportamento adequado, imaculado,que se justifica a si próprio. Reserva para si o centrode seu ser e apresenta diante de Deus e do próximouma folha de deveres cumpridos. Em realidade, Deuse o próximo só Ihe interessam como testemunhas de

Page 49: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

sua retidão legal e como dispensadores dasrecompensas que essa retidão merece. O objeto desua ação é ele próprio. Por isso, o fariseu da parábolade Jesus "orava consigo mesmo", simplesmentetomando a Deus por testemunha ("Tu sabes. . .") deum comportamento irrepreensível do qual já estaseguro. Ocorreu o mais grave: a lei permaneceu aserviço de uma vida vivida “na carne", isto é, noensimesmamento e na incomunicação, a expensas deDeus e do próximo. E o homem se acha satisfeitonela. É isto que Paulo combate como a falsasegurança ou a vanglória. Aqui o propósito benfeitorda lei foi totalmente desvirtuado: nem prepara amaturidade, nem abre o homem para Deus e opróximo, nem o inquieta em seu pecado. Pelocontrario, transformou-se na fortaleza dentro da qual ohomem se protege de Deus e do próximo e prolongasua falsa existência. A tal ponto chega, que quandoconfrontado pela mensagem de Jesus Cristo que ochama para a verdadeira vida, mais se entrincheira emsua fortaleza (falsa segurança, a ilusão de que sejustifica pelo que faz) e assim "se perde", continua ocaminho de sua total desintegração e decomposiçãocomo homem. Esta é a verdadeira maldição. Comolivrar dela ao homem?

Os reformadores protestantes do século XVIretomaram a luta paulina em seu combate contra osistema hierárquico-sacramental do catolicismo de suaépoca, que diluía a relação com Deus e com o próximoem uma série de obrigações religiosas ou prestaçõeseclesiásticas que permitiam ao homem "justificar-se"em si e por si, sem um encontro real com Deus e comos demais. É mais importante, porém, para nossa

Page 50: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

reflexão atual dar-nos conta de até que ponto asacusações de Jesus e de Paulo "aos que confiam nalei" se assemelham as que, de diferentes ângulos, sedirigem hoje aos cristãos em geral. O homem denosso século vê na religião um sistema de crenças epráticas que permitem ao devoto afastar-se dosverdadeiros problemas de seu próximo paraconcentrar-se em "suas coisas". Com razão ou semela certamente sem razão para nós - vê em Deus umalei a mais, uma fabricação humana que colocamosentre nós e os demais homens. Pretendemos com issoque nos temos "justificado" porque "cumprimos" comesse deus que fizemos para nós; nossa religião é afortaleza na qual nos refugiamos para proteger-nosdos riscos do amor, da verdadeira identificação com osdemais homens.11

Nosso comportamento como cristãos se mostra,amiúde, ridículo, pequeno e sem alma. "E vocês, que éque proíbem?" perguntaram ao pastor de umadenominação evangélica que se propunha iniciar umtrabalho de evangelização em um pequeno povoadoprovinciano onde já existiam outros gruposevangélicos. Esse era o característico que mais haviachamado a atenção: um evangélico era alguémsubmetido a uma tabela de proibições.

Não se trata, entretanto, principalmente destaenfermidade que nos importuna, de maneira tão grave.Nem se trata, tampouco - o que já é bastante grave -da auto-suficiência, da pose de superioridade ejulgamento que, amiúde, atrás de uma falsa humildadenós, os cristãos, adotamos. É que, em realidade,dominados pelo sistema de prescrições e

Page 51: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Interpretações que nos temos dado, somos incapazesde ver as coisas como são. Particularmente, sópercebemos o homem em termos de um esquema.Desintegramo-lo em uma série de "condições", paracontrolar se as cumpre ou não; crê isto? faz aquilo?aceita aqueloutro? Assim, o que existe de maisprofundo e real no homem, suas esperanças e suasangustias, seu verdadeiro desvalimento e seuverdadeiro projeto humano, escapa-nos inteiramentequando não se encaixa nos moldes preestabelecidos.E por isso somos incapazes de perceberconcretamente a problemática atual, pois persistimosem reduzi-Ia a nossas categorias. Daí o incurávelconservadorismo de muitos cristãos, sua reaçãonegativa ante o novo, sua rigidez e sua inumanidade.

Não se trata, neste ponto, de aceitar ou derepudiar, nem sequer de aprofundar a analise destascríticas. Em momento oportuno teremos de examinarmais de perto alguns de seus aspectos. Agora sódesejo chamar a atenção para a semelhança entrecomo "nos vêem os demais", a nós cristãos, e comose descreve no Novo Testamento "a vida na carne".Esta aparente coincidência nos obriga a tomar a sério,como se dirigida a nós outros, a grave pergunta dePaulo aos gálatas (3.3): "Começaram vocês noEspírito para pretender agora alcançar a perfeiçãomediante a carne?"

O verdadeiro homem

"Mas agora chegou o tempo da fé"12, diz Pauloaos gálatas. A infância passou, a maldição é

Page 52: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

eliminada; uma nova realidade se fez presente, "a féem Cristo". Nossa familiaridade com a terminologiacristã e nossa prisão a certas interpretações dessaterminologia podem, facilmente, fazer-nos perder osentido mais profundo e dinâmico da afirmaçãopaulina. Para Paulo, com efeito, "a fé", segundoemprega o termo nesta e noutras passagens, não eprincipalmente uma atitude nova proposta aoshomens, nem um novo jogo de crenças e menosainda, por certo, uma nova série de instruções eobservâncias religiosas. A fé é uma nova realidadeque irrompeu em nosso mundo, uma nova situaçãona qual fomos colocados, um novo poder que deixaver em sua atuação uma nova forma de existênciaque nos e acessível.

O Novo Testamento contém muito poucaespeculação em torno desta nova realidade. Não euma teoria ou um sistema de pensamento que seoferece a consideração e analise. Isto vemposteriormente. É uma realidade, e como tal, trata-sede assinalar sua presença, de um lado, e, de outro,reconhecê-la e adequar-se a ela. Para assinalar suapresença, o Novo Testamento utiliza uma série deanalogias ou símiles que nos permitem identificar essarealidade: é "uma nova criação", "uma ressurreição","um novo nascimento", a "adoção" (uma nova relaçãocom Deus). Vejamos rapidamente algunscaracterísticos desta realidade.

1) A nova vida que supera a infância da lei e oensimesmamento da carne não consiste em algumoutro princípio ou prática religiosos que o homempoderia adotar; em realidade, não é uma possibilidadeao alcance do homem, uma forma de viver que alguém

Page 53: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

haja descoberto ou cultivado. Só esta presente "nopoder do Espírito" isto é, como algo que é dado, queDeus criou. Como no nascimento, como em umaressurreição, como em uma adoção, como na criação,o novo não é a mera continuação ou perfeição doexistente: intervém um até independente, soberano,impossível para o que o recebe. Deste caráter da novavida só podemos falar em imagens, dizendo que "vemdo alto", que "irrompe" ou "invade" nosso mundo, quenos é "dado". É importante lembrar que são imagens,porque a nova vida não é uma coisa que sejatransmitida, dada ou situada em determinado lugar.Tampouco significa que o homem aceda a esta novaforma de existência de maneira passiva; pelocontrario, a convidado a uma resposta ativa que oenvolve inteiramente. O importante é lembrar queestas imagens, com todas as suas limitações,assinalam algo fundamental: a fé não a um novorecurso "da carne", um novo esforço, talvez o maisextraordinário, de nossa existência ensimesmada: aum ato de Deus.

2) Não obstante, neste até de Deus participa e étransformada toda a realidade, não como mero objeto,mas ao ser ativamente incorporada em uma novarelação, em uma situação nova. O Novo Testamentofaz esta afirmativa, em primeiro lugar, em relação coma existência humana. Neste sentido, a fé constitui umamudança total de orientação, de direção, como oindica a palavra "conversão", que não representa meramudança interior, a aceitação de uma nova religião,mas uma reorientação total. O Novo Testamento a elase refere como "uma transformação do entendimento",isto é, da compreensão, dos critérios de julgamento,

Page 54: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

da razão pela qual nos situamos com respeito a nósmesmos e ao mundo. A mudança atinge, pois, ocentro de nossa autodeterminação, que agora seidentifica com "a vontade generosa, completa epositiva de Deus" (Romanos 12.1-2). Mas também seemprega toda uma série de termos e imagens: "umcaminho", "uma nova conversação", que assinalam oâmbito de ação e das relações como radicalmentetransformados na existência da fé. A vida, aenfermidade, o sexo, a riqueza, o trabalho, a vocação,a família, tudo é abrangido e re-situado nesta novaesfera, não só subjetivamente - porque penso e sintode uma nova maneira - mas também objetivamente,porque entram no campo dinâmico da soberania deCristo.

3) Todavia, a novidade não se refere ao homemcomo indivíduo isolado, nem sequer a Humanidadeseparada do restante do universo, mas a totalidade doque foi criado. Este fato, cujas conseqüências teremosde avaliar mais adiante, é da maior importância. Jávimos (pág. 57) que "a carne" como falsa forma deexistência humana corresponde "este século" comototalidade de mundo e História arrancados de seusentido original. Igualmente (Romanos 8.18-25), a vidana fé situa-se em um novo projeto total, a novacriação, que arranca de sua vacuidade, de suaescravidão, a tudo quanta foi criado e o coloca emharmonia com a nova vida humana, a dos filhos deDeus. Paulo o enuncia de modo geral no textoindicado. Ilustra-o, ademais, em relação com certasestruturas particulares da vida histórica: as relaçõeshumanas (pais e filhos, senhores e servos, homem emulher), a relação do novo homem com as coisas (1

Page 55: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Coríntios 7.29-31; Romanos 14.6-9) e - por mais difícilque nos seja entendê-lo e interpretá-lo - a relação dohomem com as forças que regulam o cosmos (Efésios3.9-11; Filipenses 2.5-11 etc.). Todas estas relaçõesmudaram de sinal; correspondem agora a liberdade dofilho de Deus, ao livre exercício de sua novahumanidade. Assim se restitui aqui não só a imagemoriginal do homem (o ser que Deus criou) mas tambéma figura original do mundo - a criação que Deus fez.13

4) "A fé" significa ao mesmo tempo um atohumano de reconhecimento e de abertura a essa novarealidade. Como tal, a o único acesso possível àHumanidade recriada, à nova criatura. Esta, comefeito, como se destaca em 1 Coríntios 1.18 ss., não éa ordem de coisas que possa provar-se racionalmente("sabedoria") ou comprovar-se visivelmente ("sinais")antes há de ser crido; isto é, que se deve depositarconfiança ("fé") no anúncio ("a palavra") dessa novarealidade.

Em termos dos assuntos que estamosconsiderando, é importante recordar três coisas comrespeito a fé. Em primeiro lugar, que não é um atoindividual isolado: a fé é a forma comum de vida de umgrupo de homens, de uma comunhão ou comunidade(koinonia no original), que abrange todos os aspectosda vida (veja-se Atos 2.42-47). Ingressar pela fé nanova Humanidade que nos é dada é incorporar-nos aessa comunidade, vir a ser "um corpo", ao qualousadamente o Novo Testamento chama "o corpo deCristo".

Em segundo lugar, a fé é um acontecimento que

Page 56: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

não pode ser descrito total e isoladamente como umato de Deus, do qual o homem seria somente receptorou objeto, ou como um ato humano, dirigido a Deuscomo objeto desse ato. Supera tal distinção porque éum ato comum, um ato de relação. Em realidade,inclusive na experiência humana conhecemos algodessa classe de acontecimentos. Na relação entre umlíder e seus seguidores ou no amor entre um homem euma mulher, ou na amizade, não podemos dizer queum seja ativo e o outro passivo, mas, sim, que arelação se forma em um ato que cada um dosparticipantes reconhece como próprio, espontâneo,livre, cheio de gozo e ao mesmo tempo como um dom,imerecido, gratuito. Por isso é tão difícil explicaraqueles que não compartilham essa relação "por que"e "como" entramos nela. E, não obstante, sãoprecisamente .essas relações que maisprofundamente constituem nossa vida. Em um sentidoúnico, é a esta ordem de fatos que pertence a fé.

Por fim, e precisamente por causa desse caráterde relação comunitária, interpessoal, a fé quebra aordem da lei. Quando, na comunidade dos crentes, ohomem chega a dizer a Deus "meu pai" (Abba),constituiu-se uma realidade superior à lei,independente dela, um acesso direto a Deus, nãocondicionado por demandas gerais e impessoais. Nomesmo ato, a incorporação à Humanidade da féestabelece uma relação com o próximo direta eimediata - "meu irmão" - na qual sua presença não temde ser imposta por alguma exigência formal. Por isso afé é "o fim da lei" como forma de encontro com Deus ecom os homens.

Page 57: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Quem é o novo homem?

Vimos falando da nova criação, da novaHumanidade, do homem ressuscitado e renascido, donovo homem. Inevitavelmente, em especial porquepartimos da pergunta "que fazer?", não podemosdeixar de interrogar-nos: quem é esse novo homem?Onde se encontra? Como vê-Io atuar concretamente?A resposta a tais perguntas é um dos problemas maisdifíceis do pensamento cristão. De certo. modo, seránosso tema até ao final desta obra. É necessário,porém, fazer desde já algumas observações.

O Novo Testamento nos dá, de forma unânime ecategórica, a primeira e fundamental resposta apergunta que acabamos de formular: o novo homem éJesus Cristo. Quer assinalado como "o que havia devir", "o Filho de Deus", "o Filho de Davi", "oprimogênito da criação", "o 'novo' ou o 'segundo'Adão", ou de muitas outras maneiras, a referência é amesma: aqui está o homem que Deus deu aoshomens, a verdadeira Humanidade, a imagem deDeus, o homem que Deus criou. Como disseUnamuno:

Tú eres el Hombre, la Razón, la. Norma,tu cruz es nuestra vara, la medida deldolor que sublima, y es la escuadra denuestra derechura...

Tu és o Homem, a Razão, a Norma, / lua cruz é nossa vara,

a medida / da dor que sublima, e é o esquadro / de nossadireitura.. .

Page 58: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Dificilmente se poderia exagerar a importânciadesta afirmação bíblica. O que está em jogo aqui é ocentro mesmo do Evangelho. Deus não "exigiu" daHumanidade que chegasse a ser autêntica, que serenovasse: tal coisa teria sido uma nova lei e nos teriaenvolto ainda mais no circulo do ensimesmamento.Deus "nos dá" a verdadeira Humanidade, o novohomem. Sobre este eixo gira toda a ética evangélica: avida nova, a vida boa, a vida autêntica não é umaexigência - é um dom. Jesus Cristo é o novo homem.Este é o ponto de partida. Tampouco, porém, o NovoTestamento vacila em aplicar aos cristãos, e emalguma medida a toda a Humanidade, em relação comJesus Cristo, estas qualificações de ressuscitado,nova criatura, filhos de Deus e outras semelhantes. Éindispensável, portanto, que pensemos no novohomem que é Jesus Cristo em relação conosco e comtodos os homens.

1) Jesus Cristo é o novo homem como modelo.Em breve teremos oportunidade de voltar à idéia daimitação de Jesus Cristo. Mas recordaremos que aafirmação de Jesus Cristo como "tipo", "modelo","padrão" de verdadeira Humanidade é comum a todo oNovo Testamento. Jesus mesmo convidafreqüentemente a "fazer como ele", a "ser como ele", asegui-lo. Além disso, quando nos lembramos de que oAntigo Testamento descreve a vontade de Deus paraa vida do homem - inclusive sua lei - como um"caminho" que o homem e o povo de Deus devem"percorrer", dar-nos-emos conta da importância do fatoque os evangelistas narrem toda a vida de Jesus comoum caminho - o caminho para a cruz e a ressurreição.E o quarto evangelho recorda a expressão do próprio

Page 59: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Jesus: "Eu sou o caminho." Em Cristo se concretizou ese fez visível a vontade de Deus. Paulo convida oscristãos de Filipos a ter "o sentimento que houve emCristo". Colossenses e Efésios apresentam JesusCristo como o "arquétipo", o original de toda aHumanidade, e Hebreus como o modelo da fé, daobediência e da paciência. Cada vez, que o NovoTestamento se defronta com uma situação quedemanda uma resposta difícil, total, crítica, custosa,volve os olhos e a encontra em Jesus Cristo.Particularmente, e através de todas as circunstâncias,encontra-a na filialidade obediente, a coincidênciavoluntária, cheia de gozo, do Filho com a vontade doPai, ainda - e precisamente - quando esta significahumilhação, sofrimento e morte.

2) Modelo não significa simplesmente um quadroque temos de contemplar e imitar, algo exterior a nós.Com referência a Jesus Cristo, significa alguém emquem podemos ver-nos tal como fomos criados, comoDeus nos quer, como Ele prometeu e ofereceu fazer-nos. Jesus Cristo é o retrato de nossa origem e denosso futuro. Na "fé", isto é, na prazerosa e confiadaabertura ao que ele é, identificamo-nos com esseretrato, somos "nele". É nesse sentido que devemosfalar da nova humanidade de Jesus comorepresentativa e não somente exemplar. O termopossui várias acepções: meu representante é aquele aquem confio gestões que, por incapacidade, porinabilidade ou por imaturidade - no caso de menores -não posso realizar. O Novo Testamento conhece, porcerto, este ofício de Jesus Cristo: há uma presençalivre e espontânea diante de Deus que cabe aohomem; ha uma abertura total ao próximo e

Page 60: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

comunicação com ele, que é essencial ao humano.Estas são as coisas que não posso exemplificar:minha humanidade quebrada e ensimesmada não estáà altura de tudo isto. Nosso representante o faz pornós, em nosso lugar. Em seus milagres, em suascuras de misericórdia, em seu ensino, em suafidelidade inquebrantável aos pobres e desprezados,sobretudo em sua entrega na cruz e em seu triunfosobre a morte, faz o que o verdadeiro homem devefazer - fá-lo em representação dos homens, como seudefensor e advogado. Representados por ele,"estamos completos", fizemos o que era precise fazer.Veremos que isto é de importância decisiva para aética.

3) Mas a representação tampouco é externa ouarbitrária. Jesus ocupa nosso lugar, faz por nós o quenos cabe fazer aos homens a fim de que cheguemos afazê-lo por nossa vez. Sua representação não noselimina, antes preanuncia e prepara nossa própriahumanidade nova. Em certo sentido também a figurado líder nos ajuda a compreender. O seguidor senteque a ação que seu líder realiza é sua própria, que oincorpora a ele. E por sua vez o convida e Ihe fazpossível somar-se, participar no que ele faz, atrever-sea fazer "com ele" e "por ele" o que por si mesmojamais se haveria atrevido a fazer. Forma com ele umcorpo, no qual é movido a uma ação que é suaprópria, não, porém, isoladamente. Ou poderíamospensar na indicação pedagógica com respeito aeducação de crianças retardadas ou problemáticas: énecessário que se encontrem em um meio no qualsejam aceitas como são e que ao mesmo tempo Ihesexija constantemente mais do que são. Aceitos,

Page 61: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

desaparece a ansiedade e o temor; exigidos poraqueles com os quais se sentem "em si", identificam-se com a exigência, aceitam-na como uma descriçãode si mesmos e vão assumindo-a em seucomportamento. Ou poderíamos ver o processo peloqual um nenezinho, colocado com outras crianças desua idade em um lar que não é o seu, vai"'mimeticamente" somando-se a modalidade familiar,interiorizando a vida desse lar ata ser, realmente,espiritual e não só legalmente, "filho" e "irmão".

Todas estas imagens e comparações nosajudam a entender a natureza de nossa relaçãocomum (na comunidade de fé) com nosso "modelo" e"representante", uma relação de incorporação ativa aoque ele é, à sua humanidade nova e autêntica. Falhamas comparações enquanto sugerem uma espécie de"paternalismo" divino: Jesus não é, com efeito, alguémque nos seja alheio - ele a nosso irmão e servo; suagenealogia esta entretecida com a nossa. Nenhumacomparação poderia servir-nos porque todas sãocriadas a partir de nossa situação isolada e falseada enão podem, por isso, fazer justiça à relação única eoriginal que nos une a Jesus Cristo. O NovoTestamento o aponta quando nos ensina que oEspírito Santo, Deus operando pessoalmente em edesde o mais íntimo de nossa própria pessoa, nacomunhão da Igreja, é que nos vai "conformando" -modelando-nos segundo a maneira de ser – a JesusCristo, reproduzindo em nós a índole de vida, a atitudedeterminante, o "sentimento" que houve em Jesus.Nesse processo aparece nossa verdadeirahumanidade, o homem novo em nós.14

Page 62: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

4) Mas, sou eu esse de quem vimos falando?Qualquer cristão que, com mediana sinceridade, julgueseu comportamento diário ou se mire em suasmotivações e seus pensamentos, verificara que estadescrição do "novo homem" dificilmente se aplica aele. Um dos cristãos mais autênticos e ao mesmotempo mais profundos que viveram em nossa época, oalemão Dietrich Bonhoeffer, assassinado por suaoposição a Hitler, escreve no cárcere as seguinteslinhas:

Quem sou? Amiúde me dizemque saí do confinamento de minha cela tranqüilo,alegre, firmemente,como um senhor sai de sua casa de campo.Quem sou? Amiúde me dizemque costumava falar a meus guardiães confiada,livre e claramente,como se eu desse as ordens.Quem sou? Também me dizemque suportei os dias de infortúnioorgulhosa, amavelmente, sorrindo,como quem está habituado a triunfar.

Sou, em verdade, tudo o que os demais dizemdemim?Ou sou apenas o que sei de mim mesmo?Inquieto, e ansioso, e enfermo, como uma aveengaiolada,lutando por respirar, como se me afogasse,sedento de cores, flores, vozes de pássaros,faminto de palavras bondosas, de amabilidade,com a expectação de grandes feitos,tremendo impotente pela sorte de amigos

Page 63: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

distantes,cansado e vazio de orar, de pensar, de fazer,exausto e disposto a dizer adeus a tudo.

Quem sou? este ou o outro?um agora e outro depois?ou ambos ao mesmo tempo? hipócrita ante osdemaise ante mim mesmo um débil acabado?ou há dentro de mim algo como um exércitoderrotadoque foge em desordem da vitória já alcançada?

Quem sou? Zombam de mim estas minhasperguntas solitárias;seja quem for, Tu o sabes, ó Deus, sou teu!

As pretensões de haver superado estaangustiosa tensão sempre conduziram a lamentáveisconseqüências para o próprio cristão e para seutestemunho. Segundo a Bíblia, o maior perigo aameaçar o crente é, precisamente, pensar que é"própria" a justiça e santidade que só tem "em Cristo".A história da Igreja - e certamente nossa própriaexperiência - mostra com clareza o que ocorre quandouma pessoa ou um grupo pretende que chegou a ser,em seu próprio comportamento, homem novo,espiritual" aperfeiçoado ou santificado. "Pode ser queo fosse", comentava um excelente cristão sobredeterminada pessoa, parente sua, "mas era muitodifícil viver com ela." É o que se refletia na oração deuma menininha: "Senhor, faze que os maus se tornembons, e que os bons se tornem simpáticos."

A rigidez, a falta de misericórdia, a inumanidadedos pretensos "espirituais" é um tema constante da

Page 64: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

novela e do cinema que se ocupam do homemreligioso, e uma impressão muito generalizada entre opovo acerca dos cristãos: gente talvez muito boa, masdifícil de suportar. Trata-se, precisamente, dareprodução nos cristãos do que Jesus Cristo combateuna piedade legal do judaísmo fariseu de seus dias.Com as necessárias modificações, é a mesmadesumanidade que encontramos no idealista ou norevolucionário que identificaram "sua justiça" com a de"sua causa" e reclamam para si a perfeição, ainfalibilidade, o respeito e a honra que em suaconvicção - sua causa merece.

Sou eu esse novo homem de quem vimosfalando? O Novo Testamento responde, em primeirolugar: "Sim, em fé, em esperança." Posso identificar-me com esse novo homem na certeza de que o poderdo Espírito Santo que opera em mim há de acabar aobra que começou (Filipenses 1.6-12) "até o dia deJesus Cristo". Por conseguinte, devo dizer também,com o Novo Testamento, "sou esse novo homem emconflito, em luta, em constante agonia". É isso quePaulo descreve com respeito a si próprio no famosocapítulo sete da epistola aos Romanos: "Há uma leiem meus membros que batalha contra a lei de meuespírito" - minha humanidade deformada versus anova ordem de vida que me é dada em Cristo - "e mefaz prisioneiro da ordem do pecado e da morte." Paraexclamar em seguida: "Infeliz de mim, quem me livraradeste corpo morto que levo comigo?" - uma vida que'já terminou', a vida do escravo, da lei, de minhavontade ensimesmada, mas que me continuapesando, misturando-se em tudo quanto penso, faço esou. A exclamação se desliza de imediato: "Graças a

Page 65: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Deus que nos dá a vitória por Jesus Cristo!"Estaríamos profundamente enganados seconsiderássemos este conflito como um breve relatoque ocorre "uma vez"; o que se descreve destamaneira é o caminho diário do cristão. Isso nãoimpede que algum momento, algum episódio da luta,tenha sido para alguns especialmente significativo,exemplar, decisivo e que voltem a ele em sua memóriapara adquirir confiança na luta quotidiana. Contudo,arrisca de maneira grave sua fé e sua vida cristã quemfaça repousar sua segurança num episódio tal. Corre,com efeito, o perigo de crer-se definitivamentevencedor quando, em realidade, foi derrotado.

Paulo assinala o batismo como o "modelo" noqual podemos contemplar e o "selo" no qual podemosconfirmar este conflito sempre renovado mas semprevitorioso em Cristo que é o caminho do novo homem.No batismo "morremos" para a forma ensimesmada deexistência (o velho homem) e somos ressuscitadospara a existência do homem livre em Cristo. O batismoa especialmente significativo porque nos introduz naesfera de Cristo, nessa nova realidade concreta quefoi ele mesmo (a "seu batismo"). Mas ao mesmotempo a algo que nos ocorre, que tem um lugardefinido em nossa vida. E, final mente, é significativoporque devemos voltar repetidamente a ele - todanossa vida é isso: que nossa existência falsa sejaconstantemente enterrada e constantementeassumamos nossa posição na vida do novo homem.Por isso dizia Lutero que a vida do cristão é umconstante arrependimento. E Paulo convida os cristãosa "fazer morrer" constantemente a velha forma deviver e "revestir-se" constantemente do "novo homem".

Page 66: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

A própria linguagem nos mostra outra vez que esta é aíndole de acontecimento ao mesmo tempo maisprofundamente nosso - e portanto somos convidados,exortados, incitados, ordenados a fazê-lo - e maisprofundamente divino e portanto se nos promete, senos oferece, se nos assegura. Assim é, em definitivo,como transcorre a vida cristã. Novamente, a figura deum caminho, de andar, que retorna constantemente naBíblia, a que de melhor forma descreve nossasituação. Um caminho da vida velha para a nova, doensimesmamento para o amor, da escravidão para aadoção como filhos, da infância para a maturidade, dovelho homem para o novo homem. Um caminhointerior de constante reconversão, mas também umcaminho visível, ativo no comportamento que luta porconformar-se ao sentimento de Jesus Cristo. E umcaminho que conduz ao dia - o dia da manifestaçãofinal de Jesus Cristo - "em que seremos como eleporque o veremos tal qual ele é".

A pergunta, "que fazer?" nos conduz, portanto,inevitavelmente a outra, mais profunda, "quem sou?"que procuramos responder em termos da mensagembíblica. Por sua vez, agora, temos de voltar a fazer-nos a pergunta: que classe de ação cabe a este novohomem? Como se define e se caracterizaconcretamente seu comportamento? que fazer emCristo?

Page 67: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

3. Ama e faze o que quiseres

O ANÚNCIO de um novo homem, “a nova criatura emCristo", é a primeira e fundamental resposta da fécristã ao problema ético. Não é, porém, toda aresposta. Já o vemos pela pergunta com a qual nosdefrontamos no final do capítulo anterior: onde estáesse novo homem? A essa pergunta devíamosresponder que, no que tange a nossa existência atual,o "novo homem" é só parcial e imperfeitamente visível.O problema não reside apenas nas inconseqüênciasque o mundo aponta diariamente no comportamentodos cristãos - não há crime ou falha, pequeno ougrande, que os cristãos não hajam cometido. Trata-se,sobretudo no que se refere a nosso tema, da aparenteimpossibilidade de coincidirem os cristãos no que demaneira concreta significa o comportamento dessenovo homem nas mil decisões com as quais a vida osconfronta.

Houve cristãos nazistas e antinazistas; há ossocialistas e capitalistas; uns rejeitam e outros aceitamo divórcio; estes renunciam a todo uso da força,aqueles acreditam que é necessária; uns se sentemconvocados por sua fé à participação ativa nasociedade, outros recusam, em nome da mesma fé,toda relação prescindível além do limite dacomunidade cristã. O comportamento do "novohomem" não parece, portanto, suficientementedeterminado.

Basta, porém, que o cristão olhe honestamentedentro de si mesmo para que perceba, em suas

Page 68: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

próprias dúvidas e vacilações, marchas econtramarchas, decisões que a seguir reconhececomo equivocadas e outras que não se atreve a tomar,sua necessidade de uma direção ética concreta. Nãohá pastor ou sacerdote que não se tenha defrontadorepetidamente com a pergunta de um crente perplexo:que devo fazer? E dificilmente haja algum que não setenha sentido ele mesmo perplexo ante muitas dessasperguntas. Na longa e árdua caminhada do cristãopara a nova vida, não pode ele prescindir de umaorientação para as decisões concretas, algum tipo de"lei" que o guie.

É significativo que o próprio Paulo, que repudiavigorosamente todo legatismo, que chega a falar da"maldição da lei", faz a si mesmo a pergunta: "Então,por meio da fé anulamos a lei?", e responde demaneira enfática: "Nem pensá-lo! Pelo contrário, aconfirmamos" (Romanos 3.31). Na epístola aosCoríntios (1 Cor. 9.20-21) ele o explica em termosmais pessoais. Ele não está, afirma, sujeito à lei comocaminho de salvação. Significa isso que vive "fora dalei", de maneira desordenada e irresponsável? Demaneira alguma, responde, pois está submisso "à leide Cristo". A expressão pode ser curiosa. Paulo aemprega em outra ocasião, precisamente na epístolaaos Gálatas, onde com maior veemência combate àsalvação pela lei. O cristão é livre. Nada, nemninguém, deve privá-lo dessa liberdade. Mas deimediato há de perguntar-se: para que a liberdade? EPaulo responde de forma inequívoca: não foramlibertados simplesmente para fazer o que possaagradar ao egoísmo irresponsável e individualista decada um ("a carne") mas para colocar-se uns ao

Page 69: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

serviço dos outros em amor". Este, o exercício livre doamor serviçal, é o conteúdo verdadeiro da lei de Deus.E isto, realizado nas circunstâncias concretas da vidada comunidade cristã, é "a lei de Cristo".

Esta concentração de todo o significado positivoda lei no mandamento do amor percorre todo o NovoTestamento. Voltaremos a este ponto mais adiante.Mas convém, desde já, recordar a precisa formulaçãopaulina: "o amor é o cumprimento da lei" (Romanos13.8, 10). O resumo da lei dada a Israel, a vida e osensinos de Jesus, o convite à imitação do Senhor, a leide Cristo, a perfeita lei de liberdade ou a vida noEspírito, tudo isso coincide e converge neste foco: oamor. Esta é a lei que orienta a marcha do cristão. Onovo homem é o homem que ama, que foi libertadopara uma existência criadora a serviço dos demais.Não é arbitrário nem disparatado o modo pelo qualAgostinho resume o mandamento de Cristo: "Ama efaze o que quiseres."

Erich Fromm, um dos psicólogos que maisprofundamente têm analisado nos últimos anos aformação da personalidade, corrobora de seu ângulode observação esta primazia do amor - embora seufundamento e desenvolvimento não sejam os mesmosdos cristãos. Os tipos de caracteres se distinguempara ele em "improdutivos" e "produtivos". A segundaorientação na qual, segundo o autor, o homem serealiza plenamente, "a meta do desenvolvimentohumano", consiste na "capacidade do homem paraempregar suas forças e realizar suas potencialidadescongênitas", isto é, ser plenamente ele mesmo natotalidade de seu ser e sua experiência. O significativo

Page 70: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

é que, ao procurar precisar a direção de uma autênticaprodutividade, ele o faz empregando a noção de "amorprodutivo". Este vem a ser, portanto, o modo deexistência do verdadeiro homem. A ética humanista deFromm assume, de sua perspectiva, o projeto deexistência humana da ética crista.15

O mesmo autor chama simultaneamente aatenção para o uso "ambíguo e desconcertante" aoqual se submete a palavra "amor". O adjetivo"produtivo" com o qual o qualifica procura dissipar algodesta ambigüidade. Todavia, além de uma questão determos, é necessária - e Fromm o intenta - umaanálise do significado e exercício do amor para dar aeste a dimensão distintiva e evitar a confusão comqualquer forma de sentimentalismo, simpatia naturalou regra filantrópica geral que se auto-intitule "amor".Para a ética cristã, precisamente porque concede aoamor uma prioridade tão absoluta, torna-se tanto maisnecessário esforçar-se por precisar seu conteúdo. Quesignifica amar "em Cristo"?

Os paradigmas do amor

Não é exato, como às vezes se afirma, que oAntigo Testamento desconheça ou relegue o amor emsua concepção de Deus ou do homem. É certo que omandamento de amor ao próximo se limita mormenteà comunidade de Israel. Mas ressalta principalmentenela os pobres, os fracos, os órfãos, o estrangeiro quemora em Israel, isto é, os que estão maisdesprotegidos, inclusive o inimigo em situação denecessidade. A obediência à lei de Deus se verifica na

Page 71: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

disposição de amar concreta e eficazmente aquelesque nada podem oferecer em recompensa. Amoreficaz, se bem que nasce "no coração" (para o hebreu,centro da personalidade e não sede do merosentimento), há de expressar-se em fatos concretos. Oamor é, pois, já para o Antigo Testamento, umaqualidade de existência pessoal, intencional e ativa,livre - no sentido de não depender da atitude "dooutro" -, destinada a criação e sustento de umacomunhão e solidariedade interpessoal e fundada nopróprio amor de Deus a seu povo.16

Nem o Antigo nem o Novo Testamentoselaboram uma teoria acerca do amor. Deus e oshomens atuam, e na trama dessa atuação vemos aoperação do amor e do egoísmo, da soberba ou dadevoção, do bem e do mal. Particularmente, quando aNovo Testamento quer indicar a nascente família cristãa qualidade da nova vida, a vida em amor, para a qualo Evangelho abre as portas, emprega uma série deindicações a que chamaremos "paradigmas". Umparadigma é um "caso exemplar" (por exemplo, daconjugação de um verbo), que nos ensina comoresolver outros "casos", não por simples imitação, nempor aplicação mecânica do modelo, mas porque oparadigma nos mostra a estrutura, a forma de compor-se, em um caso específico mas exemplar, da mesmarealidade com a qual nos encontramos em outroscasos. Assim o Novo Testamento nos diz, tomandoalguns "paradigmas": isto é amor - vai e vive-o em tuavida.

1) O primeiro é fundamental paradigma é JesusCristo mesmo. Nele o próprio amor - o amor criador eredentor de Deus – se fez realidade concreta e visível.

Page 72: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Andar em amor e seguir a Jesus Cristo é, pois, amesma coisa. O evangelho e as epístolas de João odestacam com ênfase especial. Jesus lava os pés deseus discípulos e depois explica: "Tenho-Ihes dado oexemplo, para que façam o mesmo que fiz comvocês." O Senhor se fez servidor a fim de limpar epurificar a vida dos homens. Aqui é ondecompreendemos o que é o amor, a total entrega de si;"por isso nós também devemos entregar nossa vidapor nossos irmãos", conclui o autor. Paulo convidarepetidamente os cristãos a ser "imitadores de Cristo"(ou imitadores dele, como por sua vez o é de Cristo).Ante problemas conjugais dos crentes, diante decríticas exercidas contra o próprio Paulo, em conflitossurgidos nas congregações, para estimular umaoferenda em favor dos pobres de Jerusalém, oApostolo volta uma vez e outra ao convite: procedercomo Cristo.

Que é o que cabe "imitar"? De mui diversasmaneiras - segundo as circunstâncias - Paulo retornasobre o mesmo tema: Cristo se humilhou(empobreceu-se, despojou-se do que Ihe pertencia,concordou no sofrimento) para compartilhar acondição humana humilhada, a fim de abrir aoshomens as portas de uma nova vida. A descida doFilho de Deus a condição humana (a encarnação) esua voluntária entrega na cruz constituem o paradigmaque se oferece à Igreja. A epistola aos Hebreussalienta igualmente a "paciência" - a saber, ainsubornável e persistente fidelidade a sua missãomesmo através do sofrimento de Jesus como"arquétipo" do verdadeiro crente.17

Page 73: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Este primeiro paradigma nos aponta a direção doamor: o próximo. Assim o amor se define, em primeirolugar, como a inquebrantável disposição de acudir aoserviço do "outro", sem perguntar quem é nem se temculpa, mas apenas considerando sua necessidade.Para sermos mais precisos, não se trata simplesmentede oferecer um serviço ou uma ajuda, mas da entregade si mesmo, de uma total solidariedade que nãocalcula o custo. Não obstante, essa entrega não é umacarga pesada, uma nova obrigação legal, mas umaoferenda voluntária, cheia de gozo, nascida em ummovimento livre e interior da vontade que leva a tomara condição do outro como própria, a adentrar-se nela ea buscar, com o outro, a saída da dificuldade em que oser amado se havia metido. Amar é tomar a forma deser e de operar que Jesus Cristo exibiu. A vida do queama esta totalmente determinada pela necessidade dopróximo.

2) "O amor", diz o Novo Testamento, "é ocumprimento da lei." A frase tem duas conseqüências.De um lado nos diz que o propósito de Deus ao dar alei é orientar seu povo no exercício do cuidado,respeito e serviço do próximo. De outro lado, aponta-nos mui concretamente os aspectos da vida nos quaisDeus reclama que se exercite o amor. A lei é um mapapara orientar-nos no exercício dessa entrega semreservas ao próximo, que é o amor. Impede que nosesquivemos aos aspectos concretos e quotidianosdesse exercício. Tomemos, por exemplo, osmandamentos - resumo da lei. A quem pergunte ondese deve exercitar o amor, responde-se-Ihe apontandomui precisamente a família: ("Honrarás a teu pai... "),no casamento ("Não cometeras adultério"), na ordem

Page 74: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

econômica ("Não furtaras"), na relação pessoal ejurídica com a comunidade ("Não matarás", "Nãolevantarás falso testemunho"). E tudo isto se achavinculado ao próprio ordenamento da conduta emrelação a Deus e seu culto (a primeira parte dosmandamentos). A abundante legislação que vem aseguir toma mui claro que não sobra nenhum aspectoda vida humana (pessoal, social, institucional, jurídico,econômico, político) que possa ser excluído daexigência da vontade de Deus. A lei nos aponta ocaráter total do exercício do amor.

A lei nos diz, além do mais, que esse amploverbo "amar" se faz visível em uma série de verbosconcretos: honrar, respeitar, pagar, fazer justiça,proteger, restituir, libertar, trabalhar e descansar.Embora nenhuma destas coisas em si mesma garantaque uma ação seja verdadeiro amor, um amor quepretendesse desvincular-se destas ações não seria oque a Bíblia ensina. O amor é ativo.

Todas estas esferas em que a lei nos convida aatuar não foram determinadas arbitrariamente: são asdiferentes dimensões da vida humana, tal como Deusa criou. Correspondem ao que nós, seres humanos,somos pessoal e comunitariamente. Porque o autor dalei não é um déspota arbitrário que ordena às cegas,mas o próprio Autor da vida, que conhece a estruturamais íntima de nossa existência e quis, em seu amor,dar-nos indicações para que nós, os homens,possamos enriquecer e preservar a vida humana. Issoé a lei. Nela encontramos um conjunto de estruturasde relação: o âmbito das relações entre o homem e amulher (o casamento e a família), o da relaçãoeconômica, o da lei e a autoridade (o âmbito político).

Page 75: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Em todos eles a lei procura assegurar que serespeitem os direitos dos mais fracos, que se construaa saúde moral e material da comunidade, que sehonrem os pactos e as obrigações que dãoestabilidade à vida humana, que se controle, modere ecastigue a manifestação desenfreada do egoísmocontra o próximo, a comunidade e inclusive o inimigo.

A aguda polêmica de Jesus e Paulo contra atergiversação da lei não desvirtua seu uso legítimo.Vimos que Paulo se opõe à pretensão de achar na leium caminho de salvação: fazer um deus do meio dadopor Deus para conduzir a uma relação mais pessoal,mais livre e direta com Ele. Jesus combateparticularmente o legalismo, que tergiversa overdadeiro propósito da lei - o serviço de amor aopróximo. Negam a lei os que sa amparam nela parajustificar-se diante de Deus - o fariseu que "oraconsigo mesmo" felicitando-se por seu bomcumprimento das minúcias da lei. Negam a lei os quea reduzem a um sem-número de pormenores que Ihespermitem fugir as demandas maiores e fundamentais(o que se apóia em uma pequena oferenda ritual paranão cumprir com a responsabilidade de sustentar aseu pai, Marcos 7.11). Negam a lei, finalmente, os queantepõem demandas formais à necessidade concretado próximo (por observar formalmente o dia derepouso se negam a curar alguém nesse dia). o queocorre nesses casos é que se desvirtua a vontade deDeus e se faz mau uso do "itinerário do amor aopróximo" que é a lei. Por isso tudo o Novo Testamentorepete a chave que Jesus deu para interpretar o usoda lei: o amor a Deus e ao próximo. Quando e ondeaplicar esse amor? A lei descortina a paisagem da

Page 76: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

vida humana e mostra os pontos em que o Criador nosconvida a exercer o amor.

3) Tanto Paulo como o restante das epístolas doNovo Testamento referem-se muitas vezes a"mandamentos do Senhor" ou "palavras do Senhor".Trata-se de ensinos ministrados por Jesus, que aIgreja Primitiva entesourou, rememorando-os aoenfrentar determinados problemas ou decisões éticas.o evangelho de Mateus se ocupou, particularmente,em reunir esses ensinos em conjuntos relacionadoscom certos assuntos. É evidente que Jesus -ensinouacerca do casamento, das riquezas, das práticasreligiosas e de outros temas diversos. Trata-se,aparentemente, de ensinos ocasionais, em resposta aincidentes ou perguntas concretas. A Igreja não fezdelas uma nova legislação, mas as entesourou comovaliosas indicações do que significa a nova vida.

Não podemos deter-nos agora na apresentaçãodestes paradigmas, para analisar em pormenor oconteúdo ético dos ensinos de Jesus.18 Cabe,entretanto, fazer algumas observações que nosajudem a entender seu caráter paradigmal. Emprimeiro lugar, notamos que, quando Jesus comentaas indicações da lei de Deus, ele se esforça porsalientar sua relação com o mandamento do amor aDeus e ao próximo. Por isso estende e amplia asdemandas da lei, reinterpretando-as para sublinhar eradicar sua intenção fundamental. Assim, a razão deser do dia de repouso esta vinculada ao bem dohomem. Por isso se cumpre de melhor forma essaordenança fazendo bem ao homem - curando-o, porexemplo - no dia de repouso. O propósito do

Page 77: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

mandamento do amor ao compatriota é estender aosdemais homens o cuidado e a proteção gratuitos emisericordiosos que Deus dá a todos os homens; porconseguinte, esse amor deve ser oferecido a todos -inclusive ao inimigo. O divórcio é um recurso denecessidade ("pela dureza do coração"), adotado paraproteger a vida social da comunidade. O propósitooriginal de Deus se cumpre mais plenamente noexercício não-quebrantado do amor conjugal. Porconseguinte, a "verdadeira lei" é essa unidade total("uma carne") e o fato de quebrantá-la lesa a todosquantos entram na relação (o "adultério" afeta aohomem e a mulher que o cometem e a quem entra emuma relação com eles depois).

Estaríamos equivocados - penso – se crêssemosque Jesus faz "mais severa" a lei, como se fossesimplesmente um rabino mais rigoroso do que orestante. O que faz é restituir à lei seu caráter de"ilustração" e mostrar como o propósito da lei secumpre quando a proteção, a integridade, a fidelidadenos compromissos e relações, que a lei pede emsuma, o amor concreto que aponta são levadas àtotalidade dos atos e das intenções, quando toda avida do homem e da comunidade são penetradas peloamor.

Este caráter totalizante da demanda do amor éoutro característico fundamental do ensino de Jesus.ilustram-no as parábolas: o estrangeiro detestado(judeu e samaritano), o pobre sem recursos (Lazaro),o filho libertino, a mulher adultera - os casos típicosdaquele que não "merece", daquele que não conta, doexcluído -, estes constituem a pedra de toque de uma

Page 78: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

verdadeira compreensão do mandamento do amor. Eo Sermão do Monte o expressa em uma fraseenigmática: "Sejam, portanto, perfeitos como seu Paique está nos céus é perfeito", que à luz dos exemplosque a precedem (Deus faz chover sobre bons e maus;o sol sai para justos e injustos) e da versão de Lucas("Sejam, pois, misericordiosos. . .") só se podetraduzir: "Sejam, portanto, sem discriminação algumano amor, como o é seu Pai. . . "

Um último traço provém das formulações querecordamos no parágrafo anterior. Em todos estescasos, o convite para amar enraíza-se no caráter doamor de Deus. O discípulo é convidado a entrar naforma de ser, de atuar, de relacionar-se com oshomens, que Deus mesmo prática - e quem melhor doque Aquele que a deu sabe para que serve a lei?Ingressar nessa forma de vida já que o amor regulatoda a vida e se transforma no clima da existência dodiscípulo - é colocar-se na esfera do propósito e daação de Deus para com todos os homens. Estepropósito e ação, que a lei ilustra e que Jesus Cristoensina, vive e faz real entre os homens, é "o Reino deDeus". Jesus vê, pois, o amor como a qualidade devida do Reino, cujo cumprimento teve inicio com suaprópria vinda e cuja plenitude há de sobrevir conformecorresponda aos planos de Deus. Esta é a classe devida verdadeira - a original, a autentica, a definitiva. Odiscípulo nela ingressa ao escutar o chamado deJesus. No próximo capitulo teremos de investigaralguns aspectos deste ensino central de Cristo; oimportante, agora, é perceber que Jesus não seconforma com convidar-nos para atos individuais eisolados de amor, mas a ingressar em uma realidade

Page 79: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

global e totalizante: o Reino de Deus.

4) Finalmente, notamos em muitas passagens doNovo Testamento listas de "deveres", "obrigações" ou"virtudes" que se ordenam ou encarecem aoscrentes.19 Paulo enumera em várias ocasiões àsvirtudes que correspondem à vida do cristão (Clamor,alegria, paciência, amabilidade, bondade etc.). Outraspassagens instruem nas relações mais comuns:pais/filhos, esposo/esposa, senhor/escravo. Osestudos do Novo Testamento têm demonstrado queestas exortações são paralelas a listas e instruçõescorrentes na época, inspiradas na filosofia estóica. Éclaro, portanto, que o Novo Testamento utiliza, parailustrar a vida crista, os conceitos de virtude, de ordem,de subordinação, em suma, a trama de relações eregulamentações sociais aceitas como positivas nacultura do momento. O crente não é chamado pararetirar-se a uma ilha onde domine outra ordem e outracultura, mas para participar na trama de relações eexigências de seu meio.

O Novo Testamento encontra nas normas eformas da cultura uma linguagem adequada paraexpressar a natureza do amor que em Jesus Cristo ocristão aprendeu e recebeu - o novo homem podeviver nesse clima. Todavia, é ao mesmo tempointeressante notar como se sublinham, modificam oumotivam as virtudes e ordenanças que se adotam domeio ambiente. O primeiro é a raiz, ou a motivação,que enquadra estes ensinos. As virtudes são “frutos doEspírito". São o resultado de haver-se "revestido" danova classe de vida que se oferece em Cristo. São orepúdio da existência centrada em si mesma (a

Page 80: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

"carne") que o cristão enterrou e deixou para trás. Asvelhas relações devem agora ser assumidas "noSenhor" - no âmbito de existência que a relação comJesus Cristo abre aos homens. Em suma: como omostra Jesus com a lei, não se trata simplesmente deadotar regras e cultivar virtudes; trata-se de integrar asrelações e exigências da vida ética, da cultura na qualo individuo se encontra, com essa nova qualidade deser do crente a nova criatura em Cristo.

Por isso obriga de imediato a corrigir os acentose inclusive os conteúdos das relações e exigências dasociedade. É significativo, por exemplo, que enquantoas instruções estóicas se dirigiam somente ao"superior" na relação - esposo, pai, senhor - as doNovo Testamento se dirigem também ao"subordinado". Para a sociedade pagã, o subordinadonão era sujeito de decisão mas apenas objeto da açãodo superior; por conseguinte, não ha apelo moraldirigido ao inferior. Mas a nova criatura em Cristo - eem sua maioria os crentes pertenciam aos “inferiores"não pode ser um mero objeto; deve decidir e assumirsua relação, coloca-Ia sob a soberania do Senhor eexerce-Ia livremente, em amor. É mais, porém: o NovoTestamento não tenta modificar a estrutura dasociedade (voltaremos a este ponto no próximocapítulo), mas o que acabamos de assinalar temconseqüências inevitáveis para a sociedade. Asinstruções a subordinação e a obediência adquiremum matiz inesperado quando se diz que se trata da"mutua subordinação", de uma reciprocidade nasrelações. Quebra-se a verticalidade da ordem social, apirâmide de dignidades. Porque, embora persistamrelações de mando e obediência e o cristão entre

Page 81: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

conscientemente nelas, em Cristo, essas ralaçõesforam relativizadas, porque nele "não há homem nemmulher, cidadão ou estrangeiro, escravo ou livre, masa nova criatura". Assim como o "inferior" é convidado aassumir consciente e livremente sua posição nasociedade em amor, o "superior" é exortado no Senhora considerar-se não só como subordinante mastambém como subordinado em uma mesma relação.

Amar não é, portanto, para o Novo Testamento,uma vaga ou piedosa exortação a uma geral bonomiaou a um sentimentalismo inoperante. Sua concreçãoesta indicada em uma serie de paradigmas: amar éviver na direção ao próximo pagando o preçocorrespondente pela identificação total e semreticências com sua necessidade. Amar é submeter-seao propósito criador de Deus manifesto nas diferentesordens da vida humana - é servir ao próximo demaneira concreta na família, na ordem econômica, naordem política. Amar é impregnar a totalidade dasrelações com a totalidade dos homens da disposiçãoconcreta ao serviço e entrega que Deus manifesta.Amar é ingressar nas ralações e exigências éticas dacultura na qual nos encontramos com a livredeterminação do novo homem em Cristo e repensar ereviver essas relações e exigências na forma nova quecorresponde a esse novo homem. A constantereconsideração da vida de Jesus Cristo, de seuensino, da lei dada por Deus a Israel, das instruçõesdo Novo Testamento nos permite manter presente ocaráter concreto do mandamento do amor que é, aomesmo tempo, o conteúdo ético da nova vida emCristo.

Page 82: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Mas como decidir em concreto?

Quem busque em toda esta análise umaresposta simples e direta à pergunta "que devo fazer?"não poderá deixar de sentir-se um tanto perplexo.Fala-se de uma nova vida, de liberdade para servir emamor. E quando buscamos direções mais precisas,apontam-nos uma serie de "ilustrações" mas sob aexpressa advertência de que nenhuma delas nos"assegura" a decisão correta. A mais simples reflexãonos mostrara, não obstante, que não poderia ser deoutra maneira. Quem peça outra coisa demonstraranão haver entendido o centro mesmo da mensagembíblica. Com efeito, pedir instruções pormenorizadaspara cada caso é pretender que Deus nos entregueum manual a fim de que possamos dirigir-nos semnecessidade de consultá-lo pessoalmente, nemconsultar a nosso próximo, nem de por em jogo nossaliberdade e responsabilidade pessoal. E isto seria,precisamente, a negação mais direta e absoluta doque significa ser discípulo de Cristo. Tal procedimentoteria propósito se o Evangelho fosse simplesmente umcódigo ético, se Jesus fosse um legislador falecido, sea cristão fosse um caminhante solitário. Não é assim,porém. Quando se defronta com sua decisão ética edeve resolver qual o comportamento concreto doamor, o cristão está sob a direção do Senhor, presentena comunhão dos discípulos, no caminho do Reino. Énessa relação dinâmica, nesse vértice vivo, onde seconjugam as indicações do passado, o movimento daHistória que o Senhor dirige e a presença viva deJesus Cristo em seu Espírito e seu povo, que seoferece a possibilidade e a liberdade de atuar. O NovoTestamento assinala de várias maneiras este caráter

Page 83: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

dinâmico da decisão cristã.

1) Entre as diferenças que o Novo Testamentointroduz nas exortações estóicas que mencionamos éde notar que, enquanto estas se formulam no singular,ao indivíduo isolado, o Novo Testamento as expressano plural, às pessoas como parte da comunidade. "EmCristo" significa, precisamente, também "na relaçãocomum dos que foram incorporados à nova vida". Anova criatura, da qual temos falado, não é o indivíduoisolado, mas a comunidade reconciliada e reunidanesta "nova forma de ser homem" inaugurada emJesus e aberta pela fé. Isto é, a vida moral do cristãose plasma na comunhão dos crentes.

A epístola aos Coríntios emprega uma imagemconhecida e significativa para ressaltar este contextocomunitário da vida ética. O cristão é uma pessoaintegrada em uma unidade que o inclui, Ihe dá sentidoe função e o vincula indissoluvelmente a uma ação eexistência total: é membro de um corpo. Sua ação seacha determinada pelo lugar especial que nele ocupa.A pergunta: que devo fazer? só pode ser respondidaquando ampliada: que me cabe fazer, dado o lugarque ocupo na comunidade de Cristo, para o melhorfuncionamento e serviço da totalidade? Para apreciaros alcances desta afirmação devemos lembrar-nos deque a comunidade cristã primitiva não era, comomuitas das nossas, uma mera "sociedade religiosa",ou uma congregação que se reúne para o culto, masuma comunidade de vida, que abrangia aspectoseconômicos, familiares, culturais, tanto como de cultoe ensino religioso - e que não separavam uns deoutros, como bem se depreende das exortaçõesapostólicas.20

Page 84: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

O cristão não é "um número solto", uma espéciede franco-atirador de Deus, que tem de abrir seupróprio caminho, apoiado em sua consciência pessoalsoberana. É membro de uma comunidade,comprometido com os outros em uma existência emissão comuns que Ihe assinalam o caminho. Suasdecisões têm como limite as decisões da comunidade.Por isso, os autores do Novo Testamento falam,amiúde, dos problemas éticos em forma descritiva: éassim que se comportam os crentes, este é ocomportamento que cabe a comunidade de Cristo,este é "o Caminho". Não se trata de leis dirigidas àconsciência individual isolada - é a afirmação do que acomunhão dos crentes reconhece como sua forma deviver. E o cristão individual é convidado a andar poresse caminho e moldar seu comportamento de formaconseqüente.

Esta concepção comunitária da decisão éticaencontra profunda expressão em textos como Efésios3, que colocam a vida moral no quadro da totalidadeda obra e propósito de Deus. Há uma "economia"divina, uma "administração" da História pela qual Deusconduz a totalidade dos homens e das coisas a umaplena realização. Em Jesus Cristo é dado ver o sentidodesse propósito - uma plena reconciliação, reunião,incorporação comum em um corpo dos que estavamseparados por inimizades e divisões. Em um casoconcreto - o da separação entre Judeus e pagãos -essa reconciliação se faz visível já na Igreja; a parededivisória foi derrubada, há um só corpo composto porambos. Quem compreende o sentido destareconciliação foi iniciado no mistério que explica todo osentido do Universo. E este mistério é o amor de

Page 85: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Cristo. Ali está a verdade total e definitiva. Conhecê-laem sua manifestação concreta nesta reconciliação quese opera na comunidade da fé é entrar em seu campode ação, é integrar-se em sua operação. Por issoexiste agora uma forma de comportar-se "digna dochamado" - compatível, adequada à natureza dessaverdade. E dali brota à exortação à humildade, àamabilidade, à paciência e à consideração mútua, àunidade - as formas concretas em que a comunidadevive o mistério da reconciliação. E quando cada umassume, nesse ambiente, as tarefas quecorrespondem à sua localização particular (o dom queDeus Ihe concedeu), caminha no caminho da"maturidade", a saber, a qualidade de amor serviçalque Cristo trouxe e mostrou ao mundo. Nem oconceito de virtude, nem o de maturidade, nem o devocação constituem assunto individual; estas trêsdimensões da existência moral têm sua situação nacomunidade, que por sua vez se arraiga no propósitototal e unificador de Deus para com todos oshomens.21

2) Já as últimas frases mostram que, aosubordinar a decisão ética à comunidade, o NovoTestamento nos está propondo um mero controlesocial. Não é, simplesmente, questão de "direçãocoletiva" versus "decisão individual". O significado dacomunidade reside no fato que Jesus Cristo estápresente nela, constituindo-a, guiando-a, dotando-adas capacidades e funções necessárias aodesempenho de sua tarefa. O cristão conta, para suadecisão moral, com a direção do Espírito Santo, isto é,a presença ativa e dinâmica do próprio Senhor Jesus.Essa direção não está separada dos critérios que

Page 86: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

apontamos na primeira parte do capítulo. O Espíritoguia o crente mediante o exemplo e os ensinos deJesus, mediante a lei, mediante as relações eexigências da sociedade que o rodeia. Fá-lo nadinâmica das opiniões e tensões da comunidade daIgreja. Contudo, sua presença infunde dinamismo àinterpretação destes paradigmas: possibilita estender,relacionar, ampliar, na direção concreta, na direçãoque nos apontam. O Espírito nos ensina a "conjugar"os paradigmas do amor e chegar a uma decisãoprópria, adequada a situação. Em outros termos, oEspírito permite à Igreja - e ao cristão nela - "discernir"o que cabe fazer.22

Esta possibilidade e obrigação - a do"discernimento" - é muito importante para a éticacristã. Permite a Paulo, por exemplo, oferecerorientação concreta nos problemas conjugais quesurgem em Corinto, confiado em que "não Ihe falta oEspírito do Senhor" nas conclusões a que chega. OEspírito permite à Igreja "sintonizar" com os propósitosde Deus e assim notar qual o curso de ação que ébom, adequado, cabal. O amor é iluminado por essapresença de Jesus Cristo, para saber distinguir entrediferentes possibilidades aquela que convém.

Esta é dada a toda a comunidade cristã, e aocristão pessoalmente nela. Por isso não exclui queDeus haja dotado alguns com uma especialsensibilidade para perceber "à vontade de Deus", ocurso de comportamento que corresponde aoEvangelho. O Novo Testamento nos mostra os"profetas" exercendo esta função. Sua palavra não éabsoluta - não podem exercer uma tirania sobre a

Page 87: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Igreja: por isso sua direção deve ser avaliada pelacomunidade inteira.23 Mas isso não tira a importânciade sua função; A história da Igreja - e certamentetambém nossa experiência atual - nos mostra queDeus não deixou de dar a seu povo pessoas comcapacidade especial de "discernimento" ético. Aoposição à escravatura, a criação de hospitais eescolas públicos, bem como outras iniciativas éticas,começaram com o discernimento de algum ou algunscristãos. infelizmente, a comunidade tardou muito emprestar atenção a essa orientação do Espírito. E emnão poucos casos Ihe voltou e ainda Ihe volta ascostas, preferindo "permanecer na carne" (seguir avelha via do homem que é impulsionado por seucapricho egoísta) a "caminhar no Espírito".

3) A direção do Espírito, que capacita acomunidade para discernir a vontade concreta deDeus não é desconexa nem caprichosa. Responde,como o temos assinalado repetidas vezes, a umpropósito total de Deus, a criação de uma novacondição de existência, de novas relações, de umanova realidade - o que a Bíblia chama de Reino deDeus. Vimos que esta afirmação é central no ensinode Jesus. O exercício do amor se inscreve nestepropósito: é bom o que corresponde ao Reino; mau, oque se opõe a ele. Amar é buscar, desejar, fazer come para os homens o que o Reino significa para eles.Porque, no Reino, todos os homens, com todas assuas relações e condições, encontram a plenarealização de si mesmos. Para abarcar toda adimensão da mensagem ética do Novo Testamentoteremos, pois, que deter-nos nesse propósito total eúltimo de Deus. A isso dedicaremos o próximo

Page 88: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

capítulo.

Antes de concluir este capítulo devemos fazerdois breves comentários que ajudem a clarear o quedissemos. Em primeiro lugar, poderíamos perguntar-nos como difere esta "ética do amor" de outras que,sobre bases distintas, nos são oferecidas. Podemosperguntar-nos, em especial e para tomar um exemplo,em relação com a idéia do "amor produtivo" queFromm, como vimos, apresenta como a categoria éticafundamental. Não podemos deixar de notar, comalegria, a grande coincidência que apresentam.Quando Fromm oferece o amor como a resposta aoproblema da tensão entre comunhão e "separatismo"da existência humana, quando distingue o amorprodutivo do sentimentalismo e o vincula a umexercício ativo da vontade, quando assinala a relaçãodo amor com as estruturas e modos de ser dasociedade, quando reclama a concentração, adisciplina e a paciência como indispensáveis à práticado amor, quando analisa o amor em termos decuidado, responsabilidade, respeito e conhecimento,quando nos previne contra as receitas preparadas, omínimo que podemos e agradecer as insubstituíveiscontribuições que, a partir de um profundoconhecimento da dinâmica da existência humana, oautor faz para o entendimento desta dimensãoconstitutiva do homem. O cristão, cheio de gozo,aprenderá que tudo isto tem que ensiná-lo. Acoincidência com a mensagem cristã não assustará aquem perceba, de um lado, o profundo conhecimentoda Bíblia que Fromm evidencia e, de outro, apenetração da dinâmica da personalidade humana quea investigação psicológica tornou possível. O

Page 89: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

desmascaramento das deformações que desintegrama existência humana atesta, negativamente, afrustração de uma existência descentrada - umaexistência que não corresponde ao sentido inerente àvida humana.

Não é possível ocultar, ao mesmo tempo, umaacentuada discrepância que, se não competeaprofundar aqui, convém, pelo menos, levar emconsideração. O próprio Fromm a sublinha: ainterpretação crista do amor, para ele, está viciadapelo repúdio do "amor de si mesmo" ou "amor próprio",corrente em muitos teólogos cristãos. Podemosaceitar, por certo, a distinção que Fromm estabeleceentre "egoísmo" - uma desmedida e exclusivaconcentração do homem sobre si mesmo e seusdeuses - e um amor de si mesmo que signifique oapreço de sua própria existência, o desejo defortalecê-la e levá-la a sua plena realização em umavinculação sadia com os demais. Mas discrepamosquando o autor considera que este amor de si mesmoé a base do amor produtivo para com os demais: paraFromm, a pessoa humana se constitui a si própria,rejeitando toda autoridade exterior a ela, determinandoas finalidades e o sentido de sua própria existência.Por isso rejeita todo "amor a Deus" que não seja, emúltima instância, um retorno do indivíduo a si mesmocomo humano.

Esta é, diz Fromm, uma ética humanística.Qualquer outra seria uma alienação do ser humano,porque "o homem deve a si mesmo sua existência,não só material mas também emocional eintelectualmente". É isto - "o que chamo um homem

Page 90: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

produtivo". É evidente que neste ponto nosencontramos em um terreno fundamentalmentedistinto daquele da ética cristã. Com efeito, para esta ohomem foi constituído em uma relação com Deus ecom seu próximo que não é "acrescentada" a suaautonomia, antes a sua própria natureza como serhumano. O amor não é produto do homem; o homemé que é produto do amor. Por isso um cristão poderiaperguntar se o que Fromm tão sagazmente analisa - anatureza e o exercício do amor humano - não é,realmente, muito mais profundo e total do que elepróprio admite. E, por conseguinte, caberia perguntarse para a perversão do amor que Fromm descobre eexpõe de maneira tão brilhante na sociedademoderna, não há um remédio mais fundamental que oproposto por ele: o próprio amor de Deus que"produtivamente" assumiu a existência humana paraabri-Ia, mediante a entrega de si mesmo, a uma novaforma de existência. Não é esta uma base sólida paraesse chamado do autor a um novo homem e umanova sociedade, e para o valioso assessoramentopsicológico e ético que nos oferece? É evidente queestas questões nos lavam além de nosso assunto,contudo nos mostram como a ética sempre desbordanas perguntas últimas acerca do homem e de Deus.

O outro comentário relaciona-se com a maneiracomo encontramos na Bíblia os ensinos éticos. Notranscorrer do capítulo respigamos do NovoTestamento uma série de afirmativas queapresentamos mais ou menos ordenadamente. Nãoobstante, convém que nos fique claro que o próprioNovo Testamento raramente as apresenta nesta formasistemática. Mais ainda, a direção ética é dada ante

Page 91: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

situações concretas. A situação do escravo Onésimo,fugindo de seu patrão e agora convertido, osproblemas de discriminação local na congregação deCorinto, a irresponsabilidade de alguns de Tessalônicaque escudam atrás da "esperança da vinda doSenhor" sua ociosidade, e outras mil circunstânciasconcretas concentram o ensinamento. Não é só aausência de um interesse sistemático que da origem aesta situação. Deve-se, em boa parte, a próprianatureza da ética cristã. A vida é, para o cristão, um"caminho" - uma figura cara ao Antigo Testamentoquanto ao Novo - sobre o qual é necessário"caminhar". O que interessa não é um mapapormenorizado de toda possível contingência mas aluz necessária para o próximo passo - a certeza dameta da peregrinação. Para ambas as coisas temostoda a direção que recebemos de Deus por intermédiode outros - patriarcas, profetas, apóstolos, a vidaterrena de Jesus - mas, acima de tudo, temos aprópria presença do Espírito Santo, que hoje permitediscernir concretamente à vontade de Deus e quemantém viva e atuante a promessa do Reino.

Certamente a poesia de Machado, que se tornoutão popular nos últimos anos, em forma de canção,não reflete plenamente a atitude da ética cristã. Ocaminho do cristão não é uma simples obra de suacriatividade, não é uma pura invenção – é o caminhoda obediência, do discernimento das pisadas dosenhor depois de quem caminha. Não há, porém, ummapa que possamos levar no bolso. Trata-se de umaaventura de fé, um emprego ousado da imaginaçãoposta a serviço do Espírito - o próximo passo ésempre, aos olhos humanos, um arriscar-se em

Page 92: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

terreno virgem e inexplorado; aos olhos da fé, odescobrimento de uma senda "traçada de antemãopara que andemos nela", como diz Paulo.

"Caminante, no hay camino;camino se hace al andar.AI andar se hace el caminoy al volver la vista atrásse ve la senda que nuncase ha de volver a pisar.

Caminante, no hay caminosino estelas en el mar.

Caminante, no hay camino,se hace camino al andar.Golpe a golpe,verso a verso..." *

*"Caminhante, não há caminho; I caminho se faz ao andar. I

Ao andar se faz o caminho I e ao voltar a vista para trás I se vê asenda que nunca I se há de tornar a pisar. / Caminhante, não hácaminho / senão estrelas no mar.... Caminhante, não há caminho, Ifaz-se caminho ao andar. / Golpe a golpe, / verso a verso... "

Page 93: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

4. Um mundo novo

A DISCUSSÃO entre os que pensam que enecessário mudar o indivíduo para melhorar asociedade e os que estão convencidos de que sómelhorando a sociedade e possível mudar as pessoasnão só e muito antiga mas um tanto estéril - eprovavelmente bastante estúpida! Como amiúdeocorre, a preocupação por sustentar certas verdadeschega a negar outras. E no final das contas, a própriaverdade que alguém tentou defender é aquela quesofre. Em todo caso, e importante assinalar que aBíblia é totalmente alheia a esta dicotomia. Vimosfalando repetidamente do "novo homem" e dochamado para o exercício do amor. Nada é maispessoal e imediato. Contudo, como temos repetidovárias vezes (pp. 57) estaríamos cinqüenta por centoequivocados se concebêssemos estas afirmações emtermos individuais. Trata-se de um propósito total e deum plano de vida comunitário desde suas própriasraízes. Tudo quanto dissemos perderia por completo osentido e valor se o entendêssemos de formaindividualista. O Evangelho não cuida de produzirindivíduos bons que persigam sua própria perfeiçãomoral, perturbando-se uns aos outros o menospossível, mas uma totalidade, um modo de viver e deser de toda a Humanidade. É por isso que colocacomo início, não indivíduos isolados mas umacomunidade, a Igreja, na qual deve ilustrar-se, dar-sea conhecer e preparar-se esse plano total e inclusivopara todos os homens.

Page 94: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Nunca sublinharemos suficientemente este fatoporque nós, cristãos, temos introduzido -particularmente em nosso meio e nos últimos séculos -uma grave distorção no pensamento bíblico ao fazê-losofrer dois trágicos estreitamentos. O primeiro é deantiga data e consiste em estabelecer uma separaçãoou oposição entre o "material", corporal ou físico e o"espiritual", para em seguida dizer que a fé pertence aesta segunda ordem. Graves conseqüências moraisacompanham esta tergiversação: um equivocadoascetismo que tem pretendido menosprezar a vidacorporal, uma pretensa "interioridade" da ética cristaque se afastava dos domínios - supostamente maismateriais, mundanos e p.9caminosos - da economia eda política, e como conseqüência de ambos,freqüentemente a admissão nesses campos domaterial, do "terreno", de princípios simplesmentepagãos ou anticristãos, já que se tratava de umaespécie de trecho barrento do caminho que enecessário transpor de alguma maneira ate chegar àestrada boa - do alem ou do âmbito interior - ondeandaremos aliviados do peso do corporal.

O segundo estrangulamento foi o individualista,que pretendeu confinar a ética cristã ao raio de açãodo "privado", das relações pessoais diretas, ondesupostamente se pode por mais facilmente em práticao Evangelho, enquanto que o âmbito "público" exigecompromissos, acordos e concessões que põem emperigo a pureza do crente.

Ambos os estreitamentos tem justificado eestimulado uma dicotomia ou cisão na vida doscristãos, de fatais conseqüências em dois sentidos. De

Page 95: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

um lado, tem afastado o cristão da arena da vidapublica, particularmente da política, em uma graverenuncia a suas responsabilidades como homem. Deoutro, tem produzido, nos campos que não podia evitar- o econômico, especial mente - uma acomodação nãocritica aos costumes ou padrões imperantes, por maisinjustos e opressivos que fossem. Em ambos oscasos, tais ausências e traições se ocultavam - àsvezes inclusive para os que as cometiam – sob umahipocrisia (consciente ou não) que se blasonava deuma “inatacável conduta pessoal”.

As atitudes que surgiram deste grave equívocotêm justificado algumas das mais severas críticas àIgreja cristã. Um sociólogo examina a vida daspopularíssimas igrejas pentecostais chilenas, eembora admire o fervor e a sinceridade de sua fé ereconheça a genuína transformação que o Evangelhoproduziu em suas vidas e a intensidade de suasolidariedade comunitária, não pode deixar deobservar sua “greve social”, sua negação a ocupar umlugar no esforço por conduzir sua sociedade aestruturas políticas, econômicas e sociais mais justase humanas para todos. Essa decisão de apartar-se detodo o âmbito público faz que, como cristãos, sedessolidarizem com o próximo, particularmente os desua própria, classe social, que neguem suacontribuição e que, por conseguinte, na realidadesejam um apoio às forças de exploração e opressão. Areligião parece satisfazer de tal maneira ao convertido,transferindo sua vida inteira para o âmbito interior epessoal, que resulta em um conformismo com asituação existente, adormecendo-o para a luta poruma sociedade melhor nesta Terra. Esta foi,

Page 96: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

precisamente, a grave situação denunciada nas tantasvezes repetida frase de Marx: “A religião é o ópio dopovo.”24 Quando uma denominação evangélica latino-americana de classe média emite uma declaraçãosobre as condições de vida desumanas imperantes,um bom número de cristãos - dentro e fora de suasfileiras - a critica por meter-se nas coisas do mundo,por imiscuir-se em política, sem notar que seu silêncio- que de fato se dobra a situação existente e aprolonga - não é menos comprometido.

Esta é a situação que tem impulsionadonumerosos jovens cristãos - de todas as confissões - abuscar uma nova maneira de pertencer à vida pública.Alguns têm achado que essa nova militância eraincompatível com sua permanência na Igreja e porisso abandonaram esta. Outros se negam a aceitar oestreitamento interiorizante e individualista e queremresgatar o autentico senti do totalizante etransformador da fé. Estes, amiúde, são acusados de"inovadores" por cristãos que não admitem que averdadeira "inovação", a perda do original eessencialmente cristão, foi precisamente esseestreitamento, essa redução da mensagem do Reinode Deus aos limites arbitrários de uma suposta vidainterior, individual e privada, que nem existe narealidade, nem possui a menor base nas Escrituras.Este é o assunto que devemos examinar a fim desituar o contexto total da ética cristã cuja motivação edireção temos procurado esboçar.

Todos, tudo

Page 97: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Deus teve de combater constantemente atendência de seu povo - Israel e a Igreja - paraestabelecer limites arbitrários ao raio de ação de seupoder e de seu amor. Os livros de Jonas e de Rute, noAntigo Testa mento, constituem vigoroso alegado emdefesa do caráter universa! do amor e cuidado divinos,contra os que pretendiam reduzi-los exclusivamente aIsrael. Deus se preocupa com o bem-estar da cidadepagã de Nínive e busca os meios para livrá-la dadestruição (tanto homens, como mulheres, crianças,inclusive animais — como não havia de termisericórdia deles o Deus verdadeiro!). E Ele próprioenraíza a salvação de seu povo na história de outrospovos ao fazer da moabita Rute progenitora do rei porexcelência, Davi, o protótipo do Messias prometido. Eo Novo Testamento nos apresenta Paulo travando suasingular batalha para impedir o estreitamento doEvangelho a uma tradição religiosa particular - aogrupo daqueles que primeiro abracem o judaísmo.Como se Deus não se houvesse proposto, desde oprincípio, incluir todos os homens na promessa cujoportador - até que houvesse chegado o momento - foio povo de Israel! Contra todas estas tentativas, aEscritura testifica de mui diversas maneiras que opropósito, o poder, o amor de Deus abrangem a todose a tudo. Veja mos alguns aspectos desta afirmativa,de particular importância para o comportamento docristão.

1) Tanto a ética quanto a religião do AntigoTestamento25 têm seu centro em Deus: a fidelidade, oamor, a reverência, o culto e a obediência a Deus quese deu a conhecer como Javé, constituem o todo damensagem bíblica. Não se trata, porém, de

Page 98: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

especulações sobre a natureza de Deus, das quais sederivaria depois uma escala de valores. Não, Deus éque manifestou sua vontade e seu poder no dilúvio, nochamado de Abraão, na libertação do Egito, naconquista de Canaã, no desterro e no cativeiro. Essaatividade exige uma resposta e fixa o padrão dessaresposta. Pois Javé estabelece em sua ação um pacto— uma sociedade, uma relação permanente eordenada — com seu povo, e ao fazê-lo, determina aclasse de relações e procedimentos, a índole de vidaque cabe ao “povo do pacto”.

Três são as principais caracterizações de Javénessa relação. É o legislador que estabelece osdireitos de todos e cada um, das pessoas, das tribos,das famílias e também das nações. É o criador, cujavontade e poder são “desde sempre”, que tem direitode ordenar e governar todas as coisas por que lhesdeu vida e lhes imprimiu seu ritmo e significado. E emambas as coisas, e sobre todas as coisas, Javé é rei.Seria necessário adentrar-nos na descrição do ofícioreal — para o qual a própria Bíblia nos ofereceabundantes exemplos — a fim de medir todo osignificado desta caracterização de Deus. Mas, sobretodas as coisas, o rei é quem guia e protege seu povo,quem assegura sua unidade e harmonia, quemestabelece o direito e a justiça. Tanto esta função realquanto as demais que temos mencionado nosmostram Deus governando. Assim, dizem-nos, operaDeus. Esta é a medida de sua vontade e, porconseguinte, da obediência requerida aos seus.

Devemos salientar algumas dimensões destegoverno divino para tornar mais concreta a demandaque dele deriva. A qualidade essencial do governo

Page 99: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

divino é a justiça. Não devemos, entretanto, entendereste termo em um sentido puramente forense. Parafalar de seu significado, o Antigo Testamento empregaexpressões como vindicação, libertação, auxílio,socorro oportuno ou retidão, verdade, fidelidade,triunfo, salvação. Em outras palavras, exercer justiça éassegurar as corretas relações entre os povos e, emIsrael, dentro do povo.26 A Bíblia vê o homem em umcontexto concreto: como governante ou súdito, comolitigante ou juiz, como pai, mãe ou filhos, comomembro de uma tribo, como estrangeiro, comosacerdote ou adorador. Cada uma destas situaçõesenvolve requisitos, exigências e direitos próprios. Ajustiça é a correta relação de todos. O rei deve,portanto, preservar a paz e a integridade dacomunidade toda. Para isso é especialmentenecessário ter em conta os direitos dos mais fracos:pobres, viúvas, órfãos, estrangeiros, peregrinos. Énecessário impedir que o “injusto” quebrante pelamentira, pelo engano, pela exploração ou pelainfidelidade, a paz comunitária. Por isso, o exercício dajustiça é uma função ativa que exige todas as açõesmarcadas pelos simbolismos do governo divinoapontados acima.

Para assegurar estas relações Javé deu sua lei:esta é justa e sua observância garante a ordemadequada. Mas Deus não se conforma com aenunciação da lei: constitui-se Ele em garantia de seucumprimento. E para tanto se estabelecem juízes ereis que têm por obrigação pôr em prática a justiça queDeus reclama para seu povo. A relação entre a justiçado rei Javé e a que requer dos governantes salta aosolhos claramente no salmo 82:

Page 100: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Deus está na reunião dos deuses; em meiodos deuses julga.

Até quando julgareis injustamente, eaceitareis as pessoas dos ímpios?

Defendei o fraco e o órfão;

fazei justiça ao aflito e ao pobre.

Livro o aflito e o necessitado; livrai-o da mãodos ímpios.

Levanta é Deus, julga a terra; porque tuherdarás todas as nações.

É com base nesta demanda de justiça que osprofetas lançam suas terríveis acusações - reis, juízes,sacerdotes - que fazem ouvidos surdos ao clamor dosoprimidos:

“Ai dos pastores (dirigentes, civis ereligiosos)

que destroem e dispersam as ovelhas domeu rebanho...

Vós dispersastes minhas ovelhas, e asafugentastes, e não cuidastes delas...Eisque castigo a maldade de vossas obras,dizJavé.

Eu mesmo recolherei o remanescente deminhas ovelhas...e porei sobre elas pastoresque as apascentem...

Eis que vêm dias em que levantarei umsucessor justo de Davi, e reinará como rei, oqual será ditoso, e fará juízo e justiça naterra.

Page 101: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

“O efeito da justiça é a paz”, proclama lsaías.Novamente, devemos ir além da noção corrente depaz como ausência de conflito.27 No hebraico apalavra paz - shalom, a mais freqüente e cordialsaudação israelita - abrange o bem-estar total dapessoa e da comunidade. Perguntar a alguém por “suapaz” é perguntar-lhe como vai - de saúde, nosnegócios, na família. Desejar-lhe a paz é desejar todasorte de bênçãos tanto a ele quanto aos seus.Novamente, o conceito se relaciona com o trato entreos homens e com Deus. Esta plenitude, que abarca aspessoas e as coisas é o que Deus dá aos homens.Esta paz se perturba quando se frauda a justiça. Ê porisso que os profetas denunciam com violência agovernantes, sacerdotes e profetas que pretendemque há “paz” enquanto se faz opressão aos pobres, sedesconhecem os direitos dos fracos e se atraiçoa opacto com Javé. A paz só é possível quando seobservam as condições que Deus estabeleceu e queasseguram a justiça e o bem-estar a toda acomunidade. Toda outra pretensão de paz é falsa, eJavé mesmo perturbará essa falsa paz.

Esta multíplice relação entre Javé e seu povo,dentro deste e entre as pessoas e as coisas materiais,que constitui a justiça e a paz, está muito bemilustrada em uma das mais interessantes leisconsignadas no livro de Levítico: a do jubileu.Conquanto a definição da lei não seja precisa, trata-sede um “ano especial”, cada quarenta e nove anos,anunciado a som de trombeta, destinado a restaurar ajustiça que as diversas contingências e transaçõespudessem haver per turbado. Três elementos sepercebem clara mente. Em primeiro lugar se propõe

Page 102: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

restituir a correta posse dos bens, e para isso todapropriedade vendida deve ser restituída a seupossuidor original (não nos esqueçamos de que apossessão familiar da terra era a base de subsistênciada família e que ninguém vendia sua propriedadesenão por extrema necessidade). Em segundo lugarse restitui a liberdade pessoal a qualquer que ahouves se alienado (escravos). Em terceiro lugar“deixa-se descansar” a terra para que recupere suacapacidade produtiva. E tudo isto é um testemunho deque tudo pertence a Javé e que, portanto, ninguémpode reclamar coisa alguma como posse exclusiva,em detrimento dos outros. Outras medidas tais como odescanso semanal, a remissão das dívidas e o usocomum da produção espontânea da terra cada seteanos complementam o jubileu. Este é o governo deDeus; sobre ele deve basear-se toda a vida do povo.

2) É significativo que, segundo nos dizem osestudiosos, esta lei do jubileu nunca se cumpriu emIsrael. As diversas formas de espoliação, de engano,de usura, de corrupção legal e comercial foramestabelecendo-se cada vez com maior vigor. Este é otema permanente dos profetas. Apoiados no pactocom Deus, que reclama a justiça e a verdadeira paz,denunciam as condições imperantes. Deus — dizemeles — não tolerará a injustiça. O castigo se aproxima.Significa isso que Deus renunciou a estabelecer suajustiça e sua paz, que a ordem representada pelarestauração do jubileu há de ficar para semprefrustrada? De maneira nenhuma! O Rei justo realizaráseus propósitos de justiça por meio de crises econflitos, mas sem ceder neles. Porque Deus cumpresua promessa. lsaías anuncia um verdadeiro rei, que

Page 103: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Deus mesmo há de dar aos homens e que instaurará ajustiça. Jeremias fala de “um novo pacto” no qual aboa lei de Deus impregna até o próprio coração detodo o povo. Outros profetas empregam outras figuras.Vão-se esboçando, porém, certos traços destaesperança que nutre a vida de Israel. Deusestabelecerá seu governo e inaugurará uma era depaz.

O alcance deste governo benfeitor de Deus éuniversal toda a terra, todos os povos o usufruirão. Ocentro desse governo é o restabelecimento daverdadeira justiça, o que significa a vindicação dosoprimidos, a restituição aos agravados e o castigo dosopressores. Finalmente, a visão do governo divinofuturo alcança caracteres totalizadores que abrangema própria Natureza: haverá abundância para todos,paz na Natureza. Tudo contribuirá para uma era deplenitude humana, interior e exterior, espiritual ematerial, em intima relação com o próprio Deus:

A misericórdia e a verdade se encontraram; ajustiça e a paz se beijaram.

A verdade brotará da terra, e a justiçacontemplará desde os céus.

Javé dará também o bem, e nossa terra dará seufruto.

A justiça irá diante dele, e seus passes nos porápor caminho. (Salmo 85.)

Para o Novo Testamento não restam dúvidasque esta promessa é a que começou a cumprir-se como advento de Jesus. Os primeiros capítulos do

Page 104: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

evangelho de Lucas re tomam os anúncios proféticosdo rei que implantará o governo justo de Javé e osaplicam a Jesus. Maria saúda cheia de alegria o Deusque vem - no menino anunciado - tornar ativa suamisericórdia, desalojar de seu poder os soberbos eestabelecer os humildes e os famintos. Zacarias (o paide João Batista) o vê como a aurora de um novo diaem que “libertados dos inimigos, o sirvamos emsantidade e justiça, sob suas vistas, toda a vida”. Opróprio Jesus, ao anunciar seu propósito, fá-lo emtermos de um definitivo jubileu, o “ano agradável doSenhor”, em que não só se libertam os cativos e seanuncia a restituição aos pobres, mas também sedevolve a saúde, a vista, a alegria. E isto não só paraIsrael, mas para todos os povos. O governo justo ebenfeitor de Deus acaba de chegar: “o Reino de Deusestá à mão”. Nele se restauram as condições que ainjustiça inverteu. Por isso são “bem-aventurados” ospobres, os perseguidos, os que gemem, os que têmmantido intacta sua fidelidade à promessa de Deus, osque têm vivido como testemunhas da verdadeira paz.Por isso, ai dos que, nesta situação de injustiça,alcançaram satisfação, alegria, riqueza, status -acomodados ao mundo mau e, por tanto,inevitavelmente fora de lugar no Reino!28

3) O Novo Testamento inteiro vê a Jesus Cristocomo o rei prometido, o que traz a justiça e a paz deDeus. Sua vinda — seu nascimento, sua vida, suamorte, sua ressurreição. — é o cumprimento decisivodo juízo e da promessa de um governo justo ebenfeitor. Mas a visão se estende para uma plenarealização desse propósito. E para descrevê-lo,retomam-se as figuras do Antigo Testamento e se

Page 105: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

lança mão de outras correntes. Paulo fala, na epístolaaos Romanos, de uma angustiosa e inquietaexpectativa da criação toda “posta nas pontas dospés” para contemplar de longe essa libertação total.Em Filipenses, vê pela fé o momento em que toda acriação — o Universo inteiro — verá em Jesus Cristo orei soberano que fez que o bom governo de Deus sefaça visível (a glória) para todos e em todos. Outraspassagens, servindo-se da idéia então corrente de queo homem está submetido a poderes sobre-humanos,anunciam que nenhum poder escapou ao triunfo deCristo — todos agora estão subordinados a ele,submissos a seu justo governo. Efésios vê a Históriacomo um caminho mediante o qual Deus conduz ascoisas à integração sob o governo de Cristo. E oApocalipse anuncia “um novo Céu e uma nova Terra”.

Não cabe aqui dilucidar os complexos aspectosdesta expectativa — que outros trabalhos dentro destasérie hão de abordar. Convém, todavia, querecordemos, por sua importância para nosso assunto,que se trata de uma esperança universal — abrangetodos os homens -; global - inclui todas as coisas erelações, o pessoal e o coletivo, o privado e o público,o corporal e o espiritual, o secular e o religioso — edefinitiva. Este é o horizonte da fé cristã. Sem ele, tudose desmorona e nada tem sentido.

4) O Novo Testamento tem consciência, porcerto, de estar situado em uma curiosa e difícil.posição com referência a este fato central do adventodo Reino em Jesus Cristo. De um lado, tem a profundaconvicção de que a ação decisiva de Deus parainstaurar seu governo justo e benfeitor ocorreu em

Page 106: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Jerusalém. Foi um fato irreversível e inalterável. Porisso às vezes se fala como se já estivéssemos noReino, como se tudo já houvesse mudado. Mas aomesmo tempo não se ignora que as coisas continuam- visivelmente - como antes, que a rebeldia contra ajustiça de Deus continua operando, que este mundo,com suas relações e condições, está aparentemente“em poder do desgoverno do mal”.

Pregadores e teólogos têm lançado mão dediversas analogias para ilustrar esta difícil situação“interina” na qual o cristão vive. Assim como orelâmpago e o trovão constituem um mesmofenômeno mas o primeiro é percebido antes porque aluz é mais rápida que o som, assim a vitória da cruz eda ressurreição, que a fé percebe no poder doEspírito, se transmite mais lentamente no âmbitodenso das instituições e condições do mundo. A maisfamosa das analogias é a de uma guerra, na qual abatalha decisiva - a que selou o resultado final - jáocorreu. Mas ainda restam combates a travar,operações de limpeza, e é preciso que o inimigoreconheça que foi vencido e cesse sua estérilresistência. Estas comparações são úteis, masnenhuma delas chega a dar conta cabal destasituação que é vital para a ética cristã. Toda a vida docristão se desenvolve entre o triunfo irreversível dogoverno justo de Deus em Jesus Cristo e suainstauração universal, visível e definitiva, que ocorreráno final “quando o Senhor aparecer em glória”.29

5) Que comportamento convém ao cristão nestascircunstâncias? Seguir a Jesus é comprometer-se como seu governo. “Tomar o jugo de Jesus” é o mesmo

Page 107: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

que “tomar o jugo do Reino”, expressão de que osrabinos se serviam para aqueles que aceitavam a lei -somente que agora não se trata de uma lei mas dogoverno que se tornou concreto em Jesus. Isto é, sercristão é estar com prometido com o Reino. Emboratenhamos de voltar a este assunto no último capítulo,é necessário enumerar o que este compromisso com oReino significa para o cristão e a comunidade decrentes neste “ínterim” em que vivemos.

Um texto de Paulo traça com insuperável nitidezesse comportamento: “Não se adaptem a este mundo;pelo contrário, trans formem-se renovando sua formade entender e ver as coisas, para discernir qual é avontade de Deus - o que é bom, adequado aopropósito de Deus, perfeito” (Romanos 12.2). À luz deoutras passagens que já vi mos, o que se nos diz aquisignifica, pelo menos, três coisas:

a) o cristão vive “em esperança”, sabendo que opropósito de Deus não deixará de realizar-seplenamente — sua vida tende para esse futuro certoque foi prometido;

b) o cristão vive desconforme, permanentementeinadaptado e inadaptável às condições de um mundoque não tem reconhecido seu verdadeiro governo;

c) o cristão procura antecipar em meio àscondições deste tempo os característicos do governode Deus que viu em Jesus Cristo e que aguarda emplenitude.

A relação entre a esperança cristã e a éticasempre foi um tema ao mesmo tempo importantíssimo

Page 108: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

e delicado. Já Paulo repreende alguns que cruzam osbraços, negando-se a cumprir suas obrigações, ejustificando-se na esperança da vinda imediata deJesus Cristo. A segunda epístola de Pedro trata deresponder a outros que se sentem desiludidos porquea gloriosa vinda do Senhor e a restauração de todasas coisas “estão demorando”. Na história da Igrejatêm-se alternado os que olvidam a esperança darestauração final, e pretendem “construir o Reino”como se fosse obra humana e os que se imobilizamnuma espera passiva.30 A verdadeira esperança cristã,não obstante, não é uma coisa nem outra. É como aespera da futura mãe, que aguarda anelante a hora dedar à luz, contudo sabe que a nova vida está emgestação no seu ventre e que, entretanto, se dedica àsmil tarefas que preparam esse futuro. Para o cristão, aesperança do Reino, que sabe que Deus já estápreparando em nossa História, impulsiona-o a viver ecuidar de criar a classe de vida que espera. E aomesmo tempo as tarefas diárias o levam a esperarcom maior intensidade ainda o advento do Reino.

Este é o quadro total em que o Novo Testamentoexorta os cristãos a fazer o bem, a amar. Insistimos:não se trata de atos isola dos de virtude — são atosque já agora cor respondem ao futuro, ações querespondem ao bom governo de Deus que seestabeleceu com Jesus Cristo, ações que se integramno propósito do Criador e Senhor do Universo. Esteamor que responde à justiça e à paz, este amor que sevive em meio às relações humanas, este amor queestende ao homem todo e todos os homens, esteamor que entra em conflito com toda injustiça — esta éa única conduta que tem futuro.

Page 109: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

As condições do combate

Não basta que o cristão “entenda” sua situação.A vida cristã é um combate, um labor diário, umcaminho, isto é, uma série de decisões e açõesconcretas. E tudo isto ocorre em meio a condiçõesdadas, pessoais e sociais, psicológicas, econômicas esociológicas. A visão do Reino e o compromisso comele devem relacionar-se com estas condições para serefetivos. Para facilitar e tornar mais eficaz a açãocristã, a ética cristã tem a responsabilidade de analisaras condições particulares que regem, em nossasociedade, os diferentes aspectos da vida humana ecuidar de lançar sobre eles a luz da mensagem doReino. E isto o que intentarão, de maneira maispormenorizada, outros livros desta mesma série. Aquitratarei apenas de mostrar, muito sucintamente, algunsaspectos desse trabalho.

1) O primeiro é advertir que o compromisso como Reino nos introduz inevitavelmente na relação dohomem com o homem e dos homens com as coisas.Este triângulo de relações: pessoa-comunidade-coisasé inseparável de toda a ação humana. Não existemações puramente individuais, nem totalmenteimpessoais, nem exclusivamente interiores ouespirituais. Até meus próprios pensamentos estãoinfluenciados - como o tem demonstrado claramente aPsicologia moderna — pelas condições orgânicas,pelo estado de saúde, pelas condições ambientais. Eestas por aqueles. Relacionamo-nos com outraspessoas por meio das coisas: o que damos, o querecebemos, o que compramos ou vendemos, o quefabricamos ou criamos. E cada uma dessas ações nos

Page 110: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

vincula a uma rede de relações. Quem quisessereservar um “núcleo” interior inviolável, que não fossealcançado por estas relações, viveria em ilusão.Somos o que somos nesta textura total.

A Bíblia dá por sentado que isto é assim. Poresse motivo se ocupa do homem em seu trabalho, emsua família, em sua comunidade; do homem quecome, dorme, trabalha, enferma; do homem sexuado,corporal; do homem pai, filho, súdito ou governante. Atal ponto é assim que, inclusive, a ressurreição e avida eterna não se apresentam como incorpóreos ouindividualistas, mas como um novo corpo e uma novaforma de relações. É por isso que nem a justiça nem apaz se definem em termos puramente espirituais, mas,como temos visto, incluindo as coisas materiais tantoquanto as mais interiores. Mais importante ainda, aBíblia nos mostra que são precisamente estasrelações que se pervertem quando reina a injustiça e adesordem. É a este fato que devemos a inquietanteunanimidade dos profetas e de Jesus em condenar ariqueza e os ricos.

Tem-se debatido muito se se trata da“possessão” das riquezas ou do “amor” a elas o que secondena. A discussão parte de uma separação à quala Bíblia mais realista do que nós outros — não dámaior importância. Nas condições concretas de nossomundo - diz-nos - a riqueza é a manifestação de umarelação injusta dos homens entre si e com as coisas.Nela, os bens que foram dados por Deus para desfrutese constituem em coisas para possuir. Com elascomeçamos a considerar o próximo como alguém dequem podemos dispor — comprar e vender. As

Page 111: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

“possessões” se transformam no segredo de todas asnossas relações e possibilidades e por issodepositamos nossa confiança nelas: vendemo-nos aelas. A tal ponto que as fazemos nosso deus. E não sepode servir a dois senhores: a Deus e às riquezas. Porisso, aquele que ingressa no Reino verdadeiro devepassar pela prova de desprender-se dessa falsarelação. Esse é - e não um ascetismo que proibiriagozar das coisas materiais - o motivo da exaltação dapobreza em todo o Novo Testamento.

Uma pessoa rica pode ser pessoalmente muitoboa e ser possuída das melhores intenções. Nãoobstante, se não toma ativa mente sua parte na lutapor uma melhor justiça para todos - ainda queprejudique seus interesses - a boa intenção não supreessa responsabilidade. Não basta que Zaqueu seconverta: deve restituir o que furtou. Não basta que ojovem rico obedeça aos manda mentos e queira seguira Jesus: deve vender o que tem. A ética cristã não éuma ética de boas intenções apenas, porque não sepreocupa exclusivamente com a condição interior dohomem mas com o bem-estar total de to dos oshomens. De pouco valem as intenções se não logramefeitos positivos para o bem comum. E mais, a Bíbliasabe muito bem que os homens somos hábeis emfabricar pretextos para não reagir à necessidade dopróximo. A distinção entre a posse da riqueza e oamor a ela tem sido uma das mais difundidas escusaspara justificar a falta de responsabilidade pela injustiçae a acumulação irresponsável de riqueza por parte demuitos cristãos.

Page 112: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Mesmo a análise mais superficial põe às clarasque esta perversão das relações do homem com oshomens e com as coisas está na raiz da crise atual. Ascondições de posse da terra e dos bens, de controledos recursos e da produção, de administração dosrecursos privados e públicos, de trabalho edesemprego, tanto no campo internacional como emnosso país e continente, parecem feitas sob medidapara ilustrar os característicos do que Jesus condenasob o nome de “riqueza”. E seu efeito sobre a vidahumana está à vista de quem tenha olhos para ver. Énesta realidade onde o cristão é chamado a viver suafidelidade ao governo justo e benfeitor de Deus.

2) Não basta dar-nos conta de que estamosenvoltos em uma trama que inclui a relação com nossopróximo, pessoal e coletivamente, e com as coisas. Énecessário ver que essa trama está configurada pordiversas estruturas, instituições e ordenamentos. Ariqueza, o poder, a injustiça, não são apenas resultadode egoísmos, corrupção ou ambição pessoais, masestruturas e combinações de estruturas. Por outrolado, a justiça, o bem-estar, a paz, tampouco podemser alcançados mediante esforços pessoais ouisolados, mas mediante as estruturas e instituiçõesque lhes dêem existência real e permanente. Quandoo profeta responsabiliza os “pastores” - osgovernantes, a classe sacerdotal e outros grupos defuncionários - pelas condições do povo, reconheceesse caráter estruturado da existência humana. Ecomo vimos, é muito provável que o conceito modernode estruturas — econômicas, políticas etc. — seja atradução mais apropriada do que Paulo chama

Page 113: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

“potestades”, “principados”, que hão de reconhecer asoberania de Cristo.

Pretender amar o próximo à parte de suasituação em meio a estas estruturas revela, se nãohipocrisia, pelo menos uma ingenuidade incompatívelcom a seriedade que o cristão deve colocar a serviçode sua fé. Quase qualquer problema concreto denosso próximo que olhemos com certa detença nosmostrará, de imediato, sua relação com estasestruturas. Quantos problemas pessoais e familiaresse tornam insolúveis nas condições de ajuntamentoem que grandes setores da classe trabalhadora emédia inferior se vêem obrigados a viver? Quantainsegurança, rebeldia estéril e desperdício depotencialidades jovens têm como causa umainadequada relação familiar nascida de uma situaçãoem que os pais devem fazer frente a um emprego —quando não dois — cada um deles? Como resolver oproblema da moradia quando os consórcios quemonopolizam seu financiamento cobram duas ou trêsvezes seu valor, quando mais da metade do dinheiroque se investe na construção é dedicado a residênciasde luxo que só uma minoria pode pagar, quando ospróprios bancos oficiais fixam custos maiores do queos reais e por conseguinte prestações inacessíveis aopovo, quando o único dinheiro que se pode conseguiré o dos agiotas? Que sentido tem o chamado“aumento da renda percapita” em um país quando trêsquartos desse aumento vão parar nas mãos de umaminoria - às vezes dois ou três por cento da população- de modo que os ricos são cada vez mais ricos e ospobres cada vez mais pobres? Como assegurar osbenefícios dos maravilhosos progressos nas ciências

Page 114: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

médicas quando a atenção médica é, para a maiorparte do povo, um luxo — uma simples intervençãocirúrgica significa de três a cinco meses completos deum salário corrente? Não significam que nada valha oesforço pessoa!. Não significam, tampouco, que todosos problemas humanos se resolveriamautomaticamente se estes que mencionamosdesaparecessem. Significam, porém, que aregulamentação adequada da relação do homem comseu próximo e com as coisas, que é parte essencial dopropósito de Deus, se vê afetada por mecanismos einstituições que não são puramente pessoais.

Tudo isto é tão mais claro hoje quando aconvivência humana se tornou muito mais estreita e asrelações mais complexas. Em uma grande cidadeonde a luz, a água, o transporte, o trabalho, arecreação, a educação têm de estar “organizados”, osque controlam essa organização têm em suas mãos avida dos homens. Não somente podem de terminar-lhes as condições materiais de vida mas ainda,mediante a propaganda, penetram em seuspensamentos e sentimentos. Como poderia umapessoa interessada em uma vida humana justa e boaprescindir do uso de semelhantes poderes, serindiferente à forma em que se “organiza” a vida dopróximo? Que classe de “amor” seria o que assimprocede? Não seria a forma moderna do que Tiago járidicularizava em sua epístola: “De que adianta, sealgum de vocês, ao ver um irmão ou uma irmãdesnudo ou com fome, lhe diz: ‘Vá em paz, aqueça-see coma’, e não lhe dá o de que necessita para seucorpo?” A ação do amor, entendida em termos doReino, leva necessariamente, e hoje mais do que

Page 115: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

nunca, a atuar no âmbito das estruturas e instituiçõesda sociedade.

Acercando-nos da ação

Nosso problema agora é como integrar emdecisões concretas a visão da totalidade, a ação doamor e as estruturas do mundo contemporâneo.Temos feito certas distinções com propósitos deestudo, mas a vida não se apresenta assim, nem avida de meu próximo nem a minha própria. Em cadamo mento me acho envolto nesta problemática. E porisso devo voltar à pergunta inicial de nosso estudo:que fazer?

1) Uma atitude inteligente e responsável exigeque distingamos diferentes “níveis” de ação do cristão,cada um deles importante em sua medida, que nãodevem, contudo, confundir-se nem excluir-se:

a) O nível de ação pessoal. Cada um de nós serelaciona com pessoas mediante o trabalho, avizinhança, a família, a recreação, a educação. Sãopessoas com problemas, necessidades, anelos,angústias — e que, por conseguinte, reclamamconsolo, ajuda, conselho, atenção, correção, e (juntocom todas estas coisas, mas também direta e exmente) o testemunho da fé. A consciência de que estaesfera de serviço pessoal não resolve todos osproblemas não pode eximir-nos de tomá-la a sério. Aajuda que se proporciona a uma pessoa não resolveráo problema de outras mil às quais a estrutura dasociedade abisma na mesma situação. Mas para o

Page 116: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

cristão as pessoas não são substituíveis, não sãocifras. E esta pessoa a quem, em alguma medida,posso servir, é a face concreta de Jesus Cristo que mesai ao encontro e ao qual não posso voltar as costassem trair minha fé.

b) O nível da ação organizada. Cada umadessas relações que mencionei me envolve emestruturas institucionalizadas: o sindicato, asorganizações da vizinhança, o clube, a cooperativaescolar, e de forma indireta as organizações políticas,culturais etc. É muito importante não reduzir estasrelações institucionais a meras “ocasiões” para dar umbom testemunho pessoal. O propósito queperseguimos nelas relaciona-se com a própriafinalidade das instituições, com o âmbito da vidahumana no qual devem assegurar a “justiça” e a “paz”que Deus quer: o campo trabalhista, econômico,cultural, de governo. Urna boa ação cristã será, nestesentido, a que mais eficazmente logre no campo quecabe a esta instituição, a qualidade de vida que Deusdeseja para o homem. A bondade de seu ato serábondade política, econômica, cultural - nãosimplesmente a qualidade de honestidade ou purezapessoal. Ou, para dizer melhor: ser honesto e puro empolítica ou economia é realizar uma ação política oueconômica eficaz para os homens.

Estas últimas frases não devem ser entendidasem termos de um divórcio entre o pessoal e o social. Éa mesma qualidade de existência que o Evangelhoreclama para o âmbito privado e o público. Todavia, énecessário fazer, pelo menos, três observações. Aprimeira é que a honestidade e a pureza pessoais não

Page 117: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

são “jóias” para adornar o indivíduo, porém modos decomportar-se em relação com os demais, maneiras decriar a confiança mútua, a limpeza de relações, o climade saúde física e mental em que a comunidade podedesenvolver-se adequada mente. Em segundo lugar, ecomo conseqüência, a prática dessas virtudes develevar em conta a condição e a necessidade real dopróximo. Por isso o Apóstolo exorta, por exemplo, a“dizer a verdade em amor”. Ou lembra aos espososque não devem fazer de seu ascetismo devocional(períodos de oração com abstinência de vida sexual)ocasião de tentação ou tropeço para o cônjuge (1Coríntios 7.1-7). O bem do próximo ou da comunidadepode exigir uma medida drástica e dolorosa. Maspretender praticar a ‘honestidade” ou a “pureza”, doa aquem doer, sem considerar a conseqüência de nossasações, está muito longe de ser um comportamentocristão. Finalmente, está a complexa questão de meiose fins que comentaremos no próximo capítulo. Não éverdade que o fim justifique os meios. Tampouco,porém, é lícito prescindir da eficácia dos meios comrelação ao fim: uns e outros devem ser submetidos aoserviço do propósito de Deus para a vida humana.

c) O nível de ação da comunidade cristã.Mencionamos, neste ponto, um dos aspectos hojemais confusos e disputados da ética cristã: o quecompete ao cristão pessoalmente, ou em colaboraçãocom pessoas de outros credos ou ideologias, e o quecompete à ação da Igreja como tal. De um lado,devemos compreender que a Igreja tem um centroespecífico: o anúncio de Jesus Cristo, a mensagem doReino que veio e que há de realizar-se e que convidaos homens a confessarem a Cristo e se

Page 118: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

comprometerem em seu Reino. De outro lado, tambémdevemos compreender que esse Reino a tudo e atodos abrange — nada há que lhe seja alheio. Amedida de participação na ação concreta só a Igrejapode decidi-la em momento e situação particulares.Para isso conta com o testemunho bíblico e apresença do Espírito para guiá-la. Também lhe cabetomar em conta que a comunidade de fé podeexpressar-se de diversas maneiras: por pequenosgrupos vocacionais dentro dela, por entidades ouiniciativas de cooperação, e também como um todo.Talvez um critério geral útil é que a ação é tanto maisprópria da Igreja como comunidade total dos crentesquanto mais explicitamente esteja vinculada àproclamação de Jesus Cristo; e que o cristão há debuscar a mais ampla cooperação com todos os sereshumanos que seja possível quando se trata de açõese estruturas gerais. Mas esta formulação já deixa claroque a Igreja pode ver-se obrigada a tomar a iniciativaem coisas muito “seculares” que a comunidade maiornão percebe ou não quer executar, e que sãonecessárias ao homem. Todo este campo merece, nãoobstante, um estudo mais amplo, que em outraoportunidade se oferecerá.31

2) Falamos de “uma atitude inteligente eresponsável”. Não se trata de simples adjetivos masde condições de toda ação cristã. È bem certo que àsvezes as decisões nos surpreendem; a vida nos obrigaa atuar freqüentemente sem maior reflexão. O cristãodeve sentir a liberdade e a confiança de agirvalentemente em tais situações. Todavia, essa ação“espontânea” será madura e digna se se enquadra emuma vida alimentada pela reflexão, pelo esforço por

Page 119: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

compreender tão bem quanto me seja possível ascondições e exigências que como cristão me cabem.Isso é amar ao Senhor com toda a vontade e energia— mas também com toda a inteligência eentendimento. Uma reflexão ética responsável requer,pelo menos, quatro momentos ou aspectos:

a) O aprofundamento do testemunho bíblico comrespeito ao problema ou aspecto particular de que setrate. Já vimos que não se trata de uma legislação quese aplique mecanicamente a qualquer situação, masde “paradigmas” que nos ajudam a descobrir avontade de Deus. Mas o cristão não conseguiráalcançar uma atitude positiva e crítica, ao mesmotempo, em relação à sociedade na qual vive se nãoaprofunda esses paradigmas bíblicos. Hoje se discute,por exemplo, veementemente, a questão dapropriedade: privada? pública? estatal? cooperativa?Seria ridículo pretender resolver com um texto bíblicoestes dilemas. Mas uma consideração do conceitobíblico de propriedade — a quem pertencem ascoisas, como utilizá-las, quais são os critérios dealienação e posse — com forme se mostra na lei, nosprofetas, nos ensinos de Jesus e de Paulo, na Igrejaprimitiva nos impediria de cair vítimas da propagandados que desejam simplesmente fazer-nos aceitar umsistema como se fosse de origem divina. E ao mesmotempo nos permitiria introduzir perspectivas novaspara resolver os problemas reais.32

b) A consideração da comunidade cristã — aIgreja — passada e presente. Não somos nós osprimeiros a ler a Bíblia e bus car a direção do EspíritoSanto: a Igreja o vem fazendo por vinte séculos. E se

Page 120: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

é certa a promessa de Cristo, o Espírito não temestado ausente dessa busca. Não há problemahumano sobre o qual a tradição da comunidade cristãnão lance luz significativa. É certo que tal tradição nãoé absoluta: têm sido co metidos graves erros éticos.Todavia, a mais graves erros se expõe ainda quempretenda - com soberba que nada justifica —constituir-se em árbitro inapelável da verdade. Aomesmo tempo, como cristãos, formamos parte de umacomunidade presente, que vai desde a congregação egrupo local, dos quais participamos, até à totalidadedas igrejas no mundo. Em concreto, a reflexão éticainclui a consulta a meus irmãos em Cristo que seacham em torno de mim, a consideração do ensino deminha Igreja, os significativos pronunciamentos éticosdas demais Igrejas cristãs e do movimento ecumênico.Minha cons ciência é livre perante Deus. Mas a consciência se forma, por sua vez, pelas influências evozes que a rodeiam. Expor minha consciência à vozda Igreja do passado e do presente é uma das formasde obedecer ao mandato e usufruir a promessadaquele que disse que “onde dois ou três se reuniremem meu nome” ali estaria ele.

c) A análise da problemática atual no assuntocorrespondente. Quais são as verdadeiras condições?Em que se assemelham a outras nas quais a Igrejaelaborou determinadas normas de comportamento, eem que diferem delas? Quais são as causas? Quemecanismos operam? A Igreja sempre sentiu, porexemplo, que tudo quanto se relaciona com ocasamento e a família é de fundamental importância eque o Evangelho tem muito que dizer a respeito.Muitas das leis que imperam em nossas legislações

Page 121: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

têm sido influenciadas, neste aspecto, pela fé cristã.Hoje todos percebemos os grandes problemas que seenfrentam. Bastará repetir mecanicamente as normaselaboradas no século primeiro, no quarto, no décimoou no décimo sexto? Um simples estudo nos mostraráque essas normas estavam relacionadas com ascondições sociais, econômicas, trabalhistas,habitacionais, educacionais dessas épocas. Pretenderque a família funcione hoje como quando a mulher nãopodia receber instrução, quando toda a famíliatrabalhava em casa, ou quando o jovem se encontravasó com as pessoas de seu bairro, seria não somenteabsurdo mas desumano, completamente alheio a umverdadeiro amor. Mas o cristão tampouco aceitarásimplesmente “o que se faz hoje”. Quando umaavalancha de problemas - verdadeiros e falsos — sedesencadeia em torno do casamento e da família:relações pré e extra-matrimoniais, matrimônio deprova, divórcio, controle de natalidade, o cristão tem adupla obrigação de revisar cuidadosamente amensagem bíblica e de examinar por dentro averdadeira natureza dos problemas atuais.

d) A escolha entre as opções possíveis. Oestudo não é fim do caminho: o cristão é chamadopara a ação. Sua busca é a de um curso de açãoeficaz. Que alternativas existem? Quais asconseqüências de cada uma delas? Que grau decooperação posso obter para a realização dasmelhores dessas alternativas? Quais as possibilidadesde êxito? Uma solução pode parecer ideal, mas a suaconcretização é tão inverossímil que seria falta deresponsabilidade pretender alcançá-la - seria comocruzar-me os braços. De outro Fado, uma solução

Page 122: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

pode ser de longo alcance e custosa, mas tãoimportante para a vida humana que é necessárioempreender o longo caminho, ainda sabendo quetalvez não vejamos o fim. De quando em quando épreciso colocar remendos sabendo que não vão durarmuito; outras vezes é preciso deixar que a velha casaseja derrubada, reunidos os materiais e se preparemprojetos para uma nova - sem olvidar jamais os queficarão sob a intempérie no caminho.

Tudo isto pode parecer muito complica do. Mas odiscipulado de Jesus Cristo tem precisamente estacondição: porque oferece tudo — uma nova vida, livre,cheia de gozo, eterna — reclama tudo, O mais simplesdos seres humanos nada fica devendo, por maioreserros e tolices que cometa. E o mais capaz doshomens não pode omitir esforço algum. O que temostratado de ilustrar é um caminho, o caminho dodiscípulo do Reino em meio a condições deste mundo.Todos caminhamos por ele, na medida de nossasforças, mas na confiança e no poder do Espírito,Santo.

Page 123: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

5. Bem-aventurado os quefazem

UM VISITANTE perspicaz assinalava, há vários anos,a situação paradoxal da Argentina, país dotado deabundantes recursos naturais e humanos e queparecia, não obstante, presa de uma estranha paralisiaque o impedia de projetar-se para um futuro maispleno. Suas palavras ainda soam com total atualidade:"O argentino é um homem admiravelmente dotado quenão se rende a nada, que não submergiuirrevogavelmente sua existência em uma coisa distintadele." Está fazendo falta à Argentina "uma minoriaenérgica que suscite uma nova moral na sociedade,que chame o argentino a si mesmo. . . e o force a viververdadeiramente, a brotar de sua riqueza interior emvez de manter-se em perpetua deserção de simesmo". Outros têm observado, também, o cepticismoque campeia em muitas manifestações populares e doqual se tornam eco canções populares: "O mundo foi eserá uma porcaria", "Se sou assim, que vou fazer?",ou em frases cínicas: "O que se mete a redentorsempre sai crucificado." "Neste país não se pode fazernada!", e muitas outras.

Embora este fenômeno pareça muito acentuadona Argentina, a disposição de ânimo que manifesta éum fato universal: é a fadiga e o cinismo que resultamdo caráter aparentemente refratário da realidadehumana, que parece não responder ao esforço ético. AEuropa de pós-guerra o qualificou de niilismo. Alguémreuniu alguns de seus lemas: "Não há sentido em

Page 124: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

ocupar-se de grandes causas. Não dão resultadoalgum e no final alguém paga os pratos quebrados.""Talvez algum dia as coisas melhorem, mas quando?""A única coisa que importa e manter-se flutuando."Certas formas de filosofia parecem desembocar namesma posição. E a própria Bíblia não desconheceesse aspecto da experiência humana: o livro deEclesiastes esta todo impregnado do sentimento deinutilidade de todo esforço humano. "Vaidade devaidades: tudo a vaidade." E mais gravemente ainda,toda a literatura apocalíptica, do Antigo e do NovoTestamentos, prognostica um incremento do mal que,longe de ir-se desvanecendo, vai reunindo suas forçasaté à batalha final. Do outro lado dessa batalha está avitória definitiva do Reino, mas do lado de cá não háprogresso senão crescente injustiça, opressão,destruição e engano.

Em face de tudo isto, não é insensato perguntar-se: tem sentido a ação moral? Não estarão maiscertos os que vêem este mundo e sua história comoum lamentável episódio que é necessário vencer omelhor possível para ingressar noutro melhor - se setem fé - ou como a última refeição do condenado àmorte, que há de ser desfrutada da melhor forma quepossa, mas que carece de sentido e futuro? Ésignificativo que nem o Eclesiastes nem o Apocalipse,com sua visão céptica ou trágica do mundo, concluemem futilidade ou cinismo. O primeiro conclui com umaexortação a viver sabiamente. O segundo, aperseverar porfiadamente no bem e na fidelidade.Como é isso possível? Que significado tem a açãoética? Que espera alcançar? Que pode alcançar?

Page 125: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Nem cinismo nem otimismo ingênuo

As perguntas que formulamos no parágrafoanterior nos obrigam a recordar o panorama dahistória humana que esboçamos no capítuloprecedente. O ponto de vista cristão acerca da históriahumana é dramático. Não se trata de um progressoautomático que conduza harmonicamente a um estadoideal. O homem não é um ser inocente ousimplesmente racional a quem basta ensinar e colocarna senda do bem para que se dirija, naturalmente, aseu bom destino. Nem sequer o cristão está livre dopoder destruidor e sedutor do mal. A História, pelocontrario, é o campo de combate do propósito bom esaudável de Deus e das forças de destruição, do caos,da opressão, da antijustiça, da antipaz. E o cristãoconhece essas forças porque experimenta cada dia,em si mesmo, esse combate, do qual nunca sai, nestavida, definitiva e totalmente vencedor.

O resultado final desse combate não está emdúvida. O que o mal já não pôde fazer - derrotar opropósito de Deus retendo na morte a Jesus Cristo -não mais o poderá fazer. Sua sorte está lançada. Omal não tem futuro. Neste sentido a fé crista é total eirrevogavelmente otimista. Mas essa vitória não évisível de imediato nem experimentável: é objeto de fé,de confiança e da ação que se atreve a basear-senessa confiança, a viver em termos do Reino vindouro.Esta situação, que exemplificávamos no capítuloanterior com algumas figuras; constitui o marco dereferência do cristão. Nem cinismo nem otimismoiluso, mas realismo e esperança: consciência da luta,sobriedade na apreciação das próprias possibilidades

Page 126: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

e segurança inquebrantável na promessa.

Assinalávamos no capítulo anterior trêsconseqüências desta situação. A atitude do cristãocaracteriza-se pela esperança, pela inadaptação aoestado atual de coisas e pela antecipação do futuro. Énecessário sublinhar dois aspectos destas indicações.

1) Mais de uma vez tem-se dito que a esperançacristã na vida eterna ou em um reino vindouro mina osesforços por mudar as condições deste mundo. Porum lado, o cristão se concentra nas coisas por vir,olvidando ou menosprezando as presentes. Ausenta-se do mundo, afetiva e psicologicamente, e Ihe diminuio esforço. Sua "cidadania" está em outra parte econsidera este mundo como um simples lugar depassagem ao qual há de dispensar a mínima atençãopossível. Por outro lado, convencido de que a únicacoisa perdurável é a alma, desinteressa-se dosproblemas de ordem social: a figura do crente que falade religião a um homem faminto é quase um clichê nadenúncia dessa ultramundanalidade. Finalmente, aIgreja tem mantido o povo em submissão, exortando-oa obedecer e continuar submisso as condições maisintoleráveis, com a promessa de que "em outra vida"seria recompensado por suas desventuras. Aesperança do Reino e a vida vindoura seriam, pois, osinimigos da presente ação ética.

Devemos admitir com toda honestidade, e compesar, quanto há de verdade nas acusações aoscristãos. As críticas que foram mencionadas têmveracidade suficiente para levar-nos à reflexão e aoarrependimento. A consciência de que assim é, cala

Page 127: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

cada vez com maior profundidade no povo cristão.Muitas igrejas têm reconhecido publicamente suacegueira e inércia, sua debilidade na luta por uma vidamelhor para o homem, seu injustificado menosprezopela vida corporal e terrenal. Ao mesmo tempo, opensamento teológico tem estado redescobrindo aimportância do corporal e terrenal no pensamentobíblico. Percebemos que aquilo a que chamamos deestreitamento individual e estreitamento espiritualista,no capitulo anterior, são deformações do pensamentobíblico. Além do mais, os estudos bíblicos nosmostram que a idéia de imortalidade da alma - comseu conseqüente desprezo pela vida corporal já nopresente - é alheia ao testemunho da Escritura. Avisão cristã do futuro contempla "um novo Céu e umanova Terra", uma ressurreição corporal (se bem quecom uma corporalidade distinta da presente), emsíntese, uma vida futura concreta e comunitária -alguns diriam inclusive temporal - e não o descarnadomundo de almas que tantos estragos tem feito naconsciência moral crista.

A consciência desta falha tem levado algunscristãos a menosprezar a importância da esperançacristã, ou simplesmente declara-Ia irrelevante. Diz-seque não Interessam a vida futura nem o mundo por vir;o que o cristão deve fazer é simplesmente ocupar-seem melhorar o presente, viver em amor sua vidaterrenal. O demais é especulação, ou não interessa.Parece-nos que esta atitude é igualmente equivocada,tanto do ponto de vista da interpretação da fé cristãquanto do ponto de vista da ética. Pelo contrário,parece-nos que só uma adequada consideração daesperança cristã provê a visão, o estimulo e a

Page 128: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

fundamentação de uma ética verdadeiramente ativa etransformadora. Sem entrar em profundidade nestetema, gostaríamos de fazer duas breves observações.

a) Foi um marxista, Ernst Bloch, quem assinalounos últimos anos, com brilho singular, a importânciaética do "principio da esperança" que tem suas raízesna herança hebreu-cristã.33 Não nega que,transformando em especulação metafísica ou emmagia sacramental - não nos esqueçamos de que suavisão não é a de um crente - teve conseqüênciasnegativas. Mas insiste em afirmar que nessa visãoesperançosa do futuro reside a força motivadora deuma verdadeira vocação revolucionaria. A esperançado Reino, parece-nos, é uma dinâmica geradora detransformações na sociedade enquanto mantém anteos olhos do crente a visão de um mundo novo ondehão de reinar a verdadeira justiça e a verdadeira paz,visão essa de plenitude total da qual falamosanteriormente. Quem haja tornado consciênciaprofunda dessa visão não pode conformar-se comnenhuma situação existente. Como o expressoubelamente um teólogo contemporâneo: "O aguilhão dofuturo punge a carne de todo presente não cumprido."O cidadão do Reino por vir é, portanto, um "rebelde"em qualquer situação estática. Sua atitude épermanentemente "revolucionária" enquanto olhacriticamente toda ordem social, medindo-a à luz doReino que aguarda. Esta desconformidade não é, nãoobstante, anárquica - uma simples rebeldia destruidora- porque a visão do Reino proporciona normas daclasse de sociedade que buscamos. O metro paramedir toda sociedade, e portanto a visão paratransformá-la, é dado na índole de vida, de relações,

Page 129: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

de condições do Reino que esperamos.

Esta realidade aguardada não é, para o crente,apenas futuro. Experimentou-a como vida nova, comoliberdade e gozo, em sua própria vida. Embora essaexperiência seja agora limitada e imperfeita, é, nãoobstante, real. O "novo" não é, para ele, uma simplesutopia: o novo lhe aconteceu. O crente conhece aDeus como quem é capaz de criar coisas novas, deabrir portas aparentemente fechadas, de superar asbarreiras da própria morte. Esse poder, do qual vive,sabe-o universal e soberano. E, por conseguinte, podeatrever-se a "jogar a vida" por coisas que ainda nãosão, realidades que parecem impossíveis mas que ocristão sabe que correspondem ao Reino cujapoderosa presença em Jesus Cristo ele pré-gostou jáem sua própria vida na comunidade de fé. Aexperiência da salvação, longe de ser um narcótico, éum estimulante: o cristão não pode conformar-se commenos que a plenitude da vida "da qual sentiu ogosto". E essa plenitude significa a transformação detodas as coisas segundo o governo justo e benfeitorde Deus.

b) Que dizer acerca da vida eterna, a confiançarepetidamente expressa no Novo Testamento de quequem morre em Cristo não fica separado de suacomunhão? Dissemos que a idéia de imortalidade daalma não é especificamente cristã. É cristã, sim, aafirmativa da continuação da vida pessoal além damorte. Não é esta uma espécie de compensação quedebilita para a luta nesta vida? Embora tenhamos dereconhecer que o tem sido para muitos, especialmentepor causa de uma falsa interpretação de seu

Page 130: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

significado, parece-nos que pode ser o mais poderosoestímulo para a ação.

Por fé, o cristão deixou sua morte para trás;nessa medida, não tem por que esforçar-se emassegurar a vida; há, portanto, uma disponibilidadeque não se deixa limitar pela ameaça que em outrascircunstâncias parece insuperável - a morte. O cristãopode arriscar a vida. Muitos o têm feito (nem semprepelas melhores causas!). Também o têm feito não-cristãos, movidos às vezes por um amor que oscrentes não podemos deixar de admirar e de louvar aDeus por ele. Trata-se aqui, não obstante, de tomarconsciência da liberdade de entrega dos que sabemque "nem a morte... pode separar-nos do amor deDeus que está em Cristo". A força deste argumentonão há de ser provada em discussões mas nas vidascristãs que realmente se exponham - o nome deMartin Luther King vem de imediato à memória - paraalcançar uma vida melhor para os demais.

Todo processo de transformação social, inclusiveos chamados "não violentos", é custoso: há pessoasque se sacrificam para alcançar os níveis dedesenvolvimento e industrialização que permitam umavida melhor a gerações futuras. É elementar que taissacrifícios só podem ser exigidos quando se exigecom justiça - para todos. Os cristãos deveriamdemonstrar sua "disponibilidade" sendo os primeiros asuperar inclusive o exigido, a pagar de si mesmos - desua comodidade, de suas posições, de seu trabalho,de sua própria vida - o preço da transformação. Hámais, porém: o sacrifício exigido dos que não podemcompreendê-lo, dos que não conheceram outra vida

Page 131: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

senão a dor, a pobreza e, finalmente, a morte. É difícilver como um simples apelo em favor do bem-estar degerações futuras, da solidariedade com a raça ou aclasse ou a nação possa responder adequadamente aesta pergunta, a menos que se dissolva a existênciapessoal em um mero coletivismo, ao qual apenas restasentido humano. Quando Dostoiewsky - sem dúvidaum homem a quem não se pode tachar de reacionário- diz que todas as conquistas sociais do mundo nãopodem compensar uma lágrima de uma criança, dáexpressão a uma realidade moral profundamentehumana e cristã. Não há compensação por umaexistência pessoal; não é simplesmente um "custo"que se possa compensar com outros “lucros”. Só umafé que transcende a morte pode assumirresponsavelmente a terrível decisão detransformações indispensáveis, porem custosas.Compreendemos que este é um argumento perigoso,facilmente tergiversável. Mas ao mesmo tempo nosparece um elemento ético decisivo em todaconsideração da realidade em que vivemos.

2) As últimas observações já introduziram o temado sofrimento inerente à ação ética. Para o cristãoeste é um fato inevitável e significativo. Suas raízes seafundam na própria natureza da vida cristã e suarelação com Jesus Cristo. Ser crente significa, comefeito, participar no movimento do amor que trouxeJesus Cristo a compartilhar a vida humana,esvaziando-se de seu poder e glória, assimilando-se àfragilidade, à tentação e inclusive à culpa dos homens,e, finalmente, rendendo sua vida na cruz. Não é umasimples "imitação", mas a participação na sorte doamor solidário, o único que realmente pode criar a

Page 132: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

possibilidade de nova vida para o homem. Por issoPaulo não vacila em mencionar seus própriossofrimentos, tanto interiores e espirituais quantomateriais, como sua participação no "que ainda restapor preencher nos sofrimentos de Cristo". Não quefalte algo ao que Cristo fez, e, sim, que ele abriu umaforma de servir aos homens na qual o Apostolo entra,pagando o preço, ou como diz o próprio Jesus,"tomando sua cruz".

Não é qualquer sofrimento que tem este caráter:trata-se daquele que surge de assumir aresponsabilidade pelos outros em amor, do ate de dar-se: "Ninguém tem maior amor do que este, quealguém de sua vida por seus amigos" - ou como bem ocomenta Paulo, - por aqueles aos quais ama, contudoainda se consideram seus inimigos. É o sofrimentoimerecido que vem emparelhado com o serviço. Porque há de ser assim? A resposta é muito simples:vivemos em um mundo que voltou as costas ao amor,o mundo da injustiça, o mundo que aceita as pautas enormas do anti-Reino. Quem pretenda (cristão ounão!) introduzir em sua vida e ação a forma de vidaque corresponde à verdadeira Humanidade, a justiça ea paz do Reino, andará inevitavelmente "nacontramão", contra a corrente, "intoleravelmente". Omundo velho ressente-se da presença deste corpoestranho e luta por eliminá-lo. Às vezes o consegue - eentão o cristão alcança a consumação de suasolidariedade com Cristo: ser "testemunha até osangue".

Devemos cuidar de entender bem o que está emjogo aqui. Não se trata da autoflagelação que encontra

Page 133: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

no sofrimento um fim em si mesmo, com supostosresultados meritórios ou de purificação. É que serdiscípulo e alistar-se em um conflito que se avoluma,por mais que seu resultado já seja evidente a fé.Compartilhar a sorte do Capitão, "ser achados dignosde sofrer com Cristo" e "por ele", de colocar corpo ealma, a vida inteira, a seu lado no combate, é o maiorgozo que possa ter o soldado. Compartilhar a vitória,participar no cortejo triunfal não é um fato isolado, quese "compra" com o sofrimento anterior; é partedaquela mesma participação, de haver-se feito um —não de haver sido feito um — com o Senhor. E avitória e o cortejo triunfal constituem o triunfo último dopropósito de amor, a consumação do Reino do qualdepende a esperança de todos — vencedores evencidos. O triunfo final de Deus não é outra coisasenão o bem dos homens. Por Ele, com Cristo, ocrente estará cheio de gozo por pagar o preço.

A relatividade e a promessa da ação

Devemos voltar brevemente às perguntas comas quais iniciamos o capítulo. Vale a pena esforçar-se? Já vimos que o cristão evita tanto um cinismoparalisante quanto um otimismo ingênuo. A visão doReino, a segurança da vida eterna impedem-no decriar ilusões acerca do que sua ação pode obter aomesmo tempo que o impulsionam a lograr o queefetivamente seja possível em direção ao Reino. Istosignifica, necessariamente, ações incompletas eimperfeitas. Pode-se, em consciência, praticar taisações? Que relação têm com o Reino?

Page 134: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Toda ação que praticamos tem um duplo efeito:de um lado mostra aos demais, revela-lhes o quesomos; de outro, obtém certos resultados. Um pedaçode pão dado a um faminto manifesta meu interessepor ele e lhe sacia a fome. Tanto o caráterdemonstrativo quanto o eficaz de um ato têmimportância: um ato puramente demonstrativo, quenão se preocupasse com o resultado efetivo da ação,seria, finalmente, uma mentira; do contrário, seriaimpessoal e inuma no. A medida de efetividade edemonstratividade de uma ação varia segundo oscasos. Mas ambas as coisas estão limitadas por váriosfatores. O primeiro se constitui de meios disponíveis:tempo, dinheiro, influência, estruturas e outros. Possoutilizar alguns, criar outros. Mas em qualquer caso,dependo desses meios. Seria bom, talvez, que todojovem tivesse educação secundária e universitária.Mas os países latino-americanos não podem fazê-lo —ainda quando concentrem nisso todos os seusrecursos. Seria desejável que as classes escolaresfossem de grupos de 10 a 15, atendidos porprofessores que pudessem consagrar-lhes tempointegral. Tal coisa, porém, está fora de alcance denossa sociedade. Empregar os recursos em umaatividade significa diminuí-los em outra quando nãopodem ser aumentados. Há medidas de emergênciaque devem ser tomadas até que se possam realizartransformações mais fundamentais. Este tipo delimitações nós as experimentamos na vida pessoaltanto como na vida em sociedade. Só posso executare demonstrar o que permitem os meios a meu alcance.

Minha ação está igualmente limitada por meuconhecimento. O que será melhor a longo prazo:

Page 135: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

permitir que meu filho falte amanhã à escola paraevitar a compulsão e rigidez que tanto mal têmcausado a alguns, ou exigir dele que compareça paraajudá-lo a compreender a disciplina inerente a umavida verdadeiramente humana? Aqui devo pôr em jogoo que sei acerca de meu próprio filho, de seuscaracterísticos e motivações, o que conheço depsicologia da pessoa, o que posso antecipar da classede vida e contribuição humana que lhe caberá. Ê tãoimperfeito meu conhecimento destas coisas todas! Sedevesse adiar minhas decisões até que tivesse umconhecimento cabal de todos os fatores, condenar-me-ia à esterilidade. Sempre atuamos um pouco às cegas.

Finalmente, estão minhas próprias motivações:estou ajudando esta pessoa a resolver seu problemamatrimonial porque tenho verdadeiro interesse nele ouporque me agrada a sensação de poder e domínio deter em algum sentido sua vida em minhas mãos?Castigo meu filho por amor ou por despeito? Integro-me na luta em prol de reivindicações outransformações sociais por amor do Reino ou poralgum ressentimento? Muitas vezes percebemos aambigüidade de nossas motivações, inclusive suahipocrisia em certos casos. Outras vezes não estamosconscientes desse fato. Mas essa duplicidade oucomplexidade de motivações quase sempre existe.

Havemos de admiti-lo: nossa ação é imperfeitaem sua concepção, em seus meios, em suamotivação. Dificilmente podemos fazer um bem semdeixar outro maior por fazer ou sem provocar algummal: raramente beneficiamos alguém sem prejudicaroutrem. Todos pensamos em seguida nos casos

Page 136: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

extremos da guerra e da violência. Mas as milviolências que praticamos diariamente ao escolher aquem ajudaremos (e portanto a quem nãoajudaremos), em que coisas nos ocuparemos (eportanto das quais nos despreocuparemos) e outrasmil, são igualmente reais e inevitáveis. Aguardar osmeios, o conhecimento, a ação e a motivação ideais écondenar-nos à inação — e as conseqüências dainação (que se medem nas possibilidades que teriampodido, efetivamente, realizar-se) são ainda maisgraves. Foi ante essa tímida escrupulosidade queLutero escreveu a Melanchton as palavras que,amiúde, têm sido mal interpretadas: Pecca fortiter —mas sem temor — e acrescentou: sed fortius crede— mas tem confiança ainda com maior vigor. Crer éatrever-se a entrar no reino ambíguo da ação,conscientes dos erros e das falhas que havemos decometer, mas confiados no amor de Deus. O cristãonão entra na luta ética a fim de garantir, com sua ação,a boa vontade divina; fá-lo seguro dessa boa vontadea fim de servir a seu próximo como melhor possa.Suas falhas se acham de antemão cobertas peloperdão de Deus — a única coisa que Deus não toleraé o egoísmo que recusa o serviço por medo demanchar-se, porque isso é falta de fé. A ambigüidadeda ação moral não é óbice para quem confia no amorde Deus. Essa é a fonte da liberdade do crente.

2) Essa ação, entretanto, envolta emambigüidade, tem sentido em vista do Reino futuro?Ante o branco absoluto do Reino não são grises todosos nossos brancos? e tem sentido distinguirtonalidades de gris? Para que preocupar-nos emmelhorar a vida neste mundo se não podemos

Page 137: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

aperfeiçoá-la e de qualquer maneira há de serfinalmente eliminada?

A primeira resposta do Novo Testamento é que avida neste mundo, tem sentido porque é aqui onde ohomem pode escutar o anúncio do evangelho, e seabrir à nova humanidade que sé lhe oferece em JesusCristo. Por isso, diz a carta a Timóteo, devemos pe dire desejar uma vida justa, ordenada, de paz, entre oshomens. Deus quer que os homens vivam uma vidahumana, que este mundo seja um mundo habitável —a fim de que recebam o anúncio da promessa. Tornarhabitável o mundo é participar na ação da providênciae cuidado de Deus. E estas são parte da mesma açãoredentora que alcança sua plenitude no Reino.

O Reino é, assim, a destruição e eliminação“deste mundo” enquanto mundo in justo, em guerra,em rebeldia, enquanto é um mundo anti-humano,enquanto é o anti-Reino. Porém é também a perfeiçãoe a transformação, a plena realização de tudo o que éjustiça, paz e verdadeira vida; é a plena iluminaçãodos sinais que cristãos e não cristãos têm conseguido,pelo poder de Deus, instituir já aqui, a verdadeira vida.Tudo o que aqui tem significado, por mais imperfeitoque seja, é redimido no Reino. Por isso, Paulo afirmaque, quando a fé e a esperança já não tenham maislugar, por que chegou a realidade evidente, o amornão deixará de ser porque constitui a qualidade deexistência mesma do Reino. Tudo o que o amorconstrói, portanto, tem permanência. E isso que Jesusensina na parábola do juízo final: não é umarecompensa artificial por atos de misericórdia. O pãoao faminto e a água ao sedento, o auxílio ao

Page 138: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

necessitado, ao encarcerado, ao enfermo,representam a qualidade de vida que tem seu futuro erealização no Reino — os que a realizam secomprometem na ação do próprio Jesus Cristo, jápertencem ao Reino. Quando este se manifesta,também ficará manifesta sua participação nele. A lutacontra a enfermidade e a misericórdia, a provisão deum espaço físico e moral em que os homens possamviver como tais, não carecem de significado, sãoprolongados, aperfeiçoados, manifestos nele. Muitasperguntas a esse respeito ficam no aguardo desolução. Mas esta afirmativa central concedesignificado à ação moral, ainda imperfeita, que já estáa nosso alcance.

Não podemos concluir estas reflexões sem umareferência ao que a ética teológica tradicional chamava“os deveres para com Deus”. No Antigo Testamento osmandamentos iniciam com o de adorar exclusivamentea Deus, não fazer para si imagens nem adorá-las, eguardar o dia de descanso. E ao resumi-los, Jesus nãoomite a intimação do Levítico: “Amarás a Deus sobretodas as coisas. . .“ Aqui a ética costumava falar daoração, do culto, inclusive — especialmente a éticacatólica romana — a freqüentação dos sacramentos.Faz, tudo isto, parte da ética cristã?

É possível que tanto os que a incluíram como osque hoje a excluem errem da mesma maneira. Não sepode negar que mais de uma vez se têm explicadoestes “deveres” como ações independentes,significativas em isolamento, separáveis do restante, a“primeira tábua” da lei, que depois é complementadapela segunda. Daí derivava a discussão acerca da

Page 139: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

prioridade destes deveres, os possíveis conflitos entreas duas “tábuas” e a preeminência dos deveresreligiosos. O protesto legítimo contra tal preeminência— baseado em muitas passagens proféticas e deJesus mesmo — amiúde aceitou sem exa me aseparação que os primeiros haviam estabelecido. Combase nele formulou sua posição: o único serviçolegítimo é o do próximo. A Deus não interessa o cultomas a justiça; o amor ao próximo é a melhor oração; oserviço aos pobres é uma comunhão, pois estes sãosacramentos da presença de Cristo.

O que se deveria pôr em dúvida é a separaçãoem ambas as alternativas. E a primeira parte dosMandamentos uma série de “deveres religiosos” ou é adescrição do pacto com Deus no qual o povo de Israelentra e que se manifesta na classe de relações que asegunda parte prescreve? Separá-los é como separaras promessas matrimoniais da vida diária do casal. Oamor a Deus não é “outro preceito” além do amor aopróximo: é a relação de pacto com Deus na qual opróximo e tudo o que ele representa ficam envolvidosindissoluvelmente. Se isto é assim, então é absurdopensar no cumprimento de deveres religiosos prévios,separados ou independentes. Esta corrupção é que osprofetas e Jesus condenam acerbamente. Mas éigualmente absurdo depreender do pacto com Deus aqualidade de ação que corresponde ao pacto. Carentede fundamento e sentido, tal ação se murchará oubuscará algum outro fundamento ideológico oufilosófico (com a conseqüente modificação de seusentido!). Não existe amor ao próximo sem que eusaiba quem sou e quem é meu próximo; não há lutapela justiça sem motivação e meta. E para o cristão,

Page 140: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

só no pacto com Deus, na livre e comprometidarelação com Ele, sei quem sou e quem é meu próximo,o que é a justiça e para onde caminha a Humanidade.

Esta relação com Deus é concreta, total ecomunitária. E necessita, portanto, e se serve demeios de expressão e realização que correspondem anossa natureza corporal, histórica, comunitária. Deusnos concedeu esses meios e os dotou de significado:a Bíblia, a oração, a água do batismo, o pão e o vinho,a comunhão fraternal — estes constituem os sinaisvisíveis do pacto. Por eles recordo e aprendo de novo,cada dia, quem sou, quem é meu próximo, o que é oReino, quem é Deus. Rejeitar os sinais é comopretender amar a meu próximo sem vê-lo, semconhecê-lo, sem servi-lo em seu estado corpóreo,amá-lo em algum recanto de meu se interior. O amor aDeus sem culto é como o amor ao próximo semserviço — quando menos um engano próprio,freqüentemente uma farsa.

É necessário dizer uma coisa mais, e decisivapara a ética cristã. Talvez será melhor fazê-lo naspalavras da epístola aos Colossenses. O capítulo trêsinicia com um chamado à nova vida que Deus tornoupossível na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Daísurge a exortação ética à classe de existência diáriaque cabe a essa vida, a nova Humanidade em que asdistinções de cultura, classe ou raça desapareceram.Mais adiante se analisam as relações (marido/mulher;pau filho; senhor/escravo) e o comportamento quecabe ao cristão. E no meio irrompe esta estranhaexortação “religiosa”:

Page 141: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Que a palavra de Cristo resida em vocêscom toda sua riqueza. Instruam-se naverdadeira sabedoria, corrigindo-se uns aosoutros. Cantem a Deus com gratidão e detodo coração, hinos e cânticos inspirados.Tudo quanto possam dizer ou realizar, queo façam sempre em nome do Senhor Jesus,dando graças a Deus Pai por ele.(Vs.16-17).

Aqui não há separação de esferas — tudo estásob o sinal da nova criatura: tudo no âmbito dagratidão cheia de gozo a Deus, tudo na esfera dasoberania de Jesus Cristo. A vida da congregação seprolonga nas relações sociais diárias. E estas senutrem daquela, onde a Palavra de Cristo, o louvor deDeus, a mútua exortação e repreensão fazempresente a direção e o poder do Espírito Santo, sem oqual não há ética cristã. Porque sabemos que “aesperança não ficará de fraudada, porque o amor deDeus foi derramado em nossos corações pelo EspíritoSanto que nos foi dado”.

Page 142: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

(As notas que se seguem não constituem tantodocumentação do texto quanto indicaçõesbibliográficas introdutórias para quem deseje ampliaralguns dos assuntos simplesmente aludidos ouligeiramente considerados nesta pequena obra.)

1 A história das idéias morais está estreitamentoligada à dos sistemas filosóficos, embora devamosadmitir que umas e outros não são independentes dodesenvolvimento social, econômico e cultural geral,assim como da consciência religiosa. Na Antigüidade,as éticas relacionadas com o platonismo, o estoicismo eo epicurismo são as mais conhecidas. Na Era Moderna,o sistema filosófico de Kant deu um grande lugar àética do dever e da intencionalidade, enquanto váriosfilósofos ingleses e norte-americanos elaboraram éticasutilitaristas e pragmáticas. Mais recentemente omarxismo e o existencialismo introduziram umaconcepção nova do homem com o conseqüentesignificado ético. Qualquer história da Filosofiapermitirá traçar as linhas principais dessedesenvolvimento. Em forma muito amena e acessível ofaz o livro de Will Durant: La historia de la Filosofia(Santiago de Chile, Letras Imp., 1937). Quem desejeaprofundar-se mais na história da Ética pode orientar-sea partir das seguintes obras: Las grandes líneas de lafilosofía moral, de Jacques Leciercq (Madrid, Gregos);La ética moderna, de Teodor Litt (Madrid, Revista deOcciderite, 1932); La conciencia moral, de H. Zbindene outros (Madrid, Revista de Occidente, 1961). Vários

Page 143: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

pensadores cristãos têm elaborado éticas em diálogocom estes diversos sistemas. Em castelhano há algunstratados de ética cristã, mais amplos e sistemáticos quemostram breve introdução. Ética cristiana, de AlbertoKnudson (Buenos Aires, La Aurora, 1954) discutevárias posições (Barth, Brunner) de um ponto de vistaliberal. Paul Lehman, em sua obra Ética en el contextocristiano (Montevidéu, Alfa, 1968) desenvolve suaética a partir das idéias bíblicas de comunhão ecomunidade cristã, maturidade e natureza da ação deDeus na História como o testemunho bíblico aapresenta. Sua apresentação e discussão dos sistemasfilosóficos são particularmente significativas. O teólogoalemão Dietrich Bonnhoeffer deixou, ao morrer, emmãos do nazismo manuscritos incompletos que forameditados em sua Ética (Barcelona, Estela, 1968) na qualtrata com profundidade o assunto da “conformação aJesus Cristo” bem como os usos da lei e a distinçãoentre o último e o penúltimo. A ética católica romanamais importante dos últimos anos é a de BernhardHaring, La Ley de Cristo (Barcelona, Herder, 1958).Recentemente se discutiu muito a chamada éticasituacional, que insiste em decisões éticas particulares,vinculadas às circunstâncias imediatas. Neste sentido aobra clássica é o livro de John Fletcher, Ética desituación (Barcelona, Ediciones Anel, 1970).

2 Uma nova ciência, a prospectiva oufuturológia, oferece os meios para estudar

Page 144: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

racionalmente as conseqüências das condições e fatorespresentes e previsíveis, projetando-os sobre o futuro.Sobre esta base é possível, também, planejar asmodificações necessárias, introduzindo mudanças,novos fatores etc., necessários para lograr os efeitosdesejados. Embora esta nova ciência possa ser posta —e de fato o está — a serviço de uma política reacionária,também pode ser considerada útil para alcançar astransformações que possibilitem uma vida humanamelhor. A obra clássica da futurologia é o livro de H.Kahn e A. Wiener, El año 2000 (Buenos Aires, Emecé,1969). O Conselho Mundial de igrejas iniciou umestudo sobre o significado ético desta ciência do pontode vista cristão. Infelizmente, os trabalhos produzidosainda não estão em castelhano. Em inglês se pode lercom muito proveito From Here to Where —Technoiogy, Faith and the Future of Man (Genebra,1970).

3 Traduzido para o castelhano, El hombremorai y la sociedad inmoral (Buenos Aires, EdicionesSiglo Veinte, 1966).

4 A citação é de um livrete de Ross, Sin andSociety (Houston, H. Mifflin Co., 1907), que pertence àcorrente chamada “o evangelho social”, que nos Estados Unidos, especialmente, teve seu auge nas primeirasdécadas deste século. Sua grande contribuição foiadvertir que na sociedade moderna tanto o pecado

Page 145: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

quanto a libertação dele tinha conotações sociais e nãomeramente individuais, já que o homem se encontraimerso em estruturas. Seu ponto fraco foi uma compreensão unilateralmente ética (muito influenciada pelaética liberal e pelo pensamento de Kant) e um tantosuperficial. Em castelhano pode ver-se o interessantelivrete de W. Rauschenbush, talvez o melhor expoentedo movimento, Los principies sociales de Jesús(Buenos Aires, La Aurora, 1947). Foi Marx, semdúvida, o primeiro que observou claramente como adivisão do trabalho, inevitável com o progresso técnico,criava novas condições de vida e formulava umaproblemática ética diferente.

5 Tem-se discutido muito sobre a relação entre oprotestantismo e o surgimento do capitalismo. Osociólogo Max Weber sustentou a tese de que oconceito calvinista de predestinação, tal comoposteriormente se desenvolveu, especialmente nopuritanismo inglês, ao estimular a atividade e o êxitocomo sinais da aceitação divina, e dirigir essa atividadepara o mundo, estimulou as virtudes da industriosidade,do esforço e da poupança, que foram essenciais aoavanço do capitalismo em suas primeiras fases. Aposição deste autor, desenvolvida em seu livro La éticaprotestante y el espíritu del capitalismo (Madrid,Revista de Derecho Privado, 1956), foi corrigida,mostrando-se que o fenômeno do capitalismo temoutras causas, que já havia começado antes da Reforma,

Page 146: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

particularmente em cidades da Itália, e que em qualquercaso a influência foi mútua. Veja-se a respeito A.Fanfani, Catolicismo y Protestantismo en la génesisdel capitalismo (Medrid, Ediciones Rialp, 1953), esobretudo, R. H. Tawney, La religión en el origen delcapitalismo (Buenos Aires, Ed. Siglo Veinte, 1967).Sobre a relação entre as condições da produção e dapersonalidade, veja-se o interessante estudo de ErichFromm, Psicoanálisis de la sociedad contemporânea(México, Fondo de Cultura Económica, 1960),especialmente os capítulos quinto e sexto.

6 Em repetidas ocasiões faremos referência àsmanifestações, demandas e atitudes da juventudecontemporânea, porque parecem formular de maneiramui to aguda a problemática ética de nosso tempo. Há,nesta problemática, um duplo aspecto, estreitamenteinter-relacionado. De um lado, os jovens têm umaaguda consciência de ser manipulados, utilizados pelasestruturas da sociedade e constrangidos por ela a umaadaptação ou conformação que reduz o homem desujeito responsável a coisa, que o suprime comohomem. Nesse sentido se explica a enorme repercussão,entre a juventude universitária do mundo todo, dasobras do filósofo Herbert Marcuse, que soube percebere desmascarar o profundo condicionamento, controle,conformação, que a moderna sociedade tecnológica esupostamente “racional” exerce mediante suasinumeráveis formas de coerção (repressão) direta e

Page 147: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

indireta. Veja-se especialmente a obra clássica deMarcuse, El hombre unidimensional (México,Editorial J. Moritz, 1968). O tema reaparececonstantemente nas canções e na poesia de protesto(comparem-se, por exemplo, entre nós, algumas daspoesias de Maria Elena Walsh, e num plano diferente, acanção “Bronca” que se tornou tão popular há algumtempo, no Rio da Prata). Na revolução estudantil demaio de 1968, em França, os lemas que apareciam nosmuros da Universidade refletiam este motivo principal:recusamo-nos a ser classificados, matriculados,organizados, ordenados, uniformizados, enquadrados.Por outro lado, há em algumas manifestações dajuventude um chamado à espontaneidade e àcomunicação e se”fazem tentativas para encontrarformas de espontaneidade, comunicação, criatividadeque destruam esses condicionamentos. Um autorcatólico analisa com muita sagacidade a “busca desinceridade” no livrete Nuestra avidez de sinceridad(de Fons Jansen e Lund Stallvert, Editorial CarlosLohlé, Buenos Aires, 1962). Sem dúvida o movimentochamado “hippie” tem sido o mais chamativo e,deixando de lado algumas de suas facetasextravagantes, merece a maior consideração. A respeitorecomendo a obra de M. Randali, Los hippies,expreslón de una crisis (Editor Siglo Veintiuno,1970), onde se citam também outras fontes e obras. Nolivro El cristiano, la Iglesia y la revolución (BuenosAires, La Aurora, 1970, pp. 177-187) LambertSchuurmann relacionou de forma muito interessante os

Page 148: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

temas da “revolução juvenil” e os da “revoluçãocultural” de Mao Tse Tung.

7 A formulação inicial deste capítulo descansaprincipalmente sobre a epístola aos Gálatas, cujosignificado ético foi central à Reforma, particularmentea Lutero, por sua ênfase na liberdade cristã, ao mesmotempo que sobre o serviço em amor. Recordamos oparadoxo no qual Lutero expressa a essência mesma daética cristã: o cristão é senhor de todas as coisas porquefoi libertado por Jesus Cristo e ao mesmo tempo é servode todos em amor. Quem deseje aprofundar-se namensagem da epístola encontrará uma valiosaorientação no comentário de Karl Lenkensdorf,Comentario sobre la epístola a los Gálatas (México,Ediciones “El Escudo”, 1960).

8 O termo “mundo” é um dos mais flagelados naTeologia e sobretudo na pregação e na exortação dasigrejas. Parte do problema reside no fato que nossasversões traduzem às vezes por essa palavra o grego“kosmos” (o universo), “aion” (idade ou era),“oikoumene” (a terra habitada). Por outro lado, nemtodos os autores bíblicos empregam sempre a mesmapalavra no mesmo sentido. No evangelho e nasepístolas de João, por exemplo, fala-se do “mundo” aoqual Deus ama e não quer condenar, referindo-se, semdúvida alguma, à Humanidade, para salvar a qual Deusenviou seu Filho (João 3.16-17), mas também do

Page 149: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

“mundo” como a estrutura da maldade que rejeita aDeus e que não recebe ao Filho (1.10 etc.). Dado que aidéia de “fugir do mundo”, de repudiar o “mundano” —indubitavelmente tem um lugar no pensamento bíblico— desempenhou um papel tão importante na éticacristã, ignorando muitas vezes estas distinções tãoimportantes para a Bíblia, e levando a um repúdio oumenos prezo do que Deus criou e a um ascetismo quenão tem fundamento bíblico, é muito importante oesclarecimento deste conceito. Por outro lado, tambémpresenciamos hoje, como reação, uma espécie deexaltação otimista do “mundo” como criação e comoobjeto do amor de Deus, olvidando as severasadvertências bíblicas sobre o poder do mal.Recomendamos ao leitor interessado começar pelosartigos sobre “mundo” nos seguintes dicionáriosbíblicos: J.-J. von Allmen, Vocabulário Bíblico,ASTE, São Paulo, 1963, art. “Mundo”); Haag, Dorn,Ausejo, Diccionario de la Biblia (Barcelona, Herder,1963, católico, art. “Cosmología”); S. Leon Dufour,Vocabulario de Teología Bíblica (Barcelona, Herder,1966, católico, art. “Mundo”). Um estudo bemprofundo do assunto se encontrará na obra do teólogocatólico, J.-B. Metz, Para una teología del mundo(Santander, Sígueme, 1970).

9 A famosa frase, muitas vezes mal interpretada,aparece nas “Exposições da Epístola de S. João aosPartos”, de Agostinho (Exp. VII, 8). O autor mostra

Page 150: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

como uma mesma ação pode proceder de diferentespropósitos, e portanto, só pode ser julgada “em relaçãocom sua raiz”. A caridade (o amor) é a raiz que produzuma boa ação: “Não se distinguem os feitos doshomens a não ser pela raiz da caridade. Muitas coisaspodem ser feitas que na aparência são boas, mas nãoprocedem da raiz da caridade... Ouve, pois, de uma vez,um breve preceito: Ama e faze o que quiseres; se tecalas, clamas, corriges, perdoas, cala-te, clama, corrigee perdoa pela caridade. Dentro está a raiz da caridade;não pode brotar dela mal algum.” É preciso recordarque Agostinho chama de “caridade” o amor a Deuspossibilitado, por sua vez, pelo amor de Deus a nós,isto é, o amor que brota da fé. Este amor constitui, aomesmo tempo, a motivação de nossas ações epossibilita o discernimento para realizá-lasconcretamente. O amor a Deus e ao próximoconstituem uma só realidade. Esta doutrina agostinianado amor tem um pano de fundo complexo tanto naEscritura como no pensamento filosófico, que nãopodemos agora expor, mas a famosa frase capta muitobem o espírito do texto da 1ª epístola de João (4.4-12)que expõe. Quanto à citação de Lutero, rezatextualmente como se indica mais abaixo, e aparece nas“Teses acerca da fé e da lei”, de 1535 (WA 39/1, pp.44-62). “52. Porque, se temos Cristo, podemosfacilmente estabelecer leis e julgaremos retamente detodas as coisas.” “53. Em verdade, poderíamos fazernovos decálogos, como o faz Paulo, em todas as suasepístolas e, sobretudo, Jesus no evangelho.” “56. ... o

Page 151: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

cristão, cheio do Espírito, [é] capaz de ordenar umdecálogo e julgar com toda correção acerca das coisas.”Certamente, Lutero reconhece que, de fato, os cristãossomos “inconstantes no Espírito” e, por conseguinte,não podemos, no terreno prático, passar sem certasordenanças.

10 Estudos recentes têm corrigido a visãounilateral que nós, cristãos, tínhamos dos fariseus, e emgeral do judaísmo contemporâneo de Jesus. De umlado, não faltava consciência dos perigos de formasextremas de legalismo. Um rabino do segundo séculocomenta: “Jerusalém foi destruída por observar a lei.” Eà pergunta: “como é isso possível?” responde: “Porobservar a letra em lugar do espírito.” Os estudosindicados nos mostram, por outro lado, a pureza morale religiosa e a devoção e consagração até o sacrifíciodos fariseus, bem como os muitos pontos decoincidência entre Jesus e eles. É isto, precisamente,que nos permite ressaltar com maior evidência ocontraste entre a profunda piedade do fariseu emrelação à lei e a nova qualidade de existência que Jesusproclama. Este contraste aparece de forma muito vívidana interpretação — em outros sentidos muito discutível— da mensagem de Jesus de Rudolf Bultmann, Jesús.La desmitologización del Nuevo Testamento (BuenosAires, Editorial Sur, 1968). Os primeiros capítulosapresentam um quadro bem adequado do judaísmo daépoca. Os capítulos três e quatro destacam o contraste

Page 152: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

entre o ensino rabínico e Jesus. Um quadro do judaísmoda época, por um autor judeu que merece o maiorrespeito, encontramos na obra de José Klausner, Jesúsde Nazaret (Buenos Aires, Editorial Paidós, 1963).

11 Há uma crítica penetrante e muito adequadade uma religiosidade que pretende servir-se de Deus eda religião para não correr o risco dó exercer umadecisão moral própria na obra do autor católico Juan L.Segundo, Nuestra idea de Dios (Buenos Aires,Editorial Lohlé, 1970, pp. 142-150).

12 O conceito de fé é sumamente rico na Bíblia,desde a idéia hebraica de firmeza e, por conseguinte,fidelidade, até à concepção paulina, e a da epístola aosHebreus etc. No que tange ao material bíblico,recomendamos os artigos sobre “fé” nos dicionáriosbíblicos mencionados na nota 8. Há uma excelente eesclarecedora exposição teológica da fé comoconhecimento, confiança e confissão na pequena obrade Karl Barth, Bosquejo de dogmática (Buenos Aires,La Aurora, 1951, capítulos 1-3).

13 Sobre a obra do Espírito Santo na restauraçãoda criação de Deus, consulte-se a obra de HendrikusBerkhof, La doctrina del Espíritu Santo (La Aurora,Buenos Aires, 1969, cap. 5).

Page 153: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

14 A idéia de “novo homem” veio a ser um temade apaixonante atualidade em nosso Continente. Ésabido que Karl Marx havia falado de um “homemtotal” em contraposição ao “homem truncado”produzido pelas condições de existência de nossosistema sócio-econômico. Este aspecto humanista dopensamento marxista tem sido muito influente emalguns movi mentos latino-americanos. Ernesto (Ché)Guevara se referiu freqüentemente à criação de um“homem novo” na revolução cubana, chegando aafirmar: “a formação do homem novo” (e odesenvolvimento da técnica) são “os dois pilares” doprograma revolucionário. O tema é freqüentementetratado também no Chile nos últimos tempos. Por certo,uma simples coincidência verbal não basta paraestabelecer uma relação. Mas nos obriga, pelo menos, aestudar o assunto com seriedade. Como primeiratentativa de fazê-lo (em minha opinião, com váriasfalhas, mas estimulante), leia-se a obra do autorcatólico J. González Ruiz, Marxismo y cristianismofrente al hombre nuevo (Madrid, Guadarrama, 1962).Também os livros do jesuíta (ex-marxista) IgnacioLepp (publicados por Editorial Lohlé) se referem aoassunto. Infelizmente, não há em nosso idiomanenhuma obra adequada sobre o conceito de “novohomem” no Novo Testamento.

15 Fromm desenvolveu seu conceito do amor emum livrete intitulado El arte de amar (Buenos Aires,

Page 154: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

Paidós, 1961). Para compreender adequadamente o ricopensamento do autor é preciso fazer referência, nãoobstante, pelo menos à sua obra Ética y psicoanálisis(México, Fondo de Cultura Económica, 1953), ondefundamenta sua ética em seu conceito da personalidadehumana, e as análises da sociedade contemporânea(Miedo a la Libertad, Buenos Aires, Paidós, 1963 ePsicoanálisis de la sociedad contemporânea, citadona nota 5). Mais adiante chamamos a atenção sobre adiscrepância que vemos entre este ponto de vista e oponto de vista cristão (pp. 79 ss.).

16 Sobre conceito bíblico de “amor” vejam-se osdicionários bíblicos mencionados na nota 8.

17 A idéia da imitação de Cristo tem sofridomuitas deformações na história da piedade cristã. Dadaa falta de um estudo atualizado em castelhano,permitimo-nos uma nota mais extensa de introdução,em que resumimos diversos materiais. Quanto à históriadeste conceito, alguns têm pretendido uma imitaçãoliteral da vida de Jesus, ou uma adaptação superficial anossas perguntas, como a do tão conhecido livro EmSeus Passos, Que Faria Jesus? Outros tentaram derivarda vida de Jesus as regras para uma vida monástica:pobreza, celibato. Alberto Schweitzer mostrou quãoamiúde os autores simplesmente pintavam Jesus deacordo com suas próprias idéias; viam refletido nele oque eles mesmos eram e criam. Contudo, estas de

Page 155: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

formações não nos eximem de tomar a sério todo otestemunho bíblico que fala de forma unânime de“seguir a Jesus”, “imitar a Jesus”, “conformar-se à suaimagem”, como a natureza mesma do discipulado.Permitimo-nos incluir nesta nota um breve esboço queajude o leitor a estudar um tema de tanta importância.

I - O discípulo como imitador do amor de Deus (1João 1.5-7; 1 Pedro 1.15 s.; Efésios 4.24), de seuperdão (Mateus 6.12 e paralelos; Lucas 11.4), doamor sem distinção ou discriminação (Lucas6.32-36; Mateus 5.43-48).

II - O discípulo como imitador do amor de Cristo.Amar e dar-se como Cristo (João 13.34, 15.12; 1João 3.11-16). Servir como ele (João 13.1-17;Romanos 15.1-7; Efésios 5.25-28).

III. O discípulo e a morte de Cristo. Morrer comele (Romanos 6.5-12; Gálatas 2.20); sofrer comodefinição da existência cristã (Fil. 3.10 ss., 2Coríntios 4.10 ss.; Colossenses 1.24); sofrercomo Paulo, que por sua vez imita a Cristo (1Coríntios 10.33 s.; 1 Tessalonicenses 1.6).

— compartilhar a condescendência ouhumilhação divina (Filipenses 2.3-14);

— dar a da como ele (Efésios 5.1 s.; 1 João 3.16);

— serviço em lugar de domínio (Mateus 20.25-28; Marcos 10.42-45);

Page 156: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

— aceitar sofrimento imerecido como ele (1Pedro 2.20 s.; 3.14-18; 4.12-16);

— sofrer como ele a inimizade do mundo peloReino (Lucas 14.27 ss. e paralelos; João 15. 20;Filipenses 1.29; 2 Timóteo 3.12; 1 Pedro 4.13).

A morte é a vitória (Colossenses 2.15; 1 Coríntios 1.22-24; Apocalipse 5.9 s.; 12.12; 17.14).

18 Faltem castelhano, uma obra atualizada sobreos ensinos de Jesus em geral e seu significado ético emparticular. Embora talvez demasiado influenciada poruma teologia liberal, continua sendo muito útil a obrado Bispo Sante U. Barbieri, Las enseñanzas de Jesús(Buenos Aires, La Aurora, 1949). Unem a um tempoprofundidade e atualização teológica, com umaadmirável singeleza os opúsculos de Joaquim Jeremiassobre o Sermão do Monte (Palabras de Jesús; elSermón de la Montaña; Madrid, Fax, 1968) e deBultmann, mencionada na nota 10.

19 As listas referidas podem classificar-se de várias maneiras. Encontramos conjuntos de instruçõescom respeito à vida no lar (a família com todos os seusmembros, incluídos os empregados, escravos etc.) e nacongregação. São as chamadas “tábuas familiares”:Efésios 5.21-6.9; Colossenses 3.18-4.1; 1 Timóteo 2.1-15; 5.1-21; 1 Pedro 2.13-3.7, onde vemos muitasadaptações às condições de família e comunidade

Page 157: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

cristãs. Por outro lado há simples listas de vícios (porexemplo, Romanos 1.29-31; 1 Pedro 4.3; 1 Coríntios6.9-10; Gálatas 5.19-21; 1 Timóteo 1.9-10) e devirtudes (por exemplo, Gálatas 5.22-23; 2 Coríntios6.6-7; Efésios 6. 14-17; Filipenses 4.8; Colossenses3.12-14; 1 Timóteo 3.2-3; Tito 1.7-8; 1 Pedro 1.5-8).As listas de vícios são bastante formais e reproduzemquase inteiramente as que encontramos no ambiente;dá-se por definitivo que o cristão deixou para trás todasestas coisas, ou melhor dito, a forma de viver em queesses atos ocorriam. As listas de virtudes foram maisprofundamente afetadas pela nova vida em Cristo,centrando-se, por conseguinte, na fé, na esperança e noamor. Embora não haja estudo algum adequado dotema em castelhano, encontrar-se-á nas própriaspassagens material muito significativo. Além dosrespectivos comentários, veja-se o artigo “Virtude” noDicionário de Haag mencionado na nota 8.

20 Como descrição da vida da Igreja primitivapodemos consultar, em castelhano, as obras de DanielRops, La iglesia de los apóstoles y de los mártires(Barcelona, Luis de Caralt, 1955) e de Lebreton eZeiler, La iglesia primitiva (Buenos Aires, Dedebec,1952). Muito mais breve e simples é o livrete de M.Simon, Los primeros cristianos (Buenos Aires,Eudeba, 1961).

Page 158: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

21 Há, não obstante, uma acentuada distânciaentre este conceito de “disciplina” e a rigidez legalistaque muitas vezes se tem conhecido com esse nome emmuitas igrejas evangélicas. Esta última representa,antes, um retorno ao legalismo com sua seqüela dehipocrisia, falso sentido de superioridade, criticadesapiedada e murmuração, que o N.T. condena. Éinteressante notar que o N.T. não emprega para estaconduta cristã normativa o termo disciplina (paideia)ou outros semelhantes, mas prefere falar de “caminhar”ou “conversar”, ou “conduzir-se” “como é digno”(axios) da vocação cristã. Inclusive em casos graves,como o de Corinto (1 Coríntios 5), Paulo não atuaimpondo uma disciplina, mas chamando os cristãospara o sentido do “digno” de Cristo e pedindo oexercício responsável, inclusive para o bem dotransgressor, da responsabilidade da congregação. A“disciplina” não é, pois, uma regra forçada sobre umacomunidade, mas o compromisso comum e solidáriodesta na obediência à vontade de seu Senhor.

22 A idéia de “discernir” o que é genuíno, ou“certificar” a autenticidade de um ato, uma pessoa, umadireção recebida, aplica-se no N.T. à ética cristã,particularmente pelo apóstolo Paulo. O cristão échamado para fazer a “vontade de Deus”. O judeupodia simplesmente “certificar” essa vontade na lei(Romanos 2.18 “instruído pela lei, aprovas o melhor”).O cristão tem de exercer esse mesmo discernimento,

Page 159: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

não, porém, por uma simples leitura da lei, masmediante a “renovação do entendimento” que o Espíritoconcede (Ro manos 12.1-2). É um dom e, portanto, sóDeus mesmo o concede (cf. Filipenses 1.9 onde Paulo opede para os filipenses); é obra do Espírito (5.5ss.). Porele é possível escolher aquilo que corresponde àvontade do Senhor entre as muitas alternativas que seapresentam (1 Tessalonicenses 5.21). Jesus convidaseus discípulos a discernir o propósito de Deus nosacontecimentos: “discernir os sinais dos tempos”(Lucas 12.56) para adequar seu comportamento.

23 Merece estudo a função do profeta no N.T.,pois parece particularmente relacionada com a busca da“vontade de Deus” para a vida da igreja em umdeterminado momento. Há uma série de passagens nolivro dos Atos onde se destaca o aspecto da “pregação’destes profetas. Nos escritos paulinos, ao contrário,aprecia-se muito este dom (segundo só ao apostólico),porém ele se vincula mais à “edificação” e direção dacomunidade, O capítulo central a esse respeito é 1Coríntios 14. Vejam-se a respeito os comentários aotexto mencionado e o artigo “profetas” (seção dedicadaao N.T. e à Igreja primitiva nos dicionáriosmencionados na nota 8).

24 A frase aparece na crítica de Marx à filosofiaidealista, e não se deve interpretar, portanto, como umasimples repetição da acusação deísta e positivista de

Page 160: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

que as religiões organizadas são uma forma deexploração das classes sacerdotais. A citação maiscompleta é a seguinte: “A miséria religiosa é ao mesmotempo a expressão de uma verdadeira miséria e oprotesto contra a verdadeira miséria. A religião é osuspiro da criatura oprimida, o coração de um mundosem coração e o espírito de uma situação sem espírito.É o ópio do povo.” Assim situa o fenômeno religioso

25 Está fora de toda possibilidade entrar aqui nocampo amplo da ética do Antigo Testamento, tãoimportante e tão rica, ao mesmo tempo que tão atualdiante da problemática contemporânea. Comocompêndios breves das idéias centrais do A.T. que têmimportância para a ética, recomendo R. A. E.MacKenzie, La fe y la historia en el AntigoTestamento (Buenos Aires, Ediciones Paulinas, 1965)e G.E. Wright, Inclina tu oído (Buenos Aires, LaAurora, 1959). Deste último autor há uma obraexcelente e de fácil acesso em português, DoutrinaBíblica do Homem na Sociedade (ASTE, São Paulo,1966). Também é valioso o pequeno livro de G.Pidoux, El hombre en el Antiguo Testamento(Buenos Aires, Lohlé, 1969). Com referência especialaos temas de ordem social é preciso destacar uma obrado jesuíta mexicano José P. Miranda, Marx y la Biblia(México, edição do autor, 1971).

Page 161: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

26 Seria de grande valor comparar esta noção dejustiça com a desenvolvida no pensamento grego(principalmente em Platão e Aristóteles) e no DireitoRoma no. Talvez a raiz última da diferença reside emque, enquanto estas fazem repousar a justiça em umaordem racional ou natural abstrata, imutável e absoluta(a idéia do bem, ou a ordem natural, conforme o caso) aBíblia arraiga a justiça na vontade ativa de um Deusque opera na História para estabelecer seu Reino.Embora houvesse vários reparos a fazer-lhe peloexcessivo peso que dá à idéia de ordem natural, podeler-se com proveito a obra de E. Brunner, La justicia(México, Centro de Estudios Filosóficos, 1961).

27 Também aqui temos de notar o contraste entreos conceitos de paz baseados na tradição greco-romana,que concebe a paz como ausência de conflito, comouma calma quase “natural” e a concepção dinâmica daBíblia como uma ordem que Deus quer e . convida ohomem a buscar para estabelecer a justiça em meio àstensões da História. A Conferência Episcopal Latino-Americana da Igreja Católica Romana em Medellínparece captar muito bem esta distinção quandocaracteriza a visão cristã da paz por três notas: (a) a pazé obra da justiça — supõe e exige a instauração de umaordem justa; (b) a paz é que fazer permanente — não éum “estado” que se alcança mas algo que deve serconstantemente construído na História; (e) a paz é frutodo amor — supõe uma real fraternidade com todas as

Page 162: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

suas conseqüências materiais e espirituais. Asconseqüências éticas destas notas da paz para a soluçãodos conflitos humanos são suma- mente importantes.Ao mesmo tempo, seria necessário assinalar que, noconceito bíblico, a paz que construímos nunca é adefinitiva, a paz do Reino, que Deus há de introduzir nofim da História. Como conseqüência, vemos Deusperturbando as “falsas pazes” nas quais nos instalamoscomo se fossem definitivas. Nesse sentido, podemostambém entender positivamente as tensões e conflitosmediante os quais somos impulsiona- dos a buscar“pazes” que respondam de melhor maneira àscondições de justiça, responsabilidade ativa efraternidade que temos mencionado. Por outro lado, ocristão faz repousar em Jesus Cristo seu esforço poralcançar uma paz mais autêntica neste mundo e suaesperança de uma paz plena no Reino. Por isso afirma oApóstolo: “Ele (Jesus Cristo) é nossa paz.” Vejam-se, arespeito, os artigos correspondentes dos dicionáriosbíblicos mencionados na nota 8.

28 Lucas 6.20-26, onde se completam as bem-aventuranças com uma série de ais, que mostram aomesmo tempo o caráter concreto das primeiras e ocontraste entre a aceitação do Reino e a acomodação aomundo presente com suas estruturas de injustiça eopressão. Veja-se a obra de Jeremias sobre o Sermão doMonte mencionada na nota 18.

Page 163: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

29 O Professor O. Gullmann desenvolveu comespecial atenção esta situação do cristão “entre os tempos”, ou como diz ele, entre o “já” da vinda de Cristo eo “ainda não” de sua manifestação final. Ao mesmotempo assinalou a importância deste conceito para aética cristã. Vejam-se, especialmente, Cristo y eltiempo (Barcelona, Península, 1967, esp. quinta parte,cap. V).

30 Um capítulo muito interessante da história doCristianismo constituem-no os grupos “apocalípticos”que têm tentado traduzir sua esperança de uma radical eimediata transformação do mundo por um ato de Deusem um programa de reforma social, O tema escapa ànossa consideração, e só podemos chamar a atençãopara o interessantíssimo (embora certamente polêmico)livro de Rosemary A. Ruether, El reino de losextremistas (Buenos Aires, La Aurora, 1971).

31 Sobre este assunto aparecerá nesta mesmacoleção, em breve, uma obra do Prof. Lambert Schuurmann, cujo título possivelmente será “O Cristão e aPolítica”.

32 A dificuldade de defender uma teoria dapropriedade privada tal como a que a maior parte denossa legislação sustenta, à base da Bíblia, torna-secada vez mais evidente. Este é um assunto que, comoilustração da necessidade de confrontar com a Escritura

Page 164: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos

algumas das idéias que damos por definitivas, merececonsideração. Veja-se a respeito, à parte da obra deEggers Lan mencionada na nota 24 e de José P.Miranda mencionada na nota 25, o artigo de W.Eichrodt, renomado especialista de Antigo Testamento,“La cuestión de la propiedad a la luz del AntiguoTestamento”, em La autoridad de la Biblia para eldia actual (editado por A. Richardson, Buenos Aires,La Aurora, 1954; pp. 165 ss.).

33 A obra principal de Bloch, “El Principioesperanza”, não está acessível em castelhano. Contudo,é interessante notar que se tem desenvolvido,começando na Alemanha, nos últimos anos, toda umaTeologia que faz da esperança a categoria fundamental.O livro mais importante e inicial é o de Jürgen Moltmann, Teología de la Esperan (Salamanca, Sígueme,1969). O católico Johannes Metz (ver nota 8, final)segue uma linha semelhante. Em nosso meio convémdestacar a obra de Ruben Alves, Religión, ópio oinstrumento de liberación (Montevidéu, TierraNueva, 1970) que entabula um diálogo muito frutíferocom esta Teologia e a do católico Hugo Assman,Opressión-Liberación: desafío a los cristianos(Montevidéu, Tierra Nueva, 1971) que ele mesmo fazde um ponto de vista um tanto diferente. Não se trata,em todas estas obras, de leitura simples, mas osproblemas que tratam são centrais à ética cristã na horaatual.

Page 165: Ama e Faze o que Quiseres - Completo · Nenhuma pessoa sensível pode deixar de formular-se estas perguntas. São inquietações que vem acompanhando a Humanidade desde quando a conhecemos