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Cris & Ted Nos Anos da Faculdade 2 Como Quiseres, Senhor Robin Jones Gunn

Robin Jones Gunn - Série Cris & Ted 2 - Como Quiseres, Senhor

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Cris & Ted

Nos Anos da Faculdade 2

Como Quiseres, Senhor

Robin Jones Gunn

Título original: As You WishTradução de Myrian Talitha Lins

Editora Betânia, 2005

Digitalizado por deisematRevisado por deisemat

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Para Ross, meu marido.

Fiz um “pedido”, e você apareceu.

Para meu filho Ross e minha filha Rachel.

Nós dois, juntos, fizemos um pedido, e eles

apareceram.

1

- É, Ted, disse Cris, você não consegue mesmo disfarçar. ‘Tá

com algum segredo!

A garota soltou a mão do namorado e parou. Os dois estavam

caminhando pelo campus.

- Quem disse que estou com algum segredo? indagou ele.

O rapaz tinha no rosto um sorriso franco, estampando na face duas

covinhas fundas. Para Cris Miller, isso era um sinal certo de que havia algo

no ar.

- ‘Tá “escrito” no seu rosto. Agora só falta você me dar os detalhes;

verbalmente, de preferência.

- Na hora em que estivermos comendo eu te conto, respondeu Ted,

fazendo um sinal para que ela o seguisse.

Cris continuou parada no lugar, os braços cruzados.

- E onde vamos comer? perguntou. A cantina só vai começar a

funcionar a partir de sexta-feira.

- É, eu sei. Venha comigo. Fiz reserva pra nós num lugarzinho

tranquilo, bem afastado de tudo. Vamos.

A garota ergueu as sobrancelhas, ainda meio desconfiada.

- Fez reserva?

Nesse instante, o vento soprou forte. Era a costumeira ventania de

setembro que sempre batia naquela região desértica do sul da Califórnia.

Jogou o longo cabelo de Cris no rosto dela, cobrindo-o como se fosse um

véu. A moça passou a mão na boca, removendo as pontas dele, notando

que, mais uma vez, Ted a estava olhando “daquele jeito”.

Fazia menos de uma semana que ela chegara da Suíça, onde estivera

estudando e trabalhando. Nesses poucos dias, o rapaz já a fitara “daquele

jeito” pelo menos umas seis vezes, talvez sete. Em seus olhos azul-

acinzentados, parecia haver uma luzinha, como se houvesse ali uma

minúscula vela. Cris tinha a sensação de que ele queria que ela se

aproximasse mais e “fizesse um pedido”, antes que a chamazinha se

apagasse. Contudo todas as vezes que a jovem via aquela expressão no

olhar dele, virava-se para outro lado. Dessa vez, porém, ela ficou parada.

Ele está querendo que eu lhe diga que o amo, pensou.

Vendo que Cris não dizia nada, Ted estendeu o braço para ela e, com

aquele seu jeitão tranquilo, disse:

- Bom, na verdade, eu fiz uma reserva à minha maneira. Vamos lá.

Você vai ver.

Em resposta, Cris passou o braço pela cintura dele. Ted colocou o dele

em volta do ombro da moça, puxando-a para mais junto de si. E lado a lado

eles foram caminhando, atravessando o campus da Universidade Rancho

Corona, em passadas uniformes.

Afinal, o que há comigo? ia pensando Cris. Tenho certeza de que amo

o Ted. Então por que é tão difícil essas palavrinhas saírem do meu

coração e me virem aos lábios?

Chegaram à pracinha que havia bem no centro do campus. O Sol

estava se escondendo atrás de um aglomerado de palmeiras, as folhas

dançando ao vento com aquele seu ruído típico. Alguns raios da luz

ambarina coavam por entre as folhas, iluminando o cabelo de Ted, bem

louro e curto.

- Vamos aqui, disse o rapaz, conduzindo Cris para junto da imensa

fonte que havia no meio daquele espaço aberto.

Como as aulas só iriam começar na semana seguinte, ainda não havia

muitos alunos no campus. Então os dois estavam com a pracinha toda para

eles.

- Quer sentar aqui, ou num daqueles bancos? perguntou ele.

-aqui ‘tá ótimo, replicou Cris.

A jovem sentou-se na ampla beirada da fonte e cruzou as pernas.

- E a reserva que você fez?

-ainda ‘tá cedo, explicou Ted, e em seguida continuou: esta fonte não

te lembra aquela que vimos nas férias?

- Qual? Uma das dezenas que havia em Salzburgo e de que Katie

gostou tanto?

- Não, respondeu ele. Estava me referindo àquela a que fomos em

Roma. Ou foi em Milão? Não lembro mais.

Cris sorriu.

- Quando fecho os olhos, comentou ela, este lugar aqui me lembra é a

estação de trem de Castedefels.

- Na Espanha? interveio Ted. Mas naquela estaçãozinha “derrubada”

não havia nenhuma fonte... Aquilo ali era feio demais!

- É, eu sei. Mas feche os olhos. Fique escutando. É o ruído das folhas

das palmeiras. É isso que me lembra aquela estação. Esse farfalhar...

Cris olhou para o rapaz que fechou os olhos e ergueu o rosto para o

alto, pondo-se a escutar.

- Isso me lembra o Havaí, disse ele, abrindo os olhos e fitando-a.

Aquele ruído dava a Cris a impressão de que as árvores estavam

batendo palmas. Agora, porém, conseguia ouvir também os sons do Havaí,

como o Ted.

- É, tem razão. Lembra uma fileira de havaianas dançando, com seus

saiotes de palha.

- Havaianas?

- É. Dançando a hula. Aquelas jovens altas e magrinhas...

Ted riu.

- É... bem altas e magrinhas.

Nesse momento, soprou uma brisa leve, atirando neles espirros de

água da fonte. Cris inclinou a cabeça e fitou-o.

- Então, vai ou não vai me dizer qual é o segredo que ‘tá escondendo?

Ou será que vou ter de esperar até a hora de comer?

- Ah, é. Meu grande segredo... O que é mesmo que eu ia contar pra

você? falou pensativo, e após uma curta pausa, deu de ombros e concluiu:

Acho que esqueci.

- Esqueceu nada, disse Cris, agarrando-o pelos ombros e ameaçando

atirá-lo dentro da água.

Ele também pôs as mãos nos ombros dela.

- Se eu cair lá, você cai junto, ameaçou.

Os dois ficaram rindo e brigando de mentirinha por alguns instantes.

Afinal, Ted, que era surfista e bem mais forte que ela, conseguiu dominá-

la. Ele endireitou o corpo e, com a mão esquerda, pegou um pouco de água

para jogar nela.

- Ei! protestou Cris, molhando-o levemente. Não comece porque

depois você não vai dar conta de acabar.

- Ah, você acha que não dou conta de uma guerra de água? indagou

ele pegando mais um pouco. Então olha só!

Em seguida, ele atirou várias mãozadas seguidas na moça. As risadas

dele pareciam dançar ao redor de Cris, “montadas” nas gotículas de água.

Ela encheu bem a mão.

- O.k. ‘tá bom, falou Ted, rindo e tossindo. Você venceu. Eu me

rendo.

Cris piscou para deixar cair algumas gotas de água que lhe estavam

nos cílios. Em seguida, passou a mão no rosto e no queixo para limpá-los.

- Consegui a vaga, informou Ted, sem mais nem menos.

Passou o braço no rosto, enxugando-o com a manga da camiseta.

- Que vaga?

- Na Igreja de Riverview Heights. Fui li agora à tarde e me

contrataram para trabalhar como líder dos jovens. Esse era meu grande

segredo.

- ‘Tá brincando! exclamou ela. Você não disse que eles queriam

alguém que já tivesse se formado?

- Foi o que pensei, explicou o rapaz. Mas ontem à noite eles tiveram a

última reunião para decidir. Então resolveram me contratar.

- Que beleza! disse ela. Mas isso é ótimo, Ted!

- Disseram que gostaram do fato de eu poder dirigir o louvor e ainda

fazer os estudos bíblicos, continuou ele enquanto esticava as pernas, e

acrescentou: E eu lhes falei sobre você. Perguntaram se toparia ensinar a

classe de escola dominical das adolescentes.

- E o que respondeu?

- Eu disse que sim.

- Que eu pegaria a classe?

- É. Expliquei que naquela viagem missionária que fizemos, alguns

anos atrás, você foi considerada a melhor professora do grupo da Espanha.

Contei também que trabalhou num orfanato, no ano passado, na Suíça. Eles

estão ansiosos para vê-la.

- Mas, Ted, você já lhes disse que eu iria lecionar na escola

dominical?

O rapaz se virou totalmente para ela, procurando examinar a expressão

de seu rosto.

- Você já deu aula na escola dominical, comentou.

- É, mas para os pequeninos.

- Ah... mas também já foi monitora num acampamento, nas férias, uns

anos atrás.

- Sim, mas com pré-adolescentes.

- E nunca lecionou para adolescentes? indagou ele.

- Não, nunca.

- Ah, mas você vai gostar dessas meninas, e elas vão amá-la!

- Ted!!

- O quê, Cris?

- Por que não me perguntou antes? Quero dizer, e se eu não quiser dar

aula para adolescentes?

- E por que não iria querer?

- Espere aí. Não estou dizendo que quero ou não quero. O que desejo

que você entenda é que deveria ter me perguntado antes de dizer que eu

iria assumir esse compromisso. ‘Tá me parecendo que eles o contrataram

porque perceberam que iriam ficar com três obreiros, pagando um só - um

líder de jovens, um dirigente de louvor e, de graça, a namorada que iria

lecionar na escola dominical.

Ted endireitou-se, tendo no rosto uma expressão inquisitiva.

- E você acha que uma professora de escola dominical também deve

receber? É isso? Você também quer ganhar um salário?

- Não, claro que não. Ó Ted, você nem escutou o que estou dizendo.

Eu só quero... parece que... bom...

- O quê?

- Você devia ter me dado algum tempo para pensar, antes de ir

assumindo um compromisso em meu nome.

- Ah... disse o rapaz, fazendo que “Sim” com a cabeça, num

movimento lento. Tem razão. Desculpe-me! Falei em seu nome, em vez de

ter deixado que você tomasse a decisão. Não devia ter feito isso.

Cris se remexeu, meio incomodada.

- É. Obviamente não estou querendo dizer que não posso pensar na

hipótese de lecionar ou em pelo menos dar uma ajuda numa classe.

Aí foi a vez de Ted se mostrar irritado.

- Você quer dizer que vai lecionar ou não?

- Não sei. Dê-me algum tempo para pensar, o.k.?

- ‘Tá bom. Leve o tempo de que precisar. Você sempre teve muito

problema com essa questão de tomar decisão, não é? disse o rapaz, mais

fazendo uma afirmação do que perguntando.

Cris detestava ter de reconhecer o fato, mas o que ele dissera era

verdade. Mesmo assim, a sensação que teve foi de um tapa no rosto.

- Ted, principiou ela em tom firme, procurando coordenar bem as

idéias para se defender, acho que...

Antes que ela pudesse concluir, o rapaz a interrompeu:

- Ei, lá vem nosso jantar!

Cris levantou os olhos na direção do estacionamento, e viu um jovem

caminhando para eles, vestido com uma roupa típica de entregador de

pizza, tendo na mão uma caixa.

- Você que é Ted Spencer? indagou ele quando chegou mais perto.

- É; sou eu. Chegou bem na hora. Obrigado.

Ted pagou o rapaz e pegou a pizza.

- Boa noite! disse o entregador e saiu correndo de volta para o carro.

- Foi isso que quis dizer quando falou que tinha feito reserva? indagou

Cris. O lugarzinho tranquilo e afastado é aqui?

Ted deu um sorriso.

- Legal, né? Só nós dois... uma noite linda... um ambiente perfeito.

Não é exatamente a ilha de Capri, mas temos aí as dançarinas de hula - as

folhas das palmeiras - para alegrar nosso jantar.

Cris ficou olhando para ele. Não sabia se ficava alegre ou irritada.

- Pedi a pizza gigante, continuou o rapaz, abrindo a caixa. Ih, parece

que exageraram na cebola e no pimentão. O que você não gostar, pode tirar

e colocar no meu pedaço. Você quer orar, ou oro eu?

- É melhor você, replicou a moça.

Estava se esforçando para disfarçar seus sentimentos. Ainda se sentia

um pouco magoada por ele haver mencionado o fato dela ter dificuldade de

tomar decisões. Apesar de seus esforços, a sensação de mal-estar ainda

parecia suspensa no ar, como uma sombra. E permaneceu ali durante todo

o tempo em que ficaram juntos. Ela comeu só duas fatias, ouvindo em

silêncio o namorado que dava mais detalhes sobre o trabalho que

conseguira.

Só quando voltavam para o dormitório, caminhando de mãos dadas,

foi que ela disse:

- Desculpe-me por ter ficado tão irritada com o negócio da escola

dominical.

- Tem nada não, replicou Ted. Na sexta-feira, eu vou vir pra cá

definitivamente, e aí a gente vai poder conversar um pouco mais.

- ‘Tá bom, disse Cris. Assim que você chegar, me liga, ‘tá? Se quiser,

eu e a Katie podemos ajudá-lo.

Chegando ao dormitório das moças, o Sophia Hall, ele parou e se

inclinou para ela e deu-lhe um leve beijo. Se estava chateado ou meio

decepcionado com ela, não deixou transparecer nem no beijo, nem no que

disse a seguir.

- Então a gente se vê na sexta.

Cris chegou ao quarto e viu que a porta estava destrancada. Katie, sua

colega ruivinha, sua melhor amiga, estava ali. Achava-se em cima de uma

cadeira, meio desequilibrada, tentando enfiar uma pequena caixa de som na

prateleira mais alta da estante de livros.

- Ah, que bom que voltou! exclamou ela, dando um tapinha de leve na

ponta da caixa, ordenando-lhe que ficasse ali. Aonde vocês foram jantar?

- Ele fez reserva num lugar tranquilo, bem afastado de tudo,

respondeu Cris jogando-se na cama.

- Você ‘tá falando do Ted? Do seu Ted Spencer?

- É, replicou Cris. Na verdade, ele foi bastante criativo. Simplesmente

pediu uma pizza e mandou que a entregassem perto da fonte, na praça

central do campus. Você acredita nisso?

- Que romântico!

- É, teria sido muito romântico, se eu não fosse tão cabeça dura!

- Cabeça dura? Você? perguntou Katie, descendo da cadeira, mas

ainda de olho na caixa de som, como se continuasse a ordenar-lhe que

ficasse quieta no lugar.

- É, eu mesma. Afinal, o que é que há de errado comigo?

- Sobre qual de seus erros você quer conversar? indagou a colega,

sentando-se ao pé da cama de Cris.

Ela estava sempre disposta a fazer uma avaliação dos outros.

- Ah, pode esquecer que fiz essa pergunta, interpôs Cris.

- Não; vamos lá. Me dá uma dica, insistiu Katie, os olhos verdes

examinando atentamente o rosto da amiga. Por que o Ted veio até aqui

hoje? Deixe-me adivinhar. Ele fez essa viagem de uma hora e meia, de

Newport Beach para cá, só porque estava com muita saudade de você?

- Não exatamente.

Cris explicou para a colega que o namorado arranjara um emprego

como líder de jovens na Igreja de Riverview Heights. Contou inclusive

sobre o convite para ela lecionar para uma classe de garotas adolescentes e

o comentário que ele fizera sobre sua dificuldade para tomar decisões.

- Ah, isso é verdade, e você sabe muito bem, ajuntou Katie. Quero

dizer, você até já melhorou bastante sobre essa questão e algumas outras.

Mas acho que não deveria ter ficado chateada com o Ted por ele haver

feito esse comentário. Foi apenas uma observação, e não uma crítica.

- É, mas estou chateada. Estou com vontade de chorar até cansar.

- Ah, provavelmente é porque ainda ‘tá sentindo o efeito da viagem.

Você passou um ano na Suíça, Cris. Chegou de lá há poucos dias e seu

organismo ainda não se ajustou à mudança de fuso horário. Então ‘tá

precisando de um tempo pra descansar. Aliás, foi por isso que resolvemos

vir para o campus antes de começarem as aulas, lembra? Você mesma

disse que precisava de um tempo para se ajustar a todas essas mudanças.

- Arrrr! fez Cris, pegando um travesseiro e colocando-o sobre a

cabeça. Detesto mudanças!

- Ah, agora estamos começando a nos entender! comentou Katie,

tirando o travesseiro da mão dela e usando-o como encosto. Não se

esqueça de que a flexibilidade é um sinal de equilíbrio mental.

- Ah, por favor, reclamou a outra, me devolve o travesseiro.

- Só se me prometer que vai se esforçar pra melhorar sua atitude com

relação a esse emprego do Ted. Você sabe muito bem que era isso que ele

queria. Seu namorado é perfeitamente talhado para essa tarefa.

- Sei que é.

- E é um emprego de verdade, insistiu Katie, devolvendo o travesseiro

para a amiga. É uma carreira; um ministério; um serviço permanente. Não

é como os trabalhos que ele teve nesses últimos anos, todos temporários.

Cris se ajeitou melhor na cama, para ficar mais confortável. Sabia que

Katie iria “despejar” uma porção de conselhos nela. Não adiantaria resistir.

E, embora não quisesse reconhecer, no fundo, ela queria mesmo ouvir o

que a amiga tinha a lhe dizer.

- É isso aí, Cris, continuou a outra. Agora vocês estão na “reta final”.

Talvez até terminem os estudos neste ano.

- É, mas só se eu conseguir resolver no que vou me especializar,

interveio Cris com um suspiro.

- Mas você vai resolver, amiga. Quando é sua entrevista com seu

orientador?

- Sexta-feira.

- Ah, então vai dar certo, disse Katie. Faz o seguinte: dorme o dia

inteiro amanhã, pra solucionar esse problema de fuso horário. Na quinta-

feira, você dá um jeito de procurar um trabalho, e na sexta, decide quais as

matérias que vai fazer e em que vai se especializar. Quando Ted chegar, na

sexta à tarde, você já estará com tudo em ordem.

- Bem que eu gostaria, comentou Cris, mas não é tão fácil assim,

Katie.

- Mas também não é tão complicado como você ‘tá dando a entender,

replicou a outra. Quero dizer, acho que Deus ‘tá fazendo tudo isso, essas

“coisas de Deus”, na hora certa, para que vocês se casem e continuem a

vida juntos, não é isso?

- Ei, Katie, você ‘tá tirando conclusões apressadas!

- Conclusões apressadas? Moi?

Nesse instante, alguém deu uma batida rápida na porta. Katie ergueu-

se de um salto e foi abri-la. Era uma jovem com uma expressão de

felicidade no rosto. Os cabelos louros, bem encaracolados, caíam-lhe pelos

ombros como cascata.

- Ei! Por onde você andou, Senhorita Felicidade?

Era Selena Jensen, uma garota alegre, de espírito livre, que cursava o

primeiro ano da faculdade. Ela deu um abraço apertado em Katie e depois

foi em direção a Cris e abraçou-a também. Dois anos antes, as três haviam

participado de uma viagem missionária à Europa, e tinham ficado no

mesmo quarto, na hospedaria. Embora Katie e Cris fossem um pouco mais

velhas que ela, haviam se tornado muito amigas.

- Estava na capela, explicou a recém-chegada, girando o corpo com

um movimento rápido.

Ela foi em direção à almofada tipo pufe de Katie e caiu sentada sobre

ela.

- Ah, estou achando que se encontrou com o Paul, comentou Katie,

puxando uma cadeira para se sentar. E o que aconteceu? Deu pra

conversarem?

- Deu. Agora, tudo ‘tá maravilhoso! comentou Selena, brincando com

o longo brinco de prata que pendia de sua orelha esquerda.

- Então, me dê detalhes, por favor, tornou Katie. E não omita nenhum!

- Bom, principiou Selena, vocês sabem como a situação estava

péssima, algumas horas atrás, né?

- Mais ou menos, disse Katie, respondendo pelas duas.

- Pois agora ‘tá tudo certinho. Nós conversamos lá na igreja, oramos, e

agora parece que vamos recomeçar um novo relacionamento. Agora temos

o mesmo pensamento e as mesmas expectativas. ‘Tá tudo certo. Não

iremos depressa demais, nem muito devagar, mas no ritmo apropriado.

Cris deu um sorriso e pensou:

Um tempo atrás, pensei o mesmo com relação ao Ted. Embora na

época eu não tivesse gostado muito daquelas pausas - quando nosso

namoro estava em compasso de espera, para definirmos bem “quem”

éramos e o que queríamos - elas foram muito proveitosas. Trouxeram

muito conforto e nos ajudaram a tomar as decisões. Então, por que será

que estou tão nervosa com as resoluções que terei de assumir daqui pra

frente? Queria saber por que sinto isso.

Selena arrastou o pufe para mais perto da cama de Cris e se remexeu

nele para se acomodar melhor.

- E depois de Paul ter passado um ano fora, na Escócia, agora ele se

acha à uma hora de distância daqui. E nós estamos com o mesmo

pensamento a respeito do nosso relacionamento. Finalmente! Não estou

mais com expectativas falsas. Não entendo como fui complicar tudo

daquela maneira!

- Escutou isso? indagou Katie para Cris, dirigindo-lhe um olhar

maternal. Por que você fica querendo complicar sua vida com o Ted, se

tudo já ‘tá se ajeitando naturalmente?

- E você ouviu o que Selena disse sobre expectativas falsas? retrucou

Cris.

No rosto de Selena surgiu uma expressão de preocupação.

- Não há nenhum problema entre você e o Ted, há? indagou.

- Ela ‘tá com medo do futuro, explicou Katie, respondendo pela

amiga.

- Não estou, não, rebateu Cris prontamente. Só não me sinto preparada

para conversar sobre casamento.

- E quem quer falar sobre casamento? quis saber Selena.

Katie ergueu a mão.

- Eu, disse ela.

Selena arregalou os olhos.

- Você? E com quem ‘tá querendo se casar?

A jovem soltou uma risada.

- Não é sobre o meu casamento que quero conversar, explicou. Estava

falando era sobre Ted e Cris. Era disso que estávamos conversando pouco

antes de você chegar. Obviamente, isso é o próximo passo para os dois, e a

Cris ‘tá com medo de tomar essa decisão tão importante.

- Não foi isso que eu disse, Katie, e você sabe muito bem.

- ‘Tá bom; então o que foi que você disse?

Cris deu um suspiro. Na verdade, não estava muito a fim de discutir

aquela questão com as duas naquele momento. Por outro lado, sabia que,

quando estava na Suíça, tinha desejado muito essa intimidade com essas

boas amigas. Aliás, até escrevera em seu diário um comentário sobre como

estava desejando chegar à Universidade Rancho Corona, para poder se

abrir com Katie e ouvir os conselhos de sua colega. E agora ainda tinha a

Selena também. Era mais uma benção.

- O.k., a questão toda é a seguinte. Escutem bem, vocês duas. Prometo

que depois vou ouvir o que tiverem a me dizer. Mas primeiro me deixem

falar o que estou pensando.

Katie e Selena inclinaram-se para ela, olhando-a com expressão franca

e amável.

- O que eu sei, com certeza, é que amo o Ted. Isso eu sei.

- Mas não disse pra ele, interveio Katie.

- Eu pedi pra me deixarem falar tudo primeiro.

- Opa! fez Katie, tapando a boca. Desculpe! Continue.

- Sei que amo o Ted, e é verdade que ainda não consegui dizer isso pra

ele. Sei que ele me ama. Já me falou dezenas de vezes, depois daquela

primeira vez que disse, lá na Suíça. O problema é que, pra mim, falar com

o Ted que o amo é algo muito sério. É quase como prometer que vou

assumir um compromisso com ele. Pra sempre!

- E você não se sente preparada pra lhe dizer isso? deduziu Katie.

Cris olhou para suas mãos. O brilho da lâmpada do quarto refletiu-se

num cantinho do bracelete de ouro que estava usando. Era uma pulseira

que o namorado lhe dera, alguns anos atrás, prometendo-lhe que sempre

seriam amigos, não importava o que acontecesse. Passou o dedo de leve

sobre as palavras “Para Sempre”, que estavam gravadas na jóia.

- Você acha que isso é sério demais? indagou Selena. Acha que assim

que disser para o Ted que o ama ele ira dizer: “Então vamos nos casar”?

- Talvez. Não sei.

- Ah, ele não vai lhe pedir em casamento imediatamente, não, interpôs

Katie.

- E se pedir? tornou Selena. Por que você não quer se casar com ele?

Você não achava que o namoro de vocês era pra acabar em casamento

mesmo?

- Sim e não. Há momentos em que penso que gostaria de me casar

com ele ali, naquela mesma hora, sem parar pra pensar e sem ter

arrependimento algum. Mas depois, em outros instantes, olho pra ele e

penso: “Quem é esse cara?” Tem tanta coisa que não sei a respeito dele...

- E daí? continuou Selena. Procure passar algum tempo com ele pra

conhecê-lo melhor. É isso que eu e o Paul vamos fazer. E é claro que não

estamos pensando em casamento. Nenhum de nós. Vamos ser só amigos e

procurar conhecer melhor um ao outro, sem nenhuma preocupação em

passar a namorar.

- ‘Tá certo, interveio Katie. Mas a Cris e o Ted já tiveram essa fase... o

quê? Nos últimos cinco anos?

Cris fez que sim.

- Já ‘tá na hora de tomarem algumas decisões a respeito do

relacionamento deles. Sinto muito, Cris, mas tenho de dizer isso. O Ted

tem razão. Você não gosta mesmo de tomar decisões.

Cris não se sentiu agredida ao ouvir a amiga dizer isso, da forma como

se sentira antes. Aliás, nem teve dificuldade para concordar com ela. E fez

que “Sim” com um lento movimento de cabeça. Contudo percebia que

havia mais alguma coisa por trás de sua incerteza com relação ao

namorado. Sentia que estava quase definindo bem o que era essa

importante questão.

Katie virou-se para Selena e continuou sua análise de Cris, como se

esta não estivesse presente ali.

- Cris gosta de tudo bem planejado, numa ordem lógica. “Primeiro,

vem o amor; depois, o casamento, depois o filho, no carrinho de bebe...”

Selena deu uma risadinha.

- Mas assim é melhor, comentou.

- Ah, como seria bom se existisse um guia turístico pra nos orientar

em nossos relacionamentos! exclamou Katie. Quando estávamos

passeando na Europa com a Cris, eu e o Ted descobrimos que o melhor

jeito de viajar é fazer um planejamento e arranjar um bom guia turístico. Se

não for assim, a gente perde muita coisa.

- Ah, então agora você ‘tá reconhecendo publicamente que é muito

bom fazer o planejamento antes, interveio Cris.

- Eu já tinha lhe dito isso lá na Europa, retrucou Katie em voz alta.

- É, interveio Selena, mas não sei se no amor a gente sempre pode

planejar e agir com lógica.

- É verdade, concordou Katie. Ninguém pode garantir nada com

relação ao futuro. Temos de agir com base naquilo que sabemos, naquele

momento, e deixar que Deus cuide dos resultados.

- Não sei se concordo bem com isso, interpôs Cris. Creio que somos

responsáveis por nossos atos o tempo todo, inclusive pelas consequências

deles.

- Sim, disse Selena num tom firme, mas tem de haver equilíbrio, pois

não somos nós que estamos no controle de nossa vida; é Deus quem está.

- E por isso não precisamos ter medo do futuro, acrescentou Katie.

- E como diz aquele versículo de Provérbios 31, continuou Selena. Lá

diz assim: “A força e a honra são os seus vestidos, e alegra-se com o dia

futuro”, como diz essa nova versão da Bíblia.

- Ah, decorei esse texto ontem à noite, interveio Katie. Só que na

minha versão diz “... e ri-se do dia futuro”.

Cris se recostou mais, estampando no rosto uma expressão séria. A

idéia importante que estava se formando em sua mente agora chegara “à

tona”, deixando-a triste.

- Que é que você ‘tá pensando? quis saber Katie. Seu rosto ficou

sombrio, carregado...

- Vocês duas podem pensar em rir e se alegrar com o futuro, como diz

a segunda parte do verso. Mas estou pensando na primeira, “a força e a

honra...”. A possibilidade de assumir um compromisso com o Ted é uma

decisão muito séria. Se nos casarmos, ficaremos juntos pelo resto da vida.

Só quero mostrar pra ele que estou preparada para assumir esse

compromisso quando estiver mesmo.

- Mas você já sabe que o ama, relembrou-lhe Katie.

- É, creio que sei.

Katie pegou o próprio cabelo com ambas as mãos e puxou-o, como se

fosse arrancá-lo.

- Você acabou de dizer agora há pouco que sabe que o ama! reclamou.

- Eu sei, mas procure entender o que estou dizendo...

- Eu entendo, interpôs Selena. Já entendi, ou pelo menos acho que

compreendi. Você ‘tá dizendo que sabe que ama o Ted, mas não tem

certeza se esse amor é profundo, se é suficientemente forte para lhe dar

condições de assumir essa união com ele pelo resto da vida.

- Exatamente, replicou Cris.

Katie abaixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos, parecendo

refletir sobre o que a amiga dissera.

Cris percebeu que Selena resumira muito bem o pensamento que ela

estivera querendo expressar. Com isso, suas idéias ficaram bem claras.

- É isso! repetiu. É exatamente isso que venho tentando descobrir,

disse a jovem, inclinando-se para a frente e fazendo uma pausa à espera de

que Katie voltasse sua atenção para ela. Quero que as duas me digam a

verdade. Por favor, me dêem sua opinião sincera.

Selena e Katie ficaram paradas, aguardando o que ela iria dizer.

- Vocês acham que é possível uma pessoa chegar à conclusão de que

ama realmente alguém, mas não se casar com ele?

Por uns instantes, houve no quarto um silêncio profundo em que as

três amigas ficaram a se entreolhar.

- É, disse Katie com expressão grave.

Era a primeira vez que ela tinha uma atitude séria naquela noite.

- É possível, sim, continuou, compreender que amamos alguém

profundamente, e ainda assim acabar não passando o resto da vida com ele.

Selena fez um aceno de cabeça, concordando.

- Também acho, disse.

Cris sentiu que lágrimas lhe vinham aos olhos, embaçando-lhe a vista.

- Também penso isso, comentou em voz baixa. É disso que estou com

medo.

2

Cris ficou acordada até às 2:00h da madrugada, conversando com as

amigas. Quando Katie acordou, já era quase meio-dia. Chamou a colega e

lhe disse que iria à cidade para comer algo. Cris replicou-lhe que fosse,

sem esperá-la. Em seguida, fez algo que nunca imaginaria que pudesse

fazer: dormiu o resto do dia e a noite toda.

Na quinta-feira de manhã, ela acordou com uma forte dor de cabeça.

Katie já havia saído, deixando-lhe um sanduíche e um bilhete, dizendo que

fora fazer compras com Selena. Comeu o lanche que a amiga lhe deixara e

depois foi tomar um banho quente, que não ajudou muito. Então voltou

para a cama e caiu num sono profundo, dormindo o dia todo.

Quando despertou, já começava a entardecer. Agora se sentia bem

melhor. Fazia umas boas semanas – talvez alguns meses que não se via

assim. Parecia que atingira o auge do cansaço e ainda o ultrapassara.

Mal acabara de se levantar e estava espreguiçando, quando Katie

chegou. Trazia um pacotinho de lanche.

- Ei, pessoal! gritou a recém-chegada. Ela ‘tá viva! ‘Tá respirando!

Será que ‘tá com fome?

- Morrendo de fome! disse Cris. Muito obrigada! E obrigada também

pelo sanduíche que deixou pra mim de manhã.

- De nada! Agora você deve estar se sentindo melhor, né?

- Estou. Estou normal. Não, estou melhor que normal.

- É bom saber disso. Eu estava começando a me preocupar com você.

Cris enfiou a mão no pacotinho de lanche e tirou um sanduíche de

peito de peru. Fechou os olhos e fez uma rápida oração, agradecendo o

alimento, e se pôs a comer.

- É, você ‘tá com aparência melhor mesmo, comentou Katie. Acho

que aquelas semanas que trabalhou a mais no orfanato acabaram com você.

Cris reconheceu que a amiga tinha razão. O ano que passara na Suíça

fora muito bom em diversos aspectos. Contudo tivera uma vida muito

agitada lá, trabalhando quase sem parar. Fora muito desgastante, física e

emocionalmente. Além de estudar uma parte do dia, fazendo todas as

matérias do curso, dedicava-se às crianças do orfanato, dando-lhes mais de

trinta horas por semana.

- É, eu sei, concordou ela, sentando-se na cama, as pernas cruzadas à

moda oriental. Você ‘tá certa com relação ao meu trabalho no orfanato.

Morria de pena daquelas crianças. Nos últimos dias que passei lá, eu me

sentia totalmente esgotada.

- Agora reconhece que foi bom ter ficado até o fim do semestre?

indagou Katie.

- Como assim?

- Quando eu e o Ted estivemos lá em junho, você teve aquele

entendimento de que não tinha condições de assumir um compromisso a

longo prazo numa situação de crise. Lembra? Aquelas coisas que você

falou quando estávamos em Amsterdã... Disse que ia mudar de curso, mas

achava que deveria ficar na Suíça pra terminar o semestre. Acha que foi

bom ter ficado?

Cris fez que sim com um aceno de cabeça, pois estava de boca cheia.

- É; percebi que você sentia que tinha de manter a palavra dada ao

pessoal do orfanato e seu compromisso com a Universidade de Basiléia,

comentou Katie. Nunca lhe disse isso, mas senti uma grande admiração por

você, por haver tomado essa decisão.

- Obrigada!

- Fiquei pensando muito naquilo que conversamos ontem à noite. Sabe

de uma coisa, Cris? Você me ajuda muito. Você me faz refletir nas

situações, em vez de agir impulsivamente. Eu e a Selena estávamos

falando de como temos esse problema de ser espontânea demais.

- É por isso que as duas me ajudam também, interpôs Cris. Algumas

vezes, eu também preciso de vocês, pra que me ajudem a ficar mais

descontraída. Eu queria ter saído com vocês para fazer compras. Faz mais

de um ano que não vou a um shopping.

- Pois eu acho que o sono foi mais importante pra você, disse Katie.

Com toda sinceridade, agora ‘tá com uma aparência bem melhor.

- Estou me sentindo melhor também com relação a tudo o mais.

Aquela conversa com você e a Selena foi ótima. Creio que o melhor que

tenho a fazer agora é viver um dia de cada vez, da maneira como eles

vierem. E devo tomar cada decisão quando estiver na hora dela.

- Esse negócio de decidir sobre a classe de escola dominical foi seu

último catálogo telefônico, não foi? indagou Katie.

- Meu último catálogo telefônico? Como assim?

- Isso é a nova teoria que estou criando, explicou a outra. Lembra que

lhe contei que um dos trabalhos mais interessantes que tive nas férias foi

entregar catálogo nas casas?

Cris fez que sim.

- Pois é. E logo no primeiro dia, percebi que conseguia carregar só

oito catálogos de cada vez. Se pegasse mais um, deixava cair todos eles.

Cris ainda não conseguia entender o que ela queria dizer.

- E quando o Ted veio lhe perguntar sobre dar aula na escola

dominical, você já estava “carregando” um bocado de pesos. Pense só.

Estava com o cansaço da viagem. Teria de decidir sobre sua

especialização. Havia a preocupação de arranjar um emprego. Estava

preocupada com o fato de não conseguir assumir um compromisso com o

Ted para o resto da vida. E aí – pá! - vem a questão da classe. Foi o último

catálogo telefônico.

- Ah, igual a gota de água que faz o balde derramar, comentou Cris.

- Isso mesmo. Só que o que você estava carregando não eram simples

gotas de água. Era mais como um catálogo pesado. Uns dois deles dá pra

carregar de uma vez. Mas quando a gente chega ao limite, tem a sensação

de que vai deixar tudo cair.

Cris recostou-se na cama. Percebeu que estava respirando mais

tranqüilamente. Fazia tempos que não se sentia assim.

- Você disse exatamente o que eu estava sentindo, comentou.

Katie sorriu, muito satisfeita consigo mesma.

- E não precisa pagar nada pela “consulta”, disse. Aquele dia que

fomos à drugstore e você quase chorou porque não sabia que marca de

sabão iria comprar, achei que iria ter um colapso. Que bom que ‘tá dizendo

que vai tomar cada decisão separadamente, uma de cada vez.

- E você?

- Que é que tem eu?

Katie se levantara, ligara o som e pegara uma tirinha de goma de

mascar de uma caixinha que estava em sua estante.

- Você não tinha uma entrevista com o orientador hoje? perguntou

Cris. Ou foi adiada?

- Não. Eu e o pessoal aí fomos à cidade pra tomar o café da manhã, e

depois fui pra entrevista às 10:00h. Selena também tinha uma entrevista

com o consultor de finanças, e depois fomos fazer compras.

- Afinal, você mudou alguma matéria?

- Não; vou continuar mesmo fazendo Botânica. Disse ao orientador

que meu projeto de vida é criar chás de ervas, e ele quase caiu na

gargalhada.

- Você não lhe falou sobre seu canteiro de ervas e das experiências

que fez no semestre passado?

- Ainda não. Só vou falar quando uma das minhas experiências der

certo.

Cris sorriu. Recordou-se de que a amiga lhe enviara um e-mail,

narrando um fato hilariante. Ela cultivara algumas ervas e fizera uma

mistura delas e preparara um chá. Era sua primeira tentativa nesse sentido.

O resultado foi que dois dos cinco colegas da turma de Química tinham

apresentado alergias na pele. Os outros três queixaram-se de dores no

estômago. Ao que parecia, Katie fora a única da turma que não tivera

nenhuma reação.

- Ah, disse Katie, hoje de manhã, quando você estava aí “morta para o

mundo”, sua tia ligou. Queria vir pegá-la pra almoçar. Eu lhe disse que

você não poderia sair.

- Oh, Katie, isso foi muito legal. E falou a verdade. Muito obrigada.

- É, mas talvez não me agradeça quando ouvir o resto. Ela disse que

virá aqui amanhã, por volta do meio-dia, pra apanhá-la pra irem almoçar. E

falou que se você tiver outro compromisso é bom desmarcar, porque essa é

a única hora que ela poderá vir.

- Ah... e ela disse o que queria?

- E ela diz? indagou Katie, rindo. Quero dizer, ela precisa de alguma

razão forte pra interferir em sua vida e começar a mandar e desmandar?

- Talvez ela esteja aborrecida de eu não ter telefonado pra ela depois

que cheguei. No sábado, eu perguntei a minha mãe por Bob e Marta e ela

me disse que a última vez que os viu ou conversou com eles foi no 4 de

julho.

- Isso é meio estranho, né?

Cris deu de ombros.

- Minha mãe e Marta não são lá muito unidas. São as irmãs mais

desligadas que conheço.

- Não há duvida de que são o oposto uma da outra, comentou Katie.

- Sabe? Um dos melhores aspectos desse tempo que passei na Suíça

foi saber que minha tia se achava a quilômetros e quilômetros longe de

mim, e não a uma hora e meia de carro.

- Você gostaria que eu almoçasse com vocês amanhã? indagou Katie.

- Claro! Você pode?

- Lógico! Almoço de graça! Por que eu não iria lhe dar meu apoio

moral?

Cris ficou a pensar por uns instantes, e em seguida comentou:

- Não é que eu fique inibida com minha tia, né?

- Ah, não! Disse Katie com um sorriso malicioso. Jamais...

- É porque, se você também for, quebra um pouco a tensão. Você sabe

o que quero dizer, não? Quero que você vá porque assim fica mais

divertido.

- É; sou eu mesma! Sempre muito divertida!

Katie atirou o saquinho vazio na cesta de lixo e errou. Então levantou-

se, pegou-o e jogou-o dentro dela.

- Vou lá para o campo de beisebol, anunciou. Quer ir comigo?

- Campo de beisebol? repetiu Cris, pensando que era muito estranho

sua amiga querer ir ali.

Em seguida, porém, lembrou-se de algo.

- Ainda está à procura do “número dezesseis”?

- Número “quatorze”, corrigiu Katie. É, estou sim. Acho que não seria

nada mal dar uma chegada no lugar onde o conheci, em junho.

- Como era o nome dele mesmo?

- Mark.

- Mark de quê?

- Só sei o primeiro nome. Já lhe disse que ainda não descobri o

sobrenome dele. É apenas Mark, “número quatorze”, o melhor jogador de

beisebol da Rancho Corona.

- Sabe o que mais? principiou Cris, vestindo uma calça jeans e uma

camiseta. Não entendo como você ainda não utilizou sua extraordinária

habilidade “detetivesca” para encontrar o cara.

A outra abanou a cabeça, fazendo seu cabelo ruivo girar de um lado

para o outro, num jeito que era sua marca registrada.

- Não. Estou resolvida a deixar que Deus cuide da minha vida

sentimental que, aliás, nem existe ainda. Se ele quiser colocar alguém no

meu caminho, irá fazê-lo na hora dele e da maneira que desejar. É verdade

que, desde que conheci o Mark, cento e quatro dias atrás, tenho pensado

muito nele.

- Cento e quatro dias, hein?!

- É, mas não vou fazer nada pra provocar um relacionamento, disse

Katie.

A jovem pegou um velho boné de beisebol e o enfiou na cabeça,

cobrindo o sedoso cabelo e ajeitando as mechas laterais atrás das orelhas.

- Entretanto, interpôs Cris, mesmo assim, acha que não faz mal dar

uma passada no lugar certo, na hora certa, dando uma mãozinha pra Deus,

lá no departamento da soberania dele...

- Exatamente.

Cris calçou as sandálias e disse:

- Estou pronta. Vamos nos colocar à disposição de Deus!

- Ei! reclamou Katie, fechando a porta depois que saíram. Não zombe

dos meus métodos! Estou apenas fazendo uma tentativa!

- É! ‘Tá só fazendo uma tentativa! replicou Cris, disfarçando uma

risadinha.

- Não converso mais com você, Cris.

E as duas saíram do dormitório feminino, onde ficavam as estudantes

do último ano, e se dirigiram para o centro do campus, ainda sorrindo. Cris

sentia-se aliviada ao ver que seu relacionamento com Katie voltara a ser

como antes. Sua depressão decorrente dos efeitos da viagem não provocara

nenhuma crise seria entre elas. Isso era algo que ela apreciava muito em

Ted e Katie. Ele, com seu jeitão calmo e tranquilo, e a amiga, com sua

personalidade alegre, respeitavam suas mudanças de humor, não deixando

que elas alterassem o relacionamento deles.

As duas foram caminhando, vendo vários caminhões parados junto à

porta de entrada dos dormitórios. Dezenas de alunos estavam chegando à

escola e descarregando seus poucos pertences. Cris ficou satisfeita de ter

vindo mais cedo, com tempo de sobra para se ajustar e recuperar o sono

perdido. Se tivesse ficado em casa, em Escondido, provavelmente não

poderia ter descansado como precisava.

Fora seu pai quem tivera a idéia de ela ir logo para a faculdade. Ele

disse que só poderia levá-la lá assim que chegasse de Basiléia, ou então no

sábado à tarde. Na segunda opção, ela não teria tempo suficiente para

descansar e se acomodar, antes de as aulas iniciarem. Além disso, eles

tinham a esperança de que, vindo mais cedo, ela tivesse a oportunidade de

arranjar um trabalho ali. Sentia-se um pouco incomodada de não haver

feito nada nesse sentido ainda. Aliás, isso era um dos “catálogos” que ela

estava carregando.

- Eu amo este tempo! exclamou Katie.

Evidentemente, ela se esquecera de que acabara de dizer que não iria

mais conversar com Cris.

- Gosto quando ainda ‘tá fazendo calor, mas sopra essa brisa, mesmo

depois que o Sol se põe, continuou ela. Parece um verão indiano. Talvez eu

invente um chá e coloque o nome de “Verão Indiano”. Que Tal?

- Gostei, replicou Cris. Também gosto desta época do ano. Este calor

seco e com vento me faz pensar em novidades, em um recomeço. É que na

ocasião em que nos mudamos pra Escondido o tempo estava mais ou

menos assim. Foi quando a gente se conheceu, lembra? Foi naquela vez,

quando estávamos no segundo ano, que dormimos todas na casa de uma

colega.

- Nunca me esqueci daquele dia! comentou Katie, dando uma risada

que ecoou como o piado de um pássaro noturno, voltado para a Lua.

Lembra como tentamos colocar papel higiênico nas árvores da casa do

Rick Doyle? Aí, ele te viu e saiu correndo atrás de você pela rua abaixo, à

meia-noite!

Cris também teve de rir. Aquela recordação era uma das que mais a

deixavam envergonhada.

- Que será que aconteceu com o Rick?

- Por que ‘tá dizendo isso? indagou Katie, parando de rir.

- Porque a última vez que o vimos foi no casamento do Douglas e da

Trícia, mais de um ano atrás. Você conversou com ele naquele dia?

- Não. E você?

- Também não.

- Você não ‘tá começando a pensar nele voltando a se relacionar com

você ou algo parecido, ‘tá? indagou Katie num tom de preocupação.

- Claro que não, disse Cris. Só acho que é uma pena que todos nós

estejamos juntos aqui, e ele tenha ficado pra lá.

- Ah, mas o Rick sempre foi mais ou menos de “ficar pra lá”.

- É; eu sei. Mas tinha esperança de que um dia ele se “encontrasse” e

passasse a fazer parte da nossa turma.

- Sabe qual é seu problema, Cris? indagou Katie, e antes que a amiga

tivesse tempo de responder, continuou: Você tem muita misericórdia. Foi

por isso que não aguentou trabalhar com aquelas crianças do orfanato e, de

repente, ‘tá desejando felicidade para um cara que foi um mau-caráter com

nós duas. O Rick merece tudo que lhe acontecer de ruim.

Estavam apenas a alguns metros do campo de beisebol, e Cris parou.

- Ainda ‘tá com raiva dele, né? Você não lhe perdoou pelo que ele lhe

fez naquele dia da “Parada das Rosas”, no ano-novo, né?

Katie deu de ombros.

- Tem de lhe perdoar, Katie. Não dê muito valor àquilo, amiga. Tire

uma lição do que aconteceu, e siga em frente!

- Mas foi o meu primeiro beijo, Cris. Me diz: Como é que alguém

pode esquecer o cara que lhe deu o primeiro beijo?

Cris fixou na amiga os olhos verde-azulados, fitando-a com uma

expressão terna, e em seguida respondeu:

- A gente não esquece. Nunca.

- Isso mesmo, concordou Katie, e saiu caminhando rapidamente.

Cris foi logo atrás e alcançou-a.

- Mas pode perdoar ao Rick por tê-la magoado.

- E tenho de perdoar, replicou a outra, e fez uma pausa. E vou perdoar,

concluiu depois de alguns instantes. Mas chega de Rick Doyle por hoje,

‘tá? Agora vamos nos concentrar no Mark, meu “número quatorze”.

Já se achavam próximas do campo de beisebol, e Cris correu os olhos

pelo espaço aberto. As duas eram as únicas pessoas ali.

- Parece que ninguém veio treinar hoje, comentou.

- Eu não estava pensando que alguém viria treinar, retornou Katie.

Achei que...

Aqui ela ficou parada por um momento, em silêncio.

- Não sei o que foi que achei, concluiu. Vamos lá pra “Selva”. Nem

sei por que falei pra virmos aqui.

- “Selva”?

- É o novo nome que deram para a lanchonete que fica no subsolo do

centro estudantil. Vi a placa lá hoje. Acho que o pessoal não gostava do

antigo nome, “Parada do Expresso”.

E as duas foram atravessando o campus, em direção ao salão de

reunião dos estudantes. Ali ela apontou a placa para a colega. O prédio era

bem amplo. Nele havia o centro estudantil, a “Selva”, as caixas postais dos

alunos e, no andar superior, uma enorme sala de estar. Assim que entraram

na sala, Cris observou que havia muitos estudantes. Era a primeira vez que

via tanta gente ali, desde que chegara na escola, uma semana atrás. Agora

aquele lugar estava começando a parecer uma universidade. Antes

lembrava mais uma “cidade fantasma”. A cantina local iria começar a

funcionar nesse dia. Isso significava que ela iria economizar seu escasso

dinheirinho, que estava gastando com as refeições.

Desceram para a lanchonete e entraram na fila - que aliás não era

muito longa - para pedir algo.

- Agora é minha vez de pagar, disse Cris.

- Eu trouxe dinheiro, replicou Katie.

- Mas você me levou dois sanduíches.

- Pra falar a verdade, eu paguei com um daqueles cupons de

promoção, em que se compra um e leva dois. Peguei esse cupom naquele

posto de gasolina que fica no pé do morro. Eu abasteci lá outro dia.

A Universidade Rancho Corona ficava situada num planalto e, para ir

à cidade, os alunos tinham de descer o morro. Cris tinha certeza de que

Katie devia conhecer todos os postos da região. É que a amiga gostava

muito de seu novo carrinho, um veículo de cor amarelo berrante, um “fora

de série”, parecido com um “bugue”. E Katie apreciava estar com o tanque

sempre cheio e as vidraças, bem lavadinhas.

- O.k., disse Cris, agora estamos quites. E não se esqueça de agradecer

ao seu carro por mim.

Katie apontou para uma mesinha, cujos ocupantes tinham acabado de

sair.

- Pega aquela mesa ali pra nós, sugeriu ela. O que você vai querer

tomar?

- Limonada.

- Limonada?

- É, limonada. Não quero bebida quente agora. O que desejo nesse

momento é a nossa velha e simples limonada.

- ‘Tá bom, limonada, repetiu Katie.

E se dirigiu para o fim da fila dos sucos, enquanto Cris se instalava na

mesa indicada, que ficava junto a uma janela lateral. Correu os olhos pelo

salão e se deu conta de que não conhecia nenhum dos presentes. Sentia-se

meio estranha, recomeçando os numa outra escola. Estava bem feliz pelo

fato de Katie estar estudando ali, e também Selena e Ted.

Os amigos da gente fazem uma diferença tremenda em nossa vida!

pensou.

Lembrou-se das colegas de quarto na escola da Suíça, ambas alemãs.

Eram muito legais, mas Cris não conseguia acompanhá-las em suas

atividades sociais. Então, na maior parte de seus momentos de folga, ficava

no dormitório mesmo. Aliás, até gostava de estar a sós depois do trabalho

no orfanato, onde se via sempre cercada pela algazarra das crianças. Agora,

porém, que se achava de volta à Califórnia, desejava muito viver uma

situação diferente nessa faculdade. Queria passar muito tempo na

companhia dos amigos mais chegados.

Isso pode ter sido um dos motivos por que tive aquela reação

contrária, quando Ted me falou sobre lecionar na escola dominical. Talvez

esteja com medo de ter de dedicar meus momentos de folga a essas alunas,

se assumir esse compromisso. Ah, não estou a fim disso, não. Preciso

passar mais tempo com minhas amigas.

Nesse momento, Cris voltou sua atenção para um rapaz alto e magro

que entrava na “Selva”. Experimentou uma agradável sensação calorosa.

Mark Kingsley! Olha só! Mamãe tinha razão! Puxa, você ficou tão

alto, não?

Não havia dúvida de que aquele rapaz era um conhecido de infância,

de sua terra, Wisconsin. Recordou-se de que, quando ainda estava na

escola fundamental, tivera uma “paixonite” infantil por ele.

O rapaz, que usava um boné de beisebol, correu os olhos castanhos

pelo recinto. A última vez que Cris o vira fora três anos atrás, quando

tinham ido àquele estado para a comemoração das bodas de ouro de seus

avós. Manteve os olhos fixo nele, na expectativa de ver se ele a

reconheceria.

Mark passou o olhar por ela uma vez. Em seguida, olhou-a de novo,

deu um sorriso e veio em sua direção, a passos largos. Cris sentiu um

“alvoroço” na boca do estômago e soltou uma risadinha alegre. O colega

chegou e cumprimentou-a com um abraço meio desajeitado. Ela sentiu o

ombro forte dele comprimindo sua orelha, e notou que o cheiro dele era de

quem estava meio suado.

- Oh, então você ‘tá aqui! exclamou Mark, sorrindo e sentando-se

numa mesinha próxima.

- É, estou, repetiu ela. E você também. Como estão as coisas pra

você?

- Tudo ótimo! Acabei de chegar. Estava viajando desde às 5:00h da

madrugada. Ah, Cris, que bom vê-la! Sua mãe lhe disse que liguei

segunda-feira?

- Não; estou aqui a semana toda. E não conversei com ela nem uma

vez. Está com fome?

A jovem se deu conta de que estava falando igual a sua mãe. Aquela

era a conversa típica a que estava acostumada desde pequena, quando

morava numa fazendinha de gado leiteiro. Sempre que os homens da casa

chegam do trabalho no campo, a mulher pergunta se querem comer algo.

- Não, replicou ele. Já lanchei. Estou procurando meu colega de

quarto. Ele disse que estaria me esperando aqui. Ele ‘tá com nossa chave.

Mas não o vejo em parte alguma. É o Peter Santos, o mesmo cara que

dividiu o quarto comigo no ano passado. Conhece?

- Não, mas minha colega deve conhecer. Parece que ela conhece todo

mundo nesta escola.

Cris se virou para a fila e viu que Katie já chegara na frente e estava

pagando a compra. Mark espiou para fora e se inclinou para a frente,

aproximando-se mais da jovem, buscando um ângulo de visão maior.

- Ah! Lá está ele, disse o rapaz. Ei, Peter! gritou, batendo de leve na

vidraça.

O outro virou-se e lhe fez um gesto, chamando-o para fora

- Eu já devia saber que ele estaria falando ao celular, comentou Mark.

Conversa nele o tempo todo. Devia colocar uma armação para fixá-lo na

cabeça.

Cris desviou os olhos da janela e voltou a fitar o amigo. Ele também a

olhava fixamente.

- Eu queria ficar mais tempo aqui, comentou o jovem com uma

expressão sincera, mas deixei o carro num lugar de estacionamento

proibido.

Ele se ergueu e pôs a mão no braço da amiga, dando-lhe um aperto de

leve.

- Que tal se a gente tomar o café da manhã junto, amanhã? sugeriu ele.

Temos um bocado de assunto pra por em dia...

- Claro! replicou Cris, mas logo em seguida se lembrou de algo. Não!

Espere. Já tenho um compromisso pra amanhã cedo.

- E o almoço? indagou ele.

- Tia Marta virá me pegar para almoçarmos.

- E então, que tal jantar? Às 6:00h? Vamos nos encontrar na cantina.

- ‘Tá ótimo, concordou Cris. Encontro com você lá.

Mark fez uma pausa e depois disse:

- Foi muito bom vê-la, Cris!

- E eu digo o mesmo! falou a jovem.

- Então amanhã às 6:00h... repetiu o rapaz.

- Às 6:00h.

Mark saiu caminhando pela lanchonete lotada, acenando para várias

pessoas, dirigindo-se para a porta.

Mark Kingsley! Quem iria pensar que um dia iríamos acabar

estudando na mesma faculdade!

Cris ainda estava sorrindo no momento em que Katie chegou à mesa.

- Acabo de ver um cara que é da minha cidade, disse Cris. E você não

vai acreditar, mas eu era “apaixonada” por ele quando menina.

Katie colocou o copo de limonada em frente da amiga. E, ignorando o

que ela acabara de dizer, comentou:

- Você não vai acreditar no que acabei de fazer. Mas pode me

agradecer.

- Ah, obrigada pelo refresco, disse Cris.

- Não; não é pelo refresco, retrucou Katie. Pode me agradecer porque

acabo de arranjar um emprego pra você aqui no campus.

- Onde?

- Primeiro me agradeça.

- Obrigada, Katie.

- De nada.

Katie se sentou e tomou um demorado gole de seu café com leite, que

estava fumegante. Cris esperou um pouco, mas vendo que a amiga não

dava logo os detalhes, sua expressão de expectativa logo se transformou

em irritação.

- Ah, você quer saber onde é... É na livraria, disse finalmente. Lá na

fila, eu estava conversando com umas pessoas e um rapaz me deu a dica.

Disse que tinha pensado em trabalhar na livraria, como fizera no semestre

passado. Mas agora arranjou um serviço lá na cidade, com um salário

melhor. Eles ainda não estão anunciando a vaga na livraria, porque só

amanhã, às 9:00h, é que esse moço vai lá avisar que não continuará no

trabalho. Então, se você for lá às 9:05h, aposto que eles vão contratá-la na

hora.

- Mas não sei se até essa hora já terminei a entrevista com meu

orientador.

- ‘Tá bom. Então vá lá às 9:30h. Sabe o que mais? Vou pedir ao

colega pra deixar pra ir lá só depois das 10:00h pra dar o aviso de que vai

sair. Assim você terá tempo de folga pra chegar lá. Ele disse que se você

quisesse ele a recomendaria para o lugar dele.

Cris hesitou ligeiramente.

- O.k., disse afinal, acho que dá. Como é o nome dele?

- Não sei, respondeu Katie. Ele ‘tá ali. É aquele de camisa verde, que

‘tá conversando com o Wesley. Você conhece o Wesley, não? É o irmão da

Selena.

Antes que Cris respondesse, Katie se levantou e foi andando

rapidamente em direção aos dois, para falar de novo com o rapaz. Em dado

momento, ela se virou para trás e apontou para a amiga. Cris fez um aceno

com a mão para se identificar. Pensou em ir até lá para conversar também,

mas teve receio de que alguém pegasse a mesa delas.

Katie retornou, estampando no rosto um ar de satisfação.

- Foi até fácil, explicou. Então, às l0:00h, ou melhor, 10:05h. Você vai

ter de chegar lá e procurar uma mulher chamada Donna. Aja como se

soubesse perfeitamente o que está fazendo e ele vão lhe dar a vaga.

- Oh, Katie, interveio Cris, você sabe que não precisava fazer nada

disso, né?

A jovem não entendia bem por que estava resistindo levemente à

possibilidade de pegar esse serviço, já que parecia o ideal para ela. Talvez

fosse porque não gostava quando alguém achava que ela era meio parada e

não conseguia resolver os próprios problemas, ou tomar as próprias

decisões. Então essa pessoa passava na frente dela e tomava providências

em seu lugar.

- Acho até que foi “coisa de Deus”, disse Katie em tom alegre. Sabe

que há muito poucas vagas de trabalho aqui no campus, né?

- É só que não quero trabalhar muitas horas, comentou Cris. Este ano,

pretendo ter um pouco mais de folga para gozar melhor da companhia de

amigos e colegas.

- Então, explique isso pra Donna, quando for lá conversar. Ela é muito

legal. Eu até gostaria de trabalhar com ela. Além disso, todo mundo vai à

livraria. Assim você terá os contatos sociais no próprio trabalho. Vai dar

tudo certo.

Cris se pôs a bebericar a limonada.

- Você tem certeza de que não quer tentar ficar com essa vaga?

indagou.

Katie deu um sorriso.

- Ah, eu ainda tenho algum dinheiro na poupança, que dá até janeiro.

Só depois disso é que vou começar a procurar trabalho, isto é, pedir a Deus

um milagre. Enquanto isso, vou só curtir esse período em que posso ficar

de folga, o que é raro, e gozar mais da companhia do pessoal, com uma

vida social bem intensa.

- Com isso, estou até começando a me sentir uma coitada. E ainda

nem consegui o trabalho...

Katie parecia não ter escutado o comentário da colega. Estava olhando

para fora, a atenção voltada para algo que ocorria lá. Cris também se virou

para lá e viu cerca de uns vinte alunos no pátio, em volta das mesinhas que

havia ali. Do lugar em que se encontrava, não viu nem Peter nem Mark no

meio do grupo. Não conhecia nenhum dos outros estudantes ali reunidos.

Notou que muitos estavam rindo e se abraçando, ou acenando para alguns

que se aproximavam. Deduziu que deviam estar chegando nessa hora.

- Espere aí, disse Katie. Acho que chegou o meu número!

- Chegou seu número?

- É o “número quatorze”, gritou a colega, já correndo para ir se reunir

aos estudantes que estavam lá fora, no pátio.

3

Já era bem tarde da noite quando Katie chegou ao quarto. Cris estava

deitada.

- ‘Tá dormindo? indagou a colega.

Cris virou-se na cama e se esforçou para abrir os olhos. A lâmpada

suave, que deixara acesa na mesinha da outra, agora parecia clara demais.

- Ah, desculpe, Cris! Comecei a conversar com uma porção de gente e

quando voltei à mesa você já tinha vindo embora. Deixei você lá sozinha

um tempão. Me perdoa!

- Tudo bem! replicou a outra. Percebi que estava muito alegre lá,

pondo o “papo” em dia. Vim embora porque queria ligar para o Ted, mas

não muito tarde. Devia ter te avisado que estava vindo para o quarto.

- O tempo passou depressa demais! explicou Katie.

- Não “esquente”. A gente também não pode ficar pedindo desculpa

uma à outra todas as vezes que ocorrer algo assim, comentou Cris,

erguendo-se um pouco.

Apoiou-se nos cotovelos e passou a mão no pescoço, que estava meio

dolorido.

- Você já tem muitos amigos aqui, continuou. Não posso querer que

fique me esperando ou que me leve a todo lugar que for.

- Tem razão, concordou Katie, tirando o sapato e acendendo a luz do

quarto.

Cris piscou, incomodada com a claridade súbita.

- Foi bom você ter dito isso, prosseguiu a outra, pegando um

baldezinho com seus artigos de higiene pessoal.

Ela tivera a inteligente idéia de colocar o xampu, o sabonete e a pasta

de dentes na vasilha, e fizera uns buracos no fundo dela para utilizá-la

debaixo do chuveiro.

- É bom a gente ficar sempre bem livre, com um relacionamento bem

franco, disse.

- Sempre, repetiu Cris, percebendo que despertara totalmente. Agora

me conte sobre o Mark, o “número quatorze”. Ele ficou feliz de revê-la?

- Não era ele, não. Bom, pelo menos quando cheguei lá fora, ele não

estava mais ali, se é que estivera antes.

Katie abriu a gaveta da cômoda e pegou um short de flanela e uma

camiseta.

- Nem tenho certeza se ele vai voltar pra estudar este ano! Vou tomar

um banho rápido, explicou. Tinha uns caras que estavam brincando lá, e

acabei com as costas cheias de creme de barbear. Tchau! Volto já!

Katie saiu rapidamente porta afora e não ouviu a colega dizer:

- Será que da pra você apagar a...

Esforçando-se para levantar e colocando os pés no chão frio, Cris foi

apagar a luz.

- Tenho de lembrar de comprar um tapete, resmungou, e caiu na cama

de novo.

Sabia que, se começassem a conversar quando a colega voltasse do

banho, iriam ficar falando durante horas e horas. Queria ficar com o sono

em dia, enquanto pudesse, então fez força para voltar a dormir, antes que

Katie retornasse.

O primeiro som que escutou depois disso foi o enervante toque da

campainha do despertador. Era um barulho meio estridente, mas Cris

preferia assim. Se acordasse com música ou com um ruído mais suave,

poderia voltar a dormir, sem querer.

- O que é isso? gritou Katie do seu canto.

- Sou eu! disse Cris em voz baixa. Pode continuar dormindo. Tenho de

levantar cedo por causa da entrevista.

- Hummm... resmungou Katie, virando-se para o canto.

Caminhando de leve, Cris foi até a janela e puxou a cortina um

pouquinho. Seria outro dia claro e ensolarado. Daria para usar a saia e a

blusa que escolhera na noite anterior. Era a melhor roupa informal que

tinha e parecia a escolha acertada para a entrevista na livraria, que

acreditava que teria, após a conversa com o orientador.

Procurando não fazer barulho, colocou a cadeira perto da janela,

pegou a Bíblia e seu diário e se sentou. A luz do Sol batia diretamente nas

páginas abertas do livro em seu colo. Fez uma oração e, em seguida, pôs-se

a ler, a partir do lugar onde parara dias antes. Ela planejara ler todo o Novo

Testamento durante as férias, mas chegara só até ao primeiro capítulo do

Evangelho de João.

Seus olhos caíram no versículo 12. Sublinhou-o e o releu em voz

sussurrada: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem

feitos filhos de Deus, a saber, aos que creram em seu nome”. A seguir, fez

uma anotação em seu diário.

Deus me concedeu o direito de me tornar sua filha, porque o recebi

em meu coração e na minha vida, e cri em seu nome. Então Deus me

“adotou” como filha.

Cris mordeu a ponta da caneta ao se lembrar das crianças do orfanato

de Basiléia, que viera a amar muito. Aqueles pequeninos estavam sempre

esperando que aparecesse alguém que lhes desse o direito de se tornarem

filhos adotivos. O mero fato de se recordar deles, daqueles rostinhos

ansiosos, lhe trouxe lágrimas aos olhos. Tinha pensado em ler até o fim do

capítulo, mas parou ali e se pôs a orar pelos órfãos, citando o nome de cada

um. O Sol que entrava pela janela começou a queimar seu braço. Lembrou-

se de que precisava sair. Se ficasse, poderia passar a manhã toda orando,

dominada por uma nuvem de melancolia.

Fechou a Bíblia e disse a si mesma que precisava seguir com a vida e

assim tirou aquelas crianças do pensamento. Silenciosamente, saiu para

tomar banho.

A entrevista com o orientador transcorreu muito bem. Seu histórico

escolar já havia chegado de Basiléia. Com os cursos que fizera ali, obtivera

até mais créditos do que pensara. Se fosse se especializar na área

pedagógica, agora só precisaria fazer as disciplinas didáticas. Entretanto

disse ao orientador que havia mudado de idéia. Não queria mais essa área.

- Estou pensando em fazer Ciências Humanas, disse-lhe, ou talvez

Literatura Inglesa.

- Pois não, comentou ele, fazendo uma anotação a lápis na pasta dela.

Cris tentou, despistadamente, ver o que ele escrevera ali.

- Acho que estou mais interessada mesmo é em Literatura, continuou.

- Vai dar para você fazer qualquer uma das duas, informou ele, pois as

disciplinas que já fez lhe dão uma boa base para isso. Eu estava fazendo a

soma de seus créditos aqui, e vi que se quiser fazer Literatura Inglesa,

poderá terminar em junho do ano que vem. Neste semestre, poderá fazer

três unidades, e no próximo, deverá fazer a carga completa: dezesseis

unidades.

- ‘Tá bom, replicou ela.

Logo em seguida, porém, arrependeu-se de haver concordado

prontamente. Em Basiléia, havia estudado demais, e depois de terminado o

ano lá, tinha pensado em “pegar leve” nesse semestre. E queria isso

inclusive com relação ao trabalho que, aliás, ainda não tinha. O primeiro

assunto de sua lista de prioridades agora era a vida social.

- Será que posso dar uma estudada nisso tudo e voltar aqui pra decidir

no início da próxima semana? perguntou ela.

- Claro, mas, quanto mais cedo, melhor. Hoje à tarde, às 4:00h, tenho

um horário vago. Se a essa altura já tiver resolvido e quiser vir, tudo bem.

Pode levar o catálogo. Marque nele as disciplinas que você ainda precisa

fazer. É bom já estar chegando a reta final, não é? concluiu ele com um

sorriso animador.

Cris fez que sim. Pouco depois saía da sala dele, lutando contra uma

sensação de pânico que a atormentava. Dias atrás, Katie fizera o mesmo

tipo de comentário com relação a ela e Ted. Mencionara algo no sentido de

que os dois se achavam na reta final do seu relacionamento. Era como se

eles estivessem se preparando para entrar no corredor central da igreja,

para se casarem. A palavra do orientador lembrou a Cris que ela se achava

na reta final também dos estudos. Muito em breve estaria entrando no

corredor central do salão nobre da escola, para a cerimônia de formatura. O

fato, porém, era que, naquele momento, não se sentia preparada para

nenhum dos dois eventos.

Chegou à livraria exatamente às 10:10h. Sua entrevista ali já foi

menos estressante e ajudou-a a voltar o pensamento para o presente.

Assim que entrou na loja, lotada naquele momento, perguntou por

Donna. Ouvindo sua indagação, uma mulher, usando um blazer amarelo,

veio de uma saleta dos fundos e indagou:

- Você é a Cris?

- Sou.

- Ótimo, entre aqui, por favor.

Donna era uma mulher de bela aparência, a pele de tom caramelo. Seu

cabelo castanho-alourado estava preso atrás da cabeça com dois palitos

chineses. Sobre sua mesa, havia um bulezinho azul de chás e uma xícara de

porcelana.

- Sente-se, disse ela, indicando uma cadeira.

No chão, ao lado da mesa, viam-se várias caixas de livros, ainda

fechadas.

- Sei que está meio cheio aqui, prosseguiu ela, e vai ficar assim até a

gente guardar esses livros didáticos na estante, na semana que vem. Aceita

um pouco de chá? Acho que ainda está quente.

Colocou a mão de leve no lado do bule.

- Não, obrigada, replicou Cris, pensando em como faria para alcançar

a última caixa da pilha sem muito esforço.

Donna sentou-se e sorriu para a jovem. As duas travaram um curto

diálogo informal, e em seguida a primeira indagou:

- Quantas horas por semana você gostaria de trabalhar?

- Umas quinze horas. Talvez menos. Acabei de ficar sabendo que terei

de fazer mais uma disciplina neste semestre.

- Olha, nas duas primeiras semanas poderei ter serviço para quinze

horas. Depois, porém, vão ser mais ou menos dez ou doze horas. ‘Tá bom

assim?

- ‘Tá. Assim ‘tá ótimo, acho.

- Preciso de um xerox do seu horário de aulas, e já quero avisar que

não temos mais vagas para os finais de semana. Então seu trabalho será de

segunda a sexta. ‘Tá certo?

- ‘Tá perfeito; obrigada! replicou Cris, sorrindo para Donna.

Ela havia pensado que a entrevista seria mais complicada do que

estava sendo. Donna era uma pessoa muito direta no modo de tratar com

ela, mas ao mesmo tempo muito agradável.

- Não, eu e que agradeço. Uns minutos atrás eu já estava achando que

iria ter de passar a semana toda procurando alguém para trabalhar aqui.

Mas você veio muito bem recomendada.

Cris achou meio curioso pensar que um rapaz que ela nem conhecia a

havia recomendado, só porque Katie lhe falara sobra ela na noite anterior.

Isso deveria ser um dos benefícios de se estudar numa universidade cristã

de pequeno porte. Numa comunidade assim, o fator confiança pesava

bastante.

Em menos de vinte minutos, ela preencheu a papelada que Donna lhe

apresentara. E quando esta lhe ofereceu chá novamente, resolveu aceitar.

Tinha sabor de pêssego e era bem revigorante.

- Na segunda-feira, quando você vier para começar, eu lhe dou os

outros detalhes do trabalho, informou Donna. Alguma pergunta?

- Creio que não.

- Então, até segunda, disse a outra com um sorriso.

Cris saiu da livraria e dirigiu-se para o dormitório, impressionada de

ver como tinha sido fácil. Ainda faltava uma hora para Tia Marta vir

buscá-la para o almoço. Nesse intervalo, queria ligar para os pais e contar-

lhes a respeito do trabalho.

Como já havia imaginado, a mãe ficou bastante aliviada com a notícia.

- Seu pai vai gostar de ouvir isso, querida. Ontem à noite mesmo, ele

estava indagando se você já havia arranjado alguma vaga.

- A senhora sabe que a Tia Marta vai vir aqui pra me levar pra

almoçar? indagou Cris.

- Ah, vai? Muito legal da parte dela.

- A senhora acha que ela ficou aborrecida por eu não ter ido visitá-la

nem ter ligado pra lá, depois que cheguei da Suíça?

- Não sei.

- Ah, e eu pedi a Katie pra ir almoçar conosco, para o caso de eu

precisar de um apoio moral.

- Como vocês duas estão se dando? quis saber a mãe de Cris.

- Muito bem, como sempre. Aliás, foi ela que me ajudou a arranjar

esse trabalho.

- É? E não foi ela também que a ajudou a arranjar aquele serviço no

pet shop?

- É mesmo! Foi sim. Que bom que a senhora se lembrou disso. Tenho

de agradecer a ela duas vezes. Se não fosse por ela, será que eu encontraria

emprego?

Mamãe deu uma risadinha.

- Você daria um jeito, disse ela. Quem consegue passar um ano

estudando na Suíça, consegue qualquer coisa.

Cris tinha pensado em comentar com a mãe que ainda não decidira a

respeito do curso que iria fazer. Contudo, ao ouvi-la fazer aqueles elogios,

dizendo que ela era capaz de dirigir bem a própria vida, desistiu de tocar no

assunto. Assim que já tivesse com essa questão resolvida, ligaria para casa.

Desse modo, seria mais fácil. Ouvindo aquele comentário da mãe, ela se

sentiu uma pessoa competente e realizada.

Instantes depois de chegar ao quarto, Katie também apareceu. Daí a

pouco o telefone tocou. Era a recepcionista do saguão, avisando que Tia

Marta estava lá à sua espera.

- Está pronta, Katie? indagou Cris.

Pensou em sugerir à amiga que trocasse o short e a camiseta que

estava usando por uma roupa melhor. Contudo logo se deu conta de que,

dizendo isso, estaria agindo do mesmo jeito que sua tia agia com ela havia

anos. Resolveu que não iria “mandar” nas pessoas, determinando o que

deveriam dizer, fazer ou vestir.

Evidentemente, Katie achava que estava vestida de modo adequado,

pois não se trocou, e as duas desceram para o saguão. Enquanto seguiam,

Cris, silenciosamente, ia examinando a roupa que colocara de manhã cedo:

uma saia informal, mas bem nova, e uma blusinha limpa e bem passada.

Tia Marta não teria nada que criticar em sua aparência.

Assim que as duas entraram no saguão, Cris correu os olhos pelo

aposento. Quatro pessoas estavam sentadas nas poltronas, mas não a tia.

Nesse instante, uma mulher se levantou e veio em sua direção. Tinha

cabelos castanhos, bem compridos, e usava uma saia tipo “indiana”, uma

blusa de seda, de alcinha, e um colar de contas bem coloridas. Aproximou-

se e, elegantemente, saudou Cris com beijinhos no rosto.

- Tia Marta? sussurrou Cris.

Ficou a olhar fixamente para a tia, que estava muito diferente. Ela

sempre se vestira com roupas chiques e caras, em estilo bem tradicional.

Seu cabelo era curto e estava sempre muito bem penteado. Ademais, nunca

saía de casa sem estar perfeitamente maquiada. Ali, porém, parecia que

estava pronta para uma festa à fantasia.

- Tia Marta? disse Katie, expressando o mesmo espanto de Cris na voz

e no rosto.

- Que tal, meninas? indagou Marta, dando uma voltinha. Esta

aparência acompanha minha nova personalidade.

Ela pegou a ponta dos cabelos longos e explicou.

- É alongamento. Não ficou lindo?

- Lindo, repetiu Cris mecanicamente, num tom que mais parecia

pergunta do que afirmação.

- As duas levaram um susto, né? continuou Marta. É minha nova

personalidade. Nova mesmo. Estou renovada em todos os aspectos do meu

ser. Finalmente consegui entrar em harmonia com minha aura artística.

As jovens se entreolharam. Se Cris não soubesse que sua tia era uma

pessoa muito séria e equilibrada, iria pensar que ela estava fazendo uma

brincadeira com elas. A voz era de Marta, sim. As mãos, de dedos longos e

finos, também. E nesse instante, ela pegou a sobrinha pelo cotovelo e

empurrou-a para que já fossem sair.

- Tia, eu... e... ahn... convidei Katie pra ir conosco, disse Cris

procurando soltar o braço das mãos de Marta.

- Oh, foi muita bondade sua! exclamou a mulher, e em seguida virou-

se para a outra. Katie, querida, sinto muito, mas hoje quero sair sozinha

com Cris, ‘tá bem?

- Sem problema! replicou Katie, dando a impressão de que queria

mesmo desistir do passeio.

Cris dirigiu-lhe um olhar significativo, agradecendo sua compreensão,

e em seguida acompanhou a tia. Em meio ao ar quente da tarde, dirigiram-

se para o Lexus de cor prateada que se achava parado em frente ao

dormitório. Meio entorpecida, Cris abriu a porta do lado do passageiro,

entrou e se acomodou no assento forrado em couro. A sensação que tinha

era de que estava sendo sequestrada por um alienígena. Virou-se para dar

mais uma olhada em sua tia. Sentiu o impulso de agarrar aquela mulher,

dar-lhe um safanão e gritar:

“Não sei quem você é, nem o que fez com minha tia, mas traga-a de

volta aqui agora!”

Logo em seguida, porém, lembrou-se de como a tia era antes de ter

econtrado sua “aura artística”, e mudou de idéia. Por alguns instantes, ficou

sem saber qual das duas “personalidades” de Marta era a pior.

Tudo isso é muito estranho! O que estou fazendo aqui? O que minha

tia ‘tá querendo? Devia ter dado uma desculpa qualquer, dizendo que não

poderia ir, ou pelo menos ter insistido em que almoçássemos aqui no

campus mesmo. Assim, se ela quisesse me obrigar a fazer um ritual

qualquer, uma “dança da chuva”, por exemplo, eu teria gente conhecida

ao meu redor.

- Onde é que vamos, Tia Marta? indagou Cris, quando já desciam

morro abaixo.

- Queria levá-la à “Colônia”, em Palm Desert, mas hoje não é dia de

cerâmica. E prefiro ir com você lá nesse dia. Então vamos apenas almoçar

juntas, só as duas. Quero que me conte tudo sobre seus estudos na Suíça. E,

ademais, tenho certeza de que você também quer saber sobre as mudanças

que ocorreram em minha vida.

Cris sugeriu que fossem ao Taco Bell.* Ficava bem perto, e muitos dos

alunos da escola iam comer ali. Nesse lugar, iria se sentir mais segura.

Contudo, ao que parecia, a “aura” de Marta não estava muito a fim de

comida mexicana. Então acabaram indo para um tranquilo restaurante

japonês. Tiveram de tirar os sapatos para entrar e sentaram-se no chão,

junto às mesinha baixas, típicas. Marta fez o pedido pelas duas e depois

virou-se para a sobrinha.

- Agora me conte tudo sobre esse ano que passou na Suíça.

- Foi um ano ótimo, principiou a jovem.

Nesse momento, um mosquito passou voando por elas, zumbindo

forte. Marta deu um tapa nele, com uma raiva que assustou Cris.

- Bicho sujo! disse a mulher em voz alta. E num restaurante! Eu

* Taco Bell - uma rede de lanchonetes que serve comida mexicana, principalmente “tacos”, um tipo de sanduíche. (N. da T.)

achava que os donos deste lugar cuidavam bem dele, para não haver tal

imundície!

Era a primeira vez que a “velha” Marta se manifestava na presença de

Cris. Contudo, imediatamente, a tia voltou sua atenção para a jovem de

novo.

- Mas você estava dizendo...

- O ano que passei na Suíça foi ótimo! repetiu Cris. Tenho até de lhe

agradecer, tia, pelo que a senhora fez para que eu fosse estudar lá.

- Não! Não precisa me agradecer!

- Houve algumas dificuldades, mas valeu muito a pena.

- Que bom! disse Marta com firmeza, como se estivesse batendo um

prego numa tábua. Agora, talvez você esteja sem entender as mudanças

que tive, né?

Puxa, mas o que falei sobre um ano foi bem resumido!

- Cristina, continuou a tia, eu nunca imaginei que isso pudesse

acontecer, mas o fato é que fiquei sabendo que tenho alma de artista. Tudo

começou quando conheci o Cheyenne numa exposição de arte em Laguna.

Ele me convidou para assistir às suas aulas de cerâmica. Fui e tive a maior

surpresa. Descobri que tenho muito talento para essa atividade. Então o

Cheyenne me levou para a “Colônia”.

- Tia Marta, interveio Cris, ‘tá parecendo que a senhora foi atraída

para um tipo de seita, ou algo assim.

- Seita? Que é isso? Lá não tem nada de religião. É apenas um grupo

de artistas. São espíritos afins, que se expressam criando arte e beleza.

Minha filha, eu não quero saber de religião. Desde que seu tio teve aquela

experiência de novo nascimento no ano passado, ele ficou impossível.

Agora ele tem uma amante, sabia? Ele me abandonou por causa dela.

Cris ficou profundamente chocada e não escondeu seu espanto. Sabia

que o Tio Bob havia se convertido ao cristianismo de forma radical, já que

antes era agnóstico confesso. Será que ele iria abandonar o Senhor Jesus

tão depressa assim e ter um caso com outra mulher? Como é que ele fora

fazer uma coisa dessas?

- Não fique tão abalada, Cristina. Estou me referindo à igreja. A

amante do Bob é a igreja. Ele vive indo à igreja e fala dela o tempo todo.

Nós dois não temos mais quase nada em comum. Ultimamente, ele até

tenta me convencer a abandonar a “Colônia”, e eu procuro fazer com que

ele deixe a igreja. Mas parece que chegamos a um impasse.

A garçonete japonesa chegou e ajoelhou-se junto à mesa delas. Era

uma mulher pequenina, usando um quimono. Fez uma inclinação de

cabeça e serviu-lhes uma sopa, em tigelas de cerâmica. Disse-lhes que não

a tomassem com colher, mas que a bebessem, segurando a vasilha com

ambas as mãos.

Cris fez uma pausa e orou em voz baixa, agradecendo o alimento.

Queria ter coragem de fazê-lo de forma audível, na presença da tia, como

já fizera anteriormente. Hoje, porém, as palavras ficaram como que

“paradas” na garganta. E o caldo quente, de certa forma, as empurraram

mais para baixo, para o fundo de seu ser. Se aquilo tudo não a estivesse

deixando tão preocupada, iria achar a dramática transformação de sua ti até

hilariante.

- No dia em que você for comigo lá, no dia da cerâmica, continuou

Marta, quero que convide o Ted. E pode chamar a Katie também, se quiser.

Ah, e pode levar aquela sua amiga do cabelo encaracolado. Como é mesmo

o nome dela? Siena?

- Selena.

- Ah, é, Selena. Pode chamá-la também. Aí vou lhes mostrar todos os

artigos de cerâmica que já fiz. Cristina, isso está libertando meu ser

interior. Espere só até você ver em exposição os objetos que criei. Vai ficar

toda feliz!

- Tia Marta, eu...

Cris ficou a procurar as palavras certas para dizer à tia que não

precisava ver suas obras em cerâmica para ficar feliz com ela. Também não

queria que esta simplesmente achasse que poderia “raptá-la” de novo, e

ainda mais que nessa segunda vez, estaria envolvendo seus amigos.

- Não precisa... Quero dizer, eu acho...

Não estava conseguindo encontrar os termos adequados

Nesse momento, a garçonete voltou com uma bandeja para recolher as

tigelas de sopa. Depois colocou diante de cada uma um prato com sushi,

peixe cru e umas tigelinhas de molho. Na mesma hora, Cris perdeu a

vontade de comer. Quase “devolvia” a sopa que acabara de comer.

Marta continuou a falar, como se a sobrinha não tivesse dito nada.

- Bom, agora vou lhe contar algo, mas quero que me prometa que não

vai falar pra ninguém. Pra ninguém mesmo. Nem para o Ted, nem pra sua

mãe. Pra ninguém.

Cris achou que já chegava de situações falsas, mas estava se sentindo

tão incomodada que a única maneira de acabar logo com aquilo era

concordar com a tia. Então acenou que sim num movimento lento,

aceitando o que ela dizia.

- Não; quero que prometa em viva voz, insistiu Marta. Diga que

promete que não vai contar a ninguém.

Cris hesitou. Para ela, uma promessa era algo muito sério. Fora por

isso que continuara no orfanato até o fim, mesmo sabendo que seria

estressante para ela. Assumira o compromisso de ficar um certo período de

tempo, e ficara. A seu ver, prometer era como fazer um voto diante de

Deus. E a Bíblia deixa bem claro que, sempre que fazemos um voto para o

Senhor ou para outra pessoa, ele fica atento. E espera que o cumpramos

Cris tinha a sensação de que a sopa estava “rodando” em seu

estômago. O cheiro do sushi lhe dava ânsias de terminar logo aquele

almoço. Então, afastando o prato com o alimento e acenando que sim,

disse:

- Prometo, Tia Marta. Não vou contar pra ninguém.

Aceitando a resposta sincera da sobrinha, a mulher se endireitou, deu

um suspiro fundo e prosseguiu:

- Bom, então você ‘tá prometendo não contar nada pra ninguém,

principalmente para o seu tio Bob. Ele ainda não sabe o que vou lhe dizer.

Aqui ela fez uma pausa. Parecia estar esperando que Cris indagasse:

“Não sabe o quê?”

Contudo a jovem não queria dar a Marta a satisfação de lhe implorar

que contasse o segredo.

- Você é a primeira pessoa a quem falo sobre isso, disse a tia,

parecendo estar “saboreando” aquele momento, tanto quanto Cris o estava

detestando.

- É por isso que tem de guardar segredo. É que tomei uma decisão

importantíssima. O Cheyenne está fundando uma outra “Colônia” em

Santa Fé. O local ficou à disposição deles em janeiro.

Cris não entendia por que isso era uma notícia tão importante. Marta

inclinou-se para a frente, chegando mais perto dela.

- Vou para lá com ele, revelou. Vou me mudar para Santa Fé.

4

- Espere aí, disse Ted. Deixe-me entender isso direito.

Era noite, e ele, Cris e Katie achavam-se sentados à mesa de uma

pequena pizzaria na cidade. O rapaz havia chegado ao campus uma hora

depois que Cris retornara do almoço com sua tia. Ela e Katie o tinham

ajudado a levar seus pertences para o dormitório. Em seguida, ele as

convidara para irem comer uma pizza com ele. Então os três se

acomodaram na kombi de Ted, a “Kombinada”, e agora estavam ali.

- Você ‘tá dizendo que Marta estava de peruca? indagou ele

recostando-se mais no banco e girando o copo de refrigerante, fazendo

rodar o gelo dentro dele.

- Não, com alongamento, corrigiu Katie. Com umas mechas bem

longas, de um cabelo escuro que não combinava nada com ela.

- E levou-a pra almoçar num restaurante japonês?

Cris fez que sim.

- Eu queria que a Katie fosse também, mas...

- Mas minha aura não se achava bem em harmonia com a Lua,

concluiu a colega. Ou algo parecido.

- E sobre o que vocês conversaram? quis saber o rapaz.

- Ah, sobre a vida dela. Tia Marta disse que ‘tá encontrando sue

verdadeiro ser através da cerâmica. ‘Tá criando objetos de cerâmica.

- É; eu vi algumas das coisas que ela fez, na casa dela, informou Ted.

O trabalho dela é muito bom.

- É mesmo? indagou Cris.

Ted acenou que sim.

- Ela disse algo sobre o Bob?

- Não muito.

Cris gostaria de não ter prometido à tia guardar segredo sobre o fato

de que esta iria se mudar para Santa Fé. No momento em que perguntara à

tia se aquilo significava que iria se separar do marido, ela respondera: “Ah,

isso ainda vamos ver!”

- O que será que seu tio ‘tá achando dessa transformação toda?

comentou Katie.

Outra vez, Cris sentiu vontade de poder revelar o segredo. Assim os

três poderiam conversar sobre o assunto. Contudo sabia que promessa era

promessa. A única razão pela qual poderia revelar um segredo ou quebrar

um compromisso desse tipo era se o envolvido corresse algum risco grave.

Se a revelação pudesse impedir esse perigo, então iria se abrir. E era

verdade que Bob certamente sofreria muito se Marta se separasse dele.

Contudo, se Cris contasse o que sabia, isso não iria poupá-lo do

sofrimento. Talvez até fizesse com que a mulher resolvesse deixá-lo mais

rápido.

A jovem se sentia fortemente incomodada. Sua consciência mão lhe

permitiria contar o que sabia, ainda que fosse para pedir que orassem pelo

problema. A única solução era ela orar sozinha, o que, aliás, já estava

fazendo havia várias horas.

- Cris, o que você acha que ‘tá acontecendo com sua tia? perguntou

Katie.

Ela não respondeu.

- Nunca vi uma pessoa passar por uma mudança igual a essa,

continuou Katie, abanando a cabeça e olhando para o Ted. Quero dizer, ela

foi de um extremo a outro, não foi? Você precisava vê-la, Ted. Sem

maquiagem e com aquele cabelo postiço. Você nem a reconheceria.

- Ela fez algum comentário sobre o fato de que o Bob ‘tá mais ativo na

igreja? quis saber o rapaz.

Cris fez que sim.

- Ela não ‘tá gostando de vê-lo tão envolvido na igreja, agora que ele é

crente, explicou a jovem. Disse que a igreja é “amante” dele, já que ele

prefere ir lá a ficar com ela.

- Essa foi mal! exclamou Katie, catando um pedaço de linguiça na

pizza. Que injustiça! Quero dizer, sei que a Bíblia diz que a igreja é a

“Noiva de Cristo”. É uma grosseria total chamá-la de “amante”! Como que

a Marta pode ser tão cega? A melhor coisa que poderia ter acontecido ao

seu tio foi justamente ele se converter!

-É; eu sei, concordou Cris. Depois que o Tio Bob recebeu Jesus como

Salvador, virou outra pessoa.

- É, ajuntou Katie, e parece que sua tia também ‘tá tentando se tornar

outra pessoa. O problema é que, sem Deus, isso é impossível.

Cris se lembrou do versículo que lera pela manhã e citou-o para os

dois, em suas próprias palavras.

- Só aqueles que recebem a Jesus e crêem no seu nome têm o direito

de se tornarem filhos de Deus.

Ted que estava acostumado a citar trechos da Bíblia e a fazer

comentários apropriados em momentos como esse, olhou para a jovem

com uma expressão de agradável surpresa.

- Li isso hoje de manhã, explicou ela. É no capítulo 1 do Evangelho de

João.

- Como foi que você conseguiu ler a Bíblia de manhã? indagou Katie.

Tinha uma entrevista cedo. Não sei como conseguiu. Eu dormi até às

11:00h. Então não me pergunte nada sobre minha hora silenciosa. Não fiz

hoje. E é horrível uma pessoa que estuda numa escola evangélica confessar

isso.

- ‘Tá ótimo você ser sincera assim, Katie, comentou Ted. Continue

desse jeito. O ruim é quando a pessoa finge, tentando enganar Deus e os

outros.

- Já lhe contei o que minha colega de quarto fez no ano passado?

perguntou Katie. Ela era engraçada demais. Ela arranjou um cartaz com o

termo “Palavra”, e pregou-o com fita adesiva ao pé da cama. Depois saiu

dizendo pra todo mundo que passara várias horas na “Palavra”, naquela

noite.

Ted deu um sorriso.

- Não é desse tipo de sinceridade que estou falando, disse ele.

- Não entendi, interpôs Cris.

Katie girou os olhos para o alto.

- Ela disse que passou horas na “Palavra”, porque pregou um papel

escrito “Palavra” na cama dela.

- É; sei, mas...

- Isso é uma linguagem típica de escola evangélica, explicou a colega.

Você vai ouvir muito por aqui. Quando alguém se refere à sua hora

silenciosa, diz que estava “na Palavra”, isto é, estudando a Palavra de

Deus.

- Ah...

- Acho que lá em Basiléia não havia muito esse tipo de conversa, né?

comentou Katie.

- Não, replicou Cris simplesmente. Aliás, eu até ficava admirada

quando encontrava algum colega crente e a gente podia ir à igreja juntos.

Vocês não imaginam como eu estava ansiosa para estar aqui com vocês,

colegas!

De repente, ela se lembrou do outro colega com quem deveria ter se

encontrado para jantar, às 6:00h: Mark Kingsley.

- Que horas são? perguntou.

Ted virou-se para olhar para o relógio da parede.

- Sete e meia, respondeu. Você precisa ir embora?

Cris remexeu-se, abaixando o corpo na cadeira.

- Não, replicou laconicamente.

Compreendeu que não daria para explicar que combinara de jantar

com outro rapaz, sabendo que Ted iria chegar ao campus naquele dia. Seria

meio complicado.

Puxa, como é que fui esquecer? Será que me esqueci de propósito?

Tinha impressão de que ainda não falara com Ted sobre o Mark. E no

momento também não estava com muita vontade de dar essa explicação.

Assim que chegasse ao quarto, iria ligar para o Mark. Ele compreenderia.

Passava um pouco das 9:00h, quando conseguiu telefonar para o

rapaz, mas ele não se encontrava em seu quarto. Alguém a chamou para

assistir a um filme, junto com as colegas, mas não quis ir. Estava com

muito sono. Elas iriam vê-lo na sala de estar, que havia no centro do

corredor. Era uma saleta bastante confortável, que as alunas das turmas

mais adiantadas podiam frequentar. Tinham permissão para receber visitas

ali somente em certos dias específicos. Então as garotas às vezes andavam

por lá bem à vontade, até de camisola ou pijama.

Cris dormiu profundamente e acordou no outro dia sentido-se bem

descansada. Aí lembrou-se da Tia Marta e de que precisava ligar para o

Mark e pedir-lhe desculpas por não ter ido jantar com ele.

Saiu do quarto silenciosamente, deixando Katie a dormir. Seu

propósito era ir até a igrejinha, para fazer seu devocional. No caminho,

passou pela cantina, para ver se o Mark não estava ali tomando o café da

manhã. Pegou uma bandeja e entrou na fila. Serviu-se de um bolinho

muffin, um iogurte e um suco de laranja da máquina automática. Correu os

olhos pelo aposento. Havia alguns estudantes por ali, mas o Mark não

estava. Aí lembrou-se de que, num sábado de manhã, só os alunos que

tinham de trabalhar iriam se levantar cedo, para pegar serviço.

Cris se sentou a uma mesinha afastada, e recordou-se da sensação

agradável que experimentara quando vira o Mark entrar na “Selva”.

Por que será que senti aquilo? Será que, depois de tantos anos, eu

ainda tenha uma certa atração por ele? É; agora estou na faculdade. Não

sou mais uma menininha de quinta série. Como é que ainda sinto aquelas

emoções que tinha no pátio do recreio da Escola George Washington?

Lentamente ia comendo o muffin e tomando o iogurte, mantendo os

olhos fixos na porta, para ver se aparecia algum conhecido. O Ted,

provavelmente, iria dormir até mais tarde. Os dois não haviam planejado

nada para esse sábado. Ele apenas dissera que, à tarde, iria dar uma

chegada na Igreja de Riverview Heights e preparar a aula de escola

dominical para o domingo. E Cris concordara em ir com ele. Contudo, até

a hora de saírem, ela não tinha mais nada para fazer. Não iria a lugar

nenhum, nem precisaria se encontrar com ninguém. Era uma situação

muito estranha, bem diferente das que vivera no ano anterior.

Recordou-se de como passava as manhãs de sábado em Basiléia, o que

lhe deu uma doce saudade e uma sensação de perda. Ali costumava fazer

uma caminhada até sua confeitaria predileta, para tomar café, comendo um

pastel folhado fresquinho. Era o memento que “tirava” para pensar um

pouco.

- Tem alguém sentado aqui? indagou uma garota que se aproximara.

- Não, replicou Cris, afastando a bandeja e sentindo-se alegre por ter

uma companhia.

Entretanto, antes que a outra colocasse seu alimento na mesa, alguém

a chamou do outro lado do salão. A jovem deu um suspiro de alívio e saiu

apressadamente para se sentar junto com as amigas, sem dizer nada a Cris.

Esta seguiu-a com o olhar e viu-a abraçar as colegas alegremente. E o

grupo - eram quatro meninas - ficou ali a conversar e a rir alegremente.

Parecia que eram calouras.

Cris pensou em como será que se sentiria se tivesse ido estudar fora

no seu primeiro ano de faculdade, em vez de ter frequentado uma escola da

sua própria cidade. Não lamentava a forma como estudara nos anos

anteriores. Fizera várias disciplinas isoladas e cursos de extensão durante

as férias. Agora via que valera a pena pois tinha muitos créditos para

iniciar esses semestres finais. Entretanto não pudera cultivar uma vida

social mais intensa.

Um pensamento inesperado entrou em sua mente.

Como será que se sentiria se saísse com Mark Kingsley?

Ficou espantada de essa possibilidade ter-lhe passado pela cabeça.

Por que será que pensei nisso? Estou namorando o Ted e eu o amo.

Por que iria querer sair com o Mark?

Achava que a idéia estava associado ao fato de que pensara em fazer a

faculdade o mais depressa possível, fazer logo todos os cursos de que

precisava, em vez de sair para namorar. No ano em que iniciara o curso

superior, Ted estava na Espanha. E na ocasião, ela quase não saíra com

ninguém. No primeiro semestre, quando ainda era caloura, tivera apenas

alguns encontros com o Douglas, mais por brincadeira do que qualquer

outra coisa. Os dois eram muito amigos, e essa amizade tinha se fortalecido

cada vez mais, mesmo quando o rapaz resolveu se casar com a Trícia.

No início do segundo semestre, Ted voltara, e eles havia reiniciado o

namoro. Foi então que ela teve certeza de que partir dali, os dois iriam

continuar juntos.

Mas, e se nós não tivéssemos nos mudado para a Califórnia quando

eu tinha quinze anos? E se tivéssemos ficado em Wisconsin? Será que eu e

o Mark iríamos acabar namorando?

Percebeu que sua imaginação a estava levando para a esfera do “será

que...”, e não estava gostando muito do que sentia. Ficava meio empolgada

ao pensar em namorar o Mark. Naquele instante, essa sensação estava mais

forte do que o amor firme e profundo que nutria pelo Ted. Veio-lhe uma

impressão de confusão, como que entendendo que não poderia confiar nas

próprias emoções.

Afinal, por que estou pensando essas coisas?

Levantou-se, com um movimento rápido, levou a bandeja para o

fundo do salão, e colocou os talheres na bacia apropriada.

Tenho de ir para a igreja e fazer minha hora silenciosa, pensou.

Assim meu coração vai voltar para os “trilhos”.

Caminhou pela estradinha que levava para a pequena igreja, um lugar

muito bonito e agradável. Anteriormente, ali fora uma fazenda de gado. O

proprietário doara o terreno para a fundação, mas pedira que construíssem

uma igrejinha e colocassem num dos vitrais um desenho com o emblema

da fazenda. Então eles haviam assentado, bem na direção do altar, uma

belíssima vidraça com o desenho de uma coroa dourada e uma cruz

passando pelo centro desta. O nome da fazenda era “Rancho de la Cruz e la

Corona”, que significa “Fazenda da Cruz e da Coroa”.

Cris entrou no pequeno templo, que naquele momento estava

totalmente em silêncio. Sentiu uma agradável sensação de quietude. Em

passos leves, caminhou até os bancos da frente e sentou-se num deles.

Abaixou a cabeça para orar, mas seu pensamento começou a vaguear.

Por que estou pensando no Mark? Será que existe certa atração entre

nós? E será que ela poderia se fortalecer, se nos relacionássemos? E será

que se tornaria mais forte do que o que há entre mim e o Ted?

Percebeu que desse jeito não iria conseguir orar de verdade. Então

abriu a Bíblia e pegou a caneta e seu diário. Leu dois capítulos e fez

algumas anotações. Aí seu olhar se dirigiu para o vitral colorido. Observou

que a luz do Sol brilhava intensamente no vidro cor de âmbar da coroa.

Talvez eu deva conversar com a Katie sobre esses meus sentimentos

confusos. Ela sempre me ajuda a clarear as idéias. É verdade que nem

sempre gosto do que ela diz, mas ela me faz ver a situação por um ângulo

novo. É do que preciso neste momento.

Cris se levantou e saiu da igreja, mas em vez de seguir pela campina,

pegou o caminho que ia dar no campo de beisebol. Quando se aproximava,

notou que havia dois rapazes parados no centro, na base do arremessador.

Um deles era o Mark. Sentiu o coração dar uma batida mais rápida.

É agora, pensou. Está na hora de pôr meus sentimentos à prova. Se

existe entre nós algo que podemos cultivar, essa é a hora.

Parou junto à arquibancada. Mark avistou-a e veio em sua direção,

numa corrida lenta.

- Ei! principiou ele. Errei...

- Me desculpe... disse ela.

Os dois se puseram a rir, por haverem começado a falar ao mesmo

tempo.

- Me desculpe, repetiu Cris. Ontem à tarde, fui à cidade com o Ted e a

Katie, e não voltei a tempo.

- E eu achei que fora eu quem errara a hora, explicou Mark. Atrasei-

me vinte minutos, e pensei que você tinha desistido de esperar e ido

embora.

- Não, não. Sinto muito.

Cris ficou a analisar os próprios sentimentos. Estava bastante calma, o

que até a espantava. As sensações iniciais haviam desaparecido.

- Quer jogar um pouco conosco? indagou o rapaz, atirando a bola para

o alto e dando um sorriso, fixando nela os olhos por baixo da aba do boné.

O outro rapaz aproximou-se e Cris o reconheceu. Era Wesley, irmão

de Selena.

- A Selena e a colega de quarto dela, a Vicki, disse o recém-chegado,

tinham combinado de encontrar conosco aqui, mas não vieram. O Mark

acha que elas devem ter dormido até mais tarde. Eu já acho que minha irmã

se esqueceu.

- Vai querer? insistiu Mark. Nós até deixaremos que você comece

rebatendo.

- ‘Tá bom, concordou Cris, um pouco espantada com sua adesão a

uma atividade esportiva. Eu não sou boa pra pegar bola, nem garanto um

bom arremesso, mas posso rebater direitinho se você a atirar bem devagar.

- Isso... bem devagar, repetiu Mark, voltando para a base de

arremesso.

Cris pegou o bastão e nesse momento experimentou uma maravilhosa

sensação de felicidade, como sentira na infância. Era como se estivesse

realizando um velho sonho: jogar beisebol com Mark Kingsley. Quando

estava com uns onze anos, isso jamais teria acontecido. Era tímida demais

e nunca entraria no jogo.

No primeiro arremesso dele, a bola veio sem força, mas muito baixa.

Cris aparou-a com o bastão, e atirou-a de volta na direção do rapaz. Caiu

uns sessenta centímetros à frente dele.

- Será que já lhe falei que você rebate igual mulher, Cris Miller?

indagou ele, brincando.

- Caso você não tenha notado ainda, eu sou mulher, Mark Kingsley,

respondeu ela rindo.

- Ah, já notei, sim, replicou ele.

Ela não conseguia ver a expressão do rosto de Mark, pois o boné fazia

sombra nele. Todavia, pelo seu tom, percebeu que rapaz estava se

divertindo com a brincadeira.

- O.k., então aqui vai meu arremesso especial, para garotas que

gostam dele bem devagar.

Mark fez um movimento exagerado, girando o braço lentamente num

gesto largo.

- Muito engraçadinho! exclamou Cris. Agora vê se desta vez consegue

não mandar tão rasteiro!

Wesley, que se distanciara para pegar a rebatida, aproximou-se um

pouco.

- Mande a bola aqui, Cris! gritou ele, fazendo gozação e enfiando a

mão na luva própria. Bem aqui!

Cris se posicionou, à espera do arremesso. Dessa vez, conseguiu

acertar a bola direitinho, mandando-a longe. Teve uma agradável sensação

de vitória e largou o bastão no chão e correu para a primeira base. Contudo

Wesley conseguiu agarrá-la, correu em sua direção e “queimou-a” com a

bola.

- Da próxima vez, disse, ponha mais força muscular na rebatida, disse,

procurando orientá-la, assim conseguirá um giro melhor. E não se limite a

mover os braços, mas movimente os ombros também.

A jovem nem escutou direito o que ele dissera. Estava se sentindo

eufórica, só de ter conseguido acertar na bola e estar ali jogando com os

dois rapazes.

Ei! gritou alguém na beirada do campo. Que idéia foi essa de começar

antes de nós chegarmos?

Era Selena, irmã de Wesley.

Estava usando um uniforme próprio de jogador de beisebol e um boné

apropriado. A garota conseguira ajuntar bem seu cabelo louro, que era

“rebelde” e encaracolado, amarrando-o num rabo-de-cavalo. Em seguida,

passara-o pela abertura que havia na parte de trás do boné. Caminhando em

direção ao centro do campo, ela parecia realmente preparada para um jogo

sério. Estava acompanhada de mais cinco colegas, todas calouras, que

apresentou a Cris. Uma delas era Vicki, uma linda jovem morena, de pele

impecável. Ao que parecia, elas já conheciam o Wesley, mas não, o Mark.

Após as apresentações, todos se engajaram num jogo que levaram

muito a sério. Vários outros estudantes se aproximaram e entraram na

partida, que acabou durando a manhã toda. No fim, Cris teve chances de

ficar com o bastão quatro vezes e, ao todo, conseguiu rebater três bolas,

tendo errado uma. No restante do tempo, ela jogou no “campo”, isto é, na

posição de pegar as bolas rebatidas.

A jovem riu o tempo todo. Estava amando aquela experiência. Era a

sensação agradável da brisa cálida batendo no rosto. Eram as alegres

gozações com os amigos e o modo como o Mark ria para ela. Era disso que

sentira mais falta no ano anterior, quando estudara na Suíça. Não podia

negar que as viagens de trem pela Europa e os deliciosos pastéis folhados

das confeitarias eram ótimos. Entretanto isso aqui era como estar em casa.

Houve um momento, no meio do jogo, em que Mark estava

arremessando, e ela olhou para ele e resolveu fazer uma análise de suas

emoções. Não sentiu nenhum “alvoroço” na boca do estômago, nem

anseios maravilhosos.

Ah, nem sei por que deixei minha imaginação vaguear no café da

manhã. Afinal, o Mark Kingsley é apenas o Mar Kingsley. Sempre será

meu amor infantil - nada mais e nada menos.

Na última rodada do jogo, Vicki conseguiu dar uma rebatida muito

boa na bola. Contudo Cris deu uma corrida forte e pegou-a. Atirou-a para

Wesley que foi na direção de Vicki e a “queimou”, antes que chegasse à

segunda base. Com isso, Cri e seu time foram os vencedores, e todos se

puseram a comemorar aos gritos.

Contudo o outro time não deixou a comemoração ir muito longe.

Selena logo propôs a Mark que fizessem uma “melhor de três”. Wesley

aceitou o desafio e disse que, no dia seguinte, às 4:00h da tarde, estariam

ali no campo para enfrentar Selena e seu time de “perdedores”.

Em seguida, eles se dirigiram para a cantina, todos rindo e

conversando, como se já se conhecessem havia muitos anos. Mark

aproximou-se de Cris e pôs-se a caminhar ao seu lado.

- Sabe o que foi que passou pela mente quando a vi jogando no

“campo”?

- Espere aí! Deixe-me adivinhar! Que eu tinha razão quando falei que

não sou boa pra pegar a bola?

Mark deu uma risada.

- Não! Você pegou muito bem. Aliás, foi aquela sua joga com Wesley

que nos deu a vitória.

- É, disse Cris, sorrindo feliz. Acho que foi mesmo!

Mark ficou sério e continuou.

- O que passou por minha mente, Cris, foi a idéia de que vocês não

deviam ter se mudado para a Califórnia. Queria que a gente tivesse sido

criado junto, lá em Wisconsin. Que será que poderia ter acontecido?

Impensadamente, ela respondeu:

- Também tenho pensado algo parecido.

- Tem?

Percebendo que não que se traíra devido à sua sinceridade, a jovem

acrescentou prontamente:

- Quero dizer, acho que Brightwater é uma ótima cidade para se viver.

Teria sido ótimo fazer o curso médio com a mesma turma com que

comecei os estudos.

- É, concordo, disse Mark. Teria sido muito bom se você tivesse feito

o curso médio conosco.

Sem saber bem o que responder, Cris apenas deu um sorriso e fez um

aceno afirmativo.

Entrando na cantina, ela logo avistou Ted sentado a uma mesa

próxima. Com um movimento de cabeça, ele chamou Cris e o resto da

turma para se sentar junto dele. Assim que a moça bateu os olhos nele,

experimentou uma firme certeza.

Ah, esse é o homem que amo!

Como que querendo testar a reação que acabara de ter, virou-se e

olhou para Mark, que já estava na fila do “bandejão”. Não havia nem termo

de comparação entre os dois. No mesmo instante, todos os pensamentos

que tivera a respeito de Mark e que começavam com “Será que...” se

dissiparam. Não sabia bem por quê, mas agora nada daquilo importava

mais.

Seguindo a fila, virou-se e olhou para Ted que se achava do outro lado

do salão. Ele a fitava novamente “daquele jeito”. Embora estivessem a dez

metros de distância um do outro, em meio ao burburinho da cantina, no

momento em que seus olhos se encontraram, Cris teve a sensação de que o

resto do mundo desaparecera. Parecia que os dois se achavam dentro de

uma imensa bolha que os transportara para um lugar encantado. Ali seu

coração não batia descompassado, mas tinha um ritmo firme e seguro.

Estamos numa maratona, não é, Ted? Nossa corrida não é aquela

disparada rápida dos cem metros rasos, é? Você me ama de todo o

coração. Vejo isso em seu rosto. E eu também o amo. Sei que sim.

Cris se achava atrás do Mark na fila para pegar sanduíches. Sentia-se

muito satisfeita ao perceber que suas emoções agora estavam bem

definidas. Se ela tivesse ficado morando em Wisconsin, talvez ela e Mark

tivessem tido a chance de desenvolver um relacionamento diferente.

Mas não fiquei em Wisconsin. Mudei pra cá. Depois conheci o Ted e é

com ele que quero ter um relacionamento e assumir um compromisso.

Acho que Deus não joga a gente de um lado para o outro, como meus

pensamentos sobre o Mark estavam hoje de manhã. E não preciso ficar

fantasiando e tendo essas idéias tipo “Será que...” Só preciso mesmo é

perguntar a Deus: “Qual o próximo passo que tenho de dar?”

No momento em que Mark e Cris saíram do balcão dos sanduíches e

já iam seguir em direção à mesa do Ted, Katie apareceu à frente deles.

Como dormira até mais tarde, estava cheia de energia e logo os saudou de

forma entusiástica.

- Oi! Ah, então foi você mesmo que vi entrando aqui!

A princípio, Cris pensou que a amiga se dirigia a ela. Pouco depois,

porém, percebeu que ela estava olhando para o rapaz. Então começou a

fazer a apresentação.

- Katie, este aqui é o...

- Mark, disse a outra. É, eu sei. Como vai, Mark?

Foi então que Cris fez a associação dos nomes, e quase deixou cair sua

bandeja.

- Esse é o Mark “número quatorze”?

- É; o Mark “número quatorze”, explicou Katie sorrindo. Tenho de lhe

pedir desculpas, Mark, mas não sei seu sobrenome.

- Kingsley, disseram Cris e Mark ao mesmo tempo.

- Acho que também tenho de lhe pedir desculpas, interpôs o rapaz,

olhando para Cris e depois para Katie, mas nos já nos conhecemos? Eu a

conheço?

Cris se voltou para sua melhor amiga e viu que ela ficou arrasada.

- Mark, principiou Cris com um leve tom de repreensão na voz, essa é

minha colega de quarto, Katie Weldon. Vocês dois se conheceram no ano

passado, depois de um jogo de beisebol.

- Ah! exclamou ele lentamente.

Seguiu-se um momento de silêncio meio constrangedor. E seguida, ele

continuou:

- Você quer se sentar conosco, Kathryn?

- Meu nome não é Kathryn, é Katie, disse a jovem com um olhar frio

feito gelo. Katie Weldon.

Imediatamente Cris pegou a amiga pelo braço e puxou-a para um lado.

Virando a cabeça para trás, disse:

- Nós voltamos já.

Mark dirigiu-se para a mesa onde Ted já se encontrava. Cris teve uma

contração facial ao ver a expressão do rosto da amiga.

- Oh, Katie, desculpe! Sinto muito! cochichou para a outra. Eu não

tinha a menor idéia de que o seu Mark “número quatorze” era o meu Mark

Kingsley.

- O seu Mark Kingsley? repetiu Katie entre dentes.

- Nó nos conhecíamos lá em Wisconsin. Quando eu era garota, na

escola, tinha uma “paixonite” por ele.

Katie fitou-a fixamente sem dizer nada.

- Eu lhe falei sobre o Mark, prosseguiu Cris. Tenho certeza de que

falei.

- Não; falou, não. Se tivesse me falado sobre o Mark eu teria

lembrado, replicou Katie com o rosto avermelhado. Você viu o jeito que

ele me olhou? Não consigo acreditar! Eu decorei palavra por palavra do

que nós conversamos em junho. Depois, passei as férias todas sonhando

com esse cara. Que vacilo!

Cris teve vontade de passar o braço em torno do ombro da amiga, mas

ainda estava com a bandeja nas mãos.

- Não, Katie, não foi um vacilo seu, não! disse.

- Não, Cris, eu não quis dizer que foi um vacilo meu. Foi dele,

explicou Katie e, abaixando um pouco a voz, continuou: Esse Mark

“número quatorze” Kingsley deu um vacilo tremendo. Ele poderia ter

namorado a ruivinha mais bonita, mais encantadora e mais divertida da

escola, mas acaba de perder essa chance.

E com um rápido movimento de cabeça, fazendo dançar seu cabelo

liso, ela se virou e saiu. Cris ficou parada, olhando-a. A amiga dirigiu-se à

máquina de venda automática. Pelo visto, ela pretendia desafogar sua

mágoa, devorando uma imensa casquinha de sorvete de chocolate.

5

Caminhando em meio ao barulho da cantina, Cris se sentia péssima.

Dirigiu-se para a mesa e se sentou ao lado do seu namorado. Mark já se

acomodara na cadeira que estava diretamente à frente de Ted, e os dois

conversavam animadamente, como se já fossem bons amigos. Obviamente,

Mark devia ter se apresentado ao outro. Katie foi embora com seu sorvete

instantâneo.

Decidida a consertar aquela situação, Cris começou a pensar no que

poderia fazer para “arrumar” as coisas entre Mark e sua amiga. Pensou na

possibilidade de arranjar um passeio a quatro: ela e Ted, Katie e Mark. Em

seguida, veio-lhe a idéia de chamar o colega de lado e lhe explicar o quanto

Katie gostava dele. Contudo nenhuma dessas hipóteses lhe agradou.

Se ao menos ele não lhe tivesse chamado de “Kathryn”, tudo estaria

um pouco melhor. E ele também, ao ver que ela ficara tão empolgada de

revê-lo, poderia ter fingido que se recordava dela. For que será que os

homens não “sacam” essas coisas?

- Ei, Cris, disse Mark, você quer ir com o Ted à Igreja Riverview

Heights, hoje?

Como estava com a boca cheia, Cris fez que sim, com um aceno de

cabeça.

Por que será que o Mark está perguntando isso? Já falei com o Ted

que quero ir.

Ao que parecia, Ted havia convidado o outro rapaz para ir com eles.

Os três saíram da cantina e entraram na kombi dele, dirigindo-se para a

igreja. E pela conversa animada que os dois continuavam a desenvolver, a

jovem compreendeu que Mark a frequentara no ano anterior. O rapaz

estava dando ao Ted diversas informações, pois participara do grupo de

jovens ali, dando sua ajuda em algumas excursões que tinham feito.

- Quem organizou tudo foi um casal, explicou Mark, mas eles se

mudaram daqui em junho. Foi por isso que a liderança da igreja resolveu

contratar um obreiro pago. Atualmente o número de adolescentes que

frequentam é pequeno, mas há muitos outros jovens nas redondezas que

poderiam ir também.

- E’ por que não vão? indagou Cris.

- Porque na igreja não há um trabalho maior pra eles. Só tem a classe

de escola dominical. Esse casal que dirigia parecia não gostar muito dos

jovens. Ficavam “pregando” o tempo todo. Eles não tinham uma hora de

louvor, nem momentos de comunhão informal, com oportunidades de

desenvolver relacionamentos.

Cris percebeu que Ted estava gostando muito de receber toda essa

informação sobre o grupo de jovens.

- Amanhã cedo você pretende começar com um período de louvor, né?

indagou Cris.

- Estou pensando nisso, sim, replicou Ted.

Entraram no estacionamento da igreja, onde Ted parou. Mark os levou

até a sala onde os jovens costumavam ter sua reunião.

- Já tem alguém pra ajudá-lo nos cânticos? perguntou ele ao colega.

- Ainda não tenho nenhum voluntário, explicou o outro, dando um

sorriso e virando-se para Cris. A não ser que um de vocês queira vir pra

cantar comigo.

Cris gostava de cantar, mas nunca participara de um grupo de louvor.

Sabia que não tinha voz de solista, mas se estivesse ao lado de alguém que

cantasse bem alto, conseguia acompanhá-lo sem problema.

- Eu posso ajudar, disse ela meio hesitante.

Ted fitou-a sorridente, os olhos brilhantes. Ela entendeu que havia

conquistado a admiração dele.

- Obrigado! disse o rapaz. Sei que ainda não decidiu se vai ou não

lecionar, mas pode pensar o tempo que for necessário.

Cris sentiu que ele não a estava pressionando para aceitar a classe,

mas compreendeu que ela, por sua vez, estava bem mais inclinada a pegá-

la. Gostava da idéia de estar participando dessa nova fase na vida de Ted.

- Também terei muito prazer em ajudar no que mais você precisar,

ajuntou Mark.

- Obrigado, companheiro! disse Ted. Como você pode ver, estou

começando do zero nesse negócio todo.

Ficaram ali cerca de meia hora, arrumando o salão para a reunião do

dia seguinte e fazendo um levantamento dos recursos de que já dispunham.

Quando já se preparavam para ir embora, Cris disse:

- Sabe o que mais? Acho que devemos orar antes de sair.

- Ótima idéia! exclamou Ted. Como é mesmo aquele versículo? “Se o

Senhor não edificar a casa, em vão trabalha os que a edificam.” Quero que

esse grupo de jovens pertença a Deus.

Cris sorriu.

- Então vamos orar nesse sentido, disse.

Ted estendeu o braço e pegou a mão dela. Para espanto da jovem, o

Mark pegou a outra. Os dois rapazes passaram o braço um pelo ombro do

outro, e os três ficaram juntinhos, formando um grupo compacto.

Em seguida, Ted orou, pedindo a Deus que abençoasse aquele grupo

que iria se reunir ali. Pediu também a orientação dele para todo o

planejamento, para o ensino, o louvor e as reuniões de congraçamento que

iriam realizar. Cris tentou se concentrar que ele estava dizendo. Sabia que

tinham dado as mãos para simbolizar o fato de que estavam unânimes

naquilo que pediam. Contudo ela começou a comparar os dois rapazes.

Com Ted, sentia-se segura e bem à vontade. Sua mão já “conhecia” a dele.

A mão de Mark era áspera e calosa, típica de uma pessoa que tivera de

remover neve e empilhar feno. Lembrava-lhe as mãos de seu pai.

Voltou a prestar atenção na oração de Ted. O rapaz estava

interpidamente tomando posse daquele território e do coração dos jovens

para o reino de Deus.

- Que eles possam saber que tú és real, Pai, seja de que maneira for.

Depois, o Mark orou também e a seguir, Cris fez sua petição. Quando

encerraram, Ted fechou o momento de comunhão dizendo “Amém” à sua

maneira, isto é, com as palavras:

- Que assim seja!

Os três ergueram a cabeça e soltaram as mãos.

- Vai ser muito bom, Ted, disse logo o Mark. Esses garotos vão gostar

muito de você trabalhando com eles.

- Por que não se apresentou pra essa vaga, Mark? quis saber Ted.

O outro abaixou a cabeça um pouco e, com uma expressão meio

acanhada, respondeu:

- Eu me inscrevi aqui, mas, duas semanas atrás, acabei retirando

minha inscrição. É que eu queria fazer todas as disciplinas possíveis deste

semestre, e pretendo jogar beisebol no próximo. Desse modo, eu não

poderia dedicar aos jovens todo o tempo que é necessário. Então acho

melhor ajudar mais como voluntário do que assumir a responsabilidade

pelo programa todo.

Ted passou o braço pelo ombro do colega e puxou-o para si, dando-

lhe um abraço lateral.

- Gostei de sua sinceridade, Mark.

Cris deu um sorriso caloroso para o amigo de infância. Estava

pensando num comentário bem adequado para fazer, quando o bipe dele

soou. Este teve um leve sobressalto.

- Meu colega de quarto me deu este bipe, pra poder me encontrar

sempre que precisar.

Tirou o aparelhinho da cintura e verificou o número estampado nele.

- Esperem um pouco, disse ele. Volto já.

Cris e Ted ficaram sozinhos na sala dos jovens.

- Sabe o que mais? principiou a jovem. Isto aqui é o tipo de trabalho

que tem a sua “cara”.

Ted passou de leve a mão no queixo forte, de pele bem barbeada.

- Você acha mesmo?

Cris acenou que sim.

- Lembra quando estávamos naquele albergue em Amsterdã? Ali,

dirigindo o louvor e dando estudo bíblico, você ficou muito à vontade.

- É, mas foram poucos dias, replicou o rapaz.

- Eu sei. Mas neste tipo de trabalho, você parece se sentir “em casa”.

Não acha?

Ted ficou a pensar, enquanto os dois se encaminhavam para a porta. E

continuou em silêncio até chegarem ao carro, onde pararam à espera de

Mark.

Minutos depois, o rapaz voltou.

- Será que vocês podem me deixar na loja Stereo World, em Mesa

Verde? O Peter pediu pra eu dar uma olhada em uns alto-falantes que ele

quer comprar.

Os três entraram no veículo e partiram. Chegando à loja, Ted parou

para o outro descer. Antes de sair, Mark pôs a mão no ombro de Cris e

disse:

- Não se esqueça de que você ‘tá me devendo um jantar, hein?

Precisamos terminar aquela conversa que começamos hoje cedo.

Ted recolocou o carro em movimento, seguindo para a Rancho

Corona. A jovem permaneceu um longo tempo em silêncio, pensando no

que o amigo falara, tentando deduzir o que ele quisera dizer com aquilo. O

namorado também parecia está digerindo o comentário de Mark. A certa

altura, chegaram a uma pracinha onde havia um playground. Ele

estacionou num das vagas próximas e desligou o motor. Olhando para Cris

com uma expressão interrogativa, indagou:

- Você já conhecia o Mark?

A princípio, ela pensou que Ted estava brincando.

- Nós éramos colegas quando crianças, lá em Wisconsin.

Pelo olhar dele, Cris compreendeu que ele não sabia disso.

- Achei que ele era amigo do Wesley e da Selena, e que você o havia

conhecido hoje, na fila da cantina.

Cris riu.

- Não. Meus pais já eram conhecidos dos pais dele antes de nós

nascermos.

Ted deu uma espiada para fora e em seguida se virou para ela.

- Você já tinha me dito isso? perguntou.

- Acho que sim, replicou Cris. Não lhe contei que o vi uns dias atrás

na “Selva”, quando eu e a Katie fomos lá?

Ted abanou a cabeça. Então ela lhe explicou que esse Mark era o

mesmo rapaz que Katie chamava de Mark “número quatorze” e ao qual se

referira quando viajavam de trem na Europa. O rapaz fitou-a ainda mais

espantado.

- E vocês só ficaram sabendo disso hoje?

- Só hoje. E o pior é que o Mark não se lembrava mais da Katie.

- Ai, ai, ai! fez Ted.

- É isso mesmo: ai, ai, ai! Foi por isso que Katie não ficou na cantina

pra almoçar.

- Mas ele é um cara legal, comentou o rapaz. Admiro muito aquela

disposição dele de servir.

- É; muito legal, concordou Cris.

Mas, com certeza, não é o cara pra mim, pensou.

Ted se remexeu no banco, virando-se totalmente para ela.

- O que foi que ele quis dizer quando falou que você tinha de ir jantar

com ele?

Cris ficou a pensar se deveria lhe contar da sua pequena incursão na

esfera do “Será que...” Deveria revelar-lhe que havia criado umas fantasias

sobre o que teria acontecido se tivesse saído com Mark? Não; agora nada

daquilo tinha muito significado para ela, então resolveu não dizer nada.

- Eu ia me encontrar com ele na cantina ontem à noite, explicou, mas

acabei esquecendo. Foi por isso que lhe perguntei as horas, quando

estávamos na pizzaria com a Katie.

Nesse momento, ocorreu-lhe que embora os devaneios passageiros

que tivera com Mark fossem um caso encerrado para ela agora, não sabia

se o mesmo acontecia com ele. É verdade que isso se dera muito tempo

atrás, e o interesse que tinham tido um pelo outro não dera em nada.

Contudo talvez ele quisesse terminar a conversa que começara com ela

porque também estivera na esfera do “Será que...” Ou quem sabe ainda

estava...

Será que fiz ou disse algo que o levou a pensar que eu estava

interessada nele? Não tive essa intenção. Ele sabe que eu e Ted estamos

namorando, não sabe?

Aqui ela se deu conta de que ela e Ted não haviam agido como

namorados. Se o Ted pensara que o Mark era um amigo de Selena que ela

acabara de conhecer, este também poderia ter pensado o mesmo acerca de

seu namorado.

Estava ficando muito quente dentro da kombi ali parada. Cris se sentia

incomodada. Ted abriu a porta do lado dele.

- Vamos caminhar um pouco? indagou, num tom que era mais

afirmativo que interrogativo.

- Vamos.

Cris ficou satisfeita de sair do carro quente e desconfortável. Uma

semana antes, ela havia reclamado com Ted que o banco do veículo, no seu

lado, estava bem estragado. O banco achava-se gasto e as molas do

assento, à mostra. O rapaz colocara um pedaço de papelão e o cobrira com

uma velha toalha de praia. Na hora em que Cris deslizou para sair, tudo

aquilo veio junto.

Ted pegou sua mão e os dois saíram andando num passeiozinho de

cimento que circundava toda a pracinha. O playground estava cheio de

crianças, balançando na gangorra, subindo descendo nos aparelhos e

brincando na caixa de areia. Toda faziam uma grande algazarra. Cris e Ted

foram se afastando do barulho.

- Eu queria conversar com você sobre algo que falou quando

estávamos lá na igreja, principiou o rapaz. Você disse que eu me sinto “em

casa” nesse tipo de trabalho. Acho que tem razão. Mas pra mim é muito

difícil enxergar isso. Sabe por quê? Eu nunca soube o que é “sentir-se

perfeitamente em casa”, a não ser agora, com você, Kilikina.

Sempre que Ted a tratava pelo nome havaiano, Cris tinha a sensação

de que seu coração se derretia dentro dela. E essa vez não foi exceção.

- Também me sinto “em casa” com você, Ted, replicou ela.

- É mesmo? indagou o rapaz.

- É. Sinto sim.

Cris procurou afastar do pensamento as indagações que tinha acerca

de Mark e concentrar-se apenas em Ted. Se tivesse dado alguma impressão

errada para o colega, iria conversar com ele depois e esclarecer tudo. Nesse

momento, era ali mesmo que queria estar. E era com Ted que desejava

conversar.

- A questão, continuou ele, é que não sei exatamente como é uma

família normal. Tenho alguma idéia sobre o que quero para a minha

família e sobre o que considero vida normal. Mas nunca tive isso. Tive

muito poucos exemplos pra observar. Quando recebi Jesus como meu

Salvador, a igreja se tornou muito importante pra mim. Deve ser por isso

que me sinto “em casa”, como diz você, no ministério com jovens. Foi na

igreja, e principalmente nos grupos de jovens, que vi os exemplos positivos

de como se deve viver.

- Então sua infância foi muito triste? quis saber Cris.

- Por que pergunta isso?

- Ah, muitas vezes eu já quis lhe perguntar, mas tinha a impressão de

que você não gostava de conversar sobre essa parte de sua vida, explicou

ela. Gostaria de saber mais sobre você, principalmente de sua infância.

- Você sabe que meus pais usavam drogas quando se conheceram, né?

disse Ted.

Cris ficou sem saber se aquilo era uma piada, e esperou que ele

explicasse melhor. Ele puxou-a em direção ao interior da pracinha, onde

havia duas árvores velhas. Ele se sentou no chão e apoiou as costas no

tronco de uma delas e a garota se acomodou ao seu lado, de frente para ele.

- Eles usavam drogas mesmo. Nunca lhe contei isso, mas, quando se

casaram, minha mãe já estava grávida.

- Estava? indagou Cris num tom de espanto, mas em seguida se

arrependeu de ter tido tal reação.

- E tinha só dezessete anos.

Foi então que Cris compreendeu por que Ted se interessara tanto pelo

caso de Alissa, uma jovem que era amiga deles. Alguns anos atrás, a moça

engravidara, decidira não abortar, mas dar a criança para adoção. Na

ocasião, Cris achara muito estranho o rapaz se envolver tanto no caso e

ficar todo entusiasmado pela resolução da outra. Agora tudo ficava bem

claro. Ele também fora uma criança gerada dessa forma: mãe solteira e

adolescente. Sentiu um arrepio na espinha.

E se a mãe dele tivesse achado que a criança seria um incômodo

muito grande pra ela! E se, vinte e três anos atrás, ela tivesse pensado que

o que havia em seu ventre era apenas uma “massa de tecido humano”? E

se...

Aqui ela deteve o fluxo de seus pensamentos. Estava respirando

pesadamente e quase chorando. Contudo não queria que o namorado

soubesse o que lhe passava pela mente. Depois dos devaneios que tivera

com Mark pela manhã, aprendera que não adiantava nada ficar muito

tempo imaginando “E se...”

A verdade é que a mãe do Ted decidira não interromper a vida do

filho, e o deu à luz. Algum dia, ainda vou agradecer a ela por isso. E se

nunca te agradeci, Pai, agradeço- te agora.

- Depois eles se casaram porque, creio eu, queriam fazer o que era

certo, continuou Ted. Depois que nasci, eles tentaram endireitar a vida.

Uma vez minha mãe me disse que, quando descobriu que estava grávida,

prometeu a si mesma que nunca mais iria usar drogas. E não usou mesmo.

Meu pai demorou um pouco mais pra largar tudo. Quando eu era

pequeno... sei lá... com uns três anos... certo dia, eles tiveram uma

discussão por algum motivo e meu pai, que estava drogado, fez algo que

agrediu muito a minha mãe.

- Oh, Ted, que coisa horrível! exclamou Cris.

Ela estendeu o braço e pegou a mão dele, dando-lhe um aperto de

leve. As lágrimas que ela estivera segurando, agora lhe escorriam

livremente pelo rosto.

Ted olhou-a com uma expressão interrogativa.

- Tem certeza de que quer que eu lhe conte tudo isso? perguntou.

- Quero, claro, replicou Cris, piscando os olhos para afastar as

lágrimas e fitando-o com um ar sério. Eu só não imaginava que a situação

toda tinha sido tão horrível. Estava me lembrando daquela noite, em

Newport Beach, quando estávamos conversando na praia e você brigou

com o Sam, porque ele estava muito drogado. Agora entendo por que você

ficou tão transtornado com aquilo.

Ted baixou os olhos em direção às mãos deles.

- Talvez você nem creia nisso, mas ainda sinto saudade dele, disse,

passando o polegar de leve sobre o bracelete de Cris, com a gravação “Para

Sempre”.

- É porque você ama seus amigos, Ted. Para sempre!

Nesse momento, um avião passou bem lá no alto, deixando um rastro

que mais parecia um risco de giz no céu azul.

- Tem certeza de que quer continuar conversando sobre isso? insistiu

ele.

- Tenho.

- O que mais quer saber?

- O que aconteceu quando seu pai agrediu sua mãe? perguntou ela em

voz suave.

- Naquele dia, ela o largou. Não sei se ele chegou a bater nela. Ela não

me contou o que aconteceu, e nunca perguntei a meu pai. Sei que ele nunca

me bateu. E nunca foi dado a violência ou algo assim. Então não sei. Pode

ser que eles só tenham discutido. Às vezes, as coisas que alguém diz

podem nos machucar muito, deixando-nos magoados pelo resto da vida.

Mas seja o que foi que aconteceu, minha mãe se separou dele e me levou

com ela. Então ficamos vagando, sem moradia certa, durante algum tempo,

mais ou menos fugindo do meu pai.

- Será que é por isso que você gosta tanto de ficar viajando? comentou

Cris, tentando ao máximo ter uma atitude bem positiva.

- Sei lá. Pode ser. Depois disso, não tenho muita certeza de como foi

que as coisas entraram nos eixos. Meu pai largou as drogas, e eles voltaram

a ficar juntos por algum tempo, mas não deu certo. Tentaram “remendar” o

relacionamento deles, mas ele já estava tão atrapalhado que acabou se

desfazendo mesmo. Afinal eles se divorciaram e isso foi apenas a

oficialização da situação que estavam vivendo. Acho que o casamento

deles nunca teve muita chance de sobreviver. Desde o começo foi todo

cheio de problemas.

- Foi aí que você e seu pai se mudaram pra Maui? indagou Cris. Você

estava com uns oito ou nove anos, né?

Ted fez que sim.

- Foi uma fase muito importante da minha vida. Meu pai passava por

uma crise de identidade, procurando se descobrir, e eu também fazia o

mesmo. Nós éramos mais como irmãos que pai e filho, já que a diferença

entre nos é só de dezoito anos.

- Seu pai tinha só dezoito anos quando você nasceu? perguntou a

jovem. Não sabia disso.

- E ainda tem muito que você não sabe, porque achei que não era

importante, explicou Ted. Mas creio que é bom você saber, para poder

tomar decisões acertadas.

Cris se sentiu ligeiramente ofendida ao ouvi-lo mencionar sua

dificuldade para tomar decisões. Contudo ele dissera aquilo de um modo

tão tranquilo que ela logo lhe perguntou:

- Você quer dizer decisões com relação a nós dois?

- É, e com relação a mim. Já compreendi que, quando achei que você

aceitaria a classe de escola dominical, foi porque estava pressupondo uma

porção de coisas sobre nós e nosso futuro. O que você disse naquela hora,

isto é, que precisava saber mais sobre o assunto e que queria pensar e orar

sobre o caso, aplica-se ao nosso relacionamento também. Você precisa de

mais informação sobre mim e minha família, pra poder avaliar tudo

melhor.

Cris sentiu o coração se encher de ternura para com aquele homem

que estava à sua frente. E ele era um homem de verdade. Ted não era mais

um adolescente, que só queria ficar na praia, esperando as ondas boas para

surfar e pensando apenas no momento que vivia. E ela inclusive participara

dessa fase da vida dele. Agora, porém, o homem que se achava sentado a

poucos centímetros dela pensava no futuro. Estava demonstrando

claramente que queria que ela analisasse bem a situação toda, antes de

assumir um compromisso com ele e passar para a fase seguinte de seu

relacionamento.

- Algo que não sei, por exemplo, continuou ele, são as questões

relacionadas com Natal e aniversários. Se nós acabarmos nos casando... e

aqui ele fez uma pausa, parecendo estar pensando se deveria continuar a

dizer o que começara. Não; não estou pressupondo nada, hein? Só quero

dizer que tudo que se relaciona com as festas de fim de ano vão ter de ficar

por conta de você ou da pessoa com quem eu me casar. Quero dizer, posso

até ajudar. Mas como não tive nada dessas tradições em minha casa, vou

ter de aprender tudo do começo.

- Ah, mas não tem muito mistério, não, comentou Cris, sentindo uma

onda de compaixão por ele. Você já esteve na minha casa nesses festejos e

em aniversários. A gente comemora do jeito que quiser comemorar. Do

modo que quiser.

- É exatamente isso que quero dizer, disse Ted, soltando a mão dela

para afastar um mosquitinho que estava no próprio rosto. Eu quero muito,

quero que os aniversários sejam muito importantes. Pra mim, eles nunca

foram. Então, se um dia eu tiver filhos, quero que eles sintam que são as

crianças mais legais do mundo, todos os anos, no dia do seu aniversário.

- Também acho isso muito importante, interpôs Cris.

Ted arrancou uma folhinha de grama, girou-a entre os dedos por uns

instantes e depois soltou-a no chão.

- Uma vez, disse ele em voz meio abafada, quando eu estava morando

com minha mãe, ela esqueceu meu aniversário. Foi quando fiz cinco anos.

Lembro bem disso, porque eu estava na escolinha, e morávamos num

apartamento em Phoenix, acho. Ou pode ter sido em Flagstaff. Bom, não

importa. Lembro que um colega de trabalho dela convidou-a pra ir jantar

com ele justamente no dia do meu aniversário.

- E ela foi?

Ted acenou afirmativamente.

- Minha mãe, na verdade, é uma pessoa maravilhosa. Só que ela ficou

muito empolgada com as atenções dele, né? Então esqueceu que era meu

aniversário. Ela preparou um sanduíche de creme de amendoim pra eu

lanchar de noite e disse que fosse me deitar às 8:30h.

- E o que você fez?

Ted deu de ombros, como se o ocorrido fosse algo insignificante.

- Comi o sanduíche e na hora que fui dormir peguei meu revólver de

brinquedo e pus debaixo da coberta, caso entrasse um ladrão ali. Não me

lembro se deitei às 8:30h ou não.

- Ted, disse Cris com lágrimas a lhe embaçar a visão, não consigo

nem imaginar como deve ter sido sua vida!

O rapaz se remexeu no lugar, meio incomodado.

- É... disse, é claro que não sofri violência, nem ficava largado, nem

trancado num quartinho, nem fui obrigado a comer terra, como se ouve por

aí.

E ele deu uma risada nervosa, como se estivesse tentando fazer uma

piada.

- De certa forma, foi, comentou Cris.

- Mas não quero ver minha vida desse modo, insistiu ele. Sei que

meus pais me amavam, os dois. Eles me quiseram, não foi? Poderiam ter

tentado se livrar de mim antes de eu nascer ou mesmo depois, mas não o

fizeram. Sempre me deram tudo de que precisava. Acho que eles

simplesmente não sabiam amar num nível mais profundo. Não sabiam nem

amar um ao outro. Ou talvez soubessem, mas do jeito que alguém sabe

amar aos dezoito anos. Quero dizer, quando penso nisso, lembro que,

quando fiz cinco anos, minha mãe tinha só vinte e três. Cris, daqui a alguns

meses vou fazer vinte e três. Não consigo imaginar como me sentiria se

tivesse um filho com cinco anos.

Cris experimentou uma sensação estranha. A calorosa compaixão que

sentira por Ted uns instantes atrás estava se desvanecendo. No lugar dela,

estava aparecendo uma espécie de tristeza e cansaço, a mesma emoção que

tivera no orfanato, no ano anterior, e que a deixava tão esgotada. Sentia

tristeza por Ted e, no entanto, sabia que não poderia fazer nada para

modificar fatos da infância dele. Parecia-lhe que naquele momento estava

conhecendo outro rapaz, uma pessoa muito diferente do surfista de olhos

azuis por quem se interessara. Essa versão adulta do Ted era bem mais

complexa do que ela achara que seria.

- Estou assustando-a, não? indagou ele.

- Não. Bom, talvez um pouco. Mas creio que ‘tá sendo bom. Quero

mesmo saber tudo isso sobre sua vida, Ted. Desejo que me conte,

abertamente, qualquer fato que quiser me revelar. Creio que estou é um

pouco espantada de não saber nada disso, apesar de nos conhecermos há

tanto tempo e sermos tão chegados um ao outro. Bom, pelo menos eu achei

que éramos chegados.

O rapaz aproximou-se mais e passou o braço em volta ombro dela,

puxando-a para si.

- Nós somos chegados, Kilikina. Eu me sinto mais unido a você do

que a qualquer outra pessoa. Talvez seja por isso que nunca lhe contei essa

minha história. Não quis contar, com receio de que se afastasse de mim. É

que você é uma pessoa tão sensível que não queria fazê-la sofrer.

- Mas me contando isso você não me faz sofrer, replicou Cris. E estou

muito alegre que tenha se aberto comigo. Quero saber tudo.

- O caso é que você gostaria de “arrumar” minha vida, mas não vai

poder voltar no passado e consertar tudo que houve de errado em minha

infância, vai?

Cris ergueu a cabeça, afastando-a do ombro dele e fitou-o.

- Como foi que você percebeu que era isso que eu estava pensando?

Ted passou as costas da mão de leve no rosto dela.

- Conheço seu coração, Kilikina, respondeu. Conheço bem seu

coração. É por isso que sabia o que estava pensando.

- É... creio que conhece mesmo, disse ela.

Em seguida, encostou a cabeça no peito dele e continuou:

- Eu também quero conhecer o seu.

E quase concluiu: “Porque te amo”, mas não o fez. Ainda não

conseguia dizer essas palavras.

6

Naquela noite, Cris ficou um tempão acordada, na cama. O quarto

estava quase às escuras. Acesa, só a lâmpada de mesa, que era fraquinha.

Deixara-a ligada para Katie. Fechando um pouco os olhos, virou-se para o

relógio, pensando em quando deveria começar a se preocupar com a amiga.

Era 12:03h. Ela, deitara às 10:00h, esperando gozar umas boas horas de

sono para ir à igreja com Ted, no dia seguinte, às 8:00h. Contudo não

conseguira dormir. Fazia já duas horas que estava ali, passando e

repassando o que Ted lhe dissera. Ele se abrira completamente. E ela lhe

comunicara, de várias maneiras, que tudo estava bem, que se interessava

pelo assunto e que estava feliz por ele ter lhe falado de sua infância.

Todavia, depois que se separaram, após o jantar, sentira-se invadida por

inúmeros temores e preocupações.

Estava preocupada com a Katie também. Desde a hora do almoço que

não a via. Não sabia se a colega havia se empanturrado de sorvete de

iogurte, ou se já se recuperara do abalo que sofrera e agora estava se

divertindo com amigos.

Deitou-se de lado e tentou fazer força para dormir, procurando se

esquecer de tudo e de todos. No fim, as coisas dariam certo. Foi então que

um pensamento louco entrou em sua mente meio sonolenta.

E se o Ted um dia me agredir, como o pai dele fez com sua mãe?

Numa reação de ira, virou-se para o outro lado com um movimento

brusco.

Onde foi que tirei essa idéia? O Ted nunca me magoaria!

Instantes depois, sobreveio-lhe outro pensamento.

E se ele me largar, como a mãe dele largou o pai, e levar nossos

filhos embora?

Levantou-se de um salto. Isso é um absurdo! Por que estou pensando

tais coisas?

Pegou a garrafa de água, que se achava sobre a mesa de estudos. Ao

lado dela, estava um buquê de cravos brancos, já meio murchos, que Ted

lhe dera no dia em que chegara da Europa. Numa prateleira da estante de

livros, estava a velha e amassada lata de café. Nela, guardava os restos dos

primeiros cravos que o rapaz lhe dera, quando completara quinze anos.

Estavam bem secos e amarelados.

Por que será que ele demorou tanto pra me contar como foi sua vida?

Se nós nos casarmos, será que ele vai esperar cinco anos pra me contar

algo? “Ah, querida, sabe, estamos totalmente falidos. Temos de nos mudar

desta casa amanhã.”

Cris se jogou na cama de novo, mais transtornada ainda. Voltou a

mente emocionalmente conturbada para o Tio Bob. Como será que ele

reagiria quando Marta lhe dissesse que iria largá-lo?

“Ah, meu bem, sabe, amanhã cedo vou embora para Santa Fé com o

Cheyenne.”

Preciso falar com alguém sobre esse problema da Marta. Não ficar

guardando esse segredo. Já tenho muito problema pra resolver. Pra que

fui prometer a ela que guardaria segredo? Foi uma estupidez minha!

E os pensamentos continuaram a atormentá-la, até que afinal caiu num

sono profundo e agitado. Contudo ficou tendo pesadelos um atrás do outro.

Parecia rodeada por uma gargalhada torturante. Alguém zombava dela por

ser tão ingênua a ponto de amar o Ted Spencer e estúpida de prometer à tia

que não contaria nada a ninguém.

De repente acordou com um sobressalto e se sentou na cama. Eram

quase 4:00h. A risada que ouvira no pesadelo cessou imediatamente. A

lâmpada de mesa estava apagada. Escutava a respiração ritmada de Katie

na cama ao lado.

Bom, pelo menos, ela ‘tá bem. E o resto era só pesadelo. Nada era

verdade.

Tentou acalmar as batidas do coração.

‘Tá tudo bem, disse consigo mesma. Ore, Cris. Ore e durma. Preciso

dormir.

Deitou-se lentamente, e se pôs a orar em silêncio, apenas mexendo os

lábios. Vez por outra, dizia uma palavra em voz alta. Orou sobre tudo que

a preocupava. Seu coração se acalmou. A mente ficou desanuviada. Afinal

caiu num sono tranquilo, sem sonhos, dormindo durante duas horas e meia.

Às 6:30h, o relógio despertou e Katie virou-se na cama, resmungando.

- Que é que foi? indagou, num tom mal-humorado.

- Vou à igreja com o Ted, explicou Cris. Você ‘tá bem?

- Estou. Estou ótima.

- Quer ir à igreja conosco?

Cris não tinha certeza se fizera bem em convidar a amiga ou não, já

que o Mark também iria. Contudo fez o convite assim mesmo.

- Não. Vou levar a Selena a San Diego, à igreja do Paul. Pode me

chamar às 8:00h?

- Vou sair antes de 8:00h, replicou Cris. Mas colocarei o relógio pra

despertar pra você.

- Hum. O.k, respondeu Katie com um resmungo, e voltou a dormir.

Cris se aprontou para sair. Às 7:30h, foi encontrar-se com Ted na

cantina para um rápido café da manhã, como haviam combinado na noite

anterior. Quando chegou, o rapaz já se encontrava ali, juntamente com o

Mark. Os dois já estavam quase acabando, então teve de comer

apressadamente. Lembrou-se de que precisava fazer algo para demonstrar

para o Mark que ela e Ted estavam namorando. Contudo não houve

nenhuma oportunidade.

- Dormiram bem à noite? indagou Ted, quando os três já estavam na

“Kombinada”, e desciam o morro em direção à cidade.

- Muito mal, respondeu Cris.

- Eu também, disse Ted. Minha sensação era de que alguém estava me

atacando. E não conseguia entender o que se passava, mas afinal

compreendi que precisava orar. É que hoje nós estamos entrando na linha

de frente, batalhando pra Deus, e o inimigo não quer isso.

- Oh, comigo aconteceu o mesmo, explicou Cris. Assim que orei

consegui dormir.

Sentiu-se mais calma, ao saber que tinham sido as forças do mal que

haviam tentado impedi-la de servir a Deus, junto com o Ted, nesse dia.

- É... interpôs Mark, e parece que precisamos orar agora também.

No momento em que ele pronunciou a palavra “orar”, o motor do

carro deu uma “engasgada”, o veículo balançou com um solavanco e parou

bem no meio da estrada.

- Ligue o pisca-alerta! sugeriu Mark, já abrindo a porta de seu lado,

saltando do carro e fazendo sinal ao veículo que vinha atrás para se

desviar.

- Não ‘tá funcionando, informou Ted, saindo também. Apagou tudo.

Cris, sente-se ao volante e vá guiando o carro pra entrarmos naquele

estacionamento ali.

- Ali onde tem aquelas lojinhas? indagou ela.

Contudo Ted não a escutara. Já estava atrás da kombi, preparando-se

para empurrá-la e gritando para ela colocar a embreagem no ponto morto e

soltar o freio. A jovem dirigira o velho veículo poucas vezes e se sentia

meio tensa por estar ao volante, num momento como aquele.

Cris foi fazendo o que ele dizia, e o carro “andou”, graças ao “muque”

dos dois rapazes. Teriam de rodar uns duzentos metros até o

estacionamento que Ted indicara, e a moça se pôs a morder o lábio

inferior, nervosamente. Girando o volante cautelosamente, entrou numa

vaga. Nela, havia uma placa dizendo: “Somente carros compactos”.

Entretanto, num domingo de manhã, num estacionamento vazio, o fato de a

“Kombinada” não ser um compacto certamente não faria muita diferença.

- Engate a primeira, gritou Ted, aproximando-se da janela do lado do

motorista. E puxe o freio de mão.

Ela fez o que ele dizia. Foi nesse momento que se deu conta de que

seu lábio inferior latejava de tanto que o mordera. E até já começava a

inchar um pouco.

- O que a gente vai fazer agora? indagou Cris. Vamos procurar um

telefone e ligar pra uma oficina ou algo assim?

- Creio que não dá tempo, comentou Mark.

Ted dera a volta para o outro lado e abrira a porta lateral. Estava

pegando o violão e a Bíblia.

- Acho melhor irmos a pé, disse. Daqui até a igreja é mais ou menos

um quilômetro e meio.

Cris pegou sua Bíblia e pendurou a bolsa no ombro. Por sua mente

passaram algumas soluções meio impraticáveis, como chamar um táxi ou

pedir carona na estrada. Contudo não chegou a mencionar nenhuma. E os

três saíram andando apressadamente rua abaixo.

- Provavelmente é o alternador, disse Mark a certa altura.

Cris pensou que poderia ser um milhão de outros fatores, pois a

“Kombinada” já estava bem velha, e volta e meia tinha umas “crises”.

- Se você quiser, Ted, continuou o outro, depois do culto posso vir

aqui com minha camionete e dar uma olhada nela.

- Claro, replicou ele.

Ted estava caminhando mais depressa que os dois. Parecia que sua

mente não estava no carro, mas no que iriam fazer na igreja. Cris se

acostumara a fazer caminhadas, quando estava em Basiléia. Então não teve

dificuldade para apressar o passo e se emparelhar com o namorado.

- Sabe o que mais? principiou ela. Nós nem chegamos a orar. O Mark

já ia orar quando a “Kombinada” parou.

- É mesmo, replicou Ted.

Parecia que ele estivera meio “distante” e “voltara ao presente”

quando ouviu o comentário de Cris. Então, sem diminuir o passo, começou

a orar.

- Pai, olhe para nós aqui. Sei que tú estás no controle de todos os

detalhes da nossa vida. Esse problema não te pegou de surpresa, como

aconteceu conosco. Tú tens um plano nisso tudo. Confio em ti e naquilo

que vieres a fazer. Contudo precisamos que o Senhor nos mostre isso

claramente pois, no momento, para ser sincero, não estou entendendo nada.

Nesse instante, chegaram a um cruzamento. O sinal para pedestres

estava fechado, e eles pararam para esperar que abrisse. Ted passou o

violão para a outra mão. Cris limpou o suor que lhe escorria pela testa. O

dia já começava a esquentar. Naquela hora,o vento típico da região não

estava soprando, e a atmosfera parecia pesada.

- Senhor, disse Cris, retomando a oração onde Ted parara, nós nos

posicionamos, juntos, em tua Palavra, contra os desígnios do inimigo.

Creio que ele está tentando colocar obstáculos à nossa frente. Mas hoje é

teu dia, e nós somos teus filhos. Então, Senhor, endireita nosso caminho.

O sinal abriu. Eles começaram a atravessar, mas um dos carros

parados no semáforo buzinou. Cris achou que era alguém debochando dos

três “cantadores” que, evidentemente, estavam a caminho da igreja com

sua roupa domingueira e portando Bíblias.

- Querem uma carona? gritou o motorista do veículo, que abaixara o

vidro da janela.

- É a Donna, disse logo Cris. A minha chefe lá na livraria.

No mesmo instante, os três se acomodaram no banco de trás. Donna

apresentou seu esposo e partiram, chegando à igreja poucos minutos antes

do início dos trabalhos. Acabaram descobrindo que o marido de Donna era

um dos professores da Universidade Rancho Corona e também um dos

líderes dessa igreja. Na semana anterior, quando Ted estivera em contato

com os dirigentes, ele estava fora, por isso não o conhecera. Então

perguntou se o rapaz poderia ficar após o culto para conversarem. Os três

agradeceram muito pela carona e saíram correndo para a sala dos

adolescentes.

Ali chegando, viram que havia dois garotos junto à porta, do lado de

fora. Mark parou e se pôs a conversar com eles. Os rapazes davam a

impressão de que não tinham o menor interesse em estar ali, mas assim que

avistaram o Mark se animaram um pouco. Logo depois, chegaram três

garotas. Cris tratou de “engolir” sua timidez e imitar o Mark. Apresentou-

se às meninas ‘ se pôs a conversar com elas.

Ted começou a preparar o equipamento. No fundo da sala havia um

computador bem sofisticado. Ele introduziu um disquete no aparelho,

projetando na parede a letra do primeiro cântico. Em seguida, chamou os

outros para entrarem.

Assim, durante cerca de quinze minutos, os três jovens e os cinco

alunos da classe ficaram a cantar corinhos acompanhado pelo violão de

Ted. Como havia pouca gente, Cris preferiu fica sentada ali, em vez de ir

para a frente ao lado do namorado. Contudo cantava em voz bem forte -

mais forte do que a do outros - e com bastante convicção.

Ainda no meio do período de louvor, mais duas garotas entraram, mas

se sentaram no fundo da sala e ficaram cochichando uma com a outra, em

vez de cantar. Aquilo deixou Cris incomodada. Sabia o quanto era bom

participar do louvor junto com outras pessoas. Ela própria tivera essa

experiência quando adolescente. Como poderia mostrar para aquelas

meninas que se tratava de um momento muito santo e importante para

todos e que elas deveriam se juntar a eles?

Terminado o período de cânticos, Ted pediu que fizesse um círculo

com as cadeiras. Nenhum dos alunos parecia muito interessado, mas

atenderam ao pedido dele. Em seguida, o rapaz se apresentou, e pediu que

todos, um a um, fizessem o mesmo e dissessem algo a seu respeito.

Cris não gostou muito do jeito como fizeram isso. É que ela e Mark

foram os que mais falaram, e disseram que tinham sido amigos de infância.

E pelo modo como o rapaz falou quase deu a impressão de que os dois

eram namorados e estavam ali par dar uma ajuda ao seu amigo Ted.

Preciso ter uma conversa com o Mark. E quanto mais cedo, melhor.

Ted abriu a Bíblia no livro de João e leu o versículo que Cris havia

mencionado para ele uns dias atrás. Era sobre o fato de que quem crê em

Jesus e o recebe, passa a ter o direito de se tornar filho de Deus. Em

seguida, fez um estudo simples, ma com palavras francas e bem diretas.

Encerrada a reunião, os jovens saíram. Cris ficou a examinar

detidamente o rosto de Ted. Ele ainda mantinha seu sorriso tranquilo, mas

a mensagem que ela via em seus olhos era outra. O coração dele estava

muito triste. Não fora aquilo que ele esperara. Ela percebia isso claramente.

- Correu tudo bem, disse para ele, dando-lhe um leve aperto no braço.

Hoje foi o primeiro dia. Eles agora vão analisar tudo pra ver se gostam de

você, se podem confiar em você e se sentem seguros na sua companhia pra

voltar no domingo que vem.

Ted concordou com um aceno de cabeça, mas Cris percebeu que o

coração dele ainda estava pesado. Durante todo o tempo do culto que se

seguiu, ela sentiu que ele continuava com o pensamento na classe. Sabia

que estava analisando cada detalhe da reunião, avaliando, reestruturando e

planejando tudo.

Ela gostou do culto, do pastor e da maneira como ele pregou. Após o

encerramento, comentou com Mark:

- Esta igreja me lembra a nossa lá de Brightwater.

- É, replicou o rapaz. Foi por isso que resolvi trabalhar aqui no ano

passado.

Duas senhoras idosas se aproximaram e cumprimentaram o Mark.

Este lhes apresentou a Cris e por fim ao Ted. As duas ficaram muito

eufóricas, ao saber que ele iria trabalhar com os jovens e adolescentes da

igreja. O Mark se mostrava muito à vontade com elas, mas o Ted, não.

Dava a impressão de que não sabia direito o que devia fazer ou dizer na

presença de idosos.

- Tenho de ir almoçar com o pastor e outros dirigentes, informou ele a

Cris. Quer ir também?

Cris deu uma olhada para o lado. O pastor e mais dois senhores

estavam ali perto, aparentemente esperando o Ted.

- Ah, replicou, desta vez vai só você. Na próxima, eu participo.

- ‘Tá bom, disse ele. Será que vocês dois arranjam uma carona pra

voltar pra escola?

- Claro, replicou a jovem. Nós damos um jeito.

- Tem certeza?

- Tenho.

- O.k. Então depois a gente se vê.

- É, depois, concluiu ela com um sorriso.

Não estava acostumada a ver o Ted tão nervoso. Ali ninguém mais

perceberia que as atitudes dele demonstravam nervosismo, mas ela sabia.

Era até engraçado.

Donna deu carona para Cris e Mark até a universidade, deixando-os

perto da cantina.

- Oh, gente, se vocês precisarem de carona no domingo, é só me ligar,

disse ela afinal. Qualquer hora. Estou falando sério, ouviu?

Assim que Cris e Mark acabaram de se sentar à mesa, cada um com

sua bandeja do almoço, ela principiou:

- Preciso lhe dizer algo, Mark.

- Pois diga, replicou ele. O que é?

- Não sei se você sabe, mas eu e o Ted estamos namorando.

- Ué, estão juntos mesmo?

- O que você quer dizer com “juntos”? indagou Cris.

- Estão namorando sério, firmes um com o outro?

- Estamos, e já faz um bom tempo.

Mark baixou os olhos para o prato de espaguete que comia e ficou a

pensar uns instantes. Depois perguntou:

- Será que é ele o cara de quem a Paula me falou?

- Provavelmente, explicou a jovem.

Paula fora sua melhor amiga de infância. Ela viera passar uma férias

na Califórnia e também ficara encantada com o Ted.

- Foi ele que ensinou a Paula a surfar?

- Sim, disse Cris com um sorriso.

Estava se recordando da ocasião. Depois daquelas férias - fora quando

Cris fizera dezesseis anos - elas não haviam continuado com a amizade.

Antes disso, porém, tinham sido muito amigas e passado belos momentos

juntas. Paula havia se casado no ano anterior, quando Cris se achava na

Suíça, mas esta só ficara sabendo vários dias depois. Quando crianças, as

duas haviam combinado de serem dama de honra no casamento uma da

outra. Agora Cris se sentiu um pouco triste de não ter podido cumprir essa

promessa.

- Não sei se você vai acreditar nisso, principiou ela, mas quando eu e a

Paula éramos pequenas, combinamos um negócio. Assim que uma de nós

tivesse o primeiro encontro com um rapaz, para um namoro de verdade, a

outra teria de lhe pagar cinco dólares.

- E quem foi que ganhou?

- Eu, respondeu Cris. E adivinha com quem tive o primeiro encontro?

Mark baixou os olhos para o prato novamente.

- Deve ter sido com o Ted, replicou.

- E foi.

Quando conversei com ele ontem na hora do almoço, não me

lembrava que ele era o cara de quem a Paula tinha me falado, explicou o

rapaz. Eu sabia que você tinha tido um namorado e que já havia um bom

tempo que namoravam. Mas achei que ele tinha ido embora. Pensei que

havia se mandado para Fiji, ou algo assim, para passar o resto da vida lá.

- É. Daquela última vez que te vi, o Ted estava fora mesmo. Estava na

Espanha.

- Mas agora já voltou em definitivo, comentou Mark.

- Já. E eu já voltei da Suíça e estamos namorando, estamos juntos

mesmo.

- Bom, Cris, você escolheu um cara legal, disse o rapaz.

E ao dizer aquilo, ele tinha uma expressão franca e sincera que lhe

lembrava seu pai. Nesse instante, ela se recordou de algo que ouvira de

seus avós, muitos anos atrás. Ela lhes perguntara como eles tinham

reconhecido que um era a pessoa certa para o outro. E o avô lhe

respondera:

“A melhor maneira de se saber isso é examinar a vida um do outro. É

ver se os dois são do mesmo lugar. Assim será mais fácil superarem os

momentos difíceis.”

Contudo sua avó discordara dessa opinião. Disse que tudo era uma

questão de decisão e em seguida mencionara algo que deixava Cris muito

incomodada.

“Quando encontrar a pessoa certa, você saberá.”

A jovem deu uma espiada para o lado de Mark.

Ainda não tenho certeza se o Ted é a pessoa certa pra mim, pensou.

Mas de uma coisa não tenho a menor dúvida: o Mark não é.

E só de saber algo com certeza, ela já se sentiu bem.

- Sabe o que mais? principiou o rapaz, empurrando a bandeja para um

lado e continuando a fitar Cris com um ar bem sincero. Vou ser bem franco

e lhe dizer algo muito sério. Espero que não se incomode com isso.

A jovem estava se sentindo tão leve pelo que acabara de descobrir

com relação ao amigo que aceitaria bem o que ele lhe dissesse, fosse o que

fosse.

- Tenho uma opinião muito elevada sobre você, Cris.

- Eu também tenho de você, replicou ela.

- Então, se não der certo entre você e o Ted, pense em mim como uma

possibilidade, o.k.? Mas tenho a impressão de que vai dar certo, sim.

- Também tenho, concordou a jovem.

- E nós dois podemos ser amigos, não podemos?

- Claro, respondeu ela. Sei que o Ted ficou muito grato a você por sua

cooperação no trabalho lá com os jovens.

- É, eu lhe disse que poderia ajudá-lo naquilo que precisasse.

Cris ficou a debater consigo mesma se deveria mencionar Katie.

Chegou quase a sugerir que os quatro saíssem juntos. Depois, porém achou

melhor não falar nada antes de conversar com a colega.

Mark e Cris continuaram conversando ali durante uma meia hora. O

rapaz contou as novidades sobre os amigos e familiares de ambos em

Brightwater. Cris relatou algumas das experiências que tivera na Suíça.

Afinal os dois se levantaram para ir embora. Quando já estavam quase se

separando, ele lhe sorriu com um ar brincalhão e lhe deu um tapinha de

leve no braço, do jeito como fazia na hora do recreio, na escola.

- Você não me pega! gritou ele, e saiu correndo.

Cris deu uma risada. É claro que ele não esperava que ela corresse

atrás dele, nem ela iria fazê-lo. Foi caminhando lentamente para o

dormitório.

Parece que tirei outro “catálogo telefônico” de cima de mim, pensou.

O outro que tenho de tirar é resolver qual será minha especialização. E

ainda outro é dar um jeito para a Katie melhorar o ânimo. E depois tenho

de decidir o que vou fazer a respeito da minha tia.

Aqui ela parou. Não queria colocar mais “catálogos” na sua pilha.

Um problema de cada vez.

Quando chegou ao quarto, constatou que a colega não estava lá. E a

única evidência de que ela estivera ali era uma saia cáqui que, pelo visto,

ela usara para ir à igreja pela manhã. A saia estava num canto, toda

embolada.

Cris trocou de roupa e se pôs a decidir se iria ou não ao jogo de

beisebol, a revanche, que haviam combinado para às 4:00h. Não estava

com nenhuma vontade de jogar. Achava que nem iriam precisar dela, pois

no dia anterior tinha aparecido muita gente.

Se Katie chegar antes das 4:00h, vou pedir a ela pra ir no meu lugar. O

Mark deve estar lá. Assim os dois terão uma oportunidade de recomeçar o

relacionamento.

Abriu a janela para deixar entrar um pouco de ar fresco. Teria sido

muito bom se o Mark tivesse gostado da Katie na mesma época em que

esta tivera interesse nele. Se bem que ainda havia tempo de ele perceber

como sua amiga era sensacional.

Olhando para o céu azul-acinzentado, pensou em voz alta:

- Será que o Ted é o homem certo pra mim? Será que é com ele que

devo me casar? Por que não consigo ter plena certeza, pra então lhe dizer

que o amo?

Pensou que seria muito bom se Deus mandasse a resposta por escrito,

num pedaço de papel amarrado num barbante, e o balançasse bem na frente

da janela. Não seria preciso que ninguém mais o visse; só ela. E bastava

que estivesse escrito nele: Case-se com o Ted. Ela não iria contar para

ninguém; nem mesmo para o namorado. Ele teria de pedi-la em casamento

e tudo o mais. Assim ela teria plena certeza de que ele era o homem de sua

vida e não precisaria mais ter dúvidas.

Cris piscou. O céu continuava silencioso e não se abriu para enviar a

resposta. Não veio nenhum papel amarrado num barbante. Teria de

descobrir sozinha, da forma normal e mais difícil: com muita oração e um

passo a cada dia.

Deitou-se na cama, e pensou em anotar esses pensamentos no seu

diário. Era sempre muito bom quando escrevia o que lhe ia no coração e

mais tarde o relia. Dessa vez, porém, não faria isso. Não queria correr o

risco de alguém achar seu diário e ler tais pensamentos.

Olhou para o pôster que estava na parede. Era uma foto de uma ponte

que havia perto da cidade de Hana, em Maui, no Havaí. O Ted saltara

daquela ponte sobre uma laguna profunda. Cris passara nela, dirigindo um

jipe, pouco tempo depois que fizera dezesseis anos. Era a ponte “deles”.

Agora se encontravam diante de outra “ponte”. Sabia que seu namorado

estava preparado para “saltar” dela, isto é, para dar outro passo no

relacionamento deles e assumir um compromisso sério. Ela porém, ainda

estava “passando” por essa decisão, o que levaria um pouco mais de tempo

do que saltar direto nela. Ted até que estava sendo bastante paciente. Cris

se sentia como se estivesse “amarrada”, sem condições de avançar.

- Nós não temos garantia nenhuma, temos? indagou em voz alta para

Deus. Os pais de Ted não tiveram, e parece que Bob Marta também não

terão. Então, como posso ter certeza de que se eu casar ainda tão jovem

meu casamento vai durar pelo resto da vida?

Nesse momento, a porta do quarto se abriu e entrou uma ruivinha. Cris

ficou a olhar fixamente para ela. Quase não parecia com a Katie que ela

conhecia. A colega cortara o cabelo bem curto. Estava todo repicado,

caindo-lhe pela testa e na base da cabeça. A jovem estava completamente

diferente, com uma nova aparência, bem mais sofisticada e feminina.

- Cortou o cabelo! exclamou Cris, examinando-o por diversos

ângulos. Gostei muito! Quando foi que resolveu cortar?!

- Hoje de tarde, explicou a outra, jogando algumas sacolas de compras

sobre a cama e tirando o sapato.

- Puxa, mas você ‘tá toda diferente!

- Era isso mesmo que eu queria, resmungou Katie.

- Ei, tudo bem aí?

A outra se jogou na cama, que ainda não arrumara, ao lado das

sacolas. Pegou o travesseiro e deitou-se de bruços sobre ele, como se

estivesse com alguma dor.

Cris se levantou, aproximou-se, afastou os embrulhos e se sentou no

pé da cama da colega.

- O que foi, Katie? indagou. O que aconteceu?

A outra desviou o olhar.

- Estou cansada de mim mesma, respondeu.

Cris ficou totalmente sem saber o que dizer.

- Pensei muito no que aconteceu com o Mark ontem, continuou a

outra. Cheguei à conclusão de que faço muitas pressuposições infundadas e

tomo muita coisa como certa. Quero mudar esse meu jeito. Quero mesmo,

Cris.

- Mudar como?

- Ainda não sei. É por isso que comecei pelo cabelo. Ah, e comprei

umas roupas novas também, explicou ela, pegando uma blusa de dentro de

uma das sacolas e suspendendo-a. O que você acha desta aqui?

- É bonita.

- Ótimo. Que bom que a primeira idéia que lhe veio à mente quando a

mostrei foi isso, pois preciso de roupas bonitas. No meu guarda-roupa só

tem jeans e camisetas. Você já percebeu que tenho apenas uma saia? Hoje

de manhã eu até ia usá-la, mas vi que não gostava dela. Não gosto mais de

nada cáqui.

Katie pegou outra sacola e tirou dela uma saia longa, de tecido leve.

- Ei! exclamou Cris. Agora estou ficando assustada com você! Essa

saia se parece muito com a que minha tia estava usando no outro dia.

- Ah, mas não se preocupe! Não vou começar a analisar minha “aura”!

É que eu queria comprar uma roupa que fosse informal mas não pesada,

nem fosse cáqui. Você precisa ver o guarda-roupa da Selena. Fui ao quarto

dela ontem à noite e vi. Ela e a Vicki têm as roupas mais legais desta

escola.

Cris também gostava do jeito de vestir da Selena. Essa jovem era

bastante original e não imitava ninguém. Suas roupas eram diferentes das

de todo mundo. E não se importava se elas estavam na moda ou não. Ela

criava sua própria moda. Na primeira vez que Cris vira Selena, esta estava

calçada com umas botas de cowboy que tinham sido do pai dela.

- Ela só compra roupas nos brechós, não é? indagou Cris.

Katie fez que sim.

Ela estava me contando sobre uns brechós que tem lá em Portland,

onde ela mora. Só de ouvir, tive vontade de ir lá fazer umas compras.

- Você comprou essas aí foi num brechó?

- Não, e acabei pagando muito por elas. Mas eu precisava tomar

alguma providência. Amanhã é o primeiro dia de aula e este ano quero me

apresentar melhor do que em qualquer outro ano da minha vida. Preciso

começar de novo.

Cris dobrou a saia nova da amiga e colocou-a no pé da cama.

- Katie, principiou ela, eu queria conversar com você sobre um

assunto de que talvez você não queira falar. Posso?

- Eu tenho outra escolha?

- Não.

- Então fale. Pode “despejar”. Estou sempre lhe dando minhas

opiniões pessoais sobre tudo e você ouve com paciência. É justo que agora

você também dê as suas.

- Lembra que você me falou sobre aquele negócio de carregar muitos

“catálogos telefônicos” e acabar deixando todos eles caírem? Bom, eu acho

que, nestes anos todos, você vem carregando todas as mágoas que teve no

relacionamento com rapazes. ‘Tá segurando isso como se fosse uma pilha

de listas telefônicas. É por isso que sempre que tem uma decepção, como

teve ontem com o Mark, que não se lembrou de você, fica se sentindo

profundamente magoada.

Ela não pensara dizer tudo isso para a amiga; não havia pensado no

que iria lhe dizer. Então as palavras simplesmente foram saindo.

- Achei que ontem você ficou muito sentida com o Mark, continuou.

Mas também aquilo lhe recordou as desilusões que teve com o Rick,

Michael, com o Leo e com todos os outros caras que lhe deram o fora.

A expressão de Katie era dura, como de quem não cede.

- Então, prosseguiu Cris, você não sente apenas a mágoa de uma

negativa, mas de todas as que já recebeu.

Aqui houve um profundo silêncio no quarto, e Cris se indagou por que

estava dizendo tudo aquilo à sua melhor amiga. Passaram-se alguns

minutos, e afinal Katie se endireitou e, com a voz meio áspera, perguntou:

- E o que você acha que devo fazer?

Cris pensou em lhe dizer que não pretendera lhe falar sobre esse

problema e, portanto, não tinha uma solução para ele. Então deu a única

resposta que lhe veio à mente.

- Você não precisa mudar nada exteriormente, explicou. Precisa

mudar por dentro. Acho que tem de perdoar, Katie. Tem de tomar a

decisão de perdoar e começar tudo de novo.

Por uns instantes, ela teve a impressão de que a amiga iria gritar com

ela ou lhe atirar algo. Contudo o que ela fez foi replicar com um tom de

resmungo:

- Você tem razão. E detesto quando você tem razão.

7

Katie se remexeu na cama, acomodando-se melhor.

- Por que tem tanta certeza de que não perdoei aos rapazes que me

magoaram? indagou com um tom meio seco.

- Bom... principiou Cris.

- Deixe-me dizer-lhe algo, interpôs a outra, levantando-se e dando um

chute em sua saia cáqui. Seria muito bom se pelo menos um daqueles

safados reconhecesse que foi cruel, insensível e mal-educado comigo. Sei

que é pedir muito, mas tenho certeza de que assim ficaria bem fácil

perdoar-lhes.

- Mas, e se nenhum deles vier lhe pedir perdão? insistiu Cris. Vai

passar o resto da vida carregando todos esses “catálogos”, todo esse

sofrimento?

- Não, replicou Katie. Assim que eu encontrar o meu “príncipe

encantado” isso vai passar.

- Katie!

- O quê?

Cris hesitou por uns instantes, sem saber se deveria dizer ou não o que

pensara. No fim, porém, compreendeu que não poderia deixar de falar.

- O que vai acontecer na primeira vez em que o “príncipe encantado” a

decepcionar? Quero dizer, mesmo que se case com esse homem, ele não é

perfeito. Vai haver um dia em que ele será cruel, insensível e mal-educado

com você. E aí? Em vez de sentir apenas a dor desse gesto dele, você vai

querer sentir o peso de todos os outros “catálogos”?

- Não sei. Não estou a fim de conversar sobre isso, Cris. Quero sair e

respirar um pouco.

Cris deu uma espiada rápida para o relógio. Faltavam alguns minutos

para às 4:00h.

- Quer ir jogar beisebol? indagou.

Katie olhou-a diretamente.

- Por quê? Você vai?

- Não. Você não quer ficar no meu lugar no time do Wesley? Às 4:00h

eles vão jogar contra o time da Selena.

Katie abriu uma gaveta da cômoda e correu as mãos dentro dela.

Pegou um boné e uma luva de beisebol. Em seguida, calçou o tênis e foi

saindo, dizendo apenas:

- Vou dar uma saída!

Cris se sentou, sentindo o quarto muito vazio.

Por que fui dizer tudo aquilo pra ela? Não precisava ter dito tudo

hoje! E não era só eu que poderia ter dito essas verdades pra ela!

Resolveu que não iria jantar. Tomou um banho de chuveiro bem

demorado, aproveitando para lavar a cabeça e depilar as pernas. Depois

ligou para o Ted. Como ninguém atendeu, ela deixou um recado na

secretária, sugerindo-lhe que os dois se encontrassem no dia seguinte na

cantina, para tomarem juntos o café da manhã.

Pegou sua roupa suja e dirigiu-se para a lavanderia, que ficava no fim

do corredor. Enquanto esperava que uma das máquinas ficasse disponível,

foi para uma saleta ao lado, onde algumas colegas estavam assistindo ao

filme Princesa. Já o vira, pouco antes de viajar para a Suíça. Katie o havia

locado e o levara à sua para verem na última noite em que estariam juntas

antes da sua partida. Ao final, Katie comentara que nunca iria confiar num

rapaz que vivesse dizendo: “Como você quiser!”, satisfazendo todos os

caprichos dela. Preferia um que tivesse mais personalidade e lhe dissesse:

“Faça você mesma!”

Se vivesse daquela maneira, como no primeiro caso, concluíra, ela iria

só ficar sentada e engordar, enquanto ele a servia em tudo.

Cris sabia que, quando sua amiga fizera essas observações um ano

atrás, estava apenas querendo ser engraçada, como era seu jeito. Naquele

momento desejou que a outra estivesse assistindo ao filme junto com ela,

soltando suas costumeiras piadinhas, enfim, sendo a colega que ela

esperava. As outras garotas que estavam na saleta eram todas muito legais,

mas Cris sentiu que não se achava disposta para fazer novas amizades. Seu

maior interesse naquele momento era simplesmente manter as que já tinha.

Terminado o filme, duas das estudantes disseram que iam à cidade

para tomar sorvete. Convidaram Cris, mas ela agradeceu e disse que não.

Precisava voltar para o quarto pois queria conversar com sua amiga.

Voltou com as roupas lavadas, secas e dobradas. Ali encontrou um

bilhete da Katie, escrito num cartão e pregado sobre a sua mesinha de

estudos.

“Vou dormir no quarto da Selena. Katie.”

Na primeira vez em que o leu, não acreditou. Depois leu de novo e

imaginou o pior.

Katie ficou tão chateada com o que eu disse que não que nem me ver

mais.

No bilhete ela não dizia: “Venha pra cá também”, nem “A gente se

encontra amanhã, no café da manhã”. Também não deu nenhuma outra

indicação de que não estava zangada com ela.

Katie ‘tá fazendo uma mudança total nela mesma, no cabelo e nas

roupas. Será que ‘tá querendo dar a entender que quer mudar de

“melhor” amiga também?

Sentiu lágrimas nos olhos e uma sensação de solidão que não pensara

que iria experimentar ali na Universidade Rancho Corona. Quando estava

na Suíça, sentira solidão muitas vezes, pois estava distante de casa e de

seus amigos mais chegados. Contudo nunca pensara que iria passar o

mesmo ali, já que estava “em casa” e junto com os amigos queridos.

Ficou a debater consigo mesma se deveria ligar para o quarto de

Selena ou iria lá para acertar tudo com Katie. Suas emoções já estavam à

flor da pele e ainda por cima tinha de tomar essas decisões. Isso a deixou

exausta. Concluiu que era melhor não tentar nenhum gesto heróico nessa

noite. Iria dormir, pensar no problema, orar sobre ele e decidir se poderia

ter uma conversa com Katie pela manhã.

Na manhã seguinte, assim que chegou à cantina, às 7:30h, viu Ted a

esperá-la e ficou muito alegre. Ele a recebeu com um beijo na testa.

- Liguei pra você ontem à noite, mas ninguém atendeu, disse o rapaz.

- Ah, e eu não verifiquei a secretária, replicou Cris. Provavelmente

você ligou na hora em que eu estava na lavanderia e fiquei assistindo a um

filme.

Os dois entraram na fila do bandejão e foram adiantando-se bem

devagar. Cris não estava com fome, mas mesmo assim forçou-se a pegar

algo para comer. Sabia que precisava se alimentar, já que não comera nada

na noite anterior.

Ted conduziu-a para uma mesinha perto da janela. Nela havia duas

cadeiras e ele as virou para ficarem olhando lá para fora, de costas para os

outros estudantes.

- Conseguimos consertar a “Kombinada”, explicou ele, depois que os

dois oraram.

- Ótimo! exclamou Cris.

- É, disse o rapaz, graças ao Mark. Ele tem muita habilidade pra mexer

com carros. Ah, ele concordou em me ajudar a organizar a viagem

missionária para o México.

- Que viagem missionária?

- Oh, ainda não lhe contei, né? Ontem, durante o almoço com a

liderança da igreja, eu mencionei pra eles que gostaria de fazer uma

viagem ao México com alguns jovens. E eles concordaram. Estou

pensando em ir no feriado de Ação de Graças. Você quer ir também?

concluiu ele, dando uma mordida num pãozinho.

- Quero!

Ted parou de mastigar. Engoliu o alimento e olhou para Cris.

- Oh, que decisão rápida!

- É... foi mesmo!

Imediatamente Cris entendeu que sua prontidão para decidir se deveu

ao fato de estar se sentindo solitária. Naquele mento, qualquer convite para

ir a algum lugar ou fazer qualquer atividade com os amigos lhe interessava.

- Acho que ontem à tarde acabei fazendo com que a Katie ficasse com

raiva de mim, disse, e em seguida comeu uma garfada de ovos mexidos.

- Que foi que aconteceu?

Com algumas frases curtas, Cris explicou ao namorado que tinha dado

uns conselhos “indesejados” para a amiga. Por causa disso, a outra fora

dormir no quarto de Selena.

- Puxa, só conseguimos ficar no mesmo quarto uma semana! Por que

não fiquei de boca fechada?

Pela expressão de Ted, dava para perceber que ele não concordava

com aquela avaliação pessimista de Cris.

- Não se julgue de forma tão dura, disse ele. Pelo que diz, parece que

falou a verdade em amor. Pode ser que demore um pouco pra essa verdade

“se entranhar” no coração dela. Mas creio que tudo que disse foi muito

franco e muito valioso para ela. No fim dará tudo certo. Você vai ver.

Cris abanou a cabeça.

- Sei não. Ainda bem que não fiz algo que estava planejando. Tinha

pensado em arranjar pra sairmos juntos, Katie e Mark e nós dois. Creio que

ela não iria gostar. Mas pedi que ela fosse jogar beisebol no meu lugar, pra

ficar perto dele. Ainda não sei o que aconteceu.

- O Mark não foi jogar, não, informou Ted. Ele foi me ajudar a

consertar o carro.

- Ah, não! Então ele e a Katie ainda não se entenderam. Eu tinha

esperança de que eles pudessem recomeçar o relacionamento ontem.

Ted deu um sorriso bastante significativo. Era impossível não

perceber.

- O que foi? indagou Cris. Qual é a graça?

- Você, replicou ele. Lá está você outra vez com aquela sua mania de

“vamos salvar o mundo”.

A jovem largou o garfo no prato.

- E o que você quer dizer com isso?

Ted colocou a mão sobre a dela.

- Não fique nervosa, não, continuou ele, ainda rindo. Fica muito

bonitinha quando está assim.

- Bonitinha! disse Cris, sentindo o rosto avermelhar-se.

Ted continuou a fitá-la com um jeito alegre.

- É... bonitinha. Parece que você não tem muitos problemas seus pra

resolver e então fica querendo solucionar os do mundo todo. Sempre

percebo quando ‘tá preocupada com a destruição da camada de ozônio.

Você fica com essa ruguinha torta na testa, bem aqui, disse ele passando o

dedo de leve na testa dela e rindo.

Para surpresa de Cris, ela também começou a rir.

- Puxa, mas estou tão mal assim?

- Não, você ‘tá interessada, replicou Ted. Isso não é errado, desde que

não leve esse seu impulso ao extremo, claro. Aliás, essa é uma das muitas

qualidades suas que admiro.

Ouvindo a voz calma do rapaz e seu cuidado carinhoso, Cris sentiu

que se tranquilizava. Começou a ter mais apetite e pegou três pedaços de

linguiça do prato dele. Afinal ele reclamou:

- Ei, vá lá e pegue mais pra você!

- Não, obrigada! replicou ela com um sorriso maroto. Agora estou

satisfeita.

Os dois saíram da cantina de mãos dadas. Ele a acompanhou até a sala

onde ela teria a primeira aula - Introdução ao Estudo do Antigo Testamento

- e eles pararam à porta. Outros alunos iam entrando apressadamente. Ted

passou a mão sobre o longo cabelo dela, que estava trançado, e disse em

voz baixa.

- Na ka Makua-O-Kalani, e malama mai ia makou.

Cris fitou-o, esperando uma explicação. Parecia uma língua havaiana,

mas nunca o ouvira dizer aquilo antes. Ele também parecia meio surpreso

de ter falado tais palavras.

- Puxa! Nem acredito que ainda me lembro disso!

- O que foi que você disse? quis saber Cris.

- É uma oração que o Lani fazia todos os dias pela manhã, antes de eu

sair pra escola, explicou ele, com o olhar meio vago, imerso em sua

recordação.

- Vou trabalhar na livraria até às 3:00h, informou Cris.

Estava ficando meio incomodada ao perceber que a sala estava se

enchendo rapidamente.

- Se você puder, vá se encontrar comigo lá, concluiu.

Queria saber quem era Lani e o que aquelas palavras significavam,

mas deixaria para quando tivessem mais tempo. A sala era grande, mas

agora restavam apenas poucos lugares no centro dela. Essa matéria, bem

como Introdução ao Novo Testamento, era obrigatória para todos os alunos

do curso de graduação. Cris então achou que muitos calouros iriam fazer

essa disciplina.

Sentou-se e logo depois avistou Selena numa das primeiras cadeiras,

com alguns de seus amigos. Ao lado de Vicki havia um lugar vago, mas,

como a aula já se iniciara, ficou meio sem jeito de se levantar e ir para lá.

Apesar das palavras de incentivo que Ted lhe dissera, dando-lhe a

confiança de que iria se acertar com Katie, não estava a fim de encarar

Selena. É que sua colega de quarto provavelmente dissera à outra e às suas

amigas que Cris era insensível.

Assim que a aula terminou, ela deu uma corrida rápida ao prédio da

administração para marcar uma entrevista com seu orientador. O primeiro

horário vago dele seria no dia seguinte, às 10:00h. Marcou então para essa

hora, decidida a resolver qual seria sua especialização e a organizar todo o

seu horário de classe antes do final da semana.

Dirigiu-se para a livraria, e chegou ali no exato momento e que Donna

ia entrar na loja carregando uma caixa. Cris adiantou-se e abriu a porta

para ela.

- Obrigada, Cris, disse a outra. Você chegou cedo. Que bom! Já lhe

mostrei como marca o ponto no computador ao pegar serviço?

- Não.

- É, achei mesmo que não tinha mostrado. Vamos lá. Vou ajudá-la a

fazer isso.

Donna dirigiu-se ao fundo da loja, e Cris acompanhou-a. Ali ela

ensinou-a a “entrar” no seu cartão de ponto e digitar sua senha.

Automaticamente o aparelho fazia o resto. Ao lado dele, estavam caixas de

livros didáticos, e sobre elas, um etiquetador. Logo Cris se recordou do

tempo em que trabalhara numa pet shop em Escondido. Só que, ali, ela

passava horas marcando preços em comida para peixes e brinquedos de

borracha para gatos que tinham cheiro de pneu velho. O cheiro de tinta e de

papel que vinha daqueles livros era bem melhor.

- Estas três caixas aqui, continuou Donna, contém o mesmo livro.

Então, primeiro, você vai marcar estes, e depois aquelas quatro caixas ali,

cujo preço é $15,95. Já trabalhou com um etiquetador?

Cris fez que sim e lhe falou sobre a loja de animais onde estivera.

- ‘Tá bom. Assim que terminar, avise-me e vou lhe explicar sobre a

caixa registradora.

A jovem ficou satisfeita ao ver que seu serviço inicial seria algo bem

simples. Gostava de se sentir produtiva e de avaliar o andamento das

tarefas. Quando terminou, foi para o caixa, onde a chefe se encontrava.

- Já acabou? perguntou Donna ao vê-la aproximar-se.

A fila de alunos aguardando para pagar os livros estava bem longa.

- Creio que marquei todas as caixas que você indicou, replicou Cris.

- Ótimo! exclamou a outra. Pode acreditar! Você é a resposta para as

minhas orações. Então agora fique observando como eu faço aqui no caixa

e depois vem fazer o mesmo.

Cris observou que o computador e o sistema de cartões de crédito ali

eram bem semelhantes aos da pet shop onde trabalhara. Então, depois que

Donna fez umas três vendas, ela assumiu o lugar dela na registradora. Em

seguida, simplesmente continuou a registrar as vendas mecanicamente,

como se estivesse acostumada a fazê-lo a vida inteira.

- É, você aprendeu direitinho, comentou Donna. Agora vou estocar

alguns livros, depois volto aqui pra abrir o outro caixa. Se tiver algum

problema ou agarrar aí, é só me chamar.

Cris não sabia bem por quê, mas o ato de trabalhar ali, de usar as mãos

para realizar uma tarefa, lhe dava um forte senso de bem-estar. Por alguma

razão, quando conseguia fazer algo, o mundo lhe parecia mais iluminado.

Nesse momento, compreendeu que iria gostar muito de trabalhar na

livraria.

Será que seria bom eu me especializar em Literatura para o caso de

acabar trabalhando numa livraria?

E com uma parte de sua mente, imaginava, numa atmosfera bem

romântica, como seria bom se ela e o Ted se casassem fossem morar numa

casinha bem aconchegante num lugar qualquer. No fundo, teriam uma

horta, e na casa, uma lareira de lenha mesmo. Ela poderia fazer biscoitos

para os jovens do grupo de adolescentes da igreja que teriam uma reunião

ali toda sexta-feira à noite. Todos os dias, pela manhã, ela pegaria sua

bicicleta - como a que costumava pedalar na Suíça - e iria até sua

livrariazinha. Ali, às 10:00h, teria uma hora de leitura de histórias para

crianças. Depois teria clientes, vindos de todas as partes da redondeza, para

folhear seus livros. Ela lhes serviria chá com biscoitos - o chá de Katie,

chamado “Verão Indiano”, isto é, se ela aperfeiçoasse a receita.

Por volta de duas horas, porém, já não estava conseguindo mais ter

uma visão tão romantizada de uma livraria. Até aquela hora ainda não

havia almoçado e seu estômago começara a reclamar “em voz alta”. A fila

de alunos que compravam não diminuíra. A certa altura, o computador

ficou “fora do ar” por meia hora e ela teve de contabilizar os cartões de

crédito na maquininha manual. Vendo mais estudantes entrarem na loja,

Cris teve vontade de dispor de um tamborete para se sentar ou, pelo menos,

de um tapete mais grosso para descansar os pés.

Então se deu conta de que, na fantasia que criara havia pouco,

imaginara-se casada com Ted. Fora uma dedução natural, uma base lógica

e agradável para seus pensamentos. Nesse momento, sentiu uma intensa

sensação de esperança.

Se estou colocando o Ted em meus devaneios com tanta naturalidade

é porque o amo muito, e tanto que desejo me unir a ele pelo resto da vida.

Preciso conversar com a Katie sobre isso.

Assim que pensou na amiga, porém, seu ânimo se descaiu bastante.

Isto é, se ela não estiver de mal de mim.

Nesse instante, estava atendendo a uma aluna que usava um aparelho

auditivo. Quando lhe falou o total da compra, a jovem deu um suspiro de

alívio. Os livros tinham ficado mais barato do que ela pensara. Foi então

que Cris percebeu que a maioria dos volumes que estivera vendendo ali era

de usados, que ficavam numa prateleira aos fundos da loja. Aí

compreendeu que talvez ela própria devesse ter pensado melhor e ter

comprado seus livros, antes que esses mais baratos acabassem. Essa era

uma despesa que não teria muita satisfação em fazer, pois comprometeria

bastante o seu saldo na poupança.

Às 3:00h, bateu o cartão de ponto no computador e outra estudante

ficou em seu lugar. Foi ao fundo da loja examinar as estantes de livros

usados. Encontrou três dos que iria precisar. Para comprar os restantes,

teria, primeiro, de resolver qual seria sua especialização para saber sobre as

disciplinas que faria e pegar a lista dos compêndios.

Saiu da livraria carregando os livros, aliás bem pesados, e foi em

direção ao dormitório dos rapazes para ver se o Ted estava lá. Entrou no

prédio. No saguão, viu um aluno sentado num sofá e lhe perguntou como

faria para ligar para um dos quartos. O rapaz apontou para os telefones que

havia no corredor. Ela ligou para o namorado, mas ninguém atendeu.

Um fato que a incomodava numa faculdade evangélica bem

conservadora era isso: dormitórios separados. Na Suíça, os dormitórios

eram mistos e tanto os rapazes como as moças podiam transitar à vontade

pelo prédio. É verdade que sempre havia a possibidade de não poder ficar

sozinha no quarto, isto é, se uma das colegas levasse o namorado para lá.

Contudo isso só ocorrera uma vez. Na maior parte do tempo, era ela que

estava no aposento. Então eram as colegas que tinham de sair para ir para o

quarto dos rapazes.

E ontem à noite fiquei sozinha de novo, pois minha colega de quarto

foi dormir em outro lugar.

Deixou um recado conciso para o Ted, avisando que estaria em seu

quarto até às 5:00h. Nessa hora, iria sair para jantar, pois queria comer

mais cedo. Depois teria uma aula de 7:00h até às 9:00h da noite.

Atravessando o campus com um andar cansado, pôs-se a resmungar

sobre a distância entre o dormitório dos homens e o das mulheres. A cada

passo, os livros que carregava pareciam mais pesados.

Em Basiléia era mais fácil, pois todos os prédios eram numa área só.

Que coisa mais ridícula colocarem os dormitórios tão distantes um do

outro e estabelecerem tantas restrições!

Quando já ia deixando para trás a “Selva”, escutou alguém correndo

atrás dela.

- Ei, bonitinha, por onde tem andado?

Com um sorriso brincalhão, ela se virou e indagou:

- Onde você tem andado?

Ted também estava com vários livros debaixo do braço e tinha o rosto

vermelho, como se estivesse praticando algum exercício físico.

- Fiquei um tempão “amarrado” com meu orientador, explicou.

Quando cheguei à livraria, sua chefe me disse que você havia acabado de

sair.

- Parece que já comprou todos os seus livros, comentou Cris.

- É, concordou ele, faltam só dois.

O rapaz pegou o braço dela e foi levando-a em direção à porta do café.

- Está com algum dinheiro aí? perguntou.

- Estou. Tenho uns cinco dólares.

- Ótimo, continuou Ted. Estou sem nada. Que tal você me pagar um

refrigerante?

A maioria das mesinhas do recinto estava ocupada. Havia só uma

vazia. Os dois largaram os livros em cima dela e compraram salgadinhos e

algo para beber. Gastaram quase todo o dinheiro de Cris, que ficou apenas

com três centavos.

- Já acertou seu horário de aulas? quis saber Cris.

Ele deu um sorriso.

- Isso significa que a resposta é “Já”, comentou a jovem.

- Vou poder terminar o curso em dezembro, explicou ele.

- É mesmo?

Ted acenou que sim, com um ar muito satisfeito.

- Você tinha razão quando sugeriu que eu fizesse aquelas duas

disciplinas nas férias, depois que voltei da Europa, continuou ele. Foi isso

que me ajudou.

- Ué, não me lembro de ter lhe dito pra fazer matérias nas férias.

- Ah, ‘tá certo. Foi a Katie. Ela conversou comigo no avião, quando

estávamos voltando, e me convenceu. Ela disse, inclusive, que iria fazer

algumas também, mas é claro que não fez.

- Ela trabalhou as férias todas, explicou Cris. É por isso que agora ela

‘tá folgada e pode passar mais tempo com os colegas, enquanto eu tenho de

trabalhar o tempo todo.

- E aí? indagou Ted. Como foi seu primeiro dia no serviço?

Dessa vez foi Cris que respondeu apenas com um sorriso.

- Isso significa que a resposta é que gostou.

- Gostei tanto, que até me imaginei tendo uma livraria algum dia,

replicou ela.

Contudo resolveu não contar sobre a parte de seu devaneio em que se

vira casada com ele, e sentada juntinho dele diante de uma lareira de lenha.

- E com uma hortinha... acrescentou.

- Essa hortinha seria na loja? indagou Ted. Você visualizou a horta na

frente ou nos fundos dela? Ou dentro?

- É, respondeu a jovem, tentando fugir de uma resposta específica.

Qualquer uma delas. Você não acha que seria muito gostoso ter uma

hortinha?

O rapaz fitou-a meio duvidoso.

- E uma lareira de lenha? insistiu Cris, arriscando-se a abrir um pouco

mais do seu mundo imaginário e desejando que ele gostasse daquela parte

de sua fantasia. Você gosta de lareira?

Ele recostou-se mais na cadeira e perguntou:

- Bom, essa lareira seria na horta ou na loja?

- Ah, deixa pra lá, replicou Cris, sentindo que sua conversa não estava

adiantando nada. Esses devaneios, é melhor a gente nem conversar sobre

eles, acho.

Ted apertou de leve a mão dela.

- Gosto de lareira, sim, disse. E gosto de você. Gosto de ouvi-la falar

de seus sonhos também. Quanto à horta... sei não. Mas sei que gosto de

você.

Cris sorriu.

Vamos lá, Cris. Diga o que ‘tá pensando. Diga: “Eu te amo, Ted!.”

Diga isso bem aqui na “Selva”, com uma porção de gente em volta.

Levante-se e grite isso bem alto.

Ela abriu a boca, mas o que disse foi:

- Gosto de você também.

Ted sorriu.

- E eu gosto muito de você, confessou.

- Também gosto muito de você, repetiu Cris.

- Mas eu gosto mais, insistiu o rapaz.

- Não, eu gosto mais.

Ted inclinou-se para diante, aproximando-se dela, e fitou-a com uma

expressão calorosa nos olhos azuis.

- Eu a amo, Kilikina!

Cris ficou paralisada. Não conseguia abrir os lábios. Não se sentia

capaz de soltar essas palavras. Do seu coração, saiu apenas uma lágrima

que lhe correu pelo rosto.

Ainda segurando a mão dela, Ted arrastou a cadeira para ficar mais

perto.

- Não precisa dizer nada, Cris, continuou ele num tom de voz

tranquilo e carinhoso. Não quero que se sinta pressionada a me dizer isso.

Nunca. De modo algum. Apenas deixe que eu a ame, o.k.?

Chegou-se para mais perto e beijou-lhe a ponta do queixo, no lugar

onde a lágrima parara.

- Apenas deixe que eu a ame.

8

Cris e Ted passaram o resto do dia juntos. Primeiro foram cada um ao

seu quarto para guardar os pesados livros. Depois jantaram na cantina e,

em seguida, o rapaz foi levar a namorada até a sala de aula. Às 9:00h, ao

fim do período, ele já se achava ali, a postos, para acompanhá-la. Como já

haviam combinado antes, foram à biblioteca para ver o horário de aulas

dela. Sentaram-se bem juntinhos num sofá, no saguão da biblioteca, e

foram lendo o nome das disciplinas e a hora das aulas de cada uma. Cris

foi anotando tudo num bloco e se sentiu bem. Mais relaxada quando viu

tudo no papel. Agora podia planejar suas atividades e ver o que poderia

fazer.

Ted terminou a leitura de todas as disciplinas necessárias para ela se

especializar em Literatura Inglesa e disse:

- Então é isso. Agora quer ver as matérias de Ciências Humanas

também?

Cris fez uma continha num canto da folha.

- Não, replicou. Estou cada vez mais convencida de que quero mesmo

fazer Literatura. Combina mais comigo. É mais específica do que

Humanas. É como você falou hoje de manhã. Eu já tenho essa tendência de

querer “salvar o mundo”. Se fizer Humanas, vou ficar ainda mais

envolvida nessa direção. Pra mim seria o mesmo que voltar para aquele

orfanato de Basiléia.

Assim que Cris estava com tudo ali, na ponta do lápis, ficou a olhar

para o papel. Agora só precisaria fazer todas aquelas matérias para tirar seu

diploma de bacharel em Literatura Inglesa. Parecia que não era muita

coisa. E agora pelo menos já tinha uma orientação clara a seguir.

- Creio que Literatura é um bom curso pra você, comentou Ted

examinando os cálculos que ela fizera, principalmente se pretende um dia

ter uma livraria. Isso aí é a soma total dos créditos? Será que dá pra fazer

tudo em dois semestres?

Cris acenou que sim.

- Foi o que o orientador me disse, replicou. Mas eu quero ver por mim

mesma. Então, posso terminar em maio do ano que vem.

Nesse momento, Ted deu um suspiro fundo. Parecia ter mergulhado

de cabeça num ponto bem profundo de seu ser. Cris tinha certeza de que,

quando voltasse à tona, traria na mão algum “tesouro” encontrado ali. E

depois de dois minutos de meditação, ele voltou de seu devaneio. E com

outro demorado suspiro, disse:

- O.k.,

O.k.? É só isso que tem a dizer? O.k.? Aonde é que você foi? O que foi

que viu lá, nesse lugar profundo?

Ela compreendeu que Ted não iria dizer nada. E também ele não tinha

motivos para dizer. Ela ainda não lhe dera a esperada “senha”, pela qual ele

abriria o “cofre” do coração dela, para guardar nele os tesouros que tinha

para lhe dar. Contudo sabia bem o que ele estava pensando, pois em sua

cabeça passavam as mesmas idéias.

Aí poderemos nos casar, não é, Ted? E a Katie não estava tirando

conclusões apressadas, como achei que estivesse; certo? Estamos mesmo

na reta final. Só falta eu dar minha palavra. Tenho de resolver. Mas antes

preciso ter certeza de tudo, e você compreende isso, não compreende?

- Então, agora ‘tá tudo pronto pra entrevista com o orientador

amanhã? indagou Ted.

-‘Tá.

- Ótimo!

E você vai me esperar, não vai, Ted? E não importa o quanto eu

demore pra decidir, seu amor por mim já está bem firme.

Bom, acho melhor ir para o quarto, disse Cris, sentindo-se perturbada

com a intensidade dos próprios pensamentos. Se a Katie estiver lá, preciso

acertar tudo com ela.

Ted acompanhou-a até a porta do dormitório e deu-lhe um carinhoso

abraço.

- Sonhe com os anjos! murmurou bem perto de seu ouvido.

- Você também! respondeu a jovem.

Ficou a olhar o rapaz que se afastava. Tinha a impressão de que os

dois estavam ligados por um longo fio invisível, cuja ponta se achava

fixado em seu coração. A cada passo que ele dava, o fio se desenrolava um

pouco mais. E se alguém ou algo ameaçasse cortar aquela linha, ela iria

lutar com todas as forças para manter a ligação. Disso tinha certeza. Ela e

Ted estavam ligados um ao outro. Forte, profunda e maravilhosamente

ligados.

Chegando ao quarto, viu a colega sentada no pufe, com lágrimas a lhe

escorrer pelo rosto.

- Katie, o que foi?

- Veja isto aqui, replicou a outra, estendendo-lhe uma carta.

Cris pegou a folha de papel da mão da colega. Era uma carta escrita à

mão. Foi direto olhar a assinatura.

- Rick? O Rick Doyle escreveu pra você?

Katie fez que sim e limpou o rosto molhado.

- Está pedindo perdão, explicou antes que Cris começasse a ler. Nestas

férias, ele acertou a vida com Deus, e ‘tá pedindo desculpas por não...

como é mesmo que ele diz? Por não ter me tratado com todo o respeito.

Cris leu rapidamente o primeiro parágrafo.

- Aqui diz: “Encontrei com o Douglas outro dia e ele me disse que

você e a Cris vão estudar na Rancho Corona este ano...”

- Continue, interpôs Katie.

Cris leu o segundo parágrafo em voz baixa e disse:

- Ele ‘tá pedindo que você lhe perdoe por ter agido como um “safado”

e não tê-la tratado com a dignidade e respeito que merecia.

- Dá pra acreditar numa coisa dessas? exclamou Katie. Nunca pensei

que algo assim fosse acontecer! Lembra que ontem mesmo eu estava

dizendo que, se um dos caras que haviam me magoado me pedisse perdão,

seria mais fácil perdoar?

Cris acenou afirmativamente e se sentou na beira da cama da colega,

que estava desarrumada.

- Isso é uma “coisa de Deus”, e é a mais estranha que já vi, continuou

Katie. Ontem fiz aquela grande declaração e hoje, quando vou pegar minha

correspondência, vejo esta carta do Rick. A princípio, achei que era uma

brincadeira, mas... leia a parte final aí.

- “Nestas férias, eu finalmente entreguei minha vida totalmente a

Cristo. Agora ele é real para mim, muito real mesmo. Então quero acertar

tudo com você, Katie. E você não precisa responder. Sei que Deus já me

perdoou. Espero que também me perdoe.”

Cris ergueu o olhar para a amiga.

- Parece que ‘tá sendo sincero, comentou.

Katie concordou com um aceno de cabeça.

- Cris, também tenho de lhe pedir perdão. Estou falando sério. Ontem

eu não devia ter saído daqui bufando, como saí. Tudo que você me disse

era verdade. Só que eu não estava querendo ouvir.

A jovem correu para a amiga e abraçou-a.

- Sou eu quem precisa pedir perdão, disse. Fui muito insensível, Katie.

Me desculpe. Eu devia ter ido ao quarto da Selena ontem pra gente acertar

aquele desentendimento.

- Não, eu precisava de tempo pra pensar naquilo tudo. Demorei um

pouco pra enxergar que você tinha razão. Preciso mesmo começar a

perdoar aos outros, e perdoar totalmente. Havia até resolvido que hoje à

tarde iria principiar esse processo perdoando ao Rick. Escolhi o Rick

porque foi ele o que mais me magoou. Então, depois do jantar, fui lá na

igrejinha e orei. Aí chegou isso, explicou ela apontando para a carta que

estava na mão de Cris. Ela acabou de me derrubar. Quero dizer, o Rick

Doyle ‘tá me pedindo perdão. Então, que é que estou fazendo ao evitar me

encontrar com você? Nós duas formamos uma boa dupla, Cris. Esperamos

tanto tempo pra sermos colegas de quarto, e logo na primeira semana em

que estamos juntas, eu crio essa confusão toda...

- Você não criou confusão nenhuma, Katie, interpôs Cris. Apenas

ficou um pouco fora de si, foi só isso. Sempre que nós nos irritarmos uma

com a outra, vamos conversar e acertar a questão. Seja qual for o motivo.

- Você ‘tá certa, concordou Katie.

Em seguida, levantou-se e pegou a carta. Dobrou-a e guardou-a dentro

da Bíblia.

- Você foi verificar sua caixa de correspondência hoje? Indagou.

- Não; por quê?

- Será que o Rick não escreveu pra você também?

- Pra mim?

- É; pra você. Quando vocês estavam namorando, ele também não a

tratou com muita dignidade.

- Ah, mas eu e ele já resolvemos tudo naquela época mesmo, explicou

Cris. Acho que ele não tem motivo algum pra me pedir perdão. Quando

estávamos juntos, não agi com muita sensibilidade pra com ele, não. Às

vezes tenho a tendência de ficar muito tensa com respeito a tudo, e só

enxergo os fatos pelo meu ponto de vista.

Katie deu um sorriso bastante significativo.

- Na verdade, disse, pensando bem, todos nós somos basicamente

egocêntricos. É por isso que precisamos de um Salvador. O professor

Mitchell já disse isso na classe de Antigo Testamento? Ele vivia repetindo

essa frase no ano passado. Quando estávamos estudando sobre aqueles

personagens do Antigo Testamento que cometeram tantos erros, ele sempre

dizia: “Mais uma vez estamos vendo que é por isso que todos precisamos

de um Salvador”

Cris sorriu. Pensou em Rick e se recordou do versículo de João que

diz que aqueles que crêem em Cristo e o recebem conquistam o direito de

se tornarem filhos adotivos de Deus.

Agora o Rick se tornou de fato filho de Deus.

- Você ‘tá pensando no Rick, não ‘tá?

- Como foi que adivinhou?

- Também estava pensando. Agora, ele, que era “posudo”, é um salvo

de verdade.

- Onde arranjou essa palavra? O que é “posudo”? Ouvi o Ted falando

isso na mensagem para os jovens, na igreja.

- É... estou vendo que você ficou muito tempo fora daqui, comentou

Katie. A primeira vez que ouvi essa palavra foi em relação ao surfe. O

“posudo” é uma pessoa que age como se soubesse surfar, mas nunca sobe

na prancha. Sabe como é? Ele põe adesivos sobre surfe no carro. Veste

camisetas com frases sobre ele. Conversa sobre a altura das ondas que

viram na semana passada, mas nunca surfam. Apenas querem que todo

mundo pense que eles praticam o esporte.

- E você acha que o Rick era assim? Quando a gente estava na escola,

ele era um crente “posudo”?

- Sei lá. Só Deus é que pode julgar; nós, não. Eu apenas estou

admirada de que ele tenha acertado tudo e que tenha escrito pra mim.

- E você pretende responder? indagou Cris.

- Ele não mandou o endereço, disse Katie inclinando a cabeça para um

lado.

Era um gesto gracioso, principalmente porque o cabelo dela estava

bem curto e repicado. Deu-lhe um ar alegre, em vez de nervoso, que era a

impressão que Cris tinha antes, quando o cabelo era mais longo e pesado.

- Mas o Douglas deve saber por onde ele anda agora, continuou ela.

Ou eu poderia escrever para o endereço dos pais dele em Escondido.

Cris começou a se preparar para deitar, e a amiga ligou seu aparelho

estéreo e se pôs a escrever uma carta para o Rick. Quando afinal a primeira

acabou de lavar o rosto, escovar os dentes e enfiar-se debaixo da coberta,

Katie, que era uma “corujinha”, achava-se plenamente desperta, disposta a

conversar.

- Escute aqui, disse ela. Veja o que você acha. “Prezado Rick, recebi

sua carta e até chorei. É claro que lhe perdôo, seu ‘bobo’. E agora sou eu

quem tem de lhe pedir perdão. Na época em que nós nos relacionamos eu

também não fui exatamente uma boa crente e uma excelente amiga. Estou

tão alegre de saber que Deus está operando em sua vida! Vamos continuar

nos correspondendo, o.k.? Amigos para sempre. Katie.”

- Katie, você o chamou de “bobo”?

- Eu tinha de colocar algo assim, se não ele não acreditaria que fui eu

quem escreveu a carta.

- Ah, então ‘tá certo, replicou Cris, dando um bocejo. É o seu jeito

mesmo e ‘tá bem sincera.

- Você não vai dormir ainda não, vai?

- Katie, já é quase meia-noite.

- Pois eu vou escrever pra todos os meus ex-amores. E quero que você

leia todas as cartas.

- Amanhã de manhã eu leio.

Cris acabou não lendo. Só foi se lembrar das cartas na sexta-feira,

após a primeira semana de aulas. Quando as duas estavam verificando a

caixa de correspondência, ela se recordou e perguntou à amiga se ela já as

havia remetido.

- Mandei só a do Rick.

As duas saíram do centro estudantil e foram caminhando em direção à

cantina.

- Mamãe me deu o endereço dos pais dele e enviei pra lá. As outras

não vou precisar mandar pois acabaram sendo uma carta apenas, uma carta

bem comprida que escrevi pra Deus, pedindo-lhe que me perdoasse por

não ter perdoado àqueles caras. Guardei dentro da Bíblia. E no verso delas,

copiei alguns versículos que me falaram muito ao coração. Um deles é

aquilo que Jesus disse quando estava na cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque

não sabem o que fazem”. Esse texto me ajudou muito porque compreendi

que a maioria das pessoas que nos magoam nem sabe o que ‘tá fazendo.

Cris já ia fazer um comentário sobre o que ela acabara de dizer quando

avistaram Mark que vinha correndo em direção a elas. Ela sorriu para ele e

disse:

- Oi, Mark! Sumiu hein?! Por onde andou durante a semana? Agora é

a primeira vez que te vejo!

- Oi, Cris! replicou ele com os olhos fixos em Katie. Wesley acabou

de me dizer que você é que é a Katie. É mesmo?

A jovem fitou-o com um sorriso bonito, cheio de charme. Não era

uma expressão típica da Katie, mas combinava com sua nova imagem,

mais feminina e sofisticada.

- Depende, respondeu. Deve haver mais de uma Katie na escola. Qual

das Katies você está procurando?

- Bom, não sei o sobrenome dela, explicou o rapaz dando uma olhada

para Cris e depois para a outra.

- Ah, é? continuou a jovem, “curtindo” aquele momento máximo. E o

que você sabe a respeito dela?

- Estou procurando uma Katie que participou do jogo de beisebol

domingo à tarde no time que jogou contra o do Wesley.

- Ah, então sou eu.

- Ótimo, prosseguiu o rapaz. O negócio é o seguinte. Wesley me disse

que você ia ficar no lugar da Cris naquele jogo, mas acabou entrando no

time da Selena e praticamente sozinha ganhou do nosso grupo.

Cris não sabia de nada disso.

- Estamos tentando marcar uma revanche pra este final de semana,

explicou Mark. Uma melhor de três. Selena falou que você vai jogar no

time dela. Eu vou participar desse jogo. Se você puder ficar do nosso lado,

nós ganhamos deles facilmente. Como é que eu posso convencê-la a jogar

comigo e o Wesley?

Katie deu uma olhadela rápida para a amiga e em seguida voltou para

o rapaz os olhos verdes muito expressivos.

- Depende, falou. Quanto vai me pagar?

Cris teve vontade de cair na risada, mas se conteve ao ver a expressão

de Mark.

- Quanto você quer? indagou ele num tom hesitante.

Katie deu uma gargalhada. Cris conhecia bem aquele jeito de rir. Era o

riso mais alegre de sua amiga. Era o mesmo que ela soltara nas férias

anteriores, em Copenhague, quando as duas tinham saído à procurar a

estátua da Pequena Sereia. Ela rira daquela forma também numa outra

ocasião. Estava trabalhando como auxiliar de Papai Noel, e usava uma

orelha pontuda. Em dado instante, Rick apareceu e elas foram se esconder

dele, mas a “orelha” ficava caindo.

- Estou brincando, explicou. Mas o Ted me disse que você é ótimo pra

consertar um Volkswagen. O meu Buguinho ‘tá com um problema. O

painel não ‘tá acendendo. Se consertar pra mim, talvez eu possa jogar com

você e o Wesley.

- O que é que é Buguinho? indagou Mark.

- Meu carro. É um bugue, mas a mecânica dele é da Volks.

- Ah, aquele amarelinho? perguntou o rapaz. Ele é seu? Qualquer dia

desses dou uma olhada nele. Onde arranjou aquilo?

- Um dos meus irmãos trabalha numa oficina de lanternagem.

- Esse tipo de carro é raríssimo em Wisconsin, sabia? Um amigo meu

achou um na Internet, e queria comprá-lo, mas estava no México.

- O meu está lá no estacionamento lateral. Quer ir lá vê-lo depois do

jantar?

Cris girou os olhos para o alto e fechou a boca com força para não rir

com a faceirice de sua amiga e o entusiasmo de Mark. Pelo visto, os dois

finalmente haviam se “encontrado”.

- Eu vou lá pra cantina, interpôs Cris. A fila já deve estar começando a

ficar bem longa.

- Então acho melhor nós esperarmos, disse Mark, dirigindo-se a Katie.

Quero dizer, esperar pra jantar depois. Quer me mostrar seu carro agora?

Katie saiu andando com ele. Em dado momento, deu uma viradinha

para trás e Cris notou que em seu rosto havia uma expressão de felicidade.

Cris abanou a cabeça, rindo de sua amiga “maluquinha”. Mark não

dera nenhuma indicação de que se lembrava de que Cris lhe apresentara

Katie uma semana atrás, dizendo-lhe que era sua colega de quarto. É

verdade que a amiga estava um pouco diferente, com o cabelo cortado e

tudo o mais. Estava até usando a saia “indiana”, mais feminina, e uma

blusinha muito bonita, pela segunda vez naquela semana. Evidentemente,

para o rapaz, essa era a primeira vez que ele via Katie.

É um novo começo pra minha querida amiga. Estou gostando muito

disso. E agora não há mais os “catálogos” do rancor pra ela carregar!

Cris foi direto ao balcão de saladas e se pôs a preparar um imenso

prato. Colocou nele alface, brócolis, cenoura, queijo picado e passas. Tudo

“regado” com um molho picante. Quando estava na Europa, sentira muita

falta da grande variedade de verduras frescas que se comia na Califórnia.

Avistou Ted na mesa ao canto da janela, que passara a ser exclusiva deles e

foi para lá. Antes mesmo de se sentar, foi logo dizendo:

- Até que enfim, aconteceu!

- O quê?

- O Mark “descobriu” a Katie, e eu não tive nada a ver com isso.

Em seguida, deu todos os detalhes para o rapaz. Ele também pareceu

ficar encantado com o fato, tanto quanto Cris ficara. Ted enfiou o garfo no

seu prato de alface com ervilhas e depois misturou ali um pouco de purê de

batata. Na garfada seguinte, pegou uns pedaços de frango e passou numa

vasilhinha com molho de mostarda com mel.

- Puxa, você gosta de muita variedade, não? comentou Cris.

- Por que diz isso?

- Fiquei a semana toda observando como comia. Você come um

pouquinho de tudo até acabar.

- E daí?

- Nunca tinha notado isso antes, explicou a jovem, sorrindo. Estou

descobrindo uma porção de fatos a seu respeito e estou gostando. Antes a

gente nunca tinha passado tanto tempo junto.

Ted pegou mais um pouco do purê e passou no molho. Cris comeu

mais de sua salada. Pensou se o namorado havia reparado que ela comia

um tipo de alimento de cada vez, e só depois pegava o outro tipo.

- Isso a incomoda, eu ficar pulando de um alimento pra outro, no

prato? indagou ele.

- Não, não. De jeito nenhum. Só mencionei porque nunca havia

observado isso antes.

- E não incomoda mesmo, não? Com sinceridade?

- Não, repetiu a jovem, tentando entender a expressão dele. E você?

Fica incomodado de eu comer um tipo de comida de cada vez?

Ted abanou a cabeça. Depois, dando um meio sorriso, disse:

- A não ser aquela vez que fez questão de comer tudo em ordem

alfabética.

Cris deu um tapa nele com o guardanapo.

- Eu não fiz isso, não! disse.

E durante cerca de um minuto, eles comeram calados. Afinal Ted

quebrou o silêncio.

- Tenho de lhe confessar algo, disse. Desde aquele sábado, quando

conversamos naquela praça, tenho andado tenso.

- Tenso? Por quê?

- Achei que, depois que lhe contei tudo aquilo sobre minha infância,

você ia querer sair correndo, fugindo de mim.

- Oh, Ted, não pensei nada disso. Fiquei muito espantada com alguns

dos fatos que me contou. Mas a verdade é que você não tem como mudar o

passado, nem o modo como seus pais eram, nem as decisões erradas deles.

Você não é culpado pelo que eles fizeram.

- É; eu sei, concordou ele fixando os olhos nela.

Estendeu o braço e alisou o rosto dela de leve, olhando-a como um

garoto que acaba de saber que não existem fantasmas.

- Então, aquilo que lhe falei não mudou nada? Quero dizer, agora que

já sabe tudo que lhe revelei ainda quer aprofundar nosso relacionamento?

- Ted, nada do que você me contou vai mudar nada, confirmou ela.

Você é do jeito que é por causa do que Deus já operou em sua vida. E, sob

muitos aspectos, você é simplesmente incrível. Amo você do jeito que é.

- De repente, Cris teve a sensação de que tudo à sua volta ficara

imóvel.

Puxa, acabei de lhe dizer que o amo?

O rapaz continuava com o olhar fixo nela, aguardando que

continuasse. Não parecia surpreso nem satisfeito com a declaração que ela

deixara escapar sem querer. Parecia estar esperando algo.

É, mas disse que o amo do jeito que ele é. Isso é bem diferente do que

dizer que o amo, não é?

Cris se sentiu incomodada. Sabia que seu rosto estava se

avermelhando. Desviando o olhar, continuou:

- Ted, você é maravilhoso exatamente do jeito que é.

Pôs outra garfada de salada na boca e ficou a mastigá-la até ficar bem

triturada.

No dia que eu disser ao Ted que o amo, espero que não seja numa

cantina barulhenta, comendo salada com frango.

O rapaz não parecia estar nem um pouco tenso como Cris estava.

Simplesmente terminou de comer; e esperou que ela acabasse também.

Procurando algo para mudar de assunto, a jovem disse:

- Você tem algum plano pra dar uma chegada em casa um desses dias?

- Em casa? repetiu ele. Ah, você quer dizer na casa do meu pai em

Newport?

A pergunta dele relembrou-lhe algo que o rapaz lhe dissera: que ele se

sentia sempre muito à vontade na companhia dela. Durante muitos anos,

ele morara na casa de praia do pai, em períodos alternados. Evidentemente,

para ele, ali não era “sua casa”.

- Estou pensando que precise visitar meus tios num dos próximos

finais de semana, explicou ela. Então, se você for para aqueles lados, me

avise porque quero ir com você.

- Podemos ir amanhã, se você quiser.

Cris achava que deveria ir, mas na verdade não queria. E se o Ted

fosse com ela, talvez a Tia Marta contasse ao rapaz o que estava

planejando fazer. Assim ela não seria a única a saber e se preocupar com a

tia.

- Que hora seria melhor pra você? indagou Ted.

- Antes tenho de ligar pra minha tia pra saber se eles vão estar em

casa.

Ted sugeriu que ligassem do telefone que havia no saguão da cantina.

Quando iam saindo, encontraram-se com Katie e Mark que vinham

chegando para almoçar.

- Veja só, disse Katie. O Mark resolveu o problema do Buguinho.

- Quer dizer, então, que você vai jogar no time deles?

- Acho que sim, replicou a outra.

- E quando é que vai ser o jogo? quis saber Ted.

- Domingo às 3:00h da tarde, informou Mark. Quer jogar?

Cris notou que o rapaz parecera dirigir a pergunta para o seu

namorado, e não para ela. Tudo bem. Ela já tivera sua chance de participar

do primeiro jogo. Agora que eles estavam procurando os bons jogadores,

não iria “curtir” tanto a partida, como acontecera antes.

- Não, replicou Ted. Mas eu estava querendo saber se vocês gostariam

de ir conosco a Newport Beach amanhã.

- Claro, respondeu Katie.

- Faz tempo que eu queria ir à praia, comentou Mark. Antes de ir pra

casa nas férias, só fui duas vezes. E fui sozinho e então não sabia direito a

que lugar deveria ir.

- Ah, quem mora tão perto da praia como nós aqui, tem de aproveitar

todas as oportunidades de ir, disse Cris. Ted, você precisa levar o Mark pra

surfar.

- Você tem prancha? indagou Mark com os olhos brilhando.

- Tenho. Quer ir surfar amanhã?

No dia seguinte, por volta de 8:00h, a turma toda estava a caminho de

San Clemente, a praia mais próxima. Cris não se importou de ver frustrado

seu plano de ir a Newport, onde moravam seus tios e o pai do Ted. Iria

conversar com a tia uma outra hora. O clima estava perfeito para um dia de

outono, e ela estava seguindo para a praia com Ted e seus amigos.

O grupo era constituído de cinco carros. Selena e Vicki, sua colega de

quarto, iam com Katie no Buguinho. Ted ia em sua kombi, seguido por

Mark, que vinha em sua camionete, levando Peter, seu colega de quarto.

Na “Kombinada”, estavam Ted, Cris e mais quatro rapazes. Em cima do

carro, levavam também três pranchas de surfe. Wesley ia sozinho pois

precisaria voltar mais cedo. Paul, que era “apenas um bom amigo” de

Selena, iria encontrar-se com eles lá, já que se achava em sua casa, em San

Diego.

Ted ia à frente do comboio, seguindo pela Rodovia Ortega. Todas as

janelas do carro estavam abertas, e o rádio, ligado no último volume. Era

uma estação que só tocava música gospel, e que, segundo ele dissera a

Cris, era a única que ouvia ultimamente. Cris dobrara sua toalha de praia e

a colocara sobre o banco para amenizar um pouco a aspereza das molas

estragadas. Assim a viagem, que duraria cerca de uma hora, seria mais

confortável.

Estacionaram todos próximos uns dos outros e viram que Paul já os

aguardava ali. Cris ficou a observar para ver como ele e Selena se

cumprimentariam. Espantou-se ao ver que se olhavam de um modo bem

natural. Paul era apenas “um dos amigos”. Aí, porém, se lembrou de como

ela também agia de maneira bem natural nos primeiros anos de seu

relacionamento com Ted. E fora melhor assim. Dessa forma, a amizade

deles pudera se desenvolver em meio aos altos e baixos que aconteceriam

depois.

Todos se encaminharam para a praia com os braços cheios de

pertences. Cris ia andando ao lado do namorado.

- Nós temos algumas recordações desta praia, não temos? disse ela.

Ted fez que sim.

- Uma vez nós terminamos o namoro aqui, bem na hora do pôr-do-sol,

comentou ele. Há quantos anos foi isso? Três? Ou foi há dois anos? Foi um

dos piores dias da minha vida.

- Da minha também, concordou a jovem. E a pior parte pra mim foi

que voltamos pra minha casa sem dar uma palavra o caminho todo.

- Pois pra mim o pior foi que me senti obrigado a prosseguir com

aquela conversa toda, mantendo aquilo que eu havia falado. Eu havia dito

que queria ir morar num lugar bem distante, e você me forçou a fazer isso.

Cris parou de súbito.

- Você ‘tá dizendo que fui eu quem o obrigou a ir pra Espanha?

- Sim e não, replicou o rapaz. Sempre achei que eu queria ir pra Papua

Nova Guiné. Acabei indo pra Espanha. Mas foi você quem me forçou a

fazer o que eu havia falado. Na realidade, eu queria era ficar aqui e

permanecer ao seu lado.

Cris nem queria acreditar no que Ted estava lhe dizendo. Soltou a

sacola e a toalha de praia na areia, e pôs as mãos na cintura.

- Ted, só agora você vem me dizer que, se eu não tivesse falado nada

naquele dia que nós terminamos, você não teria ido?

O rapaz ficou pensando por uns instantes e depois respondeu:

- Provavelmente, não. Sei lá. É difícil afirmar agora.

- Puxa, como nossa comunicação um com o outro era péssima!

- Espere! Não estou falando que as coisas deveriam ter sido diferentes

do que foram, disse Ted, colocando no chão sua prancha alaranjada a que

ele dera o carinhoso nome de “Naranja”.

- Você ‘tá dando a entender que fui a culpada de você ter ido embora,

pois eu disse que deveríamos terminar o namoro.

- De forma alguma! protestou Ted. Até gostei de termos terminado...

- Gostou?

Katie aproximou-se deles meio hesitante.

- Desculpe interromper, gente. Mas, se vocês vão ficar aí brigando,

será que pode me emprestar sua prancha, Ted?

- Pegue, disse o rapaz, quase jogando a prancha na jovem.

- Desculpe de novo, continuou ela, mas só mais um detalhe. Cris, você

trouxe protetor solar?

Cris empurrou a sacola para a colega.

- Obrigada. Vou pegar sua toalha de praia também, disse Katie. Vou

pôr ali, perto da minha. Quando você quiser, pode vir pegá-la.

E com isso, Katie foi saindo de mansinho, deixando os dois perto da

barraca do salva-vidas, ambos com as mãos na cintura.

9

- Cris, disse Ted com uma leve irritação na voz, você não ‘tá

entendendo nada do que estou querendo dizer. Eu creio que foi Deus quem

a inspirou pra que terminasse comigo. Isso fez com que eu desse

prosseguimento à realização dos meus sonhos. E não me arrependo de

nada. Aquele período que passei na Espanha mudou minha vida. E você

nem sabia que eu estava lá. Isso foi uma confirmação pra mim, e eu

precisava dela.

Apesar das palavras dele, Cris continuava irada. Só conseguia pensar

no quanto havia chorado por causa do Ted, na saudade que sentira dele,

sem saber onde ele estava e por que não lhe escrevia. E ademais não

enxergava nenhuma mudança importante em sua vida pelo fato de os dois

terem terminado o namoro.

- Que confirmação? indagou por fim.

Ted olhou para o mar e soltou um suspiro profundo. Em seguida,

voltou a fitar Cris.

- A confirmação de que não era pra eu ser missionário de tempo

integral em alguma ilha tropical, como sempre achei que seria.

A jovem se acalmou um pouquinho. Ted já havia conversado com ela

sobre isso algum tempo atrás. Ele dissera que só de alguém saber que há

uma vaga num campo missionário, isso não significa que ele está sendo

chamado para trabalhar ali. O mero fato de se ver uma oportunidade de

trabalho no exterior não implica que Deus o está chamando para ir para lá.

- Quando estava ali na Espanha, descobri que tenho muita facilidade

para trabalhar com adolescentes, ensinando e dirigindo o louvor. Se não

tivesse ido lá, talvez não teria enxergado isso. Foi por esse motivo que

resolvi mudar minha especialização e estudar Teologia, pensando na

hipótese de ser ministro de jovens.

Cris cruzou os braços e olhou para o chão. Seu tênis estava cheio de

areia. Nesse momento, pensou que teria sido melhor se o tivesse tirado ou

tivesse vindo de sandália. Lembrava-se de que, em Basiléia, usara umas

sandálias velhas nos poucos dias de verão que passara ali. Contudo

deixara-as por lá mesmo, quando voltara.

- É; acho que eu também não teria ido pra Suíça, disse ela lentamente.

Depois que você foi pra Espanha, comecei a pensar no que eu queria pra

minha vida. Nem sabia se iria fazer um curso superior. E agora, aqui estou

eu, já me vendo estudando pra me formar em Literatura.

- Sabe o que mais? principiou Ted, relaxando um pouco e

aproximando-se de Cris. Se fossemos só nós que tivéssemos de determinar

nosso destino, teríamos razões pra ficar aborrecidos com as decisões

erradas que tomássemos. Mas Deus também se acha muito envolvido nisso

tudo. Tanto eu como você já entregamos nossa vida a Cristo e demos a ele

o controle da nossa existência.

- É, mas de vez em quando tento pegar de volta esse controle, interpôs

Cris, afastando uma mecha de cabelo do rosto.

Ergueu os olhos para o namorado. Este tinha uma expressão de

ternura.

- Então, a única coisa que podemos fazer agora, prosseguiu o rapaz, é

olhar só daqui para a frente. Não podemos alterar o passado.

- É, concordou Cris. Eu sei. Em vez de ficar perguntando “E se...?”,

temos de passar a dizer: “Qual é o próximo passo?”

Ted acenou que sim.

- E agora quero ser bem sincero. Parece que só eu tenho uma

compreensão bem clara do que devemos fazer a seguir. Você ainda tem

algumas dúvidas, hesitações ou algo assim.

Cris já ia abrir a boca para protestar, mas o rapaz ergueu a mão,

pedindo-lhe que esperasse que ele terminasse de falar.

- Pra mim ‘tá tudo bem. Você não precisa tomar nenhuma decisão

sobre nós, nosso futuro ou sobre qualquer outra questão enquanto Deus não

lhe mostrar tudo com clareza. Eu não vou sumir. Estou aqui e vou ficar

bem aqui. Estou confiando em que Deus ira dirigir nossos passos para o

caminho desejado. Na hora certa, ele irá nos mostrar qual é o passo

seguinte.

Cris sentiu uma paz enorme ao ouvir aquilo. Sua preocupação a

respeito do seu amor por Ted - precisava saber se ele iria durar a vida toda

- foi ficando menor. Na verdade, ela não teria de chegar a essa conclusão

sozinha. Deus estava no controle de tudo. O que ela precisava fazer agora

era apenas confiar nele e esperar. Dias antes, Ted lhe dissera que o fator

mais importante num relacionamento era a confiança.

- Tem razão, replicou ela com um leve sorriso. Naquele dia em que

estivemos aqui nesta praia e terminamos nosso namoro, Deus estava

operando em nossa vida. E continua operando hoje.

- Continua mesmo, concordou Ted. O que temos a fazer é só confiar

nele.

- Muito obrigada por ter me lembrado disso.

O rapaz, que estivera com as feições tensas, nesse momento foi

abrindo um sorriso. Estava olhando para ela “daquele jeito”

- Eu te amo, Kilikina, disse com firmeza. E sempre vou te amar.

Cris ergueu-se na ponta dos pés, inclinou-se um pouco para a frente e

beijou aqueles lábios que tinham expressado palavras tão lindas para ela.

Foi um beijo terno, suave e muito rápido.

Assim que eles de afastaram um do outro, os amigos, que haviam se

instalado mais perto da água, soltaram gritos de aprovação, batendo

palmas.

Ted fez um aceno com jeito brincalhão, sorriu e acenou de novo.

- Tivemos nossa primeira discussão em público, disse ele, e

praticamente fomos ovacionados.

Cris também dirigiu um sorriso para a “platéia” e depois voltou a

olhar para o namorado.

- Acho que as palmas foram pra nossa decisão de nos beijar e nos

reconciliar, em vez de brigarmos de fato, disse.

- Concordo plenamente, ajuntou Ted que, em seguida, ergueu os olhos

para o céu e continuou: Que bom, Senhor! Nem sempre entendo teus

planos, nem sempre concordo com teus métodos, mas gosto muito quando

nos das surpresas agradáveis.

Cris já estava acostumada a ver o rapaz começar a orar nos momentos

mais inusitados. Eles se entreolharam e sorriram.

- E agora? indagou o rapaz. Já ‘tá querendo cair na água?

- Claro, replicou ela.

Com isso, Ted, num movimento rápido, pegou-a no colo e saiu

correndo em direção ao mar. Cris se pôs a gritar.

- Espere, espere! berrava ela. Vou entrar sozinha! Não quero molhar

esta camiseta!

Ted não deu ouvidos aos seus gritos. Ela não conseguiu se soltar, e daí

a pouco os dois estavam na água. E parecia que aquele era o sinal que toda

a turma estava esperando. Num segundo, todos os outros correram para o

mar e começar a atirar água uns nos outros, rindo como loucos.

Cris observou que Mark estava se divertindo bastante com a

brincadeira e que sua principal “vítima” era Katie. Nesse momento, Cris

sentiu um pedaço de alga marinha flutuar perto dela. Pegou-o e atirou-o na

praia. Detestava a sensação grudenta daquela planta, com seus tentáculos

“de borracha”.

- Ei, Cris Miller! gritou Mark. Você continua arremessando igual

mulher!

Em resposta, ela deu um largo sorriso. Naquele momento, se sentia

como mulher... a mulher mais feliz da Terra.

É claro que no céu vamos ter dias pra ir à praia, pensou. E tudo vai

ser exatamente como ‘tá sendo aqui, como agora. Talvez com uma exceção

- a água deverá ser um pouco mais quente.

O resto do dia foi marcado por muito Sol, risos, brincadeiras e a

deliciosa brisa marinha. Na opinião de Cris, só faltava fazerem uma

fogueira ao entardecer e assar marshmellows, e cantar alguns corinhos. No

fim, porém, viram que apenas ela e Ted haviam levado agasalhos para

vestirem à noite. E todos sabiam que, no outono, à noite, faz bastante frio

na praia. Então, como de tardinha já estavam todos friorentos, cansados e

com fome, resolveram arrumar seus objetos e voltar para a Rancho Corona.

Chegaram ali bem na hora em que a comida da cantina já estava no fim.

Comeram o que havia sobrado do jantar.

Durante o resto do final de semana, o grupo que fora à praia continuou

sentindo um espírito de companheirismo que permaneceu mesmo durante a

segunda semana de aulas. Então, no domingo, Ted contou com mais

voluntários para o trabalho com os jovens na igreja. Aliás, havia mais

gente na liderança do que nos bancos. No início da semana, vários desses

colegas foram à livraria dar um “alô” para Cris.

O único resultado indesejado do passeio à praia foi que alguns

voltaram bastante queimados de Sol. Nessas condições, não seria muito

justo fazerem a revanche do beisebol. Assim, a partida foi adiada para o

domingo seguinte.

Durante a semana, Katie andou de um lado para outro com a mesma

energia de sempre. E todas as vezes que chegava ao quarto dizendo que iria

treinar de novo com o Mark, no campo de beisebol, Cris dava um sorriso

de satisfação.

Na quarta-feira de manhã, quando Ted foi acompanhar Cris até a sala

de aula, ele repetiu a mesma oração na língua havaiana que recitara uns

dias atrás.

- Você ia me dizer o que significa isso, comentou a jovem.

- Vamos nos encontrar na praça da fonte, antes de você pegar serviço,

replicou ele. Aí vou lhe contar a história toda.

Entretanto, quando chegaram ao lugar marcado, ele estava tão cheio

de gente que foram procurar outro ponto para se sentarem. Acabaram indo

para o saguão do Dischner Hall, o prédio de estudos musicais, onde se

acomodaram num sofá. Dali escutavam os sons de um piano que alguém

tocava entusiasticamente numa das saletas de estudo.

- Acho que nunca lhe contei muito do que se passou conosco quando

moramos no Havaí, né? disse Ted.

Cris concentrou-se no que o rapaz estava lhe dizendo. Tinha

impressão de que essa conversa iria ser uma das mais importantes que

teriam. Provavelmente seria tão significativa quanto a que tinham tido

naquela praça, uns dias antes.

- Já lhe contei que no Havaí morávamos com uma jovem chamada

Kapiolani, que era namorada do meu pai?

Cris abanou a cabeça, negando.

- Ela era de lá daquele lugar. Meu pai gostava muito dela. Eu a

chamava de Lani. Era uma pessoa extraordinária. Eu sentia mais liberdade

com ela do que com minha mãe. Ela costumava fazer spam * e arroz com

molho de teriyaki pra mim e meu amigo Kimo, quando ele ia à nossa casa.

Era o prato predileto dele.

Cris fez uma caretinha.

- Spam com arroz?

- É. Uma hora dessas, você precisa experimentar. A primeira vez que

ela fez foi um dia em que eu e o Kimo armamos uma barraca no quintal e

dormimos nela, disse Ted, sorrindo ao se lembrar. E ficamos contando

histórias de terror, falando de centopéias e menehunes.

- Mene o quê?

- Menehunes, repetiu ele. São gente pequena, de ficção, que vivem nas

ilhas.

- Ah, como os duendes?

* Spam - um prato feito com carne bem picadinha. (N. da T.)

Ted fez que sim e continuou com suas recordações.

- No quintal dos fundos, havia quatro plumerias enormes, e Lani

sempre punha a flor da plumeria no cabelo dela, que era comprido.

Cris sorriu. Ted já lhe dera vários colares havaianos, feitos de

plumeria. Ela sabia que ele gostava imensamente do perfume doce daquela

flor de cor clara. Agora entendia por quê. Por que será que ele nunca lhe

falara sobre a namorada do pai?

- Você disse que ela costumava recitar uma oração antes de você ir pra

escola.

- Ah, é. Na ka Makua-O-Kalani, e malama mai ia makou.

- O som das palavras é muito lindo, comentou Cris. O que significa?

- Bom, creio que significa mais ou menos o seguinte: “Que nosso Pai

celeste tome conta de nós todos”. É uma espécie de bênção.

- Ah, quero aprender isso, disse Cris. Continue repetindo pra mim

todos os dias, que depois eu também vou dizer essa oração.

Ted repetiu a frase duas vezes para a jovem tentar dizer também.

- Afinal, o que aconteceu com a Lani? Parece que ela era maravilhosa.

Por que seu pai não se casou com ela?

Ted ficou em silêncio por uns instantes. Passou a mão na cabeça de

Cris, do alto até embaixo, nas costas, alisando o cabelo dela. Fez isso duas

vezes, e depois disse:

- Sabe a minha prancha de surfe?

Cris não fazia idéia do que aquela velha prancha tinha a ver com a

conversa que estavam tendo.

- Sei, replicou ela, com um meio sorriso. Já vi sua prancha.

- Ganhei da Lani, no meu aniversário de dez anos.

Agora Cris entendia por que ela estava tão “surrada”. Antes, porém,

que fizesse um comentário nesse sentido, Ted concluiu o que começara a

dizer.

- Dois meses depois, ela morreu. Tinha câncer no ovário. Após isso,

ficamos no Havaí pouco tempo. Meu pai não suportou o sofrimento. Foi aí

que nos mudamos pra Newport Beach. E, pelo menos até onde sei, ele

nunca mais se apaixonou por ninguém. E também nunca mais voltou lá.

- Mas você, já, disse ela.

Ted fitou-a, sorrindo carinhosamente.

- Já, repetiu ele.

E aqui ele se inclinou para mais perto dela, e cochichou ao seu ouvido:

- Eu já me apaixonei.

A jovem sentiu o rosto começar a queimar.

- Eu quis dizer que você já voltou ao Havaí.

- Isso também, concordou ele.

Ted recostou-se no sofá e apoiou os cotovelos no encosto dele.

Estendeu as pernas para a frente, cruzando os pés à altura dos tornozelos.

- Acho que, para me curar dessas feridas do passado, tenho de voltar

lá e recordar tudo. Já o meu pai parece que resolve essas questões tocando

a vida pra frente. Creio que é por isso que nunca conversa comigo sobre

esses fatos. Ele não gosta de discutir esses assuntos. E é claro que não falo

com minha mãe sobre eles também. Aliás, com relação a esses

acontecimentos, ela só sabe que moramos em Maui durante algum tempo.

Cris pegou a mão do namorado.

- Mas eu gosto de ouvi-lo falar disso, Ted, comentou. Quero saber

mais e mais a seu respeito. Pode conversar comigo a respeito dessas coisas

a hora que quiser, principalmente se for falar da Lani.

Em seguida, num tom mais cauteloso, concluiu:

- Ou de qualquer outra mulher.

- Ela é a única, respondeu o rapaz, falando em tom calmo.

Cris deu um sorriso. Compreendeu que o namorado ainda não havia

“digerido” todos os problemas de sua vida. Naquele momento, entendeu

que, quando ele contasse para alguém uma parte da sua historia, só poderia

“digeri-la” se confiasse totalmente naquele que o ouvia. E ela se sentia

muito honrada de estar ali ouvindo-o.

Depois, à medida que os dias e semanas foram passando, Ted narrou a

Cris outros detalhes de sua infância. Contou-lhe aspectos de sua vida que

nunca falara a ninguém. Nenhuma das revelações posteriores foi tão

chocante como as que ele fizera nas duas primeiras ocasiões em que

conversaram. Contudo todas elas contribuíram para que os dois se

sentissem mais chegados um ao outro.

Todas as segundas, quartas e sextas-feiras, eles se encontravam para

tomar juntos o café da manhã. Depois Ted a acompanhava até a porta da

sala de aula. Ali, ele repetia a oração-bênção na língua havaiana. Ao final

da segunda semana, Cris já a havia decorado. A jovem sentia que o Pai

celeste estava mesmo tomando conta dos dois. A vida deles agora chegara

a um ponto em que lembrava uma estrada reta. E era assim que deveria ser

- sem surpresas.

Cris procurava acordar cedo todos os dias, para poder ler a Bíblia e ter

comunhão com Deus. Na maioria das vezes, conseguia, mas não em todas.

Também se esforçava para chegar à aula na hora, trabalhar todas as horas

que havia combinado e manter os trabalhos escolares sempre em dia.

Essas práticas simples e rotineiras eram muito proveitosas para ela.

Sentia-se plenamente ajustada, o que acabou se tornando muito importante

para a jovem. Percebeu que isso era até mais valioso do que pensara no

início.

E; no final, Katie foi a grande estrela do jogo de beisebol do domingo

à tarde, que aliás teve uma boa platéia. O time dela terminou ganhando do

time de Selena por 9 a 5, graças a ela e ao Mark. Os gritos e aplausos da

torcida eram ouvidos a uma grande distância.

Parecia que ela e o rapaz estavam cada vez mais amigos, mas a jovem

ainda se recusava a falar do que sentia em relação a ele. Sempre que Cris

lhe perguntava algo, replicava:

- Não há pressa nenhuma. Será que a gente não pode ser amigo

durante algum tempo sem que os outros logo comecem a perguntar se

estamos namorando? Ah! Dá um tempo!

Cris achou que aquela nova atitude de Katie, mais auto-confiante e

bem menos tensa, combinava bem com sua colega de quarto. Por diversas

vezes, viu a amiga andando pelo campus na companhia de outros rapazes,

parecendo bem satisfeita da vida.

Ted estava cheio de idéias novas com relação ao grupo de jovens. No

terceiro domingo que ele trabalhou em Riverview Heights, Katie também

foi, junto com Cris e Mark. E havia mais cinco jovens, além dos que

tinham ido lá na primeira vez. E como ainda eram poucos, Ted resolveu

fazer o estudo com todos eles juntos, em vez de dividi-los em classes. Com

isso, Cris também se sentiu mais aliviada, pois teria mais tempo para

resolver se pegaria ou não uma classe de meninas. Aliás, até se repreendeu

interiormente por ter ficado tão estressada na primeira vez que Ted lhe

falara sobre isso.

No fim, tudo se ajusta direitinho. Por que estou sempre me

esquecendo disso?

Ao final da terceira semana de aulas, Ted e Cris foram juntos, de mãos

dadas, para o ginásio de esportes, que ficava do outro lado do campus. Ali,

todas as sextas-feiras, havia o culto dos alunos. Iam conversando sobre

uma excursão que fariam com os jovens da igreja. Estavam planejando ir

acampar no deserto no próximo final de semana.

- De hoje a uma semana? indagou Cris. Tem certeza de que dá pra

acertar tudo em tão pouco tempo?

- Claro, replicou Ted. Afinal, o que há pra acertar?

- Tudo. Você já tem as barracas, por exemplo? Quem vai cozinhar? E

a permissão do juiz pra eles viajarem? Eles não têm de levar o histórico

médico deles?

- Já estou arrumando tudo isso.

Entraram no ginásio de esportes e foram se sentar perto de Selena e

alguns amigos dela, como haviam feito nas duas sextas-feiras anteriores.

Katie já estava ali.

Cris sentou-se, recordando-se da viagem que fizera nas férias do ano

anterior, na Itália, com Ted, Katie e Antonio, um amigo deles. Não tinham

planejado nada antes do passeio. Embora não tivessem tido nenhum

contratempo sério, ela não poderia dizer que fora uma experiência muito

agradável.

- Ted, esse passeio não vai ser como o que fizemos na Itália, vai?

- Foi uma viagem fabulosa, interveio Katie, entrando na conversa. De

que é que estão falando? Do passeio com o grupo da igreja? Já resolveram

a data?

- No próximo final de semana, informou Cris. Você tem razão. O

passeio lá na Itália foi fabuloso. Mas o que quero dizer é que teria sido

ainda mais fabuloso se tivéssemos planejado antes e levado alguns objetos

que não levamos.

- O quê, por exemplo? quis saber Ted.

Cris fitou-o com uma expressão de irritação.

- Sei lá, replicou ela, num tom de desafio, talvez alimentos e sacos de

dormir.

Katie riu.

- É... realmente, passamos muito frio, não foi? Lembra aquele dia que

choveu e a barraca estava cheia de goteira e fomos dormir no carro?

- Mas as duas bem que gostaram de comer peixe fresco, não

gostaram? indagou Ted.

Em resposta, as duas lhe dirigiram olhares ferinos.

- ‘Tá bom, ‘tá bom, disse ele, erguendo as mãos como que se

rendendo. Ah, e por acaso, alguma de vocês estaria interessada em me

ajudar com os outros detalhes do passeio?

- O que é que você já planejou até aqui? perguntou Cris.

- Bom, respondeu ele com um sorriso maroto, já marquei a data - no

próximo final de semana. Já é um começo, não?

Outros estudantes começaram a se aproximar deles. Cris compreendeu

que teriam de continuar essa conversa mais tarde. Entretanto prosseguiu

pensando no assunto. Pôs-se a imaginar que tipo de comida seria mais fácil

preparar num acampamento no deserto. No passeio que haviam feito na

Itália, só tinham para comer os peixes que pescavam. Agora queria ter

certeza de que não ficassem na dependência do que encontrassem no

deserto. Ensopado de lagartixa não era precisamente um prato interessante.

Selena veio para junto deles e se sentou atrás de Cris. Inclinou-se para

diante e disse:

- Sabe que o Ronny vai tocar no culto agora de manhã? Ele formou

uma banda aqui com alguns colegas do dormitório. Não é maravilhoso?

A garota estendeu o braço e puxou de leve as pontas do cabelo longo e

liso de Cris.

- Como é que você consegue ficar com o cabelo tão sedoso? Ele é tão

lindo! Vamos trocar?

Cris riu.

- A hora que você quiser, replicou. Eu amo seu cabelo, Selena. Sabe

que o meu nunca fica anelado? Quanto mais cresce, mais liso fica.

- O que você passa nele? indagou a outra. Quero dizer, que xampu?

- O que estiver em promoção.

Selena acenou afirmativamente.

- É... sei exatamente o que ‘tá querendo dizer, comentou. Pode crer,

amiga, ando tão sem dinheiro... Queria não precisar trabalhar neste

primeiro semestre, mas acho que vou ter de procurar um serviço. Sabe se

ainda tem alguma vaga na livraria?

- Acho que não, mas vou perguntar.

- Obrigada, disse Selena.

Depois, inclinando-se mais para Cris e abaixando a voz, continuou:

- Ah, eu queria lhe dizer uma coisa. Fiquei muito alegre de que você e

Katie acertaram tudo. Naquele dia que ela foi para o meu quarto muito

aborrecida, comecei até a ficar preocupada. Ela não me disse qual tinha

sido o problema, mas saquei que tinha acontecido algo entre vocês duas.

Eu costumava me chatear muito com minha irmã, quando a gente estava

junta.

Cris ficou bastante admirada. Então Katie não comentara com

ninguém a respeito da discussão que tinham tido. Isso era um ponto a seu

favor. Cris sentiu ainda mais admiração pela colega.

- Você e a Katie são exemplos pra mim, continuou Selena. Aliás, acho

que você já sabe disso, né? Vocês são o que considero grandes “MDD”.

- “MDD”? Quis saber Cris.

- É... “mulheres de Deus”, explicou Selena. “MDD”. Vocês se

interessam de fato pelos outros. Não sei se já lhes agradeci por terem sido

tão legais comigo, naquela ocasião em que nos conhecemos, na Inglaterra.

As duas me trataram de igual para igual, embora eu fosse mais nova.

Vocês me acolheram bem, de forma que me senti encaixada no grupo.

Nunca vou me esquecer disso.

Cris sorriu para a garota, que também lhe retribuiu o sorriso. Selena

tinha uma expressão tão simples e límpida no olhar!

Nesse momento, Ronny e sua banda foram para a frente e ele pediu

aos estudantes que se levantassem, para iniciar a reunião. Cantaram três

cânticos seguidos, a voz de todos os alunos permeando o ambiente. Cris

estava gostando demais do louvor. Fechou os olhos e deixou que aquele

som entrasse por seus ouvidos e chegasse até seu coração. Estava amando

escutar a voz grave e forte de Ted misturar-se com a dela, que entoava

louvores a Deus.

Terminada a terceira música, com o silêncio, Cris até se assustou e

abriu os olhos para se sentar. Queria continuar cantando.

- Isso dá vontade na gente de ir logo para o céu, não dá? cochichou

Ted. Dá pra imaginar como vai ser lá, quando estivermos cantando junto

com multidões e multidões nos átrios celestiais.

Cris pegou a mão dele e sussurrou:

- É mesmo!

Deu uma olhada para o lado e viu que Mark estava acabando de

chegar. Foi sentar-se numa cadeira vaga que havia bem junto a Katie. Ele

também olhou para ela, sorriu e fez-lhe um aceno. A jovem retribuiu o

sorriso.

Virando-se para fitar o perfil de Katie, notou que a amiga tinha uma

expressão mais complexa que a de Selena. Era franca e cheia de energia

como a da outra garota, mas Katie possuía uma beleza mais esportiva, por

assim dizer. Era bem forte, com um carvalho, mas arredondada e bem

definida onde necessário. Seu cabelo, com o novo corte, emoldurava seu

rosto como se fossem as pétalas de uma rosa, ligeiramente aneladas.

Katie é adulta, pensou.

Cris se surpreendeu com esse pensamento. Era verdade! Sua colega,

antes com um jeitinho meio de garoto, havia desabrochado. Será que o

Mark notara isso?

Katie é uma “MD”. Não mais criança; é uma “mulher de Deus”!

Voltando toda a sua atenção para o pregador que agora se achava ao

microfone, Cris ficou a pensar no quanto gostava de estar ali, na

Universidade Rancho Corona. Amava estar sentada ao lado de Ted,

cantando junto com ele, cercada pelos amigos de ambos. Pensou que o

acampamento que iriam fazer poderia ser bem aconchegante e muito legal

também.

Naquela noite, quando se encontrou com o namorado na cantina, ele

lhe deu uma lista do que já planejara para a viagem. Nela estavam escritas

apenas duas palavras:

1.Carros

2. Barracas.

- Já arranjou essas coisas ou é isso que pretende arranjar? indagou.

- Que pretendo arranjar, replicou o rapaz.

Ele estava com um prato de salada de alface e colocou duas

colheradas de ervilhas sobre elas. Em seguida, apertou o centro da alface

com a concha do molho de salada e derramou-o nela. Por fim, espetou um

pedaço de aipo bem no meio de tudo.

- Você arruma o prato de salada da forma mais estranha que já vi,

comentou Cris, que preparava o seu costumeiro arranjo de alface, brócolis

e cenoura, regados com molho e passas.

- “A beleza está no olho de quem vê”, replicou o rapaz.

- Como aquele arranjo que você fez ontem no almoço? indagou ela,

em tom de gozação. Nunca vi ninguém botar uma camada de picles em

cima do feijão e depois jogar ervilha por cima de tudo.

- Estava uma delícia! comentou Ted. Eu amo ervilha!

- É... já notei!

Os dois se encaminharam para uma mesa onde se achavam alguns de

seus amigos.

- Quer dizer, então, que temos de pôr ervilha na lista de preparativos

para o acampamento do final de semana? perguntou Cris.

- Ótima idéia! Vamos comprar uma daquelas latas grandes, de dez

quilos. Escreva isso na lista. Ervilhas e o que mais?

Cris abaixou o queixo e deu uma olhada significativa para ele, com as

sobrancelhas franzidas.

- Você ‘tá me pedindo pra preparar o menu e a lista do que vamos

comprar?

- Ei, eu vou ajudá-la! retorquiu ele. Já temos um item da lista,

ervilhas. E ervilha combina com tudo. Que mais você acha que devemos

pôr nela?

Se o Ted não fosse uma pessoa tão adorável, Cris teria dado um tapa

nele.

10

No momento em que Cris e Ted terminaram de comer a salada e a

pizza que pediram depois, naquela sexta-feira, já tinham organizado todo o

menu. Selena, que se aproximara deles, ajudou-os a calcular a quantidade

de alimento que deveriam levar, pois era de família grande. Em sua casa,

eram seis filhos. Ted achava que o grupo seria formado por doze pessoas,

entre adolescentes e líderes.

Já a lista de equipamentos deu um pouco mais de trabalho. Cris

começou a desejar que o Mark estivesse ali, pois estava acostumado a

acampar com seus familiares. Certamente ele os ajudaria a se lembrar de

tudo que precisariam. Entretanto ele não fora jantar na cantina. Katie

também, não. Contudo, se os dois tivessem programado algo, sua colega

lhe teria dito. Por outro lado, era possível que a idéia de irem jantar fora

tivesse sido meio de última hora. Isso acontecia com Katie muitas vezes.

Após o jantar, eles resolveram ir à cidade para ver o preço dos objetos

necessários para um acampamento, em uma loja de artigos esportivos.

- Poderíamos comprar algumas das coisas que precisamos, como um

fogareiro, disse Ted, quando já estavam a caminho da loja. Assim já

ficaríamos com ele pra nós.

- Pra nós? indagou Cris.

- É, pra nos, pra mim e pra você. Aí sempre que fôssemos acampar já

teríamos um fogareiro.

- No momento, não tenho muito dinheiro, comentou ela.

E se o dinheiro dele estiver tão curto como o meu, pra que vamos

comprar equipamento de camping? pensou ela.

E uma imagem passou por sua mente, como um relâmpago – ela e Ted

morando num casebre, feito de folhas de palmeira, na beira de uma praia

qualquer. Os seus diplomas de faculdade, que eles poriam em quadros,

seriam o capacho da entrada. Ela estaria preparando o café da manhã -

ovos mexidos - no único objeto que possuíam: um fogareiro novinho em

folha. E ficaria tocando as gaivotas que esvoaçavam por perto.

- Tenho algumas economias, explicou Ted. Podemos comprar com

esse dinheiro.

Isso foi uma surpresa para Cris.

- Ué, já recebeu pagamento da igreja?

- Não, replicou ele, mas fiz uma poupança e alguns investimentos.

Várias perguntas giravam pela mente da jovem. Contudo esperou até

terminarem de rodar pela loja para formulá-las. Saindo dali, foram a uma

sorveteria, que ficava próxima a um cinema, onde se sentaram a uma

mesinha do lado de fora, no pátio cimentado. À tarde, fizera bastante calor,

mas a noite estava bem fresca. E então Cris pegara um agasalho de

moletom azul-marinho do namorado, que estava no carro, e o vestira. O

blusão tinha capuz e era bem confortável. Pensou que, se podia usar uma

peça de roupa que era dele e ajudá-lo a comprar um fogareiro, tinha o

direito de lhe fazer perguntas sobre sua poupança e investimentos.

Ted tomou um pouco de seu sorvete de coco com abacaxi.

- Não entendo como você pode mastigar sorvete, comentou Cris.

Ela escolhera um sorvete sabor caramelo com chocolate e estava

tomando-o lentamente, com uma pazinha.

- Se eu fizesse isso, continuou, teria dor de cabeça e de dentes ao

mesmo tempo.

- Você ainda parece fascinada pelo meu jeito de comer, não? disse o

rapaz. Primeiro foi com a salada. Agora é com o sorvete.

Seu tom não era de quem estava aborrecido. Pelo contrário, dava a

impressão de estar até meio orgulhoso pelo fato de ela observar esses

aspectos da vida dele.

- Não, mas já que estamos conversando sobre esses detalhes

específicos que não conheço bem, quero mencionar outro fato. Você disse

que tem uma poupança e ‘tá fazendo investimentos.

- É; tenho procurado deixar um saldo menor em minha conta corrente,

e pôr tudo na poupança.

Cris não tinha muita certeza se entendera exatamente o que ele quisera

dizer. Alguns dias antes, estivera pensando sobre aquela sua dificuldade

para falar de um compromisso sério com o namorado. Achava que, se ele

entendesse que ela estava preparada para dar o passo seguinte em seu

relacionamento, iria querer conversar especificamente sobre o futuro dos

dois. E caso eles resolvessem se casar assim que se formassem, onde

arranjariam o dinheiro?

Se o Ted estivesse fazendo planos para o futuro da mesma forma que

se preparava para o acampamento, eles estariam “perdidos”. Naquela hora,

compreendeu por que ela, intuitivamente, evitara dar o passo de assumir

um compromisso. Se aceitasse plenamente a idéia de se casarem e logo

depois percebesse que teriam de esperar mais cinco anos para o Ted ter os

meios necessários para isso, e até para comprar o anel de noivado, ficaria

muito frustrada.

- Como é que você, depois de pagar a escola e tudo o mais, ainda tem

dinheiro pra pôr numa poupança? indagou ela, falando cautelosamente.

- Meu pai ‘tá pagando a faculdade pra mim.

Cris abaixou a mão com que segurava a pazinha.

- Não sabia disso, comentou. Então, por que no ano passado você

trabalhou feito um louco em dois empregos?

- Estou me preparando para o futuro.

- ‘Tá? perguntou Cris, sentindo suas esperanças se renovarem.

- Claro.

A jovem pôs um pouco de sorvete na língua e deixou-o derreter ali.

Começou a pensar se essa não seria uma área em que o namorado iria

surpreendê-la, por estar cuidando de todos os detalhes. Ela já havia ficado

espantada com ele algumas vezes ao constatar que ele possuía uma clara

percepção das realidades da vida.

- O que você acha? indagou ele. Vamos lá comprar o fogareiro?

- Creio que sim, replicou ela. Mas precisamos ver se lá na igreja eles

não têm algumas coisas que podemos pegar emprestado.

- Já verifiquei, disse Ted. Não têm fogareiro. Podemos pegar na

cozinha todas as panelas, pratos e talheres. E depois temos de lavar tudo e

devolver em perfeitas condições. Mas eles não têm fogareiro.

Nesse momento, Cris notou uma porção de gente caminhando em

direção à sorveteria. Evidentemente o filme havia terminado. Achou que

certamente alguns alunos da escola estariam entre os que saíram do

cinema, e tinha razão. Pouco depois, viu Katie e Mark aproximando-se.

- Oi! disse Ted, cumprimentando-os. Tudo bom com vocês?

- Foi o pior filme que já vi, disse Katie, num rompante.

Mark deu uma risadinha.

- O que foi que assistiram? quis saber Cris.

- Era algo sobre beisebol, informou Mark.

- ‘Tá vendo? Nem lembramos o nome dele, comentou Katie. Foi o

Wesley que sugeriu, hoje à tarde, que viéssemos vê-lo. Ele mesmo acabou

não vindo. Na hora, achamos que talvez fosse uma boa idéia, mas o filme é

péssimo.

- Nós vamos ali comprar um fogareiro, disse Ted. Querem ir junto?

Cris teve vontade de rir, mas controlou-se. Seu namorado estava bem

empolgado com a “grande” compra que iriam fazer. Seria o primeiro

objeto que adquiririam “em parceria”. Isto é, seria o primeiro, se não

levasse em conta uma estante de livros que ela comprara uns anos antes,

num “bazar de quintal”. Lembrava-se de que, na ocasião, Ted ficara dando

voltas com a Kombinada no quarteirão, pois não havia lugar para

estacionar.

- Vocês vão ao “Galpão da Economia”? indagou Mark.

- “Galpão da Economia”? perguntou Ted. Onde é isso?

- É um atacadão que tem tudo que é tipo de artigo de liquidação,

informou o outro. Lá tem desde móveis de varanda até as coisas mais

supérfluas que existem. Se houver fogareiro lá, você poderá achar um num

bom preço.

Ted logo se animou.

- Vamos lá! disse.

- Acho que a está hora já fechou. Podemos ir lá amanhã.

- Ótimo! concordou Ted. Será que a gente vai achar lá mais alguns

objetos da nossa lista para o acampamento?

Em seguida, ele contou a Katie e Mark sobre os planos que estavam

fazendo para o passeio.

- Olha, disse Mark, se precisar de mais gente, posso ir.

- Pode contar comigo também, interpôs Katie. O meu “Buginho” gosta

muito de um deserto. Você vai falar sobre isso com o grupo no domingo de

manhã, né?

Ted fez que sim.

- Está meio em cima, comentou Katie. Quantos você acham que vão?

- Ainda não sei ao certo.

- Nos cálculos que fizemos, interveio Cris, vamos levar comida pra

doze pessoas.

- É melhor aumentar pra quatorze, disse Ted. Creio que não pusemos

Katie e Mark na lista.

- Que lista? indagou Cris.

- A lista que vamos fazer com o nome de todos os que vão ao passeio.

Cris olhou para a amiga com uma expressão de quem diz: “Ah, não!”

e falou:

- Até o momento, os únicos nomes nessa tal lista são os de nós quatro.

- Tudo bem, replicou Ted. Se planejarmos tudo, eles irão.

Katie soltou uma gargalhada.

- Ted, disse, vou ser boazinha e não fazer nenhum comentário sobre o

que você falou, mas bem que poderia...

- Que foi que eu disse? perguntou o rapaz, virando-se para Cris.

A jovem deu um sorriso, olhando para o seu namorado “tranquilão”, e

perguntou:

- A que horas vamos ao “Galpão da Economia” amanhã?

No dia seguinte, por volta de 8:30h, o quarteto de amigos estava a

caminho do “Galpão” na kombi do Ted. Cris fizera uma trança no seu

longo cabelo, e amarrara uma bandana azul, que trouxera da Suíça.

Sentindo-se no papel de secretária da expedição, estava levando um

caderno para fazer anotações.

Com dez minutos dentro da loja, já encontraram um fogareiro de

acampamento, em perfeito estado e ainda na caixa, pela metade do preço

do que tinham visto na noite anterior. Cris riscou-o da lista e foram ver

outros itens necessários como lonas, cordas e cadeiras dobráveis.

Encontraram tudo de que precisavam e num preço bem melhor do que das

outras lojas. Assim que compraram a última peca da lista, a jovem pensou

que Ted iria querer ir embora. Contudo o rapaz continuou interessado em

comprar. Dava a impressão de estar numa verdadeira “caça ao tesouro”.

Vasculhava as caixas de artigos em liquidação e as estantes de mercadorias

avulsas ou com defeito. Parecia encontrar alguma utilidade para tudo o que

via. Não comprou nada, mas dava a impressão de estar tendo a maior

satisfação só de imaginar o que faria com aqueles objetos, se algum dia os

comprasse.

Cris se separou dele e foi procurar um pequeno tapete para seu quarto.

Achou dois e foi mostrá-los a Katie.

- Quer levar um destes? perguntou à amiga.

- Não, disse a outra, já gastei demais com este negócio aqui.

E assim dizendo, mostrou a Cris três jogos de fronhas, ainda na

embalagem.

- Sabe que isso deve ser muito velho? indagou esta.

- Sei, explicou Katie. Mas não são engraçadinhas? São peças de

colecionador. Olhe. Ursinho Pooh, Minnie do Mickey e a Pequena Sereia,

o que eu mais gosto.

- Mas essa aí não parece nada com a estátua que vimos em

Copenhague, comentou Cris rindo.

- É quase do mesmo tamanho, replicou a jovem. Agora, sempre que eu

quiser, posso dormir e ter maravilhosos sonhos com Lille Havfrue.

- É, mas tem de lavar antes, informou a outra.

- Sim, Senhorita Limpeza. Vou comprar isso aqui também, continuou

Katie, mostrando um aquário de peixinho dourado, que o Mark estava

segurando para ela. Custa só 25 centavos.

- Pra que você quer isso? indagou Cris.

- Ué, pra pôr um peixe, claro. Precisamos de um bichinho no quarto.

Cris já ia protestar, mas viu Ted caminhando pelo setor do

encanamento.

- Ó gente, acho que vocês podem ir pra fila, disse ela. Vou ver se

busco o Ted pra irmos embora.

Felizmente, foram poucas as torneiras e vedações que empolgaram o

rapaz, então sua passagem pelo setor foi rápida.

- Você ‘tá curtindo muito tudo isto aqui, não? indagou-lhe Cris,

quando os dois já se achavam na fila.

- Desde que eu era menino que não tinha momentos tão agradáveis,

explicou ele. Quando a gente morava em Maui, havia ali um “brechó” do

Exército de Salvação, que ficava entre minha casa e a escola, a Kam III.

Quase todos os dias, quando eu e o Kimo voltávamos da aula, nós

passávamos lá e ficávamos olhando os objetos à venda. Era o melhor

divertimento que existia para um menino. Nós ficávamos lendo as revistas

de história em quadrinhos e brincávamos com os bonecos dos filmes de

ação. Havia uma caixa grande cheia deles. Uns caras que trabalhavam lá

me ensinaram a consertar os sons e as televisões que chegavam ali. Foi lá

que comprei meu primeiro violão.

Cris apreciava imensamente o modo como o namorado vinha se

abrindo e soltando suas recordações da infância, principalmente as de

Maui.

A moça do caixa informou-lhes o valor da compra. Cris pegou uma

nota dobrada, que estava em seu bolso, e entregou-a a Ted.

- Pra que isso? indagou ele.

- É minha parte no fogareiro.

O rapaz pegou o dinheiro e deu-lhe um abraço apertado.

- É, disse ele, se estamos comprando algo em conjunto, devemos estar

namorando sério.

Durante o resto da semana, Cris sentiu muita satisfação no

planejamento e preparação para o acampamento. O único ponto negativo

foi que, na quinta-feira, quando iriam comprar os alimentos para o passeio,

ela teve de trabalhar.

A certa altura, Katie entrou na livraria, com uma das mãos atrás das

costas e caminhou rapidamente até o caixa, onde Cris estava fazendo a

soma das vendas da tarde. Chegando perto, a colega levantou o braço: era

um saco de plástico transparente, com água e um peixinho dourado que

nadava nervosamente de um lado para o outro.

- Quero lhe apresentar o Chester, disse ela.

- Ué! E o Rudy? indagou Cris.

Quando voltavam do “Galpão”, no sábado anterior, Katie havia

comprado um peixinho. Ela lhe dera o nome de “Rudy” e o instalara em

seu aquário de vinte e cinco centavos, novinho em folha. Todos os dias ela

conversava com ele e lhe dava comida. Acabou dando comida demais.

- Hoje cedo ele foi para o céu dos peixes, explicou Katie. Agora é o

Chester que quer morar conosco.

- Então é melhor você levá-lo logo para aquele aquário, interpôs Cris.

Parece que ele ‘tá se afogando nesse saco plástico.

- Afogando!!! exclamou a outra rindo. Muito engraçado!

- ‘Tá bom! Então ‘tá sufocando.

- Já estou indo para o quarto. Só queria saber a que horas vocês vão

comprar a comida para o acampamento. Eu posso levá-la, se quiser.

- O Ted ‘tá com a lista, replicou Cris, e já foi fazer as compras.

- Você deixou que ele fosse comprar tudo sozinho? Indagou Katie.

- É na mercearia, Katie, não no brechó. Acho que ele vai comprar tudo

direitinho sem mim.

Katie fitou-a com uma expressão de dúvida.

- Você acha mesmo?

- Acho.

- É... fez a outra, virando-se para sair, o amor “embaça” mesmo o

raciocínio das pessoas. Então já vou embora com o Chester. Mas acho bom

você dar uma conferida na capacidade de seu namorado pra fazer compras,

antes que seja tarde demais.

Não demorou muito para Cris ver algo que justificava plenamente a

advertência de Katie. Na sexta-feira à noite, a turma toda foi para a área de

camping do deserto “Joshua Tree”, na Califórnia. Quando todos

desembarcaram, ela constatou que o grupo era constituído de quinze

pessoas. O equipamento eram seis barracas, um fogareiro novinho em

folha, caixas e caixas de comida e outros objetos diversos, que Cris não

tinha tido oportunidade de identificar. Foi então que descobriu que Ted

havia alterado a lista que ela preparara.

Fazia frio e logo eles foram montar as barracas, à luz de um lampião,

com o vento batendo fortemente nelas. Cris pediu a uma das adolescentes

que a ajudasse a organizar a comida que tinham trazido. Foi aí que se deu

conta de que ele trouxera várias caixas de pão de forma e latas grandes de

manteiga de amendoim. A quantidade era suficiente para um exército

comer durante uma semana. Na viagem, eles já haviam jantado numa

lanchonete, então não precisariam jantar. Contudo ela havia planejado

fazerem uma fogueira naquela primeira noite e assarem marshmallows ao

fogo.

Deu uma rápida busca nas caixas, à luz da lanterna de mão, e depois

foi procurar Ted. O rapaz estava conversando com dois dos adolescentes,

recomendando-lhes que não fossem à barraca das meninas. Mark havia

acendido uma fogueira, e a maioria dos jovens estava se reunindo em volta

dela. Assim que Ted acabou de conversar e dispensou os dois garotos, deu

toda a sua atenção a Cris. Esta procurou falar da maneira mais calma

possível.

- Ted, não encontrei o marshmallow, nem os tabletes de chocolate,

nem os biscoitos cream cracker. Você tem idéia de onde eles estão?

- Ah, esqueci de lhe dizer. Tive de fazer uns ajustes na sua lista,

porque o dinheiro estava meio curto. Cortei esses três itens porque estavam

caros demais. Mas comprei umas salsichas de peru que estavam com preço

excelente. Achei que, se era para assar ao fogo, poderíamos assar as

salsichas mesmo.

Cris fitou-o com um olhar fixo.

- Você ‘tá brincando comigo, não ‘tá?

- Não, replicou o rapaz. As salsichas estão na caixa térmica. E acho

até que a salsicha vai ser melhor pra eles do que o doce do marshmallow.

- Ted, eu vi as salsichas. Ainda estão congeladas.

- E daí? Só vai demorar um pouco mais pra ficar pronto.

- E como é que eles vão assar salsicha congelada?

- Ué, tem muito graveto por aí, não tem?

- Ted, estamos num deserto, esqueceu? Foi por isso que pedi os

cabides de arame, para servir de espeto.

- Ah! fez Ted com expressão de quem acabou de entender algo. Então

foi por isso que pediu os cabides. Não consegui entender pra que você

queria cabides. Pensei que era pra pendurar os panos de cozinha ou algo

assim. Comprei seis cabides de plástico. Estão numa sacola de compras por

aí.

Cris teve vontade de chorar. Só não o fez porque a situação era

cômica. Então riu.

- O que foi? quis saber o rapaz.

- Katie tinha razão. Não devia ter deixado que você fosse fazer as

compras sozinho.

- Acho que esses caras nem estão com fome. Podemos desistir dessa

merenda e ir logo para o culto em volta da fogueira. Aliás, o verdadeiro

objetivo desse passeio é exatamente esse, concluiu ele, dando um rápido

beijo na testa de Cris e saindo em direção à fogueira.

Por causa do forte vento do deserto, as labaredas estavam “dançando”

perigosamente de um lado para o outro. Todos os presentes ficaram pelo

menos a um metro e meio de distância delas.

- Cuidado com as fagulhas, pessoal! disse Mark, fazendo um gesto

para que os jovens se afastassem ainda mais. Gente, ‘tá ventando demais e

não vai dar pra manter a fogueira. Vamos ter de apagá-la.

Contudo até extinguir as chamas estava sendo difícil. A água que

tinham era só a dos garrafões, que ainda estavam fechados, dentro da caixa.

Usaram três deles para tentar apagar o fogo, mas não foram suficientes.

Afinal, Mark pegou uma pá e se pôs a jogar terra nele. Só assim conseguiu

dominar as chamas.

Sem a fogueira, viram que a noite estava bem escura. Só dispunham

dos lampiões, que se achavam nas barracas.

- Olhe as estrelas, gente! disse uma garota.

Cris estava tremendo, o rosto voltado para o céu, num silêncio

reverente, contemplando os milhares e milhares de “diamantes” espalhados

no espaço.

- Ah! exclamou outro jovem. Olhe lá uma estrela cadente!

E aí todos se puseram a falar do que estavam vendo no céu.

- Aquilo ali é o cinturão de Orion? indagou um.

- Alguém já avistou a Ursa Maior? perguntou outro.

- Que estrela é aquela brilhante que ‘tá piscando ali? quis saber um

terceiro.

- Ei! É um avião!

- Não! Não é avião, não! É um satélite!

- Cadê a Lua?

Ted citou diversos versículos do Salmo 8; que Cris já conhecia.

“Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, lua e as estrelas que

estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres, e o filho do homem,

que o visites? Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e

de glória e de honra o coroaste.”

Cris estava tão entretida olhando para o alto que nem percebeu que

Mark se aproximara dela e se achava a seu lado.

- O que foi que você me disse naquela ocasião, lá em Wisconsin,

quando estávamos assistindo ao show de fogos de artifício? indagou ele.

Foi algo sobre aquele que está nos céus da Antiguidade. Tinha um amigo

seu compondo uma música sobre isso, não tinha?

- Estou admirada de você se lembrar disso, comentou a jovem.

- Afinal, ele acabou de compor o cântico?

- Acabou. A letra é do Salmo 68, explicou Cris, e logo se pôs a cantar

baixinho o hino que Douglas escrevera.

“Cantai a Deus,

Salmodiai ao Senhor,

Aquele que encima os céus,

Os céus da Antiguidade.

Ele faz ouvir a sua voz poderosa.

Ó Deus, tú és tremendo nos teus santuários.”

Katie se pôs a cantar junto com ela e em seguida Ted fez o mesmo.

Quando eles terminaram, uma garota disse:

- Cantem de novo.

Eles cantaram e dessa vez vários dos jovens os acompanharam. Era

um momento maravilhoso e muito inspirativo. De repente, Cris percebeu

que alguns garotos estavam saindo despistadamente. Ela deu um tapinha de

leve no ombro do Mark e apontou para os jovens. O rapaz foi atrás deles.

E a noite acabou sendo bem tumultuada. Primeiro, algumas meninas

disseram que estavam sentindo muito frio. Isso encerrou o “louvor”. As

garotas saíram correndo para a barraca. Depois algumas delas tentaram

fazer trapalhadas na barraca dos garotos. Todavia o Mark as pegou no ato e

o Ted veio e, em tom bem firme (isto é, firme para ele), lhes deu instruções

de como deveriam se portar. E acabou que ele não fora tão firme assim,

pois dois dos garotos tentaram escapar de novo, minutos depois, quando

todos já deveriam estar fechados dentro do saco de dormir.

Ted estava ajudando Cris cobrir as caixas de alimento com lonas, para

não se encherem de areia e protegê-las dos insetos típicos do deserto. Foi aí

que avistou os dois jovens tentando sair da barraca. Imediatamente ele

jogou o foco de sua lanterna de mão neles e os garotos voltaram para

dentro.

Cris teve muita dificuldade para pegar no sono. Não que estivesse com

frio, não. Vestira várias peças de roupa para se aquecer. Além disso,

trouxera um colchonete inflável e pusera o seu saco de dormir sobre ele.

Contudo ficou atenta, para ver se escutava alguém abrindo o fecho de zíper

da barraca e pensando se o Ted teria de ficar a noite toda de guarda.

O Sol, ao nascer, tirou todo mundo da cama, pois as barracas logo

ficaram muito quentes. Cris, que não conhecia bem o deserto, ficou

admirada ao perceber como se avistava até bem longe, quando se estendia

o olhar pela superfície dele. E virando-se em várias direções, não se via

nada. Vez por outra, encontrava apenas um cactus, parecendo congelado no

tempo. Lembrava um caixa de banco do velho Oeste, levantando os braços

como se estivesse sendo assaltado.

O dia esquentou rapidamente e a jovem sentiu a pele ressequida e

como que “esticada”. Agora de manhã, não estava ventando, e ela logo

sentiu calor. Foi tirando os agasalhos e terminou de camiseta e short.

- Estou admirada com você, disse Katie no momento em que

guardavam o alimento, após terem tornado o café da manhã.

- Admirada do quê? perguntou Cris.

- De como você ‘tá feliz e do quanto é organizada, explicou a outra.

Isto aqui ‘tá muito melhor do que o acampamento que fizemos nas férias

passadas.

- Ah, você falou a palavra certa, interpôs Ted, pegando seu violão na

camionete de Mark. Organizada. Cris gosta de se preparar bem pra tudo.

- É, disse Katie, e você precisa aprender com ela. Cadê a coberta que

prometeu?

- O Mark ‘tá fazendo uma de lona, atrás da barraca maior, explicou o

rapaz. Vamos nos reunir lá pra cantar e fazer o devocional matutino.

Depois daremos um passeio de bugue, nas dunas.

Cris terminou a arrumação que estava fazendo e foi para perto dos

outros. A parte de que ela mais gostava num acampamento era justamente

os cânticos em grupo. Contudo o período de louvor acabou sendo muito

curto. É que estava muito quente, e eram poucos os jovens que cantavam.

Ted foi para a frente, abriu a Bíblia e se pôs a dar uma palavra. Cris

deu uma olhada a sua volta. Notou que poucos dos jovens prestavam

atenção, na maioria meninas.

Essa meninada nem se dá conta de que o Ted é um presente de Deus

pra eles. Ele realmente gosta muito desses garotos. Se quiserem, ele vai

ser amigo deles pelo resto da vida. E isso que ele ‘tá dizendo aí é uma

grande verdade. Eles precisam confiar em Deus com relação a todos os

aspectos de sua vida. Por que não estão “bebendo” as palavras dele?

Para alguns, isso pode ser uma questão de vida ou morte!

Resolveu orar. Ultimamente vinha orando bastante. Desde aquele

domingo em que a Kombinada havia estragado quando já iam para a igreja,

ela entendera que estavam numa batalha contra inimigos invisíveis.

Travavam uma guerra para conquistar a alma daqueles jovens. Em dado

momento, sentiu o Sol bater forte em seu ombro direito. O braço já estava

ardendo. Remexeu-se e virou para outro lado, deixando que o Sol lhe

batesse nas costas. E continuou orando pelo namorado.

- Vou concluir com um pensamento, disse Ted. Nenhum de nós sabe

quando nossa vida terminará e iremos nos apresentar diante do Deus todo-

poderoso. A Bíblia diz que estar ausente no corpo é estar na presença do

Senhor. Não na presença de São Pedro, num portão dourado, nem diante de

um tabelião, sentado a uma mesa, como a gente vê na televisão. Não.

Vamos estar diante do Senhor.

Cris correu os olhos pelos presentes e se pôs a orar por cada um dos

alunos da classe, embora não lembrasse o nome de todos.

- O Senhor Jesus vai estender a mão para nós, e veremos as cicatrizes

dos cravos, que ainda estão nela, apesar de já terem se passado dois mil

anos que ele morreu por nós. E ele vai nos dizer:

“Entre, amigo! Eu já estava esperando-o. Agora que está em minha

casa, poderemos continuar aquele relacionamento que começamos quando

você ainda se encontrava na Terra.”

- Ou então ele dirá:

“Eu o chamei para vir a mim, mas você passou a vida toda me

rejeitando. Agora é tarde demais. Como não me quis, passou a eternidade

longe de mim.”

Cris notou que o grupo ficara muito silencioso. Todos tinham os olhos

fixos em Ted.

- Será que vai ser preciso acontecer algo pra você receber a Cristo?

Não espere muito, não. Ninguém sabe quando vai morrer. E assim que esta

vida acabar, começará a outra. Ou passaremos a eternidade com Jesus no

céu, ou longe dele, isto é, no lugar que Deus preparou para os demônios, os

anjos caídos que o abandonaram.

Aqui Ted fez uma pausa, e depois continuou:

- Para onde você vai? O céu existe mesmo, de verdade. E o inferno,

também.

Os dois garotos que já haviam causado problemas antes deram uma

risadinha curta, de deboche. Todos os outros, porém, ficaram em silêncio.

Ted encerrou a reunião orando. Contudo, ao final da prece, em vez de dizer

“Amém”, falou algo que Cris nunca ouvira antes.

- Como quiseres, Senhor! disse ele.

Os presentes ficaram uns instantes sem saber que ele havia encerrado

a oração.

Assim que os jovens perceberam que o cultinho estava terminado,

correram para os veículos que Ted arranjara para o passeio, e passaram o

resto do dia se “divertindo a valer”, como disse Katie. Cada hora era um

que pegava um dos carros e saía rodando pela planura do deserto.

Cris permaneceu no acampamento. Quando já ia dar meio-dia,

chamou duas garotas que estavam ali para ajudá-la a preparar sanduíches

de manteiga de amendoim com geléia de uva. Assim, quando alguém

quisesse comer, após os passeios pela areia, a comida estaria pronta.

Contudo, como estivesse fazendo muito calor, e o ar, muito seco, em

poucos minutos, o pão foi ficando ressequido, parecendo torradas. A jovem

resolveu ir guardando os sanduíches em sacos plásticos, à medida que os

iam fazendo. Isso contribuiu para amenizar o problema. A sorte era que

Ted comprara tanto pão e tanto creme de amendoim que, se aqueles

sanduíches ficassem imprestáveis e tivessem de jogá-los fora, teriam como

preparar outros. Ninguém iria precisar passar fome.

Por volta de 4:00h da tarde, o vento recomeçou e o calor diminuiu

ligeiramente. Pouco depois, Ted chegou ao acampamento em um dos

veículos e disse que teria de levar um galão de gasolina para Katie. Ela

estava parada com o “Buguinho”, por falta de combustível.

- Quer ir comigo? perguntou à namorada.

- Quero, replicou ela.

Nesse momento, recordou-se de uma ocasião em que ela e Ted tinham

saído com Tia Marta para dar um passeio de barco e a gasolina acabara. A

sorte foi que uma jovem muito bonita, pilotando um jet-ski, passara por

eles e os acudira. Lembrou-se de que teve vontade de estar no jet-ski, e não

ali naquele barco, com a tia, que se mostrava bastante irritada.

Foi então que se pôs a pensar em como estariam seus tios.

Imediatamente procurou afastar o pensamento do problema deles.

Entretanto, pouco depois, a lembrança voltou, dando-lhe uma desagradável

sensação de peso interior. Como não poderia conversar com ninguém sobre

a decisão que Marta tomara, precisava falar com a própria, o mais depressa

possível. Resolveu que iria ligar para ela assim que chegasse de volta à

escola. O que diria para a tia era outra questão. O que faria primeiro seria

levantar o assunto novamente.

Ted amarrou a lata de gasolina com cordas fortes na parte de trás do

bugue de praia, um carro pequeno com apenas dois lugares. Em seguida,

disse a Cris que colocasse o cinto de segurança. Depois, com um solavanco

e um ronco do motor, arrancaram pela areia afora. Cris se segurou

firmemente na barra de ferro que havia à frente e trancou os dentes para

não morder a língua. Parecia que todos os seus ossos estavam sacolejando

de um jeito que nunca havia acontecido antes. Virou-se para Ted e deu um

sorriso, ainda com os dentes trancados. O rapaz mudou a marcha e

continuou em frente, o motor roncando forte. Conversar com ele era

praticamente impossível. O barulho era demais. Compreendê-lo também

seria difícil.

- Que graça que acha nisso? É um pouco divertido, mas é mais é

incômodo.

Chegaram ao lugar onde Katie os aguardava com mais duas garotas.

Assim que Ted chegou perto e desligou o carro, Cris viu que elas estavam

rindo de algo. Katie aproximou-se dela e lhe deu um tapinha de leve no

braço.

- Isso não é legal demais? indagou. Estou amando!

A jovem estava com o rosto vermelho, queimado de Sol, ou do vento,

ou de ambos. Usava uma camiseta de mangas compridas, que estava suja

de terra. Tinha na cabeça um boné de beisebol, cobrindo quase que

totalmente os cabelos. Apenas alguns fios se achavam à mostra.

- Já dirigiu um bugue desses? indagou ela a Cris.

A jovem fez que não.

- Quer dar uma volta no Buguinho?

- Não, obrigada.

- Já ‘tá pronto, disse Ted, amarrando a lata vazia de volta no outro

bugue.

- Ótimo! exclamou Katie. Muito obrigada pela gasolina.

Virou-se para entrar no banco da frente do seu carro, mas antes olhou

para o rapaz e continuou:

- Dê um jeito pra Cris dirigir esse bugue aí.

- Quer pegar o carro? perguntou Ted para a namorada.

- Não, obrigada!

- Tem certeza?

A expressão dele era típica de Ted. Estava parado, as sobrancelhas

ligeiramente arqueadas e uma covinha na face direita. Cris se viu inundada

por lembranças de outros momentos em que ele a fitara daquela maneira.

Em todos eles, ela se dispusera a fazer o que ele estava querendo ensinar-

lhe, desde surfar com um body-board até tentar o esqui aquático. A única

vez em que ele a olhara daquele jeito e ela se recusara fora nas últimas

férias, quando a chamara para ir “aos confins da Terra”, ao Círculo Ártico.

Então ele pegara um trem e fora sozinho, enquanto ela e Katie viajavam

para Copenhague. Depois disso, arrependera-se inúmeras vezes, pois

perdera a chance de ver um urso polar, ao lado de Ted.

- Sabe o que mais? disse de repente. Por que não? Me mostre como se

faz.

Não entendia por que o coração batia com tanta força. Confiava em

Ted o suficiente para correr riscos com ele. E nesse momento sentia-se

preparada para o que desse e viesse.

11

Ted deu uma corridinha curta em direção ao banco do carona e

colocou o cinto de segurança, e Cris se acomodou no assento do motorista.

Ele lhe explicou rapidamente a posição das marchas e lhe mostrou o pedal

da embreagem. Katie já partira no seu Buguinho e à volta deles tudo era

silêncio. Então Cris girou a chave para ligar o barulhento motor do veículo.

Nas três primeiras tentativas, ela deixou que ele “morresse”. Ted

pacientemente lhe ensinou como deveria fazer. Na quarta vez, o carro

arrancou e lá se foram eles, sacolejando em direção ao acampamento.

- Ótimo! gritou Ted. Agora passe a marcha!

Cris mudou a marcha, acelerou e mudou de novo. Apertou mais o

acelerador e experimentou uma eufórica sensação de prazer brotar no

fundo de seu ser. Soltou uma risada de satisfação, como que extravasando

o sentimento que lhe vinha da alma. E eles continuaram sacolejando pelas

lombadas das dunas, cortando o Deserto de Mojave. A última vez que Cris

pegara um volante com Ted ao seu lado fora no Havaí, quando passaram

pela ponte de Hana.

- Que delícia! gritou ela, aumentando a velocidade do veículo e se

sentindo mais segura na direção.

Deu uma espiada no namorado. O sorriso dele ia de orelha a orelha.

Parecia que estava rindo, mas não dava para escutar nada.

Cris resolveu voltar ao acampamento por outro caminho, criando sua

própria rota e dando muitas voltas. A certa altura, um dos rapazes do grupo

deles ultrapassou-a em um bugue de um passageiro só. Mark vinha logo

atrás dele em outro. Cris começou a acenar para eles, mas assim que tirou a

mão do volante, bateu em uma lombada e o carro morreu. Outra vez, o

silêncio os envolveu. Cris virou-se para Ted, que ainda estava sorrindo.

Então ela também caiu na risada. Tombou a cabeça para trás e, sem querer,

bateu numa barra de ferro.

- Ai! gritou, passando a mão no lugar dolorido e tentando reprimir as

lágrimas que lhe tinham vindo aos olhos.

- Machucou? indagou Ted num tom carinhoso.

- Bati a cabeça na barra, explicou ela, rindo da sua falta de jeito.

O rapaz inclinou-se para ela e acariciou de leve o local dolorido.

- Ai!

- Quer continuar dirigindo? perguntou ele.

- Talvez seja melhor você pegar o carro, no caso de eu ter tido um

traumatismo com efeito retardado, disse.

Ted fitou-a meio na dúvida. A jovem riu de novo e explicou:

- Estou brincando.

Sorriu para o namorado e deu com os olhos azuis dele, que naquele

momento tinham uma expressão muito intensa. Mais uma vez, ele a fitava

“daquele jeito”.

Numa fração de segundo, um pensamento lhe passou pela mente,

como que “queimando” seu consciente.

É ele! pensou quase de respiração suspensa. Ted, você é o homem da

minha vida.

Sua sensação era de que o mundo parara de girar e ela e Ted eram os

únicos dois seres na face da Terra.

Você é a pessoa certa pra mim. E eu sou a certa pra você, não sou? É

isso mesmo! Minha avó tinha razão! Agora eu sei. Sei com certeza!

Ted saiu do carro para trocar de lugar com ela. Cris também se

levantou. Tinha a impressão de que tudo estava acontecendo em câmara

lenta. Os dois “trombaram” atrás do carro. O rapaz pôs as duas mãos nos

ombros dela e lhe deu um beijo rápido no rosto. Depois saiu correndo para

se sentar ao volante.

Cris permaneceu parada ali. Tinha consciência de que acontecera algo

muito estranho e maravilhoso em seu coração. Nunca pensara que isso iria

suceder agora, num lugar como aquele. Contudo compreendeu que era o

misterioso “evento” que ela tanto esperara. Tinha de dizer a Ted que estava

apaixonada por ele. Não; tinha de falar mais que isso. Precisava confessar-

lhe que o amava, que o queria de verdade. Tinha de dizer-lhe que, com

muita alegria, ela assumiria o compromisso de amá-lo pelo resto da vida. E

não importava onde morassem, nem o que fizessem, nem que rumo a vida

deles tomasse. Nesse momento, Cris tinha a certeza - absoluta certeza -

sem a menor sombra de dúvida, que desejava ser a esposa de Ted, sua

amiga, companheira e a mãe de seus filhos, enquanto vivessem.

Sentia o coração latejando-lhe na garganta e ficou a olhar para o rapaz

que agora estava colocando o cinto de segurança. Ele estava de costas para

ela, mas a jovem não queria esperar nem mais um minuto para fazer sua

declaração, para revelar seu compromisso com ele.

- Ted! gritou.

Nesse instante, ele girou a chave na ignição e o barulhento ronco do

motor não permitiu que ele escutasse a voz dela.

- Eu te amo! disse Cris, gritando.

Ted não ouviu. Cris sorriu.

Que ironia! pensou, dando a volta para ir se sentar no banco do

carona.

Ela acomodou-se e colocou o cinto. Ted engatou a primeira.

Ah, agora eu já tenho certeza e isso basta. Vou esperar um lugar mais

romântico, uma hora mais propícia para contar pra ele. E quando eu lhe

disser isso, ele vai me escutar bem, não só com os ouvidos, mas também

com o coração.

E partiram deserto afora, com o motor roncando feito um leão.

Cris procurou ficar bem atenta para sentir quando teria a segunda

oportunidade de fazer sua declaração para o Ted. Quando estava

preparando o lanche da noite, deixou a imaginação correr solta, analisando

todas as situações em que poderia dar-lhe a notícia. Em dado instante,

ocorreu-lhe a maluca idéia de escrever a frase em toalhas de papel, usando

molho de mostarda. Depois penduraria as folhas nos cabides e poria dentro

da Kombinada. É, mas aí outras pessoas poderiam ver sua mensagem, e

aquilo era algo entre ela e o namorado apenas.

À noite, ficou ainda um bom tempo acordada na barraca. Ocorreu-lhe

que o mais importante seria dizer-lhe tudo de viva voz. Queria que ele

ouvisse suas palavras, e não que as lesse.

No domingo de manhã, a temperatura estava mais fresca. Uma leve

camada de nuvens surgira no céu, mais parecendo um mosquiteiro, como

os que as pessoas utilizavam sobre a cama nos países tropicais. Cris não

teve vontade de se levantar. Estava cansada, sentindo-se como uma

assistente de um safári, confortavelmente deitada sob o mosquiteiro. Seus

músculos estavam doloridos e sentia-se esgotada. Sua vontade era entrar

debaixo de um chuveiro morno para se refazer lentamente.

E ela teve o “chuveiro”, sim, mas não morno. Foi uma chuva que

desceu em grandes gotas, quando o grupo estava reunido para o cultinho

matutino. Contudo foi muito rápida. Logo em seguida, o Sol apareceu e

secou tudo quase que imediatamente. Cris olhou para seus braços. Era

como se o objetivo da chuva tivesse sido apenas transformar em lama a

poeira que estava em sua pele. Depois, vinha o Sol e “grudava” a lama

nela.

Quando chegou a hora de partir, não foi preciso insistir com ninguém

para desarmar as barracas e fazer a limpeza do local. Em dado momento,

Cris estava tentando arrancar duas estacas, mas elas estavam bem firmes.

Mark aproximou-se.

- Deixe-me tentar, ofereceu o rapaz.

Com um puxão forte, ele conseguiu removê-las.

- Obrigada, disse Cris. Parece que com a chuva a terra vira uma cola.

Pode tentar arrancar aquela estaca ali também?

Mark conseguiu retirar a outra também. Depois voltou e se aproximou

mais da jovem, olhando para os lados para ver se havia alguém por perto

que pudesse escutá-los.

- Queria conversar com você um minuto, posso?

-Claro, replicou Cris, continuando a desarmar a barraca.

- Vem cá, disse o rapaz, caminhando em direção à sua caminhonete.

Sei que o que vou dizer, prosseguiu ele, falando em voz baixa, parece coisa

de criança. Mas preciso lhe perguntar algo. Você acha que a Katie, é... está

interessada em mim?

Cris se sentiu meio sem jeito de conversar com ele sobre essa questão.

- Acho que você deve conversar sobre isso e com ela, replicou. Quero

dizer, eu tive a impressão de que vocês dois estavam ficando muito

chegados. Têm andado muito juntos.

A verdade era que ela não sabia responder, mas não queria dizer isso

ao rapaz. Mark fitou-a diretamente nos olhos, franzindo um pouco as

sobrancelhas.

- Parece que nós estamos namorando? indagou. Por que eu não quis

dar essa impressão nem pra ela, nem pra ninguém.

Cris sentiu pena de sua melhor amiga. Será que Mark lhe havia dado

esperanças? Será que Katie estava achando que o relacionamento dos dois

era mais sério do que era na verdade?

- Só sei que você e ela precisam arranjar uma hora e um lugar

adequado para falarem em particular sobre tudo isso, repetiu Cris, tocando

de leve no braço do rapaz.

Nesse momento, uma das meninas da turma, não percebendo que os

dois estavam tendo uma conversa pessoal, aproximou-se e pediu ao Mark

que fosse ajudá-la em sua barraca. Cris deu uma espiada para o centro do

acampamento e notou que Katie os observava.

- Obrigado pelo conselho, disse o rapaz, colocando a mão no ombro

dela. Obrigado mesmo, Cris.

Mais tarde, quando o grupo já se encontrava de volta à igreja e todos

descarregavam os carros, Katie chegou para Cris e perguntou:

- O que foi que você e o Mark tanto conversavam hoje à tarde?

Cris sentiu que alguém poderia escutar sua conversa e respondeu:

- Depois eu te conto.

Quando chegaram ao dormitório já eram quase 11:30h. Cris estava

exausta. Pegou o xampu e o sabonete para se entregar ao prazer do banho

tão ansiosamente esperado. Antes de sair do quarto, porém, ouviu Katie

murmurar:

- Oh, Chester, coitadinho Olhe, Cris, o Chester também está de barriga

pra cima!

- Será que você não pôs comida demais pra ele?

- Não; não creio que tenha posto demais. Talvez o aquário tenha

apanhado muita luz do Sol. ‘Tá na direção da janela. Aliás, a água ‘tá bem

morna.

Ela retirou o peixinho morto do recipiente e foi acompanhando Cris ao

setor dos banheiros para realizar o que chamou de “sepultamento no mar”.

- Amanhã vou comprar dois peixinhos dourados, informou Katie.

Acho que Chester morreu de solidão, já que nós passamos todo o final de

semana fora.

- Você vai acabar gastando muito dinheiro nisso, Katie, comentou

Cris. E se comprar mais de dois, acho melhor arranjar um aquário maior.

Essa “tigelinha” aí ‘tá pequena.

- E é agora que você me diz isso?

Em seguida, ela pôs a mão sobre o coração e fez um minuto de

silêncio. Depois atirou Chester no vaso sanitário, para que ele fosse morar

na grande “lagoa dos peixinhos dourados do além”.

Cris abanou a cabeça e entrou num dos chuveiros. A água morna

estava simplesmente maravilhosa.

Katie continuou parada do lado de fora.

- E aí, vai me dizer o que foi que o Mark lhe disse hoje de tarde?

indagou. Ou será que isso também terei de tentar adivinhar por eliminação?

Cris fora tomar banho ali na esperança de gozar uns cinco minutos de

silêncio e privacidade. Queria continuar “sonhando” com Ted. Contudo

sabia que a amiga não a deixaria em paz enquanto não respondesse a todas

as suas perguntas.

- Acho que vou aproveitar e tomar banho também, disse Katie.

Pela direção da voz, Cris deduziu que ela se achava no chuveiro ao

lado do seu.

- Me empresta seu xampu? pediu Katie, falando bem alto por causa do

barulho dos dois chuveiros. Você tem sabonete aí?

Cris lhe passou esses objetos e terminou o banho logo, mais rápido do

que havia planejado.

- Já estou indo para o quarto, informou a amiga.

- Então não dorme, não, falou a outra. Daqui a pouco chego lá

Vestindo seu pijama predileto, Cris escovou o cabelo e o secou. Katie

chegou e também se preparou para se deitar. Todavia, por causa do barulho

do secador, não puderam conversar logo. Então Cris já estava na cama

quando finalmente passou à colega a informação que ela queria.

- Nós conversamos sobre você, disse.

- Sobre mim? E o que foi que ele falou?

- Eu disse que era pra ele conversar com você.

- E o que ele respondeu?

Cris fez uma pausa, depois indagou.

- Katie, você gosta muito do Mark?

A outra franziu um pouco o rosto.

- Não, replicou lentamente. E... depois daquela cena dramática que fiz

quando o revi, você nem vai acreditar nisso. Mas agora que já pude

conhecê-lo melhor, acho que não temos nada em comum.

- Acha mesmo? disse Cris, que não esperava tal resposta.

- É. Eu sei, eu sei. Estava muito entusiasmada com ele. Mas me

enganei. Foi meu maior engano na vida. Ele é um cara sensacional, mas

apenas um bom amigo. Não sinto mais nada por ele.

Passou uma toalha no cabelo, embaralhando-o um pouco e deixando

que ele caísse bem à vontade.

- Acho que eu estava gostando era da imagem dele, sabe? continuou

ela. Gostava daquele jeitão de rapaz amigo, vizinho do bairro, que dá

sensação de segurança pra gente, que aprecia beisebol e torta de maçã e

acabaria me amando.

E aqui ela se aproximou da cama de Cris e se sentou.

- Então pode me revelar que ele não ‘tá interessado em mim, disse.

- Mark Kingsley não ‘tá interessado em você, disse a outra,

destacando cada palavra.

Katie fez um movimento brusco, endireitando-se, e olhou-a com uma

expressão de quem está magoada.

- Não ‘tá?

Cris se arrependeu de ter dado a notícia de forma tão direta.

Lentamente abanou a cabeça.

- Sinto muito, disse, mas ele falou que ‘tá interessado em você apenas

como amiga.

- Por que você fica se desculpando por algo que não é culpa sua?

comentou Katie. Aliás, isso foi até muito bom. Estava com medo de que

ele me pedisse pra passar mais tempo ao lado dele, e já estava pensando

num jeito de recusar sem magoá-lo.

- É, então foi bom, concordou Cris. Os dois podem continuar sendo

amigos, e nós três poderemos ir ajudando o Ted no grupo de jovens. Assim

você e o Mark não precisarão passar por aquela fase de indagação: “Será

que estamos namorando?”

Aqui a jovem sentiu que a questão estava bem esclarecida e puxou as

cobertas e se cobriu. Katie, porém, não queria deixar o assunto morrer ali.

- E quanto a você?

- Quanto a mim, o quê?

- O que ‘tá acontecendo entre você e o Ted?

- Estamos apaixonados, disse ela em tom alegre. Agora estou

totalmente convicta. Eu o amo e disse isso pra ele.

- Disse? indagou Katie, arregalando os olhos.

- Mas ele não escutou, por causa do barulho do motor do bugue,

informou Cris, dando uma risadinha baixa. É eu mesma, né?

- Então ele ainda não sabe, concluiu Katie.

- Ainda não.

- Como é que você pode fazer isso com o coitado? perguntou Katie.

Vai telefonar pra ele agora e lhe dizer que o ama. Ele já esperou muito.

- Não! Já é tarde da noite! protestou a outra. E não quero lhe falar isso

por telefone. Quero contar pessoalmente, pra que ele saiba que estou sendo

sincera.

- Ei, ‘tá parecendo uma poesia do John Donne! *

Katie levantou-se de um salto e foi até a escrivaninha. Pegou um livro

de literatura que estivera lendo antes de saírem para o acampamento.

- Você já leu esse capítulo sobre ele?

- Já.

* John Donne, poeta e orador sacro inglês, que viveu no final do século XVI e início do XVII. (N. da T.)

Cris e Katie estudaram Literatura Inglesa no mesmo período.

- E já viu este poema aqui? Escute só. O título dele é The Good

Morrow (O bom amanhã)

Meu rosto se reflete em teus olhos, o teu, nos meus também.

E um coração realmente sincero se expressa no rosto.

E que hemisférios melhores que estes poderíamos ter,

Sem um Norte tão distante e um Oeste de ocaso?

Katie ergueu os olhos do livro com uma expressão radiante.

- Que romântico! exclamou.

Cris gostava muito de poesia e geralmente era ela que mostrava

alguma preciosidade poética para a amiga. Contudo, nesse caso, não tinha

muita certeza do que o poeta estava querendo dizer.

- Aqui é você e o Ted, continuou Katie. Vocês são os corações

realmente sinceros. Com suas diferenças, vocês se encaixam bem;

completam um ao outro perfeitamente.

Cris sorriu. Tinha o coração cheio de gozo. Nesse momento, mais uma

vez reconhecia que o que sentia era amor, um amor do tipo que dura para

sempre e sempre.

- Então me faz um favor, disse ainda Katie. Se não quer telefonar para

o Ted agora, ligue pra ele amanhã de manhã, o.k.?

- Vou me encontrar com ele no café da manhã, replicou a outra.

- Então conte pra ele durante o café. Acho que o Ted não vai se

importar muito com o cenário quando “o rosto dele se reflete em teus

olhos, e o teu, nos dele”. Não precisa esperar uma ocasião bem romântica,

com o Sol brilhando e os passarinhos cantando, e tudo o mais. Só tem de

dizer ao Ted que o ama.

E aqui ela apontou para o título da poesia de Donne.

- Diga-lhe no “bom amanhã”, concluiu com um brilho especial no

olhar.

Na segunda-feira, Cris esperou o namorado na mesa que sempre

ocupavam na cantina. Contudo ele não apareceu, e ela deduziu que ele

havia perdido a hora por ter dormido demais devido ao cansaço do final de

semana. Ela própria gostaria de ter feito o mesmo, mas não poderia, pois

tinha a primeira aula nesse dia.

Dirigiu-se para a sala apressadamente para não chegar atrasada.

Quando se acomodou em sua carteira, o professor, o Sr. Mitchell, estava

falando sobre bênçãos. Ele lera Deuteronômio 28.2. Cris abriu a Bíblia

nesse texto e o sublinhou. “Se ouvires, a voz do Senhor, teu Deus, virão

sobre ti e te alcançarão todas estas bênçãos.”

Quero ouvir-te sempre, Senhor, orou ela silenciosamente. Quero

escutar tua voz com clareza. Desejo sempre fazer o que tú me ordenas.

Assim que terminou de orar, sentiu um impulso bem claro, mas não

muito forte, de ir procurar o Ted e lhe dizer o que desejava, dar-lhe seu

coração, sua bênção. Contudo, calculando que havia condições de esperar

até o fim da aula, continuou sentada. Afinal, estava pagando pelo curso.

Naquele momento a achava-se ali. Não deveria sair.

Estou sendo sincera, Senhor. Não faz sentido eu achar que queres que

eu mate aula pra ir atrás do Ted e dizer-lhe que o amo.

Procurou reprimir aquela “voz” interior, e continuou sentada.

Entretanto, quanto mais a reprimia, mais forte seu coração batia. Sua

impressão era de que ele batia tão alto que os colegas que se achavam mais

próximos dela certamente deveriam estar escutando. Recordou-se de que,

umas semanas antes, Selena havia dito que o amor nem sempre é algo

planejado e segue uma lógica.

Então, levada por um impulso que era mais intenso que sua lógica,

Cris acabou pegando a mochila e saindo rapidamente da sala. Assim que se

viu fora do prédio, sentiu que conseguia respirar calmamente.

E agora, Pai? O que faço a seguir?

De repente, sentiu-se meio tola. A declaração que queria fazer para o

Ted poderia esperar até de tarde. Estava perdendo uma matéria muito

importante. Ademais, não sabia onde o namorado se encontrava nesse

momento. Se ele não estivesse no quarto, dormindo, poderia até nem achá-

lo, ainda que percorresse o campus todinho.

- Isto é uma loucura!

Foi caminhando apressadamente até o dormitório dos homens, o West

Hall. Lá chegando, ligou para o quarto do Ted. Como já esperava, a

ligação caiu na secretária eletrônica. Talvez ele ainda estivesse dormindo,

ou poderia ser também que estivesse na cantina, ou na biblioteca, ou em

diversos outros lugares.

Andando pesadamente de volta ao prédio onde aconteciam as aulas,

ela se deu conta de que faltavam apenas vinte minutos para o início da

segunda aula. Ted sabia que à tarde ela estaria trabalhando na livraria e

provavelmente iria procurá-la ali. Poderiam ficar perto da estante dos livros

usados de Teologia, pois era o ponto mais agradável da loja. Ali, ela o

olharia diretamente nos olhos e, em voz bem sussurrada, faria a declaração

que estava em sua alma. E suas palavras iriam descer até o fundo do

coração dele. Iria até aquele lugar mais profundo, onde ele mergulhava

para pegar seus tesouros. Só de pensar no romantismo que cercaria aquele

momento, um sorriso lhe veio aos lábios.

Nesse momento, passava pela “Selva” e resolveu dar uma entrada, só

para ver se o Ted não estaria ali. Não estava, mas ela viu um outro casal

num dos compartimentos, sentados juntinhos, estudando.

O impulso de procurar seu amado continuava forte, mas resistiu a ele.

O mais sensato a fazer agora era ir verificar sua caixa de correspondência e

depois ir assistir à outra aula. Entretanto o coração não parava de bater com

força. Apressando o passo, atravessou o centro estudantil e foi à cantina.

Também ali ele não estava.

Verificou todos os lugares a que eles geralmente iam para conversar: o

saguão do prédio de música, a biblioteca, a igrejinha. Agora já estava

atrasada para a segunda aula, mas não se importava.

Andando o mais rápido que podia, foi para o West Hall e, chegando

ao saguão, ligou de novo para o quarto dele. Novamente a ligação caiu na

secretária, mas dessa vez ela deixou um recado. “Ted, preciso vê-lo

imediatamente. Onde você está?” Voltando apressada para o centro

estudantil, andou pelo prédio duas vezes, de um lado a outro, olhando bem

para o rosto de todos que encontrava, ansiando para que Ted estivesse ali.

Não estava. Por fim, dirigiu-se para a praça central e se sentou na beirada

da fonte.

Onde é que ele ‘tá? Onde é que pode estar?

Tirou os sapatos e enfiou a ponta do pé na água. Sem saber bem por

quê, lembrou-se de um trecho do livro de Cântico dos Cânticos que lera

alguns meses atrás, quando ainda estava em Basiléia e Ted viera embora

para a Califórnia. É um livro curto, localizado bem no centro da Bíblia.

Nele havia uma frase que era repetida três ou quatro vezes. Cris a havia

sublinhado. Dizia: “Não acordeis nem desperteis o amor, até que este o

queira”.

Esse verso acabou se tornando um conselho que ela dava a si mesma

sempre que pensava no namorado. Os dois se achavam tão distantes um do

outro que seria inútil acordar ou despertar os profundos sentimentos que

havia em seu coração. Não adiantaria nada ficar pensando neles, pois nada

poderia fazer. Estava aceitando tudo da forma como vinha. Enviava e-

mails para o rapaz e orava por ele todos os dias. Agora sentia que, durante

esse último mês que tinham estado juntos, também conseguiu controlar

bem seus sentimentos, deixando que seu relacionamento com Ted fosse se

desenvolvendo de forma calma e natural. Entretanto, nesse momento,

parecia que o amor se remexera e acordara de fato dentro dela. Não estava

nem podendo raciocinar direito.

Será que Deus teve de me bater na cabeça, quando bati na barra, pra

despertar meus verdadeiros sentimentos pelo Ted?

Cris ficou a agitar a água com os pés. Sentia-se como a mulher de

Cântico dos Cânticos, que andou por vários lugares da cidade, procurando

seu amado, mas não conseguiu encontrá-lo, Lembrava-se de que ela dizia

para suas amigas, as filhas de Jerusalém, “desfaleço de amor”.

Acho que não estou “desfalecendo”, mas alguma coisa estou

sentindo. E não sei que sensação é esta.

Pôs a mão na altura do estômago e tirou os pés da água, deixando que

se secassem ao vento. Sentia-se doer por dentro.

Ted, onde é que você está?

Nesse momento, Mark e alguns colegas estavam passando pela praça

gritaram para ela, cumprimentando-a.

- Mark, disse ela em voz alta, você viu o Ted?

O rapaz afastou-se dos outros e veio em direção à fonte.

- Desde ontem que não o vejo, replicou ele. Parece que hoje cedo ele

ia devolver as barracas pra pessoa com quem ele pegou emprestado.

- Ah, fez Cris, sentindo que se acalmava. Então ‘tá certo. Obrigada,

Mark.

- Algum problema com você? indagou ele, sentando-se ao lado dela.

Parece um pouco tensa.

- Não; é que eu estava procurando o Ted. Preciso conversar com ele.

- É; parece que tem muita gente procurando alguém, continuou o

rapaz. Pensei muito naquilo que você me falou no acampamento ontem.

Você tem razão. Preciso conversar com a Katie antes que comece a surgir

algum mal-entendido entre nós.

Cris já ia responder algo para o colega, dizendo-lhe que não precisava

se preocupar, contudo parou. É que viu Katie chegando no seu Buguinho e

parando num lugar onde não havia permissão para estacionar e saindo do

carro.

- Tenho a impressão de que vai poder conversar logo, disse, fazendo

um aceno para chamar a atenção da colega.

Assim que a outra se aproximou dos dois, pôs-se a correr.

- É minha imaginação, ou ela ‘tá com cara de quem vai “matar”

alguém? indagou Mark.

Cris se levantou imediatamente. Nunca vira a amiga com aquela

expressão.

- O que houve? gritou para ela.

Katie chegou perto de Cris e segurou-a pelos ombros. Seu rosto estava

pálido e escorrendo suor.

- O que houve? perguntou Mark que também chegara mais perto.

Katie estava ofegante.

- A Kombinada, disse meio sem ar. Houve um acidente. Vamos lá!

Em seguida, ela pegou Cris pelo braço e as duas foram correndo em

direção ao carro. Mark vinha logo atrás, e os três entraram apressadamente

no veículo.

- Que tipo de acidente, Katie? perguntou Mark em tom firme. O que

foi que você viu?

- Só vi os homens colocando o Ted numa ambulância.

12

Cris e Mark ficaram bombardeando Katie com perguntas. Gritaram

com ela para que fosse mais devagar, no momento em que pegavam o

trevo de acesso à via expressa. Ela respondeu que não sabia muito mais do

que o que já lhes dissera. Ela tinha ido à floricultura para comprar mais

fertilizante para suas plantas, e estava retornando para a escola. Quando

pegou a pista da direita para sair da rodovia e entrar na estrada em direção

à Rancho Corona, viu um veículo parecido com a Kombinada. Estava todo

amassado. No momento em que passou perto dele, avistou o pessoal do

resgate levando alguém para a ambulância.

- Ele estava se mexendo? indagou Cris, os dedos apertando o banco do

carro.

- Não deu pra ver. Só vi que era uma pessoa loura na maca, explicou

Katie começando a chorar. Vou direto para o hospital.

Entraram na via expressa, e Cris sentiu o coração bater com força.

Quase mecanicamente disse:

- Fique calma, Katie. Talvez não fosse Ted. Pode ser que fosse outra

kombi, parecida com a dele. Talvez...

Foi então que avistou, no outro lado da estrada, um caminhão reboque

puxando um veículo todo amassado. Imediatamente reconheceu a

Kombinada.

- Katie! gritou, tapando a boca aterrorizada. Olhe ali!

- Procure ficar bem calma, disse Mark com firmeza, enquanto Katie

segurava o volante com força. O hospital fica a uns cinco quilômetros.

- Oh, que carro mais idiota! gritou Cris. Por que o Ted já não deu um

fim nesse lixo há mais tempo?

Fechou os olhos, tentando respirar fundo.

- Vamos orar, gente, ordenou Katie. Orem aí!

Mark logo se pôs a orar em voz alta. Cris sentia-se trêmula. Agarrou o

assento do carro e o apertou com as duas mãos, usando toda a sua força.

Pareceu-lhe que o pavor que sentia começou a se desvanecer um pouco.

Afinal, Katie entrou numa vaga próxima à porta da entrada do setor de

pronto-atendimento. Cris estava com todo o corpo tremendo. Desceu do

veículo de um salto, e correu em direção ao guichê de informações, junto

com os dois colegas.

Katie foi a primeira a falar, articulando-se até com clareza. Indagou se

Ted Spencer dera entrada ali, por causa de um acidente de carro.

A atendente foi verificar. Cris e Katie se abraçaram tremendo.

- Está, disse a mulher assim que voltou e entrou atrás do balcão. Ted

Spencer está sendo atendido aqui.

- E ele está...? principiou Cris.

Não conseguiu terminar a pergunta. Sentiu que poderia desmaiar.

- Como ele está? perguntou Katie, mantendo o braço firme em torno

da amiga.

- Não sei dizer, replicou a atendente, sentando-se e entregando uma

prancheta a Cris. Quer assinar aqui, por favor? Vou ver se um médico pode

vir conversar com vocês o mais rápido possível. Mas vão ter de aguardar

ali.

Cris já assistira muitos filmes sobre hospitais. E no estado de

perturbação em que se encontrava, tinha achado que poderia entrar no

quarto, como a câmera do filme entrava e dava um close no paciente.

Queria saber logo como ele estava. Desejava ajudá-los a salvar a vida do

seu namorado.

- Vem cá, gente, disse Mark. Vamos esperar aqui.

E foi encaminhando as duas jovens para a sala de espera. Os três se

sentaram num sofá que havia no canto, e permaneceram em silêncio.

Cris fechou os olhos e por sua mente passou a imagem da Kombinada

toda danificada. Sentiu a cabeça latejar. O teto do carro estava todo

amassado, os lados, afundados, e com os vidros todos quebrados.

Ó Senhor, não o leve para o céu, não, meu Deus. Ainda não! Por

favor! Espere primeiro que eu possa lhe dizer que o amo. Ele ainda não

me ouviu dizer isso. Deixe pelo menos eu lhe fazer essa confissão!

Lágrimas e mais lágrimas lhe escorriam dos olhos. Sentia-se sufocar

pelo choro. Katie abraçou-a e se pôs a murmurar:

- Aguente firme! Continue orando! Continue orando!

E afinal as duas conseguiram se acalmar. Foi então que Cris notou,

pela primeira vez, que havia outras pessoas na sala. Teve vergonha ao

notar que eles a estavam observando. Mark caminhara até a porta e se

pusera a andar de um lado para outro, para ver se o médico já vinha. Cris

virou-se e olhou para fora, para o estacionamento, sem dizer nada. Orando

em silêncio, procurou fazer petições mais bem coordenadas. Deus estava

com ela. Tinha certeza disso. Tinha consciência de uma paz divina a

acalmá-la.

- Devíamos ligar para o pai dele, disse por fim.

Sabia o número do telefone dele de cor. Levantou-se para procurar um

telefone público. Ninguém a acompanhou, e ela achou melhor assim. Não

sabia bem por quê, mas entendia que, se estivesse sozinha, iria sentir-se

mais forte. Enquanto caminhava em direção ao aparelho, tinha a sensação

de que Jesus estava a seu lado.

A ligação caiu na secretária e, em tom bem calmo, Cris deixou o

recado para o pai de Ted, informando-o do ocorrido. Sua mão tremia tanto

e sua voz estava bem falha. Não sabia se conseguira dizer tudo

corretamente. De todo modo, o pai de Ted ficara sabendo onde se

encontravam.

Em seguida, ligou para seus pais. Sua mãe atendeu. Assim que

escutou a voz dela, começou a chorar de novo. Mark viera atrás dela, no

setor dos telefones. Colocou a mão de leve sobre seu ombro e disse em voz

baixa:

- Quer que eu fale com ela?

A jovem fez que sim. As lágrimas estavam lhe embaçando a fala.

Então Mark pegou o telefone e explicou para a mãe dela que eles estavam

no hospital, aguardando o médico que iria dar-lhes informações sobre o

Ted. Cris escutou a voz aflita de sua mãe indagar ao rapaz:

- E o Ted está vivo?

Nesse instante, pela primeira vez, a jovem permitiu que em sua mente

entrasse a idéia de que o namorado poderia estar morto. Encostou-se na

parede e ficou pesadamente apoiada nela.

- Ainda não sabemos, ouviu o colega responder para sua mãe, e em

seguida, dizer: É, acho que seria bom se vocês pudessem vir.

Depois deu o nome do hospital e desligou.

- Mais alguém pra telefonarmos? perguntou o rapaz.

- Tio Bob, replicou Cris num fio de voz. Creio que ele gostaria de

estar aqui.

A jovem discou o número do telefone do tio e deixou que Mark lhe

desse todas as informações.

- Quer voltar pra sala de espera? indagou ele por fim.

Cris não chegou a responder pois nesse momento viu um médico com

seu jaleco branco vindo na direção deles. Correu ao encontro do doutor e

perguntou-lhe se estivera cuidando de Ted. O médico quis saber se eles

eram amigos ou parentes.

- Amigos, disseram Cris e Mark a uma voz.

- E já ligamos para o pai dele, informou a jovem. Ele não estava em

casa, mas deixamos um recado pra que ele venha ao hospital.

- Está bem, replicou o doutor olhando para Mark e em seguida para

Cris. Posso dizer-lhes o seguinte: ele está vivo, mas isso é um milagre.

Cris pegou a mão do amigo e apertou-a com toda a força.

- Os socorristas disseram, prosseguiu o médico, que nunca viram

ninguém sair vivo de um acidente como aquele. Ao que parece, a kombi

capotou três vezes. Eles disseram que o teto, a frente e a porta do lado do

motorista estavam totalmente amassados.

- É verdade, interpôs Cris nervosamente. Eu vi o carro. Mas como está

o Ted?

O médico olhou para a jovem, fitando-a por sobre os óculos.

- Já o levamos para o bloco cirúrgico, no andar de cima. Acho que vai

demorar algumas horas para podermos dar um relatório completo. Nesse

meio tempo, se vocês ou alguém que conhecem puderem doar sangue, será

bom. Parece que ele vai precisar muito. E assim que tivermos mais

informações sobre o estado dele, passaremos a vocês.

- Obrigada, disse Cris.

Nesse instante, ela percebeu que estivera segurando a mão do amigo

com muita força e a soltou.

- É melhor irmos contar pra Katie, falou.

Nas duas horas e meia seguintes, Cris teve a sensação de que se

achava envolta numa bruma. Conversando com a enfermeira, descobriu

que o sangue do namorado era do tipo A. Cris e Mark tinham o mesmo

tipo. Katie ligou para uma porção de alunos da universidade. Vinte

minutos depois, Selena e Wesley chegavam com mais oito estudantes.

Todos fizeram doação de sangue e depois foram para a sala de espera

fazer companhia a Cris. Muitos faziam perguntas e apresentavam

especulações em torno do acidente. Cris começou a ficar irritada. Nenhum

deles dispunha de informações suficientes para criarem tantas soluções

assim. Entendia que eles queriam ajudar, mas não podiam. Então ficou

alegre quando viu chegarem seus pais com David, seu irmão de treze anos.

Os três pareciam bastante preocupados. A jovem abraçou-os e quando o

pai a segurou, pôs-se a chorar no ombro dele.

Chegaram mais dois alunos da Rancho Corona. Nesse momento, Cris

começou a tremer de frio, por causa do ar-condicionado do aposento.

- Cris, vamos lá fora um pouquinho? pediu-lhe David.

O garoto estivera esperando de pé, num canto, sem falar nada, apenas

escutando o que os outros conversavam sobre a pouca informação de que

dispunham. A jovem gostou da idéia de sair. Seria bom para se aquecer um

pouco. Então saiu com o irmão, gozando o ar cálido daquela tarde de

outono.

- Cris, estou morrendo de medo! disse o garoto.

David tinha quase um metro e setenta de altura, apenas uns três

centímetros menor que a irmã. Tinha mãos e pés muito grandes e um

cabelo ruivo bem cheio, como o do pai deles, e usava óculos. Naquele

momento estava muito constrangido, limpando as lágrimas que lhe tinham

vindo aos olhos e que, lá dentro, ele conseguira reprimir.

- Eu também, disse a jovem, passando o braço nos ombro do irmão.

Durante o ano em que Cris estivera estudando fora, ela se comunicara

com o irmão apenas o necessário. Os dois não eram muito chegados,

devido à grande diferença de idade entre eles. Nesse instante, porém,

sentiu-se mais ligada a ele do que sentira antes.

David gostava muito do Ted, desde que o conhecera, fazia cinco anos.

Muitas vezes, quando o rapaz ia à casa deles, acabava passando, em

companhia do garoto, o mesmo tempo que passava com a namorada. Em

alguns momentos, Cris achava que Ted seria um bom irmão para David,

melhor até do que ela própria.

- Acha que o Ted vai se salvar?

- Não sei, replicou Cris ainda abraçada com o irmão. Estou orando o

tempo todo. Você sabe que o médico falou que é um milagre ele estar vivo.

- Mas se ele morrer, vai para o céu, continuou o garoto.

Era uma afirmação, e não uma pergunta. Parecia até o próprio Ted

falando.

- Vai.

- Sei disso porque ele me falou. E muitas vezes ele me disse que eu

precisava entregar minha vida para Deus para eu ir para o céu quando

morrer. Eu também quero ir, pois assim a gente estará junto. Ted falou que

podemos construir uma rampa de skate lá, se é que ainda não tem uma.

Cris engoliu em seco e fez uma oração silenciosa.

Ainda não, Senhor! Por favor! Não leve o Ted, não, Pai! Deixe

primeiro que ele faça umas rampas de skate aqui. Deixe que ele continue

falando a garotos como o meu irmão que eles precisam acertar a vida

contigo.

- Mas eu ainda não entreguei, prosseguiu David, afastando-se da irmã

e fitando-a. Nunca orei pra entregar minha vida a Jesus.

Cris tinha quatorze anos quando compreendeu que só pelo fato de ter

sido criada na igreja com sua família, isso não significava que era crente.

Agora, nesse momento, dava-se conta de que seu irmão tinha quase a

mesma idade de quando ela entendera isso.

- E você quer fazer essa decisão agora? indagou a ele.

O garoto fez que sim.

- Quero, disse. Quero fazer uma oração agora. Você pode me ajudar?

A jovem sentiu a garganta se apertar e lágrimas lhe virem aos olhos.

- Claro, replicou com voz embargada.

- Como é que eu falo?

- Fale o que vier ao seu coração, explicou. Deus sabe o que você está

pensando, David. Sabe que ‘tá tomando a decisão de crer nele. Então diga-

lhe exatamente isso e receba o dom do perdão e da vida eterna.

Em seguida, ela fechou os olhos e abaixou a cabeça. David expressou

umas quatro ou cinco frases bem diretas, afirmando que cria que Jesus era

o único Filho de Deus e pedindo ao Senhor que perdoasse seus pecados e

assumisse o controle de sua vida. Quando encerrou, disse:

- Que assim seja!

Então Cris compreendeu que o irmão já tinha ouvido o Ted orar mais

de uma vez. Abriu os olhos e respirou fundo.

- Você acaba de ser adotado na família de Deus, disse com um sorriso

nos lábios tensos, apesar dos abalos que sofrera nas últimas horas. Estou

muito feliz por você, David. O Ted também vai ficar muito alegre.

E com isso, as lágrimas voltaram a lhe escorrer pelo rosto.

- Quero contar pra ele que finalmente fiz isso, disse David com um

aceno de cabeça.

- Vamos lá. Talvez eles deixem que a gente entre lá pra vê-lo.

Cris passou o braço em volta do irmão e os dois retornaram juntos

para a sala de espera. Ela se sentia meio atordoada e ao mesmo tempo

encantada pelo que acabara de acontecer.

- Alguma novidade? indagou Cris.

A mãe abanou a cabeça.

- Seu pai foi lá doar sangue, para o caso de eles precisarem de mais,

informou ela.

- Também quero doar, disse David.

A mãe olhou-o espantada.

- Você ainda é novo, filho, disse. Não pode doar, nem mesmo se

déssemos consentimento. Precisa ter mais de dezoito anos.

O garoto fez uma expressão de decepção.

- Mas acho que seu pai pode estar precisando de um pouco de apoio

moral, continuou ela. Vamos ver onde é que ele está.

Depois que a mãe e o irmão de Cris saíram, esta se lembrou do que

acabara de acontecer. Virou-se para Katie.

- Aquela hora que eu e meu irmão fomos lá fora, ele entregou a vida

pra Jesus, disse para a amiga.

Sua voz não expressava nenhuma emoção, pois não tinha mais quase

nenhuma para demonstrar.

- Oh, que incrível! exclamou a colega, também num tom inexpressivo.

Como foi?

- Faz muito tempo já que o Ted vem falando com ele sobre o Senhor.

Acho que agora, finalmente, o David quis tomar uma decisão firme.

Gostaria de me sentir mais feliz do que estou me sentindo.

Nesse instante, entrou na sala um homem alto, de ombros largos,

vestindo uma camisa esporte típica dos havaianos. Era o pai de Ted. Ao

lado dele, estava o Tio Bob. A jovem já vira o pai do seu namorado apenas

uma ou duas vezes, mas correu para ele e o abraçou, antes de

cumprimentar o tio.

- O que vocês estão sabendo? indagou Bob.

Tio Bob morava a alguns quarteirões da casa do pai de Ted e, ao que

parecia, os dois tinham vindo juntos.

Cris fez um resumo do que sabiam a respeito de Ted e no momento

em que terminava, o médico entrou na sala. Avistando a jovem, foi direto

para ela.

- Este aqui é o pai do Ted, disse ela para o médico.

- Bryan, falou o pai, apresentando-se e estendendo a mão para o outro.

Bryan Spencer. Como está ele?

- Sou o Dr. Johannes, replicou o médico. Ele está saindo do bloco

cirúrgico agora, explicou. Tivemos muita sorte porque conseguimos

identificar o local da hemorragia logo. Ele sofreu uma perfuração do cólon.

O cirurgião fez a sutura, e resolvemos remover também o apêndice dele

que estava bastante inflamado. Isso pode ter sido causado pelo acidente ou

não. No mais, tudo parece estar bem. Tivemos de dar alguns pontos na mão

dele, e talvez ainda precisemos dar mais alguns, depois que extraírem o

resto dos estilhaços de vidro.

- Ele vai ficar bom, não vai? indagou Katie num rompante.

- Bom, isso eu não posso garantir, replicou o Dr. Johannes. Ele perdeu

muito sangue, mas por incrível que pareça, não teve nenhuma fratura. Só

amanhã de manhã é que poderemos dar um diagnóstico mais preciso. E ele

deve permanecer na sala de recuperação mais uma ou duas horas.

- Será que posso ir vê-lo? indagou o pai do rapaz.

O médico examinou a prancheta que trazia consigo e acenou que sim.

- Pode. Ele ainda está sedado, então não vai ver que vocês entraram lá.

Mas tudo bem. Pode ir vê-lo. E só duas pessoas de cada vez, o.k.?

O Dr. Johannes virou-se para sair, mas depois voltou e olhou para o

pai de Ted por sobre os óculos.

- O rosto dele está muito inchado por causa do impacto, explicou em

voz baixa. Ele está com um olho arroxeado e o cabelo dele está sujo de

sangue, pois ainda não limparam. Estou dizendo isso para que não pensem

que ele está muito mal. Está melhor do que parece.

Bryan Spencer fez que sim e em seguida virou-se para Cris.

- Quer ir comigo? perguntou com uma expressão meio de dúvida.

A jovem ficou sem entender se ele a chamava porque não queria ir

sozinho ou se porque sabia que para ela também era muito importante ver

o namorado imediatamente. Num gesto instintivo, deu o braço para ele e os

dois foram caminhando pelo corredor até o elevador. O braço de Bryan

estava tremendo. Cris compreendeu que ambos precisavam da força um do

outro para encararem o que iriam ver.

A enfermeira de plantão na sala de recuperação conduziu-os até o leito

onde Ted estava, coberto com um lençol branco. Os braços se achavam por

cima do lençol, sendo que no direito estavam conectados vários tubos. No

alto, uma lâmpada fluorescente de luz fraca iluminava o rosto do rapaz.

Dava para ver bem o olho roxo e a boca inchada, bem como os horríveis

pontos na mão dele, como o Dr. Johannes havia dito. A cabeça estava

coberta por uma touca de papel transparente, semelhante a uma touca de

banho. Dava para ver as manchas de sangue no cabelo. Vendo-o assim,

Cris teve de fazer um enorme esforço para não chorar.

- Oi, filho! disse Bryan em tom grave. É seu pai.

A voz do homem tremia. Aproximou-se mais e tocou de leve no

ombro esquerdo dele. Parecia que era a única parte do corpo do rapaz que

não estava suja de sangue, ou com pontos ou com algum tubo.

- O médico disse que você ‘tá indo bem, filho. Descanse, viu?

Ted não respondeu.

- A Cris também ‘tá aqui. Ela quer falar com você.

Bryan deu um passo para trás e deixou que a jovem chegasse mais

perto da cama. Ted estava imóvel no leito. Ela só ouvia o bipe-bipe, o

tiquetaque e o murmúrio suave das máquinas. A luzinha fraca ficava

rebrilhando no rosto dele. Cris teve vontade de pegar o rapaz nos braços e

carregá-lo. Sentiu-se dominada por um forte senso de compaixão, a ponto

de não ter mais lágrimas. Pegou a mão esquerda dele e ergueu-a devagar.

Contou quatro lugares em que havia pontos nela. A mão estava fria e

pesada. Deu-lhe um leve aperto. O rapaz não teve a menor reação.

- Ted, disse ela inclinando-se mais para ele, estou aqui com seu pai.

Em seguida, elevou um pouco mais a voz e continuou:

- Estamos todos orando por você. O médico disse que você ‘tá indo

bem. Falou que depois que dormir um pouco mais, saberão mais algumas

coisas. Então não se preocupe em conversar conosco. Continue dormindo,

Ted.

Pegou a mão pesada do namorado, levou-a aos lábios e beijou-a. Sua

boca tocou a pele entre os pontos escuros que tinham dado nela, depois de

removerem os estilhaços de vidro do pára-brisa.

- Ted, quando você acordar, tenho muito pra te contar. Então durma

bem, o.k.?

Beijou de novo a mão dele e voltou-se para o pai do rapaz que se

achava atrás dela, com os lábios tensos.

- Será que eu poderia ficar aqui com ele? indagou.

- Não conheço os regulamentos deste hospital, replicou o homem.

Quer que eu vá perguntar?

A jovem fez que sim.

- Se o senhor precisar voltar pra casa hoje, posso ficar aqui com ele.

Aliás, eu gostaria de ficar, disse ela.

Bryan Spencer afastou-se silenciosamente, e foi para o outro lado do

aposento. Cris escutou-o conversar baixinho com a enfermeira. A mulher

explicou que preferiam que ninguém ficasse na sala de recuperação. A

razão era que o espaço ali era muito pequeno e vários pacientes passavam

mal quando voltavam da anestesia. Disse ainda que eles estariam melhor

aguardando na sala de espera. Assim que Ted fosse transferido para um

quarto, alguém do hospital lhes comunicaria.

Cris deu um beijo carinhoso no rosto inchado do namorado e disse-lhe

que o veria mais tarde. Depois aproximou-se do pai de Ted e os dois

voltaram juntos para a sala de espera. Ali eles informaram os outros sobre

o estado do rapaz. Assim que deram essas notícias, alguns dos estudantes,

inclusive Mark, resolveram ir embora. Recomendaram a Cris que

continuasse informando sobre as condições dele. Katie e o Tio Bob tinham

ido comprar refrigerantes para a turma. Assim, naquele momento, estavam

ali apenas os pais dela, o pai de Ted e seu irmão.

- Ele ‘tá desacordado? perguntou o garoto, aproximando-se da irmã,

enquanto o pai de Ted conversava com os pais dela.

- Creio que não, só anestesiado. Mas a anestesia deve acabar logo e

acho que amanhã cedo ele já poderá conversar com você.

- Você contou pra ele? continuou David. Contou o que fiz? Da nossa

oração?

- Ainda não. Quer que eu lhe conte ou prefere você mesmo contar

assim que ele acordar?

- Papai disse que nós vamos embora agora, já que não podemos fazer

nada aqui. Então acho melhor você contar.

- ‘Tá bom, replicou Cris, sorrindo para o irmão. Eu conto pra ele. E

David...

O garoto que já ia saindo parou, deixando que a irmã passasse os

braços em seu ombro e o abraçasse.

- Estou muito feliz com sua decisão, disse ela, dando-lhe um beijo no

rosto.

Em seguida, falando perto de seu ouvido, prosseguiu:

- Hoje você tomou a decisão mais importante da sua vida. Estou muito

alegre de ter participado daquele momento.

David parecia meio sem jeito, com vontade de passar a mão no ponto

do rosto onde a irmã o beijara, mas estava se esforçando muito para manter

uma atitude adulta nessa situação.

- Obrigado, disse meio desajeitado.

Nesse instante, Cris compreendeu que cometera o maior erro de sua

vida por não ter saído da sala de aula e ido à procura do namorado para lhe

dizer que o amava. Por isso, virou-se para o irmão e disse:

- David, gosto muito de você, meu irmão!

E tomou a decisão de nunca mais perder uma oportunidade de dizer

aos seus entes queridos o quanto os amava. E quando os pais estavam se

despedindo para ir embora, ela aproximou-se da mãe.

- Mãe, eu te amo, disse, dando-lhe um beijo no rosto.

- Pai, eu te amo, repetiu, abraçando-o.

O pai retribuiu e deu-lhe um beijo no alto da cabeça.

- Ligue pra nós de manhã cedo, viu? recomendou ele Se você precisar

de alguma coisa ou houver alguma mudança no quadro, nós viremos

imediatamente.

- ‘Tá bom. Obrigada, pai.

- Procure dormir, interpôs a mãe.

Pouco depois, Katie e o Tio Bob chegaram com várias latas de

refrigerante.

- Cadê o pessoal? indagou Katie.

- Foram embora, explicou Cris. E você pode ir também, se quiser. Eu

vou ficar.

- Ah, então fico com você.

- Você vai ficar, Bryan? indagou o Tio Bob ao pai de Ted.

Ele acenou que sim e pegou uma das latas de refrigerante que Katie

colocara sobre a mesinha de centro.

- Vou ficar pelo menos até ele voltar da anestesia, explicou o pai de

Ted. Se você precisar ir embora, Bob, pode ir. Eu dou um jeito de ir pra

casa depois.

- De maneira nenhuma, replicou Bob. Vou ficar. Quero ficar.

E com isso, passou o braço em torno do ombro de Cris e deu-lhe um

abraço de lado.

- Nesses dias, quase não tenho tido chance de ver minha linda

sobrinha aqui. Então vou aproveitar esta oportunidade.

A jovem passou os dois braços pela cintura do seu carinhoso tio.

- Eu te amo, Tio Bob. Já lhe disse isso? Não sei se já. Então saiba que

eu te amo!

Lágrimas brotaram nos olhos do tio.

- Também te amo, querida.

Nesse momento, Cris sentiu que o tio ficou tenso, assim que ergueu os

olhos. Ela acompanhou a direção do olhar dele e ouviu uma voz bastante

conhecida. Aí compreendeu a razão de ele ter ficado tenso.

- Mas eu sou parente dele, disse aquela voz com firmeza. Não sei por

que não posso visitar o Ted Spencer imediatamente.

Ninguém tinha aquele timbre cortante na fala, a não ser a Tia Marta,

principalmente quando tentava ao máximo forçar para que se fizesse a sua

vontade.

Tio Bob caminhou em direção ao balcão da recepção e Cris foi junto

com ele, deixando Katie a sós com o pai de Ted. Contudo os dois também

foram logo atrás deles.

Cris sabia que já estava acostumada com sua exótica tia. Nem seu

cabelo, nem as roupas que usava a assustariam mais. Nem mesmo a

mentira que acabara de dizer, afirmando ser parente de Ted, foi uma

surpresa para a jovem. Marta era uma pessoa que sempre conseguia o que

queria, ainda que tivesse de alterar qualquer regulamento. O que deixou

Cris espantada foi o homem que a acompanhava. Era alto, de pele

acobreada e tinha longos cabelos brancos esvoaçantes. Parecia uma espécie

de autonomeado anjo da guarda de sua tia.

- Olá, Marta! disse Bob, parando a menos de um metro dela com uma

atitude firme.

- Robert? disse ela, parecendo surpresa de ver o marido ali.

- Quem é esse cara? indagou Katie, num cochicho, aproximando-se de

Cris.

A jovem sabia a resposta, mas ficou de boca fechada. Afinal,

promessa era promessa. Cabia à sua tia que, aliás, se mostrava bastante

espantada, apresentar Cheyenne a todos.

13

- Assim que ouvi o recado na secretária, vim para cá, explicou Marta.

Em seguida, com passos rápidos, aproximou-se do marido e

cumprimentou-o beijando-lhe o rosto. Na verdade, beijou mais o ar do que

ele. Fez o mesmo com Cris e depois abraçou-a.

- Como está o Ted? indagou. Ele vai ficar bom? Vim muito aflita no

caminho todo.

- O médico disse que o quadro é estável, explicou o pai de Ted. Ah,

continuou, eu sou o pai dele, Bryan Spencer. Acho que ainda não nos

conhecemos.

- Satisfação, Marta, respondeu a tia de Cris. E como você se parece

com seu filho! Tenho muito prazer em conhecê-lo!

E com a mão esquerda, ela fez um gesto engraçado, batendo no ar,

como se estivesse querendo soltar dela algo.

Cris olhou para Cheyenne, que ficara uns passos atrás. Tinha

estampado no rosto uma expressão de quem não estava entendendo nada.

Não compreendia por que Marta, com seu jeito pouco sutil, lhe fazia sinal

para ir embora dali. Ao que parecia, naquele momento, a “aura” dela não

se achava em harmonia com mais ninguém naquele aposento.

- Oi! fez Katie para Cheyenne, de uma forma bem ostensiva, acenando

para ele.

Ela sorria para o homem, dando a impressão de que ele lhe parecia

meio acanhado e sem jeito de se juntar ao grupo. E foi só o que bastou para

ele se aproximar mais.

- Este aqui é meu professor de cerâmica, explicou prontamente a tia de

Cris. Tive uma aula agora de tarde e como fiquei muito abalada com a

notícia do acidente do Ted, o Cheyenne gentilmente se ofereceu para me

trazer até aqui.

Cheyenne virou-se para Bob e os dois se cumprimentaram

formalmente, com um leve aceno de cabeça, dando a impressão de que

nunca tinham se visto antes.

- O Ted ainda ‘tá na sala de recuperação, explicou o Tio Bob, com um

tom calmo e comedido. Assim que pudermos ir vê-lo, eles irão nos

informar. Mas pode ser que ainda demore um pouco. Se você quiser ir pra

casa, assim que soubermos mais alguma coisa, posso ligar pra lá,

passando-lhe as últimas informações.

- Vocês todos vão ficar por aqui? indagou Marta com a voz meio

áspera.

- Vamos, disse Bob, ainda num tom de quem está se controlando.

Cris teve a impressão de que a coitada de sua tia não sabia o que fazer.

- Vocês já almoçaram? insistiu ela, continuando com o tom nervoso.

Cris teve vontade de rir. Essa era uma tática que ela conhecia bem.

Era uma forma de resolver problemas que sua mãe e Tia Marta utilizavam.

Era um hábito que haviam trazido do interior, onde moravam na infância.

A própria Cris se pegara lançando mão dela um dia, na “Selva”, quando

Mark lhe dissera que acabava de chegar de Wisconsin. Sua primeira

preocupação fora falar de comida com ele. Foi então que compreendeu que

sua tia podia se apresentar como uma sofisticada socialite, ou se voltar para

a natureza (como começara a fazer ultimamente) e fazer o papel de

“compradora” oficial para todo mundo. Contudo a verdade é que, no

fundo, não passava de uma mulher do interior de Wisconsin. Sem saber

bem por quê, ao ter essa visão de sua tia, Cris se viu inundada por uma

onda de compaixão por ela.

- Não, ainda não, disse Katie, respondendo pelos quatro. Uns minutos

atrás, compramos apenas uns refrigerantes ali na máquina. É que não

queríamos ficar muito tempo afastados deste lugar.

- Então vou buscar algo para comerem, anunciou Marta. Alguém está

fazendo algum regime especial ou tem alergia a algum alimento?

Como ninguém respondesse, ela continuou:

- Ótimo. Então volto já.

Girando nos calcanhares, saiu. Cheyenne fez um aceno de cabeça,

como que se despedindo de Cris e dos outros. Em seguida, foi atrás de

Marta, que caminhava balançando o longo cabelo.

- Gente, vamos ligar para o laboratório, disse Katie em voz baixa,

assim que os dois se foram.

- Pra quê? quis saber Cris.

- Pra informar que a experiência deles fracassou. É a experiência de

clonar um modelo masculino para calendário. O exemplo mutante

conseguiu fugir e ‘tá indo atrás de sua tia.

Cris teve vontade de rir do comentário da amiga, mas se conteve.

Afinal, Marta era sua tia e o marido dela achava-se perto. Ela já aprendera

que assim que alguém começasse a tratar outrem com desrespeito, os

outros logo adeririam à brincadeira e começariam a fazer o mesmo. Era

muito fácil assimilar tal atitude.

Os quatro voltaram para a sala de espera. Mais de uma hora depois,

Cheyenne retornou com várias embalagens de espaguete, que exalavam um

cheiro delicioso.

- A Marta não está se sentindo muito bem, informou ele. Vou levá-la

em casa.

Nenhum deles se espantou com o fato. Comeram em silêncio. Cris não

estava nem tomando conhecimento do que comia.

- Vou dar uns telefonemas, disse Bryan.

- Vou lá fora respirar um pouco, informou Bob, depois que acabara de

comer.

Cris e Katie ficaram sozinhas. Cris sentiu uma raiva surda começar a

se formar em seu coração. Fazia anos que ela e Ted rodavam para cima e

para baixo naquela kombi velha e surrada. Era um milagre que os dois não

tivessem sofrido um acidente e morrido. Nunca mais, em sua vida, queria

entrar em um carro velho.

- Seu carro tem airbag nos dois lados? perguntou de repente para

Katie.

- Quê? indagou a outra.

- Não vou mais entrar no Buguinho com você não, disse.

- De que é que você está falando?

- O Ted poderia ter morrido. A kombi dele não tinha airbag.

Só agora era que o horrível acidente estava chegando ao seu

consciente. Cris teve a impressão de que ia vomitar.

- Mas não morreu, replicou Katie com firmeza. Cris, pense bem nisso.

Deus salvou a vida dele, pois ainda não terminou a obra que quer fazer no

Ted. Ele tem um plano para o seu namorado. Aliás, ele sempre tem um

propósito em tudo. No fim, isso vai produzir algo de bom. Por favor, não

venha me pôr medo agora. Você precisa ser forte.

As palavras firmes da outra foram como um balde de água fria nas

emoções tumultuadas de Cris.

- Você tem razão, disse. Deus está aqui. Ele está nisso tudo. Sei que

está. Ele vai realizar algo.

- Bom, bom, replicou Katie num tom de humor, que irritou um pouco

a amiga. Olhe só o que já aconteceu. Seu irmão se converteu.

Cris havia se esquecido disso. Mesmo assim, envolta em todo aquele

sofrimento, não achava que isso era razão suficiente para o Ted ter passado

por experiência tão terrível.

- Cris, principiou Katie aproximando-se e pondo-se a massagear de

leve o ombro da amiga, vamos manter uma visão correta disso tudo.

Estamos todos abalados, sim. É tudo muito horrível. Mas Deus não está lá

no céu, andando de um lado para o outro nervoso, torcendo as mãos e

dizendo: “Puxa! Como é que isso foi acontecer?” Não. Ele é Deus. Pode

fazer o que quiser. E ao que parece, no presente momento, ele quer que o

Ted continue vivendo.

Cris sentiu as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. Nem conseguia

acreditar que ainda havia algum líquido de resto em seu organismo.

- É, disse Katie, também vou lá fora respirar um pouco. Você poderia

fazer um esforço pra dormir um pouquinho. Quando o Ted puder receber

visitas, você vai precisar estar o mais calma possível. Tente descansar,

concluiu, dirigindo à amiga um sorriso leve.

Cris fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Deu um suspiro

profundo. Sentiu cheiro de desinfetante à base de amoníaco, misturado

com o do molho da comida, que cheirava a alho. Com o pé, empurrou para

um lado as sacolas com as vasilhas de espaguete que ainda estavam no

chão e tentou concentrar-se para orar.

Sentiu-se inundada de paz. Chegou a pensar que se abrisse os olhos

veria Jesus sentado ao lado dela. E ele não estaria torcendo as mãos aflito.

Katie tinha razão a respeito disso. Deus estava no controle de tudo. Sabia

que Jesus sentiria a dor que ela experimentava naquele momento.

- Cris! falou o Tio Bob, cortando aquele seu instante de reflexão. Você

‘tá bem, querida?

Ela abriu os olhos e fez que sim, procurando exercitar força interior.

- Estou bem, tio. E você?

- Tudo bem, respondeu ele, com um aceno de cabeça. Acho que não

deve demorar muito pra eles nos deixarem entrar.

Cris fitou o tio detidamente.

- Como é que você está mesmo, tio? Quero dizer, com esse problema

da Tia Marta, e tudo o mais?

- Estou muito sentido de que você tenha sido obrigada a vê-la daquele

jeito, com... com ele.

- Eu já sabia sobre o Cheyenne, explicou Cris. Naquele dia que ela foi

me visitar, umas semanas atrás, ela me contou sobre as cerâmicas e a

comunidade, etc.

- Ela lhe falou que ‘tá pensando em ir pra Santa Fé com ele?

Cris acenou que sim, num gesto lento.

- Mas eu prometi a ela que não contaria nada pra ninguém. Agora eu

gostaria de não ter prometido. Sinto muito não ter ido lá pra conversar com

você sobre essa questão.

- Não precisa se desculpar, não. Você não poderia ter feito nada, disse

ele, sentando-se e colocando os pés na mesinha de centro. Sua tia ‘tá

fazendo a vontade dela. Você não conseguiria mudar sua decisão.

Estava claro que Bob já tinha conhecimento do relacionamento de

Marta com Cheyenne. Cris ficou a se indagar se sua tia estava planejando

fazer essa mudança em breve. Em tom carinhoso, perguntou ao tio:

- O que você pretende fazer, tio?

- Um irmão lá da igreja me citou um versículo que se aplica à minha

situação, replicou ele. É 1 Corintios 7.15: “Mas, se o descrente quiser

apartar-se, que se aparte; em tais casos, não fica sujeito à servidão nem o

irmão, nem a irmã; Deus vos tem chamado à paz”.

Cris achou que o tio estava recitando aquilo como um robô. Sentiu-se

impelida a dizer algo.

- E você vai deixá-la ir embora assim?

- Não posso lutar contra isso, replicou ele, em voz embaçada.

- Pode, sim, tio.

A jovem não sabia de onde estava tirando forças para falar daquele

jeito, nem de onde vinham tais palavras. Em seu interior, parecia haver

brotado uma nova fonte de emoções relacionada com o problema do tio.

Esta era bem distinta da força relacionada com Ted e que ela vinha

esgotando havia já algumas horas. A primeira ainda estava repleta de

idéias, e ela se servia delas com toda a vontade.

- Você ainda pode lutar por ela, tio. Ore por ela. Ame-a. Não pode

entregar os pontos assim.

Os olhos dele se encheram de lágrimas. Cris achava que nunca tinha

visto o tio chorar.

- Tio Bob, esse versículo pode se aplicar ao seu caso agora, no

momento, mas existem muitos outros textos sobre o amor e o casamento na

Bíblia.

A jovem resolveu que iria continuar falando tudo que lhe vinha à

mente, antes que essa nova fonte de forças se esgotasse também.

- Nas aulas aqui na Rancho Corona, aprendi um fato muito

importante. É perigoso pegar só um verso da Bíblia e montar nossa visão

de um determinado assunto com base apenas nele. Temos de estudar todos

os textos relacionados com a questão, pra podermos entender o que Deus

quer nos revelar sobre ele.

Bob fitou-a pensativo e depois disse:

- Você tem razão. Eu desisti de sua tia sem lutar. Ia deixar que ela

fosse embora para aquela comunidade de artistas. Mas talvez isso não seja

a vontade de Deus.

Cris se lembrou de que seu tio era crente havia pouco tempo. No

desejo de fazer com que toda a sua vida se tornasse um tranquilo reflexo do

amor e da compaixão de Cristo, ele se esquecera de que o Senhor também

ficara irado. Jesus havia derrubado a mesa dos cambistas no templo. Tinha

chorado à vista de todos, quando seu amigo falecera. Havia mandado que o

morto saísse do túmulo e em outra ocasião ordenara ao vento e ao mar que

se aquietassem.

Cris se recordou de todos esses exemplos relacionados com Jesus

porque estivera lendo o Novo Testamento para conhecer melhor o

Salvador. Então comentou com o tio acerca dessas verdades que lera nos

Evangelhos e sugeriu-lhe que fizesse o mesmo.

- O que transforma nossa vida, tio, é a Palavra de Deus, explicou ela.

Recordou-se de que ouvira isso numa das aulas, mas não se lembrava

em qual.

Bob levou a mão à nuca e esfregou-a de leve. Fitou a sobrinha com

uma expressão mais leve.

- Sabe? Nunca li a Bíblia toda.

- São poucas as pessoas que já a leram, tio.

- Mas você ‘tá certa. Como posso dizer que sou discípulo de Cristo se

nem ao menos li a história da vida dele?

- Ele escreveu apenas um livro, a Bíblia, disse Cris. Então nós apenas

temos de lê-la, procurando a solução para os problemas da vida.

- O que acontece, replicou Bob, é que acho que tenho me limitado a

ouvir outros. Eles estudam as Escrituras e me passam o que aprendem. Não

é assim que ajo com meus investimentos financeiros. Então, por que devo

fazer isso na minha vida espiritual?

O Tio Bob se inclinou e deu-lhe um beijo no rosto.

- Senti muito a sua falta, Olhos Brilhantes, disse. Você sabe que

sempre foi e é minha sobrinha predileta.

- Hmmm, replicou ela sorrindo, mas sempre fui também sua única

sobrinha.

- Um pequeno detalhe, um pequeno detalhe.

Nesse momento, o pai de Ted entrou na sala.

- O médico disse que já podemos ir vê-lo. Está no quarto 302.

- Vou chamar a Katie e subiremos já, anunciou Cris.

O Tio Bob e Bryan subiram para o quarto. Alguns minutos depois, as

duas jovens também foram para lá. Quando Cris entrou, viu que Ted estava

com os olhos abertos, mas teve a impressão de que ele não a reconheceu.

Sentindo o coração bater forte, ela procurou reprimir as lágrimas de

compaixão. Aproximou-se do lado do leito e carinhosamente pegou a mão

do rapaz.

- Oi! disse ela.

Os olhos dele brilharam ligeiramente, mas foi o suficiente para ela

perceber que ele a reconhecera.

- Foarero, murmurou ele por entre os lábios inchados.

- O quê? indagou a jovem, chegando mais perto.

A aparência dele era horrível.

- Se estiver muito difícil falar, não se esforce, Ted, disse ela. Amanhã

de manhã, depois que já tiver dormido bem, você me fala.

- Nó foarero, repetiu ele.

- Foarero? perguntou Cris.

O rapaz fez um leve movimento, acenando que sim.

- Foarero... Ah, você quer dizer nosso fogareiro?

Novamente Ted fez sinal afirmativo. Parecia que o gesto lhe causava

dor. Katie aproximou-se e deu a interpretação.

- Cris, ele ‘tá querendo dizer que ‘tá preocupado com o fogareiro.

Devia estar na Kombinada.

Cris virou-se para o namorado, dando um sorriso.

- Você ‘tá pensando no nosso fogareiro? Ó Ted, não se preocupe com

isso. Podemos comprar outro depois. O mais importante agora é você ficar

bom.

O rapaz fechou os olhos. Cris olhou para a amiga com expressão de

preocupação. Naquele momento, não sabia bem o que dizer nem o que

fazer. O pai de Ted chegou mais perto da jovem.

- Nós vamos embora pra casa, disse, pra descansar algumas horas.

Amanhã eu volto.

Cris sentiu o Ted apertar levemente sua mão.

- Eu não vou embora, não, Ted, disse. Vou ficar bem aqui.

O rapaz soltou a pressão. Em seguida, caiu no sono, parecendo muito

cansado.

- Tem certeza de que quer ficar a noite toda? indagou o Tio Bob.

Cris acenou que sim.

- Katie, disse ela, se quiser voltar pra escola, pode ir. Não me importo

de ficar aqui sozinha.

- Acho que vou mesmo, respondeu Katie. Amanhã cedo eu volto.

Quer que eu lhe traga algo?

- Não. Se lembrar de alguma coisa, ligo pra você.

Todos lhe deram um abraço de despedida, e a jovem ficou sozinha ao

lado da cama. Num canto do quarto havia uma poltrona que ela arrastou

para perto do leito. Movendo-se bem silenciosamente, abaixou a grade

lateral, para que pudesse segurar a mão do namorado com mais facilidade.

Cris se pôs a orar. Ouvia o ruído constante dos tiquetaques dos

aparelhos, que pareciam um eco de suas súplicas a Deus. Enquanto eles

estivessem fazendo aquele rumor constante e seguro, Ted estaria bem. Ele

estava vivo. Olhou para um dos tubos que se achava conectado à mão

direita dele.

Ele tem um pouco do meu sangue agora, pensou. O meu e o dos meus

familiares, do pai dele e dos nossos amigos. Ó Ted, outro dia você falou

que sempre se sentira tão sozinho porque não teve irmãos. Agora, veja só!

Você ‘tá cercado por uma família de irmãos em Cristo e vivendo pelo

sangue dessas pessoas. Nosso sangue ‘tá correndo em suas veias.

Passou um dedo de leve sobre o dorso da mão esquerda dele,

acompanhando a linha da veia. Examinou o local onde o médico tinha

dado pontos. A cicatriz do corte ficaria na pele pelo resto da vida.

Jesus também tem cicatrizes nas mãos. Foi isso que você falou na

reunião dos jovens no domingo passado. Quando chegarmos ao céu,

Cristo vai estender os braços pra nós e aí veremos as cicatrizes.

Fechou os olhos e imaginou o Senhor de pé atrás dela. Uma das mãos,

com a cicatriz, estava pousada em seu ombro. Ela experimentara essa

proximidade de Jesus poucas vezes na vida. Agora ela lhe comunicava uma

imensa paz. Segurando a mão de Ted, sentiu-se calma ao imaginar a mão

de Cristo em seu ombro.

- ‘Tá vendo o quanto estamos ligados, Ted? sussurrou. Deus ‘tá aqui.

‘Tá conosco nisso tudo. Sinto sua presença de forma muito real agora.

Katie tinha razão. Ele não ‘tá lá torcendo as mãos, nervoso, perguntando

como é que isso foi acontecer. Não. Ele ‘tá estendendo os braços pra nós,

tocando-nos. ‘Tá nos aproximando mais um do outro e dele.

Desses pensamentos, ela passou a uma oração sussurrada. Era uma

prece bem definida, agradecendo ao Senhor por sua misericórdia, por ter

poupado a vida de Ted. Em seguida, entregou-lhe o futuro deles. E

encerrou dizendo as palavras que seu namorado dissera no acampamento:

- Como quiseres, Senhor!

De repente, Cris abriu os olhos. Acabara de ter entendimento a

respeito de algo, e ficou surpresa.

Eu sempre quero estar no controle de tudo, e planejar e organizar o

horário. Mas em última análise, na verdade não sou eu que estou no

comando da minha vida. É Deus!

Lembrou-se de que, quando Jesus estava na Terra, ele orara da

seguinte maneira: “Não se faça a minha vontade, e sim a tua”.

Foi isso que o Ted quis dizer quando falou “Como quiseres, Senhor”.

Seu pensamento era: “Senhor, faze o que quiseres, e eu aceitarei”.

Era possível que ela w o Ted jamais viessem a saber por que aquele

horrível acidente ocorrera. Contudo, juntos, podiam dizer para Deus:

“Como quiseres, Senhor. Faze o que quiseres de nossa vida e nós

aceitaremos tua vontade, mesmo que não a compreendamos”.

Nesse momento, desejou que o namorado estivesse acordado. Queria

muito expor para ele as idéias que lhe vinham ao pensamento. Entretanto

ele estava dormindo, e dormindo tranquilamente. Não poderia tirar dele

essa bênção de que ele tanto precisava para se recuperar. E a recuperação

seria demorada. E durante várias horas, Cris ficou ali sentada, ao lado do

seu amado, totalmente desperta, sentindo-se como que “banhada” pela paz

da presença de Cristo. A enfermeira de plantão entrou no quarto diversas

vezes, para verificar como Ted estava passando. Ofereceu à jovem algo

para comer ou beber. Contudo Cris recusou. Não sentia necessidade de

nada. Seu coração estava cheio; seu corpo, alimentado.

Em dado momento, no meio da noite, ela se levantou para se esticar

um pouco. Aparentemente, Ted percebeu que ela havia se movimentado e

agitou-se também. Cris colocou a mão fria em seu rosto inchado,

procurando dar-lhe alguma sensação de alívio. A respiração dele voltou ao

ritmo normal. Cris passou o dedo de leve sobre o contorno dos lábios dele.

Depois acariciou seu queixo firme, bem delineado e ficou a olhá-lo, como

que guardando na memória os traços de seu rosto.

- Eu te amo! murmurou.

As palavras jorraram de seus lábios naturalmente, sem restrição

alguma. Agora a estrada que ia do coração de Cris para sua boca estava

desimpedida. E essas três belas palavras “rodavam” por ela sem nenhum

obstáculo, e se derramavam sobre o rapaz que dormia.

Cris ficou a repeti-las em voz alta, dando risadinhas curtas.

- Eu te amo! Amo mesmo! De verdade! Sei que você não ‘tá me

escutando, Ted, mas não tem importância. Assim que você acordar, vou

lhe dizer tudo isso de novo, com meu rosto refletido em seus olhos, como

diz aquela poesia que a Katie leu. Vou lhe dar o melhor presente de todos

os que já dei. Vou lhe dar provas da promessa que lhe fiz, da promessa que

já lhe fiz em meu coração.

Respirou fundo, sorriu e disse em voz bem clara:

- Eu te amo, Ted Spencer. Para sempre e sempre. E nada vai mudar

isso!

14

Acordou ao sentir uma mão pesada sobre sua cabeça, alisando seu

cabelo de leve. Abriu os olhos e imediatamente se recordou de tudo. Ted

sofrera um acidente; estava no quarto do hospital.

Adormecera sentada na poltrona. Havia se inclinado e debruçado na

beirada da cama, apoiando a testa nos braços.

- Ei! Você acordou! exclamou erguendo a cabeça e vendo que ele

abrira os olhos.

Nesse momento, percebeu que havia babado. Pegou rapidamente um

lenço de papel na mesinha de cabeceira e limpou a própria boca.

- Como ‘tá passando? indagou.

- Olá! disse ele com voz rouca.

Cris sorriu e tocou no braço dele.

- Como ‘tá se sentindo? repetiu.

- Dolorido, replicou ele, movendo apenas os lábios e engolindo em

seco.

- Quer que eu chame a enfermeira?

Ele não respondeu. Caiu de novo num sono inquieto, provocado pelos

analgésicos, que gotejavam lentamente e entravam em suas veias.

Cris ficou ali parada mais uns dez minutos, esperando para ver se ele

despertaria, mas Ted continuou dormindo profundamente. Então levantou-

se, lavou o rosto e foi para a cantina do hospital. Uma xícara de chá quente

cairia bem nessa hora. Pediu também um biscoito e uma laranja. Quando

descascava a fruta, o cheiro forte do sumo se espalhou no ar e pareceu

reanimá-la.

Ted dormiu a manhã toda, despertando apenas três vezes. A certa

altura, chegaram Katie, Mark, Wesley, dois professores da faculdade e o

colega de quarto do seu namorado. Eles impuseram as mãos sobre ele, que

ainda dormia, e oraram em seu favor. Logo em seguida, voltaram para a

escola. Katie disse que avisaria Donna que naquele dia também Cris não

iria trabalhar.

O Tio Bob ligou duas vezes para o quarto. Na segunda, Ted acordou

ligeiramente com o toque do telefone. E no momento em que abriu os

olhos, o pai dele entrou no quarto. O rapaz sorriu, dando demonstração de

que estava muito feliz de ver os dois ali, embora também tivesse tido uma

contração de dor.

Momentos depois, chegou um buquê de rosas amarelas, enviadas pela

Tia Marta. Em seguida, a mãe do rapaz ligou. Cris atendeu e passou o

aparelho para o pai de Ted. Pelo jeito como conversaram, a jovem ficou

com a impressão de que os dois se relacionavam amistosamente. Era óbvio

que ambos amavam muito o filho. Cris desejou que seu namorado estivesse

acordado para conversar com a mãe. Contudo ele voltara a dormir, e se

achava desligado de tudo, inclusive de um segundo buquê que chegou,

acompanhado de um cartão, desejando-lhe pronto restabelecimento.

Por volta de meio-dia, o Dr. Johannes fez a visita ao quarto e lhes deu

novas informações sobre o estado dele. Disse que Ted continuaria

dormindo bastante pelo menos mais vinte e quatro horas, devido às

medicações que estava tomando. Contudo a fase crítica já passara. Suas

condições pareciam boas. Era um rapaz forte e saudável. Iria ficar

completamente bom, mas levaria algum tempo.

- Quanto tempo ele vai ter de ficar internado? quis saber Cris.

- Bom, eu gostaria de mantê-lo aqui mais alguns dias, explicou o

médico. E é claro que você pode ficar também. Mas não é necessário.

Cris não estava bem certa se deveria permanecer ali ou não.

Conversou sobre o assunto com o pai de Ted e no fim resolveu que voltaria

para a escola. Então inclinou-se sobre a cama, beijou o namorado no rosto

e em seguida sussurrou:

- Eu te amo! Durma bem! Durma profundamente e sonhe comigo.

Ted não respondeu. Aliás, ela nem esperava que ele o fizesse.

Contudo estava ansiosa para que ele acordasse mesmo e abrisse os olhos,

para que pudesse fitá-los demoradamente. Aí então iria dizer-lhe de novo

que o amava, e ele iria ouvi-la e compreender bem.

- Antes de ir pra escola, você gostaria de pararmos em algum lugar pra

almoçar? indagou o pai de Ted.

- Claro, replicou ela.

Como não convivera muito com o pai do seu namorado, achou bom

aproveitar essa chance de conhecê-lo melhor.

Quando já saíam pela porta automática, avistou Douglas e Trícia, dois

amigos dela e de Ted, que vinham chegando e a chamaram. Eles se

aproximaram e a abraçaram. Sem saber por quê, Cris começou a chorar.

- ‘Tá tudo bem, explicou logo. O médico disse que ele vai sarar

completamente.

Douglas deu outro de seus famosos abraços na jovem e disse:

- Katie ligou pra nós agora de manhã. Queria que ela tivesse ligado

ontem à noite. Teríamos vindo na mesma hora. Vocês sabem que podem

sempre contar conosco, se precisarem de qualquer coisa, não é?

Ele se afastou um pouco de Cris e olhou-a com expressão de

preocupação.

- Como é que você ‘tá?

- Estou bem, respondeu ela. Estou cansada, mas estou bem, replicou.

Conseguiu reprimir as lágrimas e com isso se sentiu melhor.

Cris olhou para Trícia e achou que esta parecia um pouco mais velha

do que na última vez em que a vira. Estava mais madura, usando uns

óculos de formato oval que combinavam bem com seu rosto arredondado.

- Será que poderemos ir vê-lo? perguntou Trícia.

- Claro, replicou o pai de Ted. Ele ‘tá dormindo desde ontem, quando

fez a cirurgia. Então não se espantem se ele não acordar ou não os

reconhecer.

Em seguida, explicou o que o médico lhes havia dito acerca da

cirurgia e sobre o estado geral de Ted.

- Vocês já estavam saindo? indagou Douglas.

Ele era da altura do pai de Ted, mas seu rosto ainda conservava a

expressão juvenil que sempre tivera. Tinha cabelos louros, bem curtos e

“espetados” que acentuavam seu ar de menino travesso.

- Íamos sair pra almoçar e depois eu ia levar Cris de volta pra

universidade.

- Ah, mas nós podemos levá-la, interpôs Trícia, pegando o braço da

amiga e puxando-a para si. Você se importa, Cris? Eu gostaria de

conversar um pouco com você, isto é, se não estiver com muita pressa de

voltar.

Cris olhou para Bryan. Sentia-se muito cansada para pensar ou tomar

decisões.

- ‘Tá bem pra você? perguntou a ele.

- Oh, claro, respondeu Bryan, estendendo um cartão para ela. Aqui

tem o número do meu celular. Se mudarem de idéia é só me ligar. Estou

pensando em voltar aqui amanhã à tarde e ficar algum tempo com ele.

Cris pegou o cartão e fez que sim.

- Obrigada! disse.

Bryan deu um sorriso caloroso para a jovem.

- Não, Cris, disse ele, eu é que agradeço. Você é uma jovem

excepcional! Tudo que o Ted me falou a seu respeito é verdade.

Ele se inclinou para ela e deu-lhe um beijo vigoroso no rosto.

- Se precisar de mim pra qualquer coisa, pode me ligar.

- ‘Tá bom, replicou a jovem.

Então os três retornaram ao quarto do Ted. O rapaz estava dormindo,

como seu pai dissera. Assim que Trícia viu seu rosto inchado e arroxeado,

começou a chorar, silenciosamente. Douglas sugeriu que orassem, e eles o

fizeram. Os três se deram as mãos, Cris pegou a esquerda de Ted, e

Douglas colocou a mão direita sobre o ombro do doente. Em seguida, este

orou e encerrou com “Amém”. Nesse momento, Cris sussurrou baixinho:

- Como quiseres, Senhor!

Gostava dessas palavras que representavam uma mensagem pessoal

para Deus, uma rendição de sua vontade ao Senhor.

E eles permaneceram alguns instantes ao lado do leito, conversando

baixinho. Afinal, uma enfermeira entrou e disse que precisava medir a

temperatura do paciente e ajustar a medicação dele.

- Vamos lá pra cantina? convidou Douglas. Acho que também quero

comer algo.

- Eu queria que o Ted pelo menos soubesse que viemos aqui,

comentou Trícia, olhando para o rapaz com ar de expectativa.

- Depois nós podemos voltar, disse Cris.

Chegando à cantina, sentaram-se numa mesa vazia e se puseram a

conversar como velhos conhecidos que eram. Aproveitaram para pôr em

dia os acontecimentos mais recentes da vida de cada um, fatos que haviam

sucedido após o último encontro deles. Cris se pôs a relatar o que

descobrira havia pouco tempo, a respeito do namorado. Douglas e Trícia se

inclinaram para ela, ouvindo atentamente. Parecia que eles, como Ted, já

esperavam, havia algum tempo, para escutar o que ela tinha a dizer.

- Eu amo o Ted, principiou Cris, dando de ombros, num gesto meio

acanhado. Eu o amo. Ainda não lhe disse isso. Ou melhor, ele ainda não

me ouviu dizer isso. Mas hoje sei com toda certeza que o amo.

Trícia deixou escapar uma risadinha gostosa. Douglas se recostou na

cadeira com uma expressão de satisfação.

- Já não era sem tempo! exclamou.

Cris fitou-o com ar zangado e disse:

- Eh! Muito obrigada! exclamou em tom irônico.

- Não, interpôs o rapaz. É que o Ted já tem certeza do amor dele por

você há muito tempo. E sei que ele nunca quis pressioná-la. Então agora

isso vai ser ótimo. Vai mudar a vida dele.

- Mudar a vida dele? perguntou Cris.

Douglas e Trícia se entreolharam com expressão significativa.

Pareciam dar a entender que conheciam alguns fatos a respeito de Ted. E

evidentemente tratava-se de coisas que Cris ainda desconhecia.

- Devo perguntar o que os dois estão pensando? indagou ela. O jeito

de vocês é de que conseguem ler a mente um do outro.

- E conseguimos, responderam os dois em uníssono.

Os três caíram na risada. Trícia tirou os óculos e colocou-os na mesa,

ao lado do sanduíche de peru que comera pela metade.

- Você talvez já saiba disso, Cris, principiou ela, mas o Ted ‘tá

apaixonado por você há muito tempo.

Cris reconheceu que alimentara esperanças a esse respeito, mas devido

à sua insegurança, duvidara do amor dele inúmeras vezes.

- Há muito tempo, repetiu Douglas. Na verdade, eu só vim a saber

disso depois que eu e a Trícia nos casamos. Uma noite, o Ted foi à nossa

casa e conversamos sobre aquela época em que nós dois saímos juntos,

quando ele se achava na Espanha. Aí ele perguntou à Trícia se isso fora

muito doloroso para ela.

Cris virou-se para sua amiga e fitou-a com um ar de compreensão.

Nesse momento, lembrando o passado, desejou que nunca tivesse causado

sofrimento a ela, por ter saído com Douglas. É que Trícia já estava muito

interessada no rapaz.

- Eu respondi pra ele, informou Trícia, que naquela época ainda não

sabíamos com certeza se iríamos namorar ou não. Na ocasião, nem eu nem

o Douglas tínhamos condições de assumir um compromisso sério. Quero

dizer, eu desejava muito que tudo desse certo pra nós algum dia. Aliás, eu

orava e pensava nessa possibilidade. Mas ainda não sabia ao certo.

- Foi aí que o Ted nos contou que ele já sabia, explicou Douglas, com

um sorriso em seu rosto juvenil. Confessou que percebeu que você era a

pessoa certa pra ele desde o dia em que a conheceu na praia. ‘Tá lembrada,

Cris?

A jovem cobriu o rosto com as mãos.

- Como é que eu poderia esquecer? comentou. Eu era muito garota

ainda. Veio uma onda forte que me carregou e me jogou bem aos pés de

vocês, toda enrolada em algas marinhas.

Douglas deu uma risadinha.

- Depois eu e o Ted lhe ensinamos a pegar onda com uma prancha.

Cris ergueu os olhos para ele.

- Vocês dois foram muito legais comigo. Nunca mais me esqueci

daquele dia.

- O Ted também não esqueceu, interpôs Trícia. Tempos depois, ele

nos contou que foi ali mesmo que ele compreendeu que você era a pessoa

certa pra ele, a que ele iria amar pelo resto da vida.

- Você ‘tá brincando! disse Cris.

Na verdade, já ouvira o namorado fazer afirmações nesse sentido, mas

sempre pensara que ele a estava “gozando”. Então olhou para Douglas e

em seguida para Trícia, para ver se não estavam brincando com ela. Não.

Ambos a fitavam com expressão muito séria.

- Desculpem, pediu. Tudo isso é muito estranho. Como é que ele

poderia saber algo assim se ele tinha... quantos anos ele tinha? Dezesseis?

Isso é loucura!

- ‘Tá vendo? disse Trícia, virando-se para o marido. Eu falei o mesmo

quando Ted nos disse isso, e você ficou zangado comigo.

- Não; não fiquei zangado com você.

- Você disse que eu não podia julgar os sentimentos de outra pessoa e

dizer que era loucura. Disse bem na frente do Ted.

- E o que foi que ele falou? quis saber Cris.

- Ah, ele não falou muita coisa, não. Não se defendeu, nem ficou sem

graça por causa do meu comentário. Parecia aceitar com naturalidade os

próprios sentimentos.

Trícia deu uma olhada para o marido e em seguida continuou:

-O Ted falou que sabia que a amava e que não precisava fazer nada

pra provar isso. Pra ninguém.

Cris ficou a pensar no que a amiga acabara de dizer. Tinha consciência

de que gostara de Ted desde a primeira vez em que o vira. Recordava-se de

que havia “sonhado” muito com ele. Tinha até devaneado sobre a

possibilidade de namorá-lo. Contudo, sobre amar, sobre um amor

verdadeiro mesmo, para sempre, não sabia. Não. Só poderia afirmar que

estava certa de que ele era o homem de sua vida a partir daquele sábado,

quando dera aquele passeio de bugue com ele na areia.

- Sabe o que mais? interpôs Trícia. Estou achando que não deveríamos

ter lhe contado nada disso. Trata-se de algo muito pessoal. É entre você e o

Ted.

- É, replicou Cris, mas também é entre vocês dois e ele. Quero dizer,

ele confidenciou tudo isso pra vocês, então ele deve ter confiado nos dois

com relação aos sentimentos e pensamentos que tinha a meu respeito. Não

achei ruim terem me contado. Aliás, até foi bom, porque isso me ajuda a

entender que ele começou logo a me considerar importante pra sua vida.

- Importante? repetiu Douglas. Cris, você era a pessoa da vida dele.

Você é. Depois disso, ele não se relacionou com nenhuma outra garota. Foi

sempre você.

- Só você, afirmou Trícia.

Cris sentiu as lágrimas lhe escorrerem pelo rosto. Não conseguia

acreditar na facilidade com que elas brotavam agora. Nunca poderia

imaginar que o Ted decidira entregar o coração para ela há tantos anos e

que nunca mais voltara atrás nessa decisão.

- Eu queria não ter essa dificuldade que tenho pra tomar decisões,

comentou entre lágrimas. Por que demorei tanto para entregar o coração

pra ele? Por que ainda fui sair com outros caras?

- Não fique assim, Cris, disse Trícia, pondo a mão no ombro da amiga.

- É, concordou Douglas. E como eu sou um dos outros caras com

quem você saiu, espero que não se arrependa dessa fase de sua vida.

Cris prontamente se refez.

- Não me arrependo, não, Douglas, disse. Sua amizade foi muito

valiosa. Tudo que aprendi quando estávamos juntos foi extremamente

proveitoso.

- E muito bom, acrescentou o rapaz. Não se esqueça disso, Tivemos

ótimos momentos juntos.

- Todo esse processo que você viveu pra chegar a essa conclusão de

que realmente ama o Ted é muito normal, comentou Trícia. Aliás, eu disse

isso pra ele naquela noite em nossa casa. As mulheres são diferentes. Eu

achei que amava o Douglas, mas só tive certeza quando estávamos na

Inglaterra. Lembra quando eu pedi pra sair da equipe de vocês? Foi porque

eu tinha acabado de descobrir que estava muito apaixonada por ele, e não

queria ficar perto dele. E não queria porque sabia que ele não sentia o

mesmo por mim.

- É, eu sei, comentou Cris. É por isso que estou me sentindo tão mal.

Estou pensando no quanto devo ter magoado o Ted por não ter certeza de

que o amava, sendo que ele tinha consciência de que me amava.

- Não se preocupe com o Ted, disse Douglas. Ele é forte. Forte e

paciente. Acho até que foi bom você não ter sabido antes. Essa sua ida pra

Suíça foi muito boa pra vocês. Se um ano atrás, ou mesmo cinco anos

atrás, os dois já soubessem que não conseguiriam viver um sem o outro,

teriam deixado de passar por experiências importantes. Pra tudo Deus tem

a hora certa. Então não devem se arrepender de nada.

Cris compreendeu que o amigo tinha razão. Agora era a hora certa de

Deus. Aquela palavra de Cântico dos Cânticos que dizia “Não acordeis,

nem desperteis o amor, até que este o queira” fora uma benção para ela.

Evidentemente, fora só agora que Deus resolvera despertar o amor em seu

coração.

Procurou se controlar e lembrou-se de algo que o Sr. Mitchell havia

dito na sala de aula. Fora naquela segunda-feira em que sentira a

compulsão de sair para procurar o Ted. Ele falara sobre as bênçãos que nos

sobrevem e nos alcançam quando obedecemos a voz de Deus. Então

entendeu que não precisava lamentar o modo como tudo acontecera.

- Creio que Deus vem cuidando de todos os detalhes do nosso

relacionamento há muito tempo, disse com um leve sorriso. Sabe o que

aconteceu? Em meu interior, brotou um amor por Ted num nível mais

profundo.

Trícia e Douglas também sorriram.

- É, nós percebemos isso, disse a amiga.

- Sinto que Deus me alcançou com algo novo, continuou Cris. Algo

mais forte e mais profundo do que o amor que eu tinha antes. É algo de

muito real. Agora sei que o Ted é a pessoa da minha vida. É o homem

certo pra mim.

E ao dizer isso, ela voltou a experimentar um forte anseio de retornar

ao quarto do Ted e declarar seu amor por ele.

- Sabe o que mais? principiou Douglas. Uma parte do que você ‘tá

sentindo agora pode ter sido causado pelo choque que sofreu com o

acidente dele.

Trícia deu um tapa de leve no braço do marido.

- Não tente desfazer do amor de Cris! disse. Ela ‘tá realmente amando

o Ted. Deixe que ela sinta esse amor sem tentar analisá-lo.

E aqui ela se virou para a amiga abanando a cabeça.

- Ah, os homens... exclamou.

- ‘Tá bom, ‘tá bom! concordou o rapaz. Então é diferente com vocês!

Estou muito feliz por você, Cris. O Ted vai ficar maravilhado. Ó meu bem,

continuou ele voltando-se para sua linda esposa, você não vai comer o

resto do seu sanduíche, não?

Cris soltou uma risada. Era a primeira vez que ria nesses últimos dois

dias.

- É, gente, tem coisas que não mudam nunca! comentou. Douglas, das

pessoas que conheço, você ainda é a que come mais!

Ele mastigou um pouco do sanduíche e respondeu:

- É, e estou ficando com uns “pneuzinhos” do lado, não estou, Trícia?

- Ah, nem tanto. Você não pára um minuto pra comida se “assentar”

no seu organismo e virar gordura.

- Quer dizer que vocês tem andado muito ocupados? quis saber Cris.

Trícia fez que sim.

- Mas tudo ‘tá indo muito bem. Ficou sabendo que encontramos com o

Rick Doyle? Cris, ele ‘tá tão mudado que quase não dá pra reconhecê-lo.

Deus... como foi mesmo que você falou? Alcançou? É, foi isso que você

disse. Deus alcançou o Rick.

- É tremendo! exclamou Douglas, ainda comendo o sanduíche.

- Katie recebeu uma carta dele, informou Cris. Parece que ele ‘tá

muito bem.

- É, Deus certamente foi muito duro com ele, mas muito paciente,

continuou o rapaz. Eu sei disso porque quando estávamos em San Diego,

eu, ele e o Ted morávamos juntos.

- Eu me lembro, disse Cris.

- É, mas você não sabe nem a metade do que eu sei, replicou Douglas.

E nem precisa saber.

- Ele mudou mesmo, confirmou Trícia.

- Que foi mesmo que você falou aquele dia, Trícia? indagou Douglas.

Foi algo que leu em um livro sobre Deus nos buscar, concluiu ele,

empurrando o prato vazio.

- O amor de Deus é incansável, replicou ela. E nos somos o primeiro

amor de Deus. Ele nunca desiste de nos buscar porque nos quer de volta.

- É. Isso mesmo! concordou o rapaz. É assim que Deus é. E foi assim

que ele agiu com o Rick. Vou lhe dizer, Cris, é tremendo! Assim que o Ted

sarar, precisamos nos reunir todos e ir à praia ou fazer algum outro passeio.

- Eu adoraria, disse a jovem.

- E aí? principiou Trícia. Vamos voltar lá pra ver o Ted?

- Vamos, replicou Cris.

Retornaram ao quarto, e naquele momento Ted abriu os olhos por um

instante. Contudo só deu para ele reconhecer o casal e murmurar algumas

palavras para eles. Logo depois caiu no sono. Cris ficou o tempo todo

segurando a mão do namorado. Assim que este dormiu, Douglas disse que

queria ir para a universidade. Cris hesitou.

- Acho que vou preferir ficar aqui, disse. Depois eu ligo pra Katie e

peço pra ela vir me buscar. É que ainda não quero deixar o Ted sozinho.

- Tem certeza disso? indagou Douglas.

Trícia deu um sorriso e puxou o braço do marido.

- É. Cris tem razão. Isso é o melhor pra ela.

- Precisa de dinheiro pra jantar? quis saber Douglas.

- Não, obrigada, replicou ela. Ainda tenho. Ah, e muito obrigada pelo

almoço.

- De nada, disse o rapaz, dando-lhe um forte abraço. Ah, e eu falei

sério quando disse que precisamos nos reunir todos, assim que o Ted sarar.

Depois me digam qual é o melhor dia pra vocês.

- Nós sentimos muito a sua falta quando estava na Suíça, disse Trícia,

abraçando a Cris novamente para se despedir. Estou muito alegre de vê-la

de volta e que bom que... aqui parou e deu uma espiada para o doente. Que

bom que agora você já ‘tá com tudo resolvido no coração.

- Bom, mesmo, concordou Cris.

Trícia aproximou-se mais da amiga e cochichou-lhe ao ouvido:

- E espero que o Ted acorde totalmente logo pra que possa contar a ele

o que nos contou.

Mais ou menos meia hora depois que o casal saiu, Ted acordou.

- Olá! disse Cris.

O rapaz estava com os olhos bem abertos, fixos nela. Quase nem

piscava. Cris sentiu uma enorme felicidade ao perceber que ele estava

atento a ela. Chegou mais perto dele e disse:

- Ted, tenho algo muito importante pra lhe dizer.

Ele olhou-a calmamente, aguardando.

- Ted, eu te amo. Eu te amo de todo o coração.

Como ele não respondeu nada, a jovem repetiu.

- Eu te amo, Ted!

O rapaz fez um movimento lento com a mão esquerda. Cris pensou

que ele iria estendê-la e tocar no rosto dela. Contudo ele passou os dedos

pelo cobertor, como que afastando algumas migalhas de algo. Seus olhos

estavam arregalados; sua respiração, mais rápida.

Cris estendeu o braço e apertou a campainha para chamar a

enfermeira.

- O que você tem, Ted? indagou ela.

- Elas são muitas, resmungou ele. Cuidado, elas estão chegando. São

muitas!

A enfermeira entrou no quarto.

- Tem alguma coisa errada com ele, disse Cris.

- O que foi, Ted? indagou a mulher em voz bem alta.

Ele não respondeu, mas continuou a bater a mão no cobertor, como

que para limpá-lo.

- Você ‘tá vendo algo? perguntou ela.

- Aranhas, murmurou ele. Muitas. E elas não querem ir embora.

Cris começou a sentir o coração batendo forte.

Será que o acidente afetou o cérebro dele? O que será que ‘tá

acontecendo?

- ‘Tá bom, Ted, continuou a enfermeira, falando com firmeza. Vamos

dar um jeito nelas. Você está apenas tendo uma alucinação. Vamos mudar

sua medicação imediatamente.

Ela examinou o frasco do soro e desligou-o, removendo-o do suporte

de metal.

- O medicamento ‘tá provocando alucinações nele? indagou Cris.

- Está, explicou a mulher. Isso é relativamente comum. Podemos dar

um outro remédio que não vai causar esse efeito. Não se preocupe. Ele vai

ficar bem.

Contudo ela se preocupou, sim. Permaneceu ao lado dele a tarde toda.

O rapaz, porém, dormiu profundamente e, ao que parecia, não teve mais

“visões” de aranhas invisíveis. À noite, Katie apareceu e insistiu com Cris

para que voltasse para a escola, para que pudesse dormir melhor.

- Espero que não se importe de eu dizer isso, mas já, já, você vai

precisar tomar um banho, argumentou. Acho que hoje você deve ir dormir

em sua cama.

Cris pediu a Katie que esperasse um pouco. E foi bom que não

tivessem ido embora logo, pois às 9:00h o Ted acordou e conversou com as

duas. Disse-lhes que estava se sentindo muito melhor. Chegou inclusive a

dar risada, uma gargalhada meio rouca. A enfermeira havia avisado a Cris

que o novo medicamento que ele estava tomando iria deixá-lo um pouco

eufórico. Disse ainda que depois ele não iria se lembrar do que havia

falado, nem do que elas lhe dissessem. Apesar disso, Cris se aproximou

bem dele e disse:

- Ted, eu te amo!

Ele deu um sorriso meio estranho, com os lábios inchados, e replicou:

- É claro que ama!

Katie, penalizada, puxou a amiga pelo braço e disse:

- Precisamos ir embora, Cris. Vamos deixá-lo dormir. Amanhã ele vai

ouvi-la melhor e compreender o que ‘tá dizendo. Vamos, Cris.

Assim que Ted caiu no sono de novo, a jovem resolveu ir, mas não

sem alguma relutância. Foi acompanhando Katie até o estacionamento do

hospital. Quando chegaram perto do Buguinho, ela parou. A amiga

entendeu sua atitude.

- Sei que não temos airbags, mas você ‘tá com medo de rodar comigo?

- Não, Katie, explicou Cris, não é com você. É num carro, em

qualquer carro e pegar essa estrada.

- É, entendo. Ontem, quando fui embora daqui, tive essas mesmas

sensações.

- Teve, é?

Katie acenou que sim.

- Fui embora muito devagar e orando o caminho todo.

- Então vamos fazer o mesmo hoje. Você vai dirigindo bem devagar, e

nós duas oramos, disse Cris, colocando o cinto de segurança. É, mas não

precisa ir devagar demais pra não causar problemas para os outros carros.

- Pois não, mãe! brincou Katie.

Cris riu.

- Você arrumou o quarto enquanto estive aqui? indagou.

A colega fitou-a com um ar de quem espera que a outra não esteja

falando sério.

- Arrumei, claro, respondeu. Ah, e a propósito, Daisy e Dino estão

muito bem.

- Quem?

- Nossos novos peixinhos. Comprei gêmeos dessa vez.

Cris abanou a cabeça. Como já havia trabalhado vários anos numa pet

shop, sabia que os peixinhos dourados não nasciam em duplas. Além disso,

podia haver até trinta deles num aquário que todos seriam exatamente

iguais.

- Mudei o aquário de lugar, continuou Katie, pra luz do Sol não bater

nele de tarde.

- Ótimo!

- Sabe o que o Mark fez hoje? indagou Katie no momento em que

girou o volante para sair do estacionamento.

- Não tenho a menor idéia.

- Ele descobriu pra onde levaram a Kombinada, e foi lá ver se poderia

“salvar” algo dela.

- Foi mesmo? Ah, que legal da parte dele!

- É. Olhe aí no banco de trás.

Cris virou-se e viu, ali atrás, o fogareiro dela e do Ted, ainda na caixa,

parecendo não ter nenhum arranhão.

- Ele estava debaixo do assento traseiro, explicou Katie. E tudo o mais

na kombi simplesmente acabou.

- O Ted vai ficar muito feliz quando souber do fogareiro, disse Cris.

- É, eu sei. Foi por isso que o trouxe aqui. Estava pensando em levá-lo

lá em cima pra mostrar pra ele. Mas quando cheguei aqui acabei

esquecendo.

- Amanhã, quando eu vier visitá-lo, disse Cris, vou trazer o fogareiro

pra mostrar a ele.

- E o Mark pegou outro objeto na Kombinada.

- O quê?

- Você vai ver quando chegarmos lá. ‘Tá no quarto. Na sua cama. Eu

até lavei.

- Não pode me dizer o que é?

- Você vai ver, replicou Katie.

E como ela havia prometido, dirigiu bem devagar e cuidadosamente

até a escola. Então chegaram ao destino sem nenhum incidente.

Assim que Cris saltou do carro, foi correndo para o quarto, cheia de

curiosidade, para ver o que Mark havia tirado da kombi. Tão logo abriu a

porta, sentiu-se inundada por uma onda de satisfação e sorriu para a colega.

Era o blusão de moletom azul-marinho do Ted, que tinha um capuz.

- Oh, Katie, disse, que bom que o Mark pegou isso lá. E muito

obrigada por ter lavado.

Cris pegou o blusão e o colocou junto ao rosto.

- É, comentou Katie, achei que iria precisar dele à noite.

Ela tinha razão. Cris tomou um demorado banho quente e depois

vestiu uma camiseta e uma calça de pijama. Em seguida, deitou-se, pegou

o blusão, enrolou-se nele e colocou o capuz na cabeça.

15

O resto da semana foi muito corrido para Cris. Fez várias viagens ao

hospital, com refeições apressadas nos intervalos. Felizmente, tanto Donna

como os professores tiveram atitudes muito compreensivas com suas

frequentes ausências, sempre que ela explicava a situação. Na sexta-feira, o

Ted recebeu alta e já podia deixar o hospital. Contudo o médico

recomendou que ele ficasse duas semanas em repouso total.

Depois de analisarem todas as opções que se apresentavam, ele e

todos os demais concordaram que o melhor seria que ele fosse para a casa

de Bob e Marta. O pai dele estava com uma viagem de negócios marcada,

para o Canadá. E no dormitório da escola, ele não receberia os cuidados

necessários.

No dia anterior, Mark e Katie tinham ido ao hospital e se oferecido

para dirigir os trabalhos do grupo de jovens da Igreja de Riverview

Heights, enquanto ele estivesse impossibilitado, Selena se prontificou a

conversar com seu amigo Ronny, para que ele e sua banda fizessem uma

apresentação no domingo.

Então, na sexta-feira, Bob e Marta foram juntos buscá-lo. Cris se

espantou um pouco com isso. A tia estava com o cabelo arranjado numa

única trança e usava uma calça preta, bem tradicional, e uma blusa branca.

Parecia que estava com pouca maquiagem, mas de batom, é claro.

Cheyenne não estava com ela, o que Cris achou muito bom. Começou

a pensar se não fora Bob que tivera a idéia de levar Ted para sua casa como

um recurso para “segurá-la” ali. Assim o casal, junto, participaria de uma

mesma tarefa.

Um funcionário do hospital empurrou Ted numa cadeira de rodas até

o estacionamento. Marta e Cris seguiam atrás, levando os cartões e flores

que ele recebera. Mark estivera ali um pouco mais cedo, trazendo as roupas

do paciente, que enfiara meio desajeitadamente numa sacola de plástico.

Bob fora na frente, para trazer o carro até a porta da entrada. Para

espanto de Cris, o tio viera num carro novo, uma perua Volvo de cor azul.

Ele saiu do veículo e se aproximou deles todo sorridente.

- Que tal o carro? perguntou ao Ted.

Em seguida, virou-se para Cris ainda sorrindo e comentou:

- Não é novo em folha, mas é um carro muito potente. Disseram que é

o veículo mais seguro na estrada. Consegui um bom preço nele.

Cris não estava entendendo por que seu tio se mostrava tão orgulhoso

daquele carrão. Tinha um bagageiro em cima e vários adesivos com frases

de surfe no pára-brisas traseiro.

- É para vocês! disse Marta, explicando à sobrinha que obviamente

ainda não compreendera isso.

- Para os dois! esclareceu Tio Bob. Já fiz o documento no nome de

vocês. Assim que chegarmos lá em casa, terão de assinar os papéis. E o

seguro ‘tá pago até os seis primeiros meses. Depois disso, vocês mesmos

terão de pagá-lo.

Cris estava abobada. Não sabia o que dizer.

- Fiz um ótimo negócio nessa compra, repetiu o tio, como que

tentando convencer a sobrinha de que ela devia ficar alegre com isso.

- Eu sugeri que ele comprasse um Land Rover, interpôs Marta, mas o

seguro era caríssimo. Sei que não é um carro novo, mas, se comparar com

aquela kombi “mortífera” e ridícula que o Ted tinha...

Imediatamente Cris a interrompeu. Queria preservar as recordações da

velha Kombinada com uma imagem bastante positiva.

- É maravilhoso, Tio Bob! disse ela. Muito obrigada. Não precisava

fazer nada disso, mas muito obrigada!

Cris não tinha muita certeza se Ted estava totalmente consciente do

que se passava. Nos últimos dois dias, ele já ficara mais acordado, mas

ainda estava tomando analgésicos. Fora por isso que não tentara lhe dizer

novamente que o amava. Queria esperar até que estivessem instalados na

casa dos tios e que tudo se acalmasse. Aí ele iria escutá-la e entender

perfeitamente.

Marta inclinou-se bem e fitou o rapaz diretamente nos olhos. Ele

permanecera calmamente sentado e calado.

- E aí? indagou ela. Você não disse nada. O que acha?

- Muito obrigado, falou ele, num tom natural. Muito obrigado mesmo.

Não precisavam ter feito isso. Vou pagar por ele.

- Não vai pagar nada, replicou a tia. Se você soubesse como o Robert

ficou feliz esta semana, quando estava procurando um carro para dar aos

dois... Você não pode privá-lo dessa alegria. Nem a mim. Eu também tive

uma participaçãozinha na escolha do carro. Era esse azul ou então um

verde-oliva muito sem graça. Eu disse: “Compre o azul”. Você não acha

que azul é mais bonito do que verde-oliva?

- É perfeito, concordou Ted.

Em seguida, estendeu a mão e deu um leve aperto no braço de Tia

Marta.

- Muito obrigado, repetiu.

- Chega de agradecimentos, retrucou a tia. Vamos colocá-lo no carro.

Arrumamos a saleta toda para você, e quanto mais cedo chegarmos lá,

melhor.

Cris ficou abismada com o cuidado da tia e com a eficiência dela ao

orientar os homens para instalar o rapaz no veículo. Chegou até a dizer

onde as flores deveriam ficar, na parte de trás da perua. Fez questão de que

Ted se sentasse no banco e frente, enquanto ela e Cris se acomodavam

atrás. A jovem nunca vira sua tia abrir mão do seu lugar ao lado do

motorista em favor de ninguém.

A viagem até Newport Beach durou uma hora e meia. Bob foi

relatando como pensara em comprar o carro mais adequado possível. Ele

até pesquisara na Internet, para saber quais eram os veículos mais seguros.

Depois procurou se informar sobre o ano em que saíram as melhores

peruas da Volvo. Por fim, foi à procura de um que estivesse em boas

condições e com baixa quilometragem. Agora estava todo satisfeito com o

belo carro que conseguira. Ted e Cris iam intercalando com muitas

palavras de apreço e agradecimento.

A jovem ficou muito feliz com a idéia de ter um carro. E gostou muito

desse. Quando era mais jovem, a mãe tinha um carrinho que ela também

usava. Em Basiléia, ela não precisara de veículo. E no momento, da

maneira como estavam suas economias, não seria tão cedo que teria

condições de comprar um. Deu um sorriso ao se lembrar de que, agora, ela

e Ted tinham dois objetos em comum: um carro e um fogareiro. Só faltava

arranjarem um cãozinho vira-lata e aí poderiam se casar e ir pela estrada

afora, como se fossem ciganos modernos.

Marta falara a verdade ao dizer que arrumara a saleta toda para

acomodar o Ted. Ela havia tirado o sofá de couro que estava lá e alugara

um leito de hospital. Bem à frente dele, estava um enorme televisor. Na

mesinha de cabeceira, havia diversas fitas de vídeo, revistas e pacotes de

salgadinhos e biscoitos à espera do rapaz. Ela comprara também várias

camisetas e shorts próprios para o surfe e os pusera, dobrados, ao pé da

cama. Esta se achava muito bem arrumada, com o virol dobrado da forma

certa, como se faz nos hotéis.

Ted passou por tudo isso sem notar nada e logo foi se deitar. Poucos

minutos depois, estava dormindo. Cris deduziu que ainda não se achava

completamente desperto.

- Vou deixar o remédio bem aqui, disse Marta, mostrando a Cris uma

bandeja em outra mesinha.

Nela também havia uma jarra de água, um copo, um canudinho e um

termômetro.

Tia Marta, você teria sido uma mãe maravilhosa. Que pena que não

teve filhos! ‘Pera aí! O que estou pensando? Ela sempre tentou me tratar

como filha, quase como se eu fosse sua filha. Como posso querer que os

“filhos” dela passassem pelo que passei durante tantos anos?

- Venha ver o que fiz no seu quarto, Cris, chamou a tia.

E conduziu a sobrinha até o andar superior de sua maravilhosa casa à

beira da praia. Levou-a ao quarto que Cris ocupara na primeira vez em que

fora ali, no ano em que fizera quinze anos. Na época, ele estava decorado

com cortinas, lagos e flores cor-de-rosa.

Quando Marta abriu a porta, Cris quase não acreditou que era o

mesmo aposento em que se hospedara tantas vezes, na adolescência. Agora

a decoração era toda com motivos californianos, inclusive com um

desenho de um deserto pintado nas paredes. Na do lado esquerdo, havia um

pôr-do-sol em tons laranja vivo, como pano de fundo para um carrinho de

vender verduras completo com todos os acessórios. A cama, em estilo bem

colonial, estava apoiada em tijolos. Nas quatro colunas viam-se minúsculas

lâmpadas brilhantes. Sobre todo o conjunto, havia um mosquiteiro de

tecido de cor marfim. Junto à janela, sobre uma mesinha de estilo antigo,

havia uma daquelas velhas bacias de quarto para lavar rosto com sua jarra

de água. Ambos eram de cerâmica belamente trabalhada.

Cris se sentiu como que envolvida por todo aquele colorido e beleza.

Não dava para pensar que alguém pudesse dormir naquele cômodo. Só

faltava ali o som do uivo de um coiote. Aí ele poderia até ser uma atração a

mais num parque temático.

- O que achou? indagou Marta ansiosamente.

O Tio Bob também viera com elas e a jovem deu uma espiada para ele

antes de responder. Ele parecia dizer-lhe com o olhar que pensasse bem

antes de replicar.

- É simplesmente grandioso, disse afinal, falando lentamente. Era o

único comentário que poderia fazer com toda sinceridade. E em seguida

acrescentou:

- Você deve ter trabalhado muito pra arrumar isso.

- Trabalhei, sim, disse a tia. Venha ver minhas cerâmicas.

Marta se encaminhou para o banheiro contíguo ao quarto. Nele estava

uma cômoda, sobre a qual se viam várias peças: tigelas, vasos e pratos

pintados. A tia foi apontando cada uma e falando algo sobre o objeto.

Depois fez o mesmo com outras que se achavam penduradas na parede,

logo acima do móvel.

- São lindas, Tia Marta, exclamou Cris, com toda sinceridade.

De fato, as cores e formatos das peças que sua tia criara eram

belíssimas.

- Acha mesmo? quis saber a mulher.

- Acho, sim. Que lindo este pratinho! Gostei demais do modo como

você fez a beirada dele azul.

- É um pratinho para pôr os anéis. Sabe, né? Para colocar as jóias

quando as tira para lavar as mãos. É um bom lugar de colocá-las. Pode

ficar com ele para você.

- Oh, tia, gostei muito dele, mas não precisa me dar. Não quero

desinteirar o jogo. Além disso, não tenho nenhum anel, completou a

jovem, estendendo as mãos vazias. Quero dizer, normalmente não uso anel.

- Então fique com ele para por sua pulseira, Cristina, insistiu Tia

Marta, fazendo um aceno em direção ao bracelete dourado que Ted dera a

Cris e que esta sempre usava no braço direito. Pelo menos até ele lhe dar o

anel de noivado, concluiu ela com um sorriso significativo.

- Obrigada, tia, replicou Cris afinal, pegando a peça na mão da tia.

Muito obrigada mesmo. Agradeço muito por tudo que os dois estão

fazendo pelo Ted. Foi muito legal da parte de vocês hospedá-lo aqui.

- Ah, não foi nada de mais, querida, interpôs Tio Bob. Você sabe que

ele é como um filho pra nós.

Marta deu uma espiada para o marido por sobre os ombros, parecendo

abrandar um pouco a expressão do rosto. Em seguida, voltou-se para a

sobrinha.

- Você sabe que nós faremos tudo que pudermos pelos dois. Tudo.

Antes que Cris pudesse se conter, soltou algo inesperadamente.

- Então, não vai embora, não, tia. Não vai pra Santa Fé, não. Fique

aqui, que é o seu lugar.

Subitamente o rosto de Marta ficou vermelho de raiva, mas ela não

disse nada. Cris deu um passo para trás, esperando uma retaliação que viria

a qualquer momento.

- Eu já sabia, Marta, disse o Bob, tocando-a no ombro, com um jeito

cauteloso.

Ela deu um arrancão, como se aquele toque dele a machucasse.

- Você contou pra ele! gritou para a sobrinha em tom sibilante.

- Não contei, não. Pra ninguém. Prometi que iria guardar segredo e

guardei.

- Foi o Cheyenne que me contou, interpôs Bob.

Marta girou nos calcanhares e olhou para ele.

- Cheyenne? Quando?

- Ah, faz vários dias já. Ele veio aqui, e você não estava. Acho que ele

pensou que você já havia conversado comigo sobre isso, e então me falou

sobre os planos que tinha para a colônia de arte e contou que você estaria

participando.

- Por que não me disse? indagou ela, parecendo “cuspir” as palavras.

Bob fez uma pausa e depois respondeu com outra pergunta:

- Por que você não me disse nada?

- Bom, gente, interveio Cris, vou lá embaixo ver como o Ted está.

Desculpem-me por ter dito o que disse.

E com isso ela se virou apressadamente para sair daquele quarto

californiano. A porta, porém, deu uma parada.

- Mas eu falei a verdade, Tia Marta, repetiu. Não contei nada pra

ninguém. E não quero que vá embora pra lá. Eu te amo.

Em seguida, fechou a porta e saiu. Logo depois ouviu a tia gritar com

o marido. Cris se sentiu muito mal quando descia a escada.

Por que tive de abrir a boca? Por que falei aquilo? Parece que

simplesmente saltou dos meus lábios! Não tinha a intenção de começar

essa guerra entre os dois.

No fundo, porém, ela sabia que não desencadeara guerra nenhuma

entre os tios. Eles já tinham problemas bem antes de ela abrir a boca.

Agora ela desejava que não tivesse dito nada. Queria que ela e Ted nem

estivessem ali nesse momento. Queria...

De repente, lembrou-se das palavras do namorado: “Como quiseres,

Senhor” Parou ao pé da escada. Ainda dava para ouvir a voz abafada dos

tios discutindo no quarto. Sentou-se no primeiro degrau e orou por eles. Ao

encerrar a oração, disse:

“Senhor, já sei que o mais importante não é o que eu quero. Então

meu desejo é que tudo termine do jeito que tú queres. É como quiseres,

Senhor. Que assim seja!”

Depois, levantou-se e foi para a saleta pé ante pé. Ficou alegre ao ver

que o namorado ainda estava dormindo e não poderia escutar a discussão

do andar de cima. Sorriu ao ver que no rosto dele havia uma expressão

calma e tranquila. Sentiu um forte anseio de lhe confessar que o amava.

Tinha vontade de beijá-lo, abraçá-lo e lhe dizer que o amaria para sempre,

com o mesmo amor doce e intenso que tinha por ele agora.

- Eu te amo! disse em voz alta, num tom grave e firme. Pode até

acontecer de o mundo todo enlouquecer completamente que isso não vai

mudar meu amor por você, Ted.

Ele não disse nada.

Cris caminhou até a cozinha e abriu a geladeira que estava sempre

bem abastecida. Pegou um pedaço de queijo e um vidro com suco de maçã.

Viu o menu das refeições para o final de semana, escrito num pedaço de

papel com a letra do Tio Bob. Achava-se fixado à porta com um imã em

formato de barco a vela. Para o jantar de sexta-feira, ele havia marcado

lazanha. Como Cris conhecia o tio e sabia do seu interesse por culinária,

concluiu que ele provavelmente já preparara o prato que devia estar pronto

para ir ao forno.

E acertou. Achou a forma com a lasanha na prateleira inferior. Deu

uma espiada no relógio. Eram quase 5:00h da tarde. Resolveu tomar a

iniciativa e colocar a comida no forno. Em seguida, prepararia uma salada

para que pudessem jantar assim que tivessem fome.

E acabou que ela foi a única a jantar. Ted disse que estava apenas com

sede, mas que mais tarde talvez comesse uma torrada. A idéia de comer

uma lasanha não o atraía muito.

O Tio Bob e a Tia Marta ainda não haviam descido e Cris não estava

sentindo que deveria subir para o quarto. Ficou sentada sozinha, na

cozinha, e se lembrou das inúmeras vezes em que fizera refeições ali.

Recordou-se das sensações que já experimentara na presença dos tios. Ela

não se assustava com as emoções fortes que eles estavam manifestando. Só

queria que resolvessem tudo e acertassem o que fosse preciso.

“Ó Deus, faz com que eles resolvam tudo, Senhor!” orou.

E ficou ali sentada, comendo e orando. No fim, guardou o que havia

sobrado do jantar, aliás, em grande quantidade. Embora Ted ainda

estivesse dormindo, resolveu fazer uma torrada para ele. Uma vez pronta,

passou manteiga e depois, mel, como sua mãe fazia para ela, quando estava

doente.

Por um instante, ficou a pensar se seria uma boa mãe. Achou que sim.

Esperava que sim. Antes de tudo, porém, acima de tudo, esperava ser uma

boa esposa.

E foi com o coração cheio de bons anseios que Cris pegou a torrada e

se dirigiu para a saleta. Encontrou o Ted sentado na cama, com um lenço

de papel na mão, tapando o nariz.

- O que foi? indagou, largando o prato.

Aí ela notou que o lençol estava manchado de sangue e pegou mais

lenços.

- Nariz sangrando, replicou ele, com a voz meio abafada.

Em seguida, tirou a mão e Cris viu que o sangue havia parado.

- Precisa de mais alguma coisa? perguntou.

- Não, respondeu o rapaz, recostando-se na cama. Puxa, esses

remédios estão acabando comigo!

- Vou pegar uma toalhinha, disse Cris.

Ela saiu e voltou com uma toalhinha molhada e uma de rosto.

- Todas as vezes fico pensando que, na próxima vez que eu acordar,

vou me sentir totalmente bem, comentou Ted. Só que não sinto.

- Você vai sarar, afirmou a jovem. Uma hora dessas, você melhora.

Fico admirada com o tanto que tem dormido.

- São os remédios. Se não estivesse com tanta dor, eu mesmo pararia

de tomá-los, comentou ele, passando a mão no lado do corpo, um pouco

acima dos quadris.

Fora ali que o haviam operado. Anteriormente, ele já havia dito que

aquela parte estava muito dolorida. Por vezes, quando fazia um movimento

mais brusco, sentia os pontos como se fossem rebentar.

- Vou ligar para o médico, disse Cris, dando uma olhada para o

relógio. Não sei se ele ainda ‘tá no hospital, mas quem sabe ele pode passar

outro remédio? Quando você estava lá, eles tiveram de mudar a medicação

porque estava tendo alucinações com aranhas.

- Ah, é, concordou Ted, falando lentamente e limpando a testa com a

toalha molhada. Acho que me lembro disso. ‘Tá tudo muito confuso, mas

elas estavam andando na cama, não estavam?

- Sei lá, replicou Cris em tom brincalhão. Não fui eu que vi as

aranhas, foi você. Mas a enfermeira disse que é muito comum um doente

ter essas alucinações.

- Então você liga para o médico? Pergunte se posso tomar outro

remédio, um que não faça meu nariz sangrar, nem me deixe sonolento o

tempo todo.

- ‘Tá bom, replicou Cris.

Ela se virou para ir à cozinha e nesse momento se deu conta de que

ainda não lhe dera o lanche.

- Ah, fiz uma torrada com mel pra você.

- Obrigado, querida, meu mel! Falou ele com um sorriso maroto.

Cris também sorriu. Era a primeira vez que ele a tratava assim.

Gostou.

E ele a tratou do mesmo jeito no sábado de manhã. Passava um pouco

de 9:00h, e ela lhe trouxera torradas com suco de laranja para o café da

manhã. Ele havia ligado a televisão e estava assistindo a alguns desenhos.

Cris foi à cozinha e pegou uma tigela com flocos de milho e voltou ao

quarto dele, sentando-se no sofá.

- E você? Dormiu bem? indagou Ted, tirando os olhos da tevê e

fixando-os nela.

- Não muito, respondeu. Tia Marta e Tio Bob tiveram uma forte

discussão lá em cima, ontem à noite, quando chegamos. Então, como eles

não desceram, não tive coragem de voltar pra lá. Dormi no sofá da sala.

Pôs no chão a tigela e ficou a se alongar para aliviar a dor no lado

direito do pescoço. Parecia que tivera um torcicolo.

- E eles? perguntou Ted. Será que já resolveram tudo?

- Sei lá, disse Cris. Ted, estou muito preocupada com essa situação.

Orei por eles, mas depois senti raiva deles. Não sei o que fazer.

- Umas semanas atrás, quando vi seu tio, tive a sensação de que o

relacionamento deles não estava lá muito bom.

- Espero que eles consigam acertar tudo. Não ‘tá parecendo que, de

repente, nós dois somos os adultos e eles, os adolescentes supersensíveis,

como nós éramos?

- Eu nunca fui supersensível, interpôs Ted, bocejando e abaixando o

som da tevê.

- ‘Tá bom, como eu era, concordou Cris, pegando de novo a tigela de

cereal, consciente de que Ted ainda estava de olho nela.

- Você também não era, não, retorquiu ele. Talvez muito emotiva, mas

sensível, não. Você sempre pensa muito sobre tudo e leva tudo ali,

intensamente e com muita sinceridade. Aliás, são exatamente essas as

qualidades que mais admiro em você há muito tempo.

Cris, que ia levar uma colherada à boca, parou o movimento no meio

do caminho, deixando o leite pingar na vasilha.

Vamos, fale com ele! Diga! Olhe a maneira como ele a está fitando!

Diga ao Ted que você o ama!

Baixou a colher para a tigela e se ajeitou.

- Também admiro muitas de suas qualidades e há muito tempo, Ted,

disse. Aliás, há dias, venho querendo lhe dizer que...

Antes que ela pudesse expressar a importante revelação, a Tia Marta

entrou com seu costumeiro jeitão espalhafatoso.

- E como está o nosso querido e amado paciente hoje? indagou ela.

Estou tão sentida, mas tão sentida, de havê-lo praticamente abandonado

ontem, caro Ted. Você conseguiu se ajeitar sozinho?

A excessiva melosidade da tia irritou Cris. Entretanto, ao mesmo

tempo, pensou se a mudança de atitude dela não significava que seu

coração também estava mudando.

- Cris cuidou bem de mim, explicou o Ted. Ela ligou para a médico e

já arranjou um outro remédio, que parece estar dando certo.

Marta piscou várias vezes.

- Ué, quando foi que arranjaram esse novo remédio? indagou.

- Ontem à noite, replicou o rapaz. Cris pediu ao médico que ligasse

para a farmácia do shopping de Westcliffe e ela foi lá buscar. Chegou lá

quando já estava quase fechando.

Marta pareceu ficar muito espantada ao saber que a sobrinha

conseguira realizar tal façanha. Nesse momento, o Tio Bob apareceu e

perguntou se alguém ali aceitava uns waffles para o café da manhã. Agora

ele estava com uma expressão mais calma do que estivera na noite anterior.

Cris ficou com esperanças de que essas pequenas mudanças fossem um

indício de que as coisas entre o casal estivessem indo melhor.

- Ah, eu já comi cereal, tio, respondeu Cris.

- Eu aceito os waffles, disse Ted.

- Será que isso significa que ‘tá recuperando o apetite? indagou Bob.

Isso é bom sinal.

Foi então que Tia Marta avistou as manchas de sangue no lençol e

ficou toda agitada. Ted explicou que fora seu nariz que sangrara, e ela logo

quis que o levassem de volta ao hospital, para o setor de emergência.

- Acho que foi por causa da mudança de clima, replicou o rapaz. Eu

saí de um lugar de clima seco e vim pra costa, à beira-mar. Ou foi isso ou

foi efeito dos remédios. Mas agora estou com outro medicamento. Estou

bem. Pode acreditar.

- Se sangrar de novo, disse Marta, temos de levá-lo para o hospital. E

iremos imediatamente. No momento, sua saúde está muito sensível.

Ted e Cris se entreolharam. E depois disso houve outras vezes,

durante o final de semana, em que eles se comunicaram silenciosamente,

só com o olhar. Parecia que sabiam claramente o que o outro estava

pensando. Cris apreciava muitíssimo esse tipo de comunicação profunda e

silenciosa.

Entretanto parecia que Bob e Marta não estavam tendo um

relacionamento assim tão profundo, como Cris havia esperado. Não

fizeram nenhum comentário sobre a discussão da noite anterior. É verdade

que estavam tendo atitudes bastante cordiais para com Cris e o namorado,

e mesmo um com o outro. Contudo não dava para ver se haviam resolvido

suas diferenças ou se apenas as tinham colocado de lado para se concentrar

em Ted. Cris achava que a segunda opção era a mais provável.

A jovem passou todo o final de semana dentro de casa, ora assistindo

a algum filme, ora apenas de olho em Ted, que dormia, e ora observando

os tios, que se mostravam amistosos um com o outro.

Domingo à tarde, quando pegou o Volvo para retornar à escola,

sentiu-se um pouco incomodada. Queria mesmo era ficar ali com Ted.

Contudo não deveria ficar, pois já perdera muitas aulas e horas de trabalho

na semana anterior. Estava na hora de retornar a vida rotineira de antes,

com as atividades normais. Entretanto seu coração não estava nada normal.

Todos os dias ela ligava para os tios, que lhe davam um relatório

completo de como o “paciente” de Marta estava. Depois passavam o

telefone para o rapaz. Este sempre conversava com ela em frases lacônicas,

o que deu a Cris a impressão de que a tia se achava presente ali todas as

vezes que ela ligava.

Mais adiante, no meio da semana, David, o irmão de Cris, ligou para o

rapaz. Contou-lhe que agora se tornara crente, que Cris orara com ele, no

hospital. Na quinta-feira, quando a jovem ligou, Ted lhe disse:

- Olha, o David me telefonou ontem à noite. Que bom aquilo que

aconteceu com ele, não?

- Era pra eu ter te contado, replicou ela, mas, não sei como, esqueci. É,

foi maravilhoso, não foi?

E logo em seguida pensou:

E eu também preciso lhe contar algo que é maravilhoso e que vai

deixá-lo imensamente feliz! Já lhe contei inúmeras vezes, mas você não

ouviu. Agora vou esperar um momento em que estejamos a sós.

Durante toda a semana, muitas pessoas, algumas das quais ela nem

conhecia, a pararam e perguntaram pelo Ted. Quando chegou a sexta-feira

à tarde, e ela colocou seus objetos de uso pessoal no carro para ir a

Newport Beach, tinha a sensação de que iria explodir de tanta ansiedade.

Parecia que a viagem até a casa dos tios estava demorando horas e

horas. O tráfego na estrada estava intenso, devido ao final de semana.

-Vamos lá, gente, vamos lá! ficou a resmungar com os outros

motoristas que estavam a sua frente.

Quando chegou a uma das saídas, o trânsito estava praticamente

parado.

Deve ter havido algum acidente, senão acho melhor arranjarem uma

boa desculpa para essa lerdeza!

Aí compreendeu que precisava se acalmar e diminuir a marcha, senão

ela própria poderia se envolver num acidente. Começou a respirar

profundamente e concentrou o pensamento no que iria fazer. Passara a

semana toda fazendo planos. Muitas vezes, à noite, não conseguia dormir e

ficava silenciosamente pensando neles. Outras vezes, conversava sobre

eles com Katie, quando as duas iam fazer alguma compra. Elas foram ao

supermercado e pegaram ovos, bacon, croissants e a geléia de que Ted

mais gostava: manga com mamão.

Uma chuvinha fina começou a bater no pára-brisas.

- Ah, não! resmungou Cris, acionando o limpador. Amanhã cedo,

chuvinha, você já terá ido embora, né? Porque eu não a chamei aqui para o

nosso café da manhã na praia, não. Já planejei tudo. Um café para dois. Só

eu e Ted. Sem chuva, nem gaivotas. Entendeu?

O trânsito parou, mas o coração de Cris estava “correndo” à frente

dela, na praia.

Só eu e o Ted. Só nos dois, bem juntinhos perto da fogueira. Vou lhe

dizer aquelas três palavrinhas eternas que estão ardendo em meu coração!

16

Após a irritante viagem pela rodovia lotada, Cris finalmente chegou à

casa dos tios. Ali teve uma surpresa. O Ted estava bem melhor. Seu rosto

desinchara e o olho roxo já não estava tão escuro. Veio receber a namorada

à porta com um forte abraço e lhe disse que chegara na hora certa, para

jantar. Ao que parecia, o Tio Bob estava ensinando o rapaz a preparar um

prato mexicano, com frango.

Então os quatro se sentaram para jantar. Marta, muito animada, deu a

Cris um relatório completo do restabelecimento de Ted sob os cuidados

dela. Durante todo o jantar, Cris e Ted se olharam muitas vezes,

carinhosamente, sorrindo o tempo todo. Contudo, no fundo, a jovem só

pensava no café da manhã que iria ter com o namorado, no dia seguinte, na

praia.

Pouco antes de ir se deitar, ela lhe avisou:

- Amanhã cedo quero preparar um café da manhã pra nós dois.

- Ótimo, replicou o rapaz. E vou ajudar. Seu tio vem me ensinando

alguns dos segredos de culinária que ele descobriu. Acho que, nessa

semana que passou, aprendi muito sobre a arte de cozinhar, mais do que

tinha aprendido antes.

- Na verdade, continuou Cris, pretendo fazer um café da manhã pra

nós na praia, naquele ponto onde a gente costumava ir. Gostou da idéia?

concluiu ela com um olhar esperançoso.

O Ted sorriu e fitou-a com ternura, demonstrando que sim, que

gostara da idéia.

- Que horas? indagou.

- A hora que der. A que horas você tem acordado?

- Sete, sete e meia. É muito cedo pra você?

- Não; ‘tá bom. Vou estar com tudo pronto.

Na manhã seguinte, ela já estava pronta às 7:15h. Havia colocado tudo

de que precisavam na velha cesta de piquenique dos tios. Era a mesma que

Tio Bob emprestara aos dois, numa outra ocasião em que tinham feito um

café da manhã ali. Ela já estava com tudo preparado para terem um

agradável momento: a lenha, os fósforos, um velho cobertor para forrar o

chão, etc. A chuva, educadamente, havia obedecido aos desejos dela e não

aparecera naquele dia. Só faltava mesmo o Ted. Seu convidado para o café

da manhã estava dormindo profundamente.

Cris pensou em ir até o lugar onde havia um fogãozinho de cimento e

começar a preparar tudo para depois voltar e acordar o rapaz. Estava

tentando descobrir um jeito de levar sozinha os pertences do café da manhã

para lá, quando o Tio Bob apareceu.

-Você levantou cedo hoje, Olhos Brilhantes, disse ele

cumprimentando-a.

Ela logo lhe falou de sua idéia de tomar o café na praia e ele se

prontificou a ajudá-la a carregar a lenha e as vasilhas para lá. Cris foi atrás

dele, pisando na areia fria, levando o velho cobertor e a cesta com os

alimentos.

O Sol não aparecera, escondido que estava por uma grossa camada de

nuvens. Uma leve brisa soprava mansamente, agitando a areia da praia.

Você ‘tá igual ao Ted, pensou ela, falando com o Sol escondido. ‘Tá

bem encolhido nesse seu cobertor, quando deveria estar aqui comigo. Vem

cá. Estou esperando-o!

- Vocês vão querer café, né? perguntou Tio Bob. Vou trazer uma

garrafa térmica.

- Seria muito bom, desde que... principiou ela, mas hesitou, não

sabendo como dizer de forma educada o que estava pensando. Desde que

só traga o café e...

- E depois vá embora? concluiu o Tio Bob, colocando a lenha no

espaço onde ela iria acender o fogo e dirigindo-lhe um sorriso de

compreensão. Você ‘tá dando a entender que os dois querem ficar

sozinhos.

Cris fez força para não ficar sem graça.

- Oh, tio, espero que não tenha sido muito mal-educada falando assim.

- Não, não. De forma alguma. ‘Tá falando como uma jovem... uma

jovem que ‘tá... como é mesmo aquela palavra?

- Apaixonada, completou Cris, sorrindo.

- Ah, é, uma jovem apaixonada.

- E estou, concordou ela em voz suave. Estou mesmo.

O Tio Bob inclinou a cabeça para um lado, fitando-a.

- Será alguém que conheço? indagou com um brilho alegre nos olhos.

- É, replicou ela. Pra dizer a verdade, é, sim. É alguém que você

conhece. Mas não vá dizer nada pra ele porque...

Outra vez ela parou, à procura da palavra certa para expressar seu

pensamento. Contudo o tio deve ter lido a mente dela, pois disse:

- Porque talvez você queira ser a primeira a contar pra ele.

Cris acenou que sim.

- Então fique esperando bem aqui e acenda o fogo. Vou fazer o café e

depois acordar o seu “príncipe encantado”. Nesse caso, não vou trazer a

garrafa de café. Vou deixar pra ele trazer.

- Obrigada, Tio Bob. Você é tão legal comigo!

O tio fez um gesto como que dispensando os agradecimentos e voltou

correndo para a casa. Cris deitou-se de bruços sobre o velho cobertor e

procurou se acomodar nele. Durante alguns momentos, ficou a contemplar,

com intenso prazer, o Oceano Pacífico, grandioso e infinito. Pôs-se a

respirar fundo, e o ar frio e úmido da manhã fez seus pulmões arderem.

Sentiu um leve cheiro de maresia apegar-se às narinas.

É hoje, Pai. Hoje é o dia que o Senhor escolheu. Foi o Senhor quem

despertou o amor, quem o acordou dentro de mim, não foi? Muito

obrigada por essa dádiva maravilhosa que é o amor. Sei que isso te

agrada, Pai. Mantém meu coração sempre voltado para ti e para a tua

vontade.

Aqui, Cris pensou que, se essa situação tivesse ocorrido alguns anos

atrás, ela agora faria uma oração pedindo a Deus uma prova. Iria dizer algo

mais ou menos assim:

“Senhor, se não quiseres que eu diga ao Ted que o amo e que nós não

nos casemos, então tira de mim este sentimento. Dá-me a certeza de que

não é ele a pessoa certa pra mim.”

Nesse momento, porém, não faria isso. Já “crescera” bastante em seu

relacionamento com Deus. Sabia que ele não era uma espécie de ditador,

que dizia: “Tem de ser desse jeito ou daquele”. A vida não era algo que

tinha de ser “desse jeito” ou então “daquele jeito” para depois morrer. Não.

A vida era composta de uma série de decisões. Na verdade, viver era um

processo no qual decidimos seguir a Deus e andar nos seus caminhos,

confiando nele a cada passo. Sabia que o Senhor era o seu Pai celeste, o

seu Pastor e o Amado de sua alma. Ele queria o melhor para ela. Aliás,

nesses anos todos, ele a guiara, levando-a a tomar decisões que lhe trariam

benefícios no futuro e fortaleceriam seu relacionamento com o Senhor.

Cris sentou-se com a planta dos pés apoiada no chão e passou os

braços em torno das pernas. Encostou o nariz gelado entre os joelhos para

aquecê-lo. Lembrou-se de algo que o Ted he dissera alguns anos atrás, num

momento em que conversavam sobre a vontade de Deus. Ela estava sem

saber se deveria ir para a Suíça ou não e precisava tomar essa decisão. O

rapaz lhe dissera:

“Ame a Deus e faça o que quiser.”

Naquele momento, essa idéia lhe parecera meio arrogante. A decisão

que precisava tomar era muito importante, mas ele não a ajudara em nada.

Apenas dissera que a apoiaria em tudo, fosse qual fosse sua decisão.

Agora percebia que aquele conselho dele fora muito sábio. À medida

que seu amor por Deus ia aumentando, nesses últimos anos, compreendia

que seu coração estava cada vez mais ligado ao Senhor. E assim ela

desejava mais e mais fazer aquilo que lhe agradasse e trouxesse glória a

ele.

- Ame a Deus e faça o que quiser, murmurou ela, em meio ao silêncio

da manhã.

Sentia uma imensa paz. Em sua mente, não havia mais qualquer

dúvida. Estava agindo certo. Sorriu, distendendo os lábios. Era uma

expressão que manteria sempre. Tinha a sensação de que interiormente

estava cheia - cheia de amor, cheia de Deus e cheia de esperança.

Levantou-se e se esticou toda, para relaxar. Era melhor acender o

fogo. A lenha pegou fogo logo e ela colocou a frigideira sobre a estrutura

de cimento, onde ela se encaixou direitinho. Pôs as fatias de bacon na

panela e ficou aguardando que começassem a fritar, com aquele ruído

alegre, harmonizando-se com a alegria que havia em seu coração.

O bacon já estava começando a exalar um cheiro gostoso quando ela

ergueu os olhos e avistou Ted que vinha em sua direção. Trazia a garrafa

térmica numa das mãos e duas canecas de louça na outra. Caminhava em

passos lentos mas firmes e retos, os olhos fixos nela. Sua expressão era de

que nada nesse mundo poderia impedi-lo de chegar até onde ela estava.

Contando cada passo dele, a jovem sentiu o coração dançar de alegria.

Um, dois, três, quatro. Um, dois, três, quatro. Será que você faz idéia

do quanto é bonito, meu amado, meu amigo?

Com um gesto brincalhão, levou os dedos aos lábios, beijou-os e, em

meio à brisa matutina, “atirou-os” na direção dele.

Como Ted estava com as mãos ocupadas, ele rapidamente virou a

cabeça e esticou o pescoço como que para “aparar” o beijo na face. Parecia

que o sorriso dele era permanente, como o dela.

Cris continuou com o olhar fixo no namorado que caminhava em sua

direção. Nesse instante, compreendeu, tanto com a mente como com o

coração, que nunca mais se esqueceria dessa imagem do rapaz vindo ao seu

encontro na praia. Nunca perderia a visão desse homem que, duas semanas

atrás, passara bem perto da morte, mas agora estava bem vivo e bem

apaixonado por ela.

- Hmm, que cheiro bom! exclamou ele, parando junto ao fogo.

Cris achou engraçado o fato de que as primeiras palavras dele, numa

ocasião tão significativa como aquela, tivessem sido tão corriqueiras.

- Eu te amo! disse ela de sopetão.

Imediatamente ela tapou a boca. Ela pensara dizer: “É o bacon!”

Entretanto seu coração estava tão cheio de amor pelo Ted que a declaração

simplesmente escapou quase sem ela o querer.

O rapaz foi se abaixando lentamente e se sentou perto dela, no velho

cobertor. Largou a garrafa e as canecas, e ficou a fitá-la fixamente como se

não conseguisse acreditar no que ouvira. Pela expressão do rosto, dava a

entender que queria que ela repetisse o que dissera.

Cris tirou a mão da boca e fitou aqueles profundos olhos azuis.

Respirou fundo e “mergulhou” na alma dele.

- Eu te amo! repetiu, num tom lento e bem determinado. Eu te amo,

Ted.

- É, achei que era isso mesmo que você havia dito, comentou o rapaz

com voz emocionada, e continuou: Também te amo, Kilikina!

Os dois ficaram imóveis. O bacon parecia soltar pequenos foguetes

enfumaçados, formando miúdas chamas brilhantes. No alto, três gaivotas

circulavam soltando seus piados agudos, como se fossem arautos do Rei,

tocando trombetas.

Lenta e ternamente os dois se aproximaram e seus lábios se

encontraram num beijo. Cris se sentiu ainda mais cheia de amor por ele.

Quando se separaram, esse sentimento como que transbordou pelos seus

olhos e escorreu pelo seu rosto sorridente.

Ted limpou as lágrimas dela com mão firme. Em seguida, fez um

gesto que já fizera antes, quando estavam na Europa. Colocou a mão

molhada no peito, bem na direção do coração. Cris viu que ele queria dizer

que guardara as lágrimas dela no coração. Ela estendeu a mão e tocou de

leve nos lábios dele. O rapaz segurou-a e deu um longo beijo na palma. A

jovem soltou sua mão da dele, e colocou-a sobre o próprio coração.

- Eu te amo! murmurou, com um sussurro leve mas firme.

Ted abriu mais o sorriso.

- Você sabe o que se diz acerca de uma declaração assim, não é?

Quando alguém faz uma afirmação, repetindo-a três vezes, ela fica valendo

pra sempre.

Cris fez que sim. Contudo não sabia se ele estava era lhe dando uma

chance de voltar atrás. Na verdade, porém, nada faria com que ela mudasse

sua declaração. E o rapaz sabia muito bem o que aquelas palavras

significavam para ela, para ele e para o futuro de ambos. Seu juramento

estava confirmado na presença de Deus.

- Eu te amo! repetiu firmemente, destacando cada palavra. Dessa vez,

porém, deu uma risadinha alegre no fim da frase.

- Eu tinha planejado tudo direitinho, explicou ela. Depois que

tomássemos o café, iríamos nos abraçar e ficar num clima bem romântico.

Aí eu ia lhe dizer isso.

Ted aproximou-se mais e abraçou-a.

- E agora? Assim ‘tá bem romântico?

Cris riu de novo.

- Não entendo como fui soltar tudo assim, de sopetão.

- Sabe de uma coisa? principiou Ted, a voz soando profunda, em seu

peito. Nesses últimos dias, sonhei várias vezes que você estava dizendo

que me amava.

Cris afastou-se um pouco e fitou-o diretamente nos olhos.

- Não foi sonho, Ted, disse. Falei mesmo muitas vezes. E a primeira

vez foi lá no acampamento, mas não deu pra você me ouvir por causa do

barulho do motor do bugue. Depois falei de novo várias vezes, no hospital,

quando estava dormindo. Por fim, disse isso na casa do Tio Bob.

- Ah, então não era sonho, repetiu ele, afastando do rosto dela uma

mecha de cabelo.

- Não, confirmou ela. Não era sonho. E agora também não é. É real,

como sempre foi real pra mim.

O rapaz fixou seus olhos azul-acinzentados nos de Cris, amando-a,

enchendo o coração dela de gozo, dizendo-lhe as palavras doces que havia

guardado no coração só para ela. E Cris sabia disso.

Nesse momento, uma gaivota mais atrevida deu um mergulho na

direção deles.

- Ah, não, não! gritou Cris.

- Desta vez, vocês não vão comer minha comida, não.

Ted pegou um garfo e virou o bacon.

- Parece que isso aqui já ‘tá quase pronto.

- Temos ovos e croissants também, disse Cris. E trouxe até geléia de

manga e mamão.

- Você é maravilhosa! exclamou o rapaz. Quer café? ‘Tá forte, mas eu

pus leite e açúcar na garrafa, como você gosta.

Cris sabia que o namorado não tomava café com frequência, mas

quando o fazia, gostava dele puro. Então percebeu o quanto ele fora

atencioso ao se lembrar de que ela o preferia com leite, e ainda se dispor a

tomá-lo do jeito dela.

Então, lado a lado, os corações juntinhos, Cris e Ted terminaram de

preparar o café. As gaivotas ficaram distantes. A chuva também foi para

outro canto do país. O Sol, muito preguiçoso, de dez em dez minutos, saía

de baixo de seu cobertor cinzento e dava uma espiada neles.

E assim o longo e lento piquenique particular dos dois foi

transcorrendo tranquilamente, durante aquela calma manhã de outubro.

Eles riram, beijaram-se, brincaram um com o outro, oraram, e comeram até

não poder mais. Cris sentiu que tudo estava perfeito; mais perfeito que isso

era impossível. Estava mais maravilhoso do que ela imaginara nas

fantasias que criara.

Contudo, na hora em que pegavam o cobertor e ajeitavam o vasilhame

para ir embora, ela sentiu uma tristeza com que não contara. A razão era

que Ted não a pedira em casamento.

Na verdade, não pensara que ele o faria; não pensara mesmo.

Entretanto, depois que ela lhe abrira tanto o coração e ele acolhera tudo

com uma atitude igual e muita alegria, era natural que ele dissesse aquela

frase que mudaria a vida dos dois. Era preciso que ele indagasse:

“Vamos nos casar?”

Todavia ele não a dissera. É verdade que falara outras palavras

maravilhosas. Contou que estivera esperando que ela tivesse certeza de que

o amava e lhe confessasse isso. Disse que Douglas e Trícia estavam certos.

Desde o primeiro dia em que a vira na praia, quando ela caíra junto deles

cheia de algas marinhas, ele já compreendera que ela seria a pessoa certa

para ele. Afirmou que depois nunca mais namorara outra garota. Aliás, ela

fora a única que ele beijara, a única que ele amou. A única. Entretanto não

disse:

“Quer casar comigo?”

Voltaram para a casa caminhando lentamente sobre a areia. Ted não

tomara o remédio antes de vir para a praia e agora estava sentindo muita

dor. Cris teve de carregar a cesta com a frigideira, os pratos, os outros

utensílios e o vidro de geléia. O rapaz só conseguiu levar o cobertor

dobrado e a garrafa térmica vazia. Contudo os dois objetos pareciam muito

pesados para ele.

Quando entraram em casa, ele estava com o rosto pálido e começara a

suar frio. Deixou o cobertor e a garrafa sobre a mesa e foi se deitar

imediatamente. Ficou repousando o resto do dia.

Cris sabia que não poderia reclamar de nada com relação aos

momentos que haviam passado juntos. O namorado empregara todas as

suas energias para estar com ela. Em dado momento, porém, novamente

começou a se inquietar com a indagação: Por que ele não me pediu em

casamento? Ela procurou pensar no esforço que ele fizera, e manteve isso

em mente pelo resto do final de semana.

No domingo pela manhã, Cris foi à igreja com o Tio Bob, e o Ted

ficou em casa, na cama, para recuperar as forças perdidas. A jovem e o tio

convidaram Marta para ir com eles ao culto, mas ela respondeu que

precisava ficar para cuidar do doente.

Contudo isso foi bom. A pregação daquela manhã foi sobre batismo, e

Cris sentiu que de fato não era algo que a tia precisaria ouvir no momento.

Primeiro ela teria de receber a Cristo como seu Salvador e entregar sua

vida a ele. Quando o pastor já estava encerrando a mensagem, a jovem se

lembrou de seu irmão. Ficou a se indagar como ele estaria passando e se

recordou de que fazia mais de uma semana que não ligava para casa. Con-

tudo seus pais iriam compreender. Agora, o mais importante era cuidar do

Ted.

Sabia também que eles apoiariam sua decisão de firmar seu

relacionamento com o rapaz. Apesar disso, tinha certa tristeza ao pensar

que eles não se achavam mais próximos dela. Esse distanciamento

começara no ano anterior, quando fora para a Suíça, E continuara depois

que voltara e viera para a Universidade Rancho Corona. Na verdade, ela

nunca fora uma filha que conversava com a mãe sobre todos os seus

problemas. Desde pequena, acostumara-se a guardar tudo consigo mesma e

resolver suas questões silenciosamente, sozinha, no quarto, com a porta

fechada.

Agora que estava para iniciar essa nova e maravilhosa fase da vida ao

lado de Ted, gostaria que a mãe tivesse sido uma amiga para ela, sua

melhor amiga e companheira. Entretanto a mãe não tivera esse tipo de

relacionamento nem com a Marta, que era irmã dela.

- Sabe de uma coisa? disse Bob, quando voltavam para casa. Tomei

uma decisão muito séria hoje.

Cris pressentiu que o tio iria falar de seu relacionamento com a

esposa. Então se acomodou melhor no banco do carro para lhe dar toda a

sua atenção. Nesse momento se deu conta de que aquele lugar, o banco do

“carona”, na Kombinada, era horrível. No carro do tio, porém, era muito

confortável. Quanto ao Volvo, ainda não sabia como seria andar nesse

assento, pois ainda não tivera esse prazer.

- Tenho feito aquilo que você sugeriu, continuou ele. Tenho lido a

Bíblia. Comecei pelo Novo Testamento, com os quatro primeiros livros:

Mateus, Marcos, Lucas e João.

Cris fez um aceno com a cabeça, concordando.

- O que tenho notado sempre é que Cristo amava as pessoas, apesar

das fraquezas humanas. Ele não ignorava os problemas delas, mas falava a

verdade com amor. E sempre dizia o que era necessário.

A jovem ficou um pouco tensa. Como seria que seu tio iria aplicar isso

no dia-a-dia?

- Vou começar a falar algumas verdades pra minha esposa, disse Tio

Bob em tom firme.

- Com amor, acrescentou Cris.

- Isso, com amor, concordou ele.

Aqui ele fez uma pausa e depois prosseguiu:

- Cris, me passe aí meu celular.

A jovem lhe entregou o aparelho. Ficou a olhá-lo e viu-o acionar a

memória para discar o número de sua casa.

- Vai dizer agora? Por telefone?

- Não, replicou o tio. Vou só perguntar se ela quer que a gente passe

no restaurante e leve o almoço pra casa.

Quando pararam no Betsy’s para pegar sanduíches e saladas, Cris

percebeu que continuava nervosa com relação ao pensamento do tio de

falar a verdade. Ainda estava assim quando chegaram em casa e o tio

entrou com o carro na garagem. E continuava se sentindo tensa quando

Marta veio à cozinha e perguntou se haviam trazido o salpicão de frango,

que era sua salada predileta.

Para surpresa de Cris, em vez de o tio berrar com a mulher, dizendo-

lhe que ela precisava mudar seu jeito de ser e tomar algumas decisões mais

sensatas, ele se aproximou dela e abraçou-a.

- Eu te amo, Marta, disse ele. Eu te amo de todo o coração.

Em seguida, deu-lhe um sonoro beijo nos lábios. Tia Marta ficou

espantada. Cris não se lembrava de ter visto o tio fazer tais demonstrações

de afeto pela esposa. Sempre se mostrara carinhoso e generoso com ela,

mas nunca apaixonado, como fazia agora.

Marta se soltou dos braços dele, visivelmente abalada.

- Fazia um bom tempo que eu não lhe dizia isso, continuou ele, sem se

deixar intimidar pela atitude dela. Mas é verdade, sempre vai ser. Eu te

amo e sempre te amarei. Daria minha vida por você. Jesus disse: “Não se

turbe o vosso coração. Credes em Deus”. Meu anseio é que seu coração

não fique mais perturbado, mas que você confie em Deus.

Tio Bob fez uma pausa em sua declaração de amor e Cris aproveitou

para pegar dois sanduíches e sair, dizendo que ir ver como Ted estava.

Encontrou-o na sala de visitas, perto da janela, lendo um dos livros

didáticos que ela trouxera para ele juntamente com uma lista de tarefas que

os professores lhe haviam passado.

- Você não acredita no que ‘tá acontecendo ali, disse ela, sentando-se

ao lado dele e entregando-lhe um sanduíche.

- Estão discutindo de novo?

- Não, pelo contrário. Nestes últimos dias eles têm discutido do

muito?

- Uma noite dessas, não pude nem dormir, porque eles gritavam tanto,

sobre quem estava certo e quem estava errado. O Tio Bob acabou cedendo,

como ele sempre faz, e pediu desculpas. Mas isso não resolveu nada.

- Pois é. Agora ele ‘tá lá na cozinha dizendo que a ama, que daria a

vida por ela e citando versículos bíblicos.

Ted deu um sorriso.

- O sermão hoje foi em Efésios? indagou.

- Não, foi sobre batismo. Por quê?

- Porque em Efésios 5 diz que o marido deve amar a esposa como

Cristo amou a igreja, e dar a vida por ela. Você entendeu, né? Do mesmo

jeito que ele deu a vida por nós. Fala que o marido deve “purificar” a

mulher, lavando-a com a Palavra de Deus.

Cris olhou para o sanduíche que ainda estava em sua mão, intacto.

- Que lindo! exclamou. É tão poético Mas por outro lado, é muito

estranho pra quem vê de fora.

O rapaz soltou uma risada.

- É... disse, mas é que a gente não deve ficar olhando o marido “lavar”

a esposa.

A figura que Ted usara mexeu com a cabeça de Cris. Sentiu o rosto

avermelhar-se e desviou os olhos. Os dois se puseram a comer em silêncio.

Cris ficou a pensar na idéia de se lavar e se purificar, para se tornar

apresentável diante de Deus, por meio da Palavra. Isso se harmonizava

com o que o pastor dissera acerca do batismo.

- Ted, disse ela afinal, acho que preciso me batizar.

O rapaz não pareceu ficar espantado com a afirmação dela. Também

pudera, ultimamente ela vinha fazendo algumas declarações sérias.

- Eu fui batizada quando era criança, continuou a jovem, ou fui

apresentada na igreja, não sei. Não lembro mais como e que eles faziam em

minha igreja no Wisconsin. Mas tenho um certificado com a data e tudo o

mais. Mas agora que sou adulta quero me batizar, para me identificar com

Cristo. Quero declarar publicamente que sou discípula dele.

- É, interpôs o rapaz, a mensagem deve ter sido muito convincente.

- Não, nem tanto. Bom, talvez tenha sido mesmo, não sei. Tenho

pensado nisso ultimamente. E agora essa figura de ser “purificada” e me

preparar como uma noiva, é...

Aqui ela fez uma pausa e pensou se deveria continuar dizendo o que

pensava.

- Estou enxergando um simbolismo mais profundo no batismo,

prosseguiu. E o que eu disse, quero assumir publicamente uma posição e

mostrar que já decidi no coração seguir a Cristo.

Ted acenou concordando. Ela sentiu que ele não precisaria dizer nada;

nem ela. Os dois estavam passando para a fase seguinte de seu

relacionamento. Ela própria estava crescendo em seu relacionamento com

o Senhor, e se sentia pronta para subir mais um degrau com Deus.

- Onde você quer ser batizada? indagou Ted, que já estava na metade

de seu sanduíche.

- Não sei. Você se batizou no mar, não foi?

- Puxa! Como você se lembrou disso?

- Foi você que me contou, no dia que o Sam morreu, quando

estávamos no ancoradouro. Disse que se batizou em 27 de julho, no dia do

meu aniversário.

- Isso mesmo

- Acho que quero me batizar na Igreja de Riverview Height, já que ela

é a nossa igreja agora. Não estou mais ligada à igreja dos meus pais, em

Escondido. Essa fase da vida da gente é tão estranha, né? Onde é que

chamamos de “casa”?

Naquela noite, quando retornava para a faculdade, foi pensando no

que dissera. Estava bastante escuro e começou a achar que deveria ter saído

mais cedo. O problema fora que não tivera vontade de se afastar do Ted.

Lembrou de como a casa dos tios para ela já era quase como sua casa, tanto

quanto a sua própria, em Escondido. A diferença era que por vezes,

naquele quarto com decoração californiana, quando ia se deitar na cama

alta, tinha a sensação de que dormia num dos antigos carroções dos

pioneiros. Estava sentindo falta da outra decoração, com lagos cor-de-rosa.

Nunca pensara que pudesse vir a sentir isso.

A sensação que tinha no quarto do dormitório da escola era a mesma

que experimentara em Basiléia - um alojamento temporário. O que ela

desejava mesmo era ter a própria casa, em algum lugar, com o Ted.

Pôs-se a relembrar os acontecimentos do final de semana. O café da

manhã na praia fora perfeito. Até o jeito como ela fizera sua confissão: “Eu

te amo”, fora emocionante e maravilhoso, pois saíra num rompante.

Agora já não se sentia mais tão aborrecida pelo fato de o namorado

não tê-la pedido em casamento logo depois, quando estavam arrumando os

objetos, após o café. Sabia que havia muitas razões para Ted não ter feito o

que seria o passo mais natural. Ainda não se recuperara totalmente do

acidente. Os medicamentos o deixavam bastante grogue, e ele dormia

muito. Provavelmente precisava de mais tempo para clarear as idéias e

pensar em tudo aquilo.

Além do mais, pensou ela no momento em que entrava na estrada que

ia para a Rancho Corona, com que dinheiro iríamos montar nossa casa?

Nesse momento, fez uma imagem mental dos dois e riu. Viu ela e Ted

sacando todos os cheques que ganhassem como presente de casamento e

indo para o Galpão da Economia. Bom, pelo menos estariam indo para lá

no Volvo azul, e não na Kombinada caindo aos pedaços.

Talvez tudo venha a se ajeitar aos poucos.

17

Assim que Cris entrou no quarto, Katie já começou a lhe contar sobre

a reunião dos jovens naquela manhã. Tudo tinha transcorrido muito bem.

Dezessete estudantes haviam ido lá. Todos gostaram tanto do grupo do

Ronny que o convidaram para tocar na igreja, na terça-feira à noite.

- Olhe só isto aqui, disse ela, entregando a Cris um enorme cartão com

votos de “pronto restabelecimento”. Na página da frente, havia o desenho

de um grupo de animais com uma aparência muito engraçada: leões, tigres,

panteras. Dentro, lia-se o seguinte:

Todos nós sentimos sua falta ferozmente!

- E todos eles assinaram, informou Katie. Podemos colocá-lo no

correio para o Ted amanhã. É espantoso como alguns deles estão querendo

levar Deus a sério. Uma das garotas se levantou e contou que, no

acampamento, o Ted falou que nenhum de nós sabe quando vai morrer. E

logo no dia seguinte, ele próprio sofreu um acidente. Um dos rapazes levou

três amigos à classe no domingo e todos disseram que vão convidar outros

para o culto de terça-feira.

- Que maravilha! exclamou Cris.

Em seguida, colocou o cartão de volta no envelope e se pôs a desfazer

a maleta que levara para o final de semana.

- Eu lhe disse que Deus estava fazendo uma porção de coisas, não foi?

comentou Katie, abaixando o volume do seu som e se acomodando na

cama da amiga, já que a dela ainda estava desarrumada.

- Ah, dá uma ligada para o Ted amanhã e conte tudo isso pra ele,

pediu Cris. Ele vai ficar simplesmente maravilhado. Tem orado pelo grupo

todos os dias, quero dizer, quando não ‘tá dormindo.

- Ele ainda ‘tá bem grogue, né? perguntou Katie, afofando o

travesseiro de Cris e apoiando nele o cotovelo.

- É, mas já melhorou muito, replicou, com um largo sorriso e enfiando

as roupas sujas num saco próprio que havia num canto do seu closet. É, ‘tá

bem melhor.

- Mas por que essa expressão de alegria, minha amiga? quis saber

Katie. Será que posso deduzir que o Ted ‘tá bem melhor porque você

finalmente fez aquela importante declaração?

Cris se ergueu e fitou-a com as mãos nos quadris.

- É, fiz. Nosso café da manhã foi perfeito. E agora o meu namorado,

aquele rapaz incrível e maravilhoso, não precisa mais ter a menor dúvida

com relação aos meus sentimentos por ele.

- Ah, finalmente você já pode dizer “O meu amado é meu e eu sou

dele”, comentou Katie com uma entonação poética.

- Já ouvi isso. É de Cântico dos Cânticos, né?

- Creio que sim.

- Você leu esse livro nesses últimos dias? indagou Cris.

Ela foi até a cama da amiga e, com movimentos rápidos, esticou os

lençóis e o cobertor e ajeitou os travesseiros. Um deles estava com a fronha

da Pequena Sereia e o outro com a da “Minnie”.

- Não, replicou a outra.

- Eu li o Cântico dos Cânticos quando estava em Basiléia. É o poema

lírico mais estranho e exótico que já vi. Tem só oito capítulos.

- Você leu aquela parte que diz “Os teus cabelos são como o rebanho

de cabras”? indagou Katie. Que romantismo tem isso? Ou então aquela

outra frase: “O teu pescoço é como a torre de Davi”? Essa então é linda

mesmo! comentou Katie, em tom irônico. Se um rapaz me dissesse essas

coisas, tenho certeza de que me apaixonaria por ele na hora!

Cris riu as gargalhadas. Riu tanto que teve de se sentar.

- Ah, agora já sei por que você riscou o coitado do Mark da sua lista.

Ele não disse as frases que você gostaria de ouvir.

- É, o coitado do Mark! repetiu Katie com um suspiro. Ele não

aprendeu essa frase sobre o rebanho de cabras lá em Brightwater.

Cris riu de novo.

- Ah, não, Katie, não fale assim dele. O Mark ainda é um amigo muito

querido, você sabe, né?

- Ah, sei. Mas não me entenda mal. Acho o Mark simplesmente

maravilhoso No domingo, ele assumiu tudo lá na igreja e cuidou de tudo. É

um ótimo rapaz! Só não é ótimo pra mim. Eu gosto de uma pessoa com

mais “tempero”!

- ‘Tá querendo dizer que aqui na escola não há muitos rapazes com

“tempero”?

- É, eu diria isso, sim. Mas não tire nenhuma outra conclusão aí, Cris.

Estou muito satisfeita aqui. Sinceramente. Aquela minha mania de ficar

procurando o cara perfeito acabou.

- Ué! Por quê?

- Resolvi me tornar uma das mulheres de Provérbios 31.

- E o que é isso? Uma nova agremiação aqui da escola?

- Não, mas não seria má idéia. Poderia trocar o velho Clube A. A., que

eu e a Selena fundamos na Inglaterra, por esse novo.

- O que é esse A. A.? quis saber Cris.

- Já esqueceu? O primeiro A significa “apenas” e o segundo,

“amigas”. E eu e a Selena somos as únicas associadas nesse clube. Nosso

lema era que iríamos ser apenas amigas dos rapazes. É, mas depois que ela

me falou de como o relacionamento dela com o Paul ‘tá indo, acho que o

número de associadas diminuiu. Agora é uma só: eu. Então creio que posso

fundar um novo clube, o P-31, a sigla da mulher de Provérbios 31.

- Ah, entendi, replicou Cris, disfarçando um sorriso. E posso perguntar

quais seriam os pré-requisitos para uma pessoa ser sócia desse Clube P-

31 ?

- Muito simples. A base é a primeira parte do versículo 10, que diz:

“Mulher virtuosa, quem a achará?”

Cris fitou-a, erguendo as sobrancelhas, como quem indaga algo, e

ficou a aguardar a explicação.

- Não entendeu, não? Olhe, lá não diz: “Um bom marido, quem o

achará?” Diz “Mulher virtuosa...” Então acho que isso significa que é o

homem que tem de procurar.

Cris deu uma risada e jogou seu travesseiro na amiga. Katie se

abaixou, e ele bateu na parede.

- ‘Tá pensando que estou brincando? Não! Pode acreditar em mim. Já

analisei isso por todos os ângulos. Daqui em diante, me ponho

completamente nas mãos de Deus. Vou apenas continuar fazendo meu

trabalhinho aqui, bem no centro da vontade dele. E se houver algum

“amado” pra mim em algum lugar por aí, vou deixar que ele comece a me

procurar, pra variar. Vou ficar bem aqui - como uma futura mulher virtuosa

– esperando que ele venha me achar.

Cris já ia abrir a boca para comentar algo, quando Katie a

interrompeu.

- E não venha me dizer que sente muito por eu não ter ninguém em

perspectiva, quando você e Ted já estão com tudo acertado e tão chegados

um ao outro.

Cris baixou os olhos para o chão.

- Era isso que ia dizer, não era?

- Como é que sabia?

- Ah, digamos que nós duas estamos mais ou menos no verso oitenta e

quatro de nossa música. Sabe, né? No verso oitenta e quatro, igual ao

primeiro, só que um pouco mais alto e um pouco pior.

Cris se encaminhou para a cama e se sentou ao lado da amiga

- É, mas quando nós cantamos juntas, não saímos tão mal assim, não.

- Não; não é juntas, não, replicou Katie, entregando-lhe o travesseiro

com a fronha da Pequena Sereia para ela se recostar. Não cantamos mais

juntas, não. Temos de largar nossa velha música. Agora você vai começar a

cantar uma nova, Cris. Só que seu dueto agora é com o Ted. E eu vou

passar a cantar solo, ‘tá bom? Agora, as músicas antigas não se aplicam

mais a nós, a nenhuma de nós.

Cris sentiu uma grande admiração pela amiga. Aliás, achava que

nunca a admirara tanto quanto nesse momento.

- Você deixa Deus ir realizando o que ele quiser em sua vida, e eu vou

convidá-lo pra fazer o que ele quiser na minha também. E além disso não

vamos mais nos comparar uma com a outra, ‘tá bem? concluiu Katie, num

tom de voz que dava a impressão de que desejava muito que Cris

concordasse com ela.

- “Como quiseres!” disse esta, com um aceno afirmativo.

E nas semanas seguintes, Cris notou mudanças verdadeiras em sua

colega. Um exemplo disso foi que, na terça-feira, ela pegou emprestada sua

lixa e cuidou das unhas. Ela nunca vira aquela sua amiga, com seu jeitão

meio de garoto, lixar as unhas antes. É verdade que as “roia”, que

arrancava as cutículas, mas lixar, nunca. Também nunca passava um creme

hidratante nas mãos.

E Katie lixava as unhas, toda contente, enquanto Cris estava na

Internet, fazendo uma pesquisa sobre Milton, o poeta cego. Katie

mencionou que já estava quase conseguindo a receita ideal para o seu chá

de ervas.

Por volta de quinta-feira, ela tinha certeza de que afinal obtivera a

mistura adequada. Para comemorar a vitória, ela fora ao Galpão da

Economia e comprara um bule de louça e algumas xícaras de vários feitios

e desenhos, para fazer um chazinho no quarto e chamar algumas colegas.

Então, na quinta-feira à noite, às 7:30h, quatro amigas dela vieram

para tomar chá. Katie disse que pensara em convidar outras, mas só

conseguira comprar seis xícaras no Galpão. Cris havia arrumado o quarto e

ajeitara tudo para que as seis “provadoras” pudessem se sentar por ali.

Katie preparou a bebida numa chaleira elétrica. Enquanto esperava que as

folhas do chá “cozinhassem”, ela serviu alguns biscoitos.

Selena, que era uma das convidadas, estava contando que sua irmã,

Tânia, iria se casar no feriado do Dia de Ação de Graças, e que o noivo

dela conseguira um emprego em Oklahoma.

Cris queria ouvir o relato, mas estava mais preocupada com o chá de

Katie. Então foi para um canto do quarto onde ela estava coando o chá e

colocando nas xícaras.

- Katie, cochichou ela, quero lhe perguntar mais uma vez. Por favor,

não fique com raiva de mim. Tem certeza de que, desta vez, ninguém vai

ter nenhuma alergia com seu chá?

- Tenho 99,9% de certeza, replicou ela. A mistura que fiz agora é

totalmente diferente da que fiz no semestre passado. Desta vez não pus

nenhuma espinheira.

- Você pôs espinheira da outra vez?

- É, mas eu não sabia que era espinheira silvestre, que causa coceira.

‘Tá bom?

- Afinal, por que você planta espinheira?

- Porque ela é boa pra quem ronca. Eu a sequei e misturei com hibisco

seco. E pus só uma pitadinha. Mas desta vez, não. Este meu preparado aqui

é o “Verão Indiano”. tem maçã, gengibre, canela e outros condimentos.

Nenhum dos ingredientes tem problema algum, eu lhe garanto.

Cris poderia até se sentir mais tranquila, se a amiga não tivesse

empregado o termo “preparado” para se referir ao chá. Contudo voltou

para seu lugar, e quando Katie lhe entregou uma xícara com a cheirosa

bebida que ainda fumegava, sorriu graciosamente.

- ‘Tá uma delícia, Katie! disse Selena, que foi a primeira a prová-la.

Esse comentário positivo fez com que as outras corajosamente se

arriscassem a tomá-la, “avançando num terreno onde ninguém mais tivera

coragem de entrar”.

- ‘Tá bom, sim, confirmou Cris.

Contudo, meio despistadamente, olhou para a parte interior do braço

para ver se não estava aparecendo nenhuma manchinha na pele. Por

enquanto, nenhuma.

- A combinação dos sabores ‘tá perfeita, continuou Selena

entusiasmada. Gostei do equilíbrio entre o gengibre e os condimentos.

Você pôs cravo também? Estou sentindo o gosto.

- Pus.

- ‘Tá muito bom, pois não ficou muito forte. Desta vez, você

conseguiu, Katie. Este chá aqui vai fazer sucesso.

Cris e as outras meninas concordaram. Katie era toda sorrisos.

- Então quero anunciar oficialmente o nascimento do chá “Verão

Indiano”!

Todas aplaudiram.

Vinte e quatro horas depois, Cris constatou que não lhe havia

aparecido na pele nenhuma manchinha. Também não tivera nenhuma outra

reação adversa. Então pegou um pacotinho do chá e levou para a livraria.

Donna gostava de tomar chá, e Cris achou que talvez ela aprovasse o novo

sabor que a Katie criara.

E de fato ela apreciou o chá, tanto quanto Cris, Selena e as outras

garotas. Na sexta-feira, quando já estava quase na hora de Cris encerrar seu

horário de trabalho e se preparar para ir a Newport Beach, Donna lhe

perguntou se poderia lhe arranjar mais daquele chá.

- É, posso lhe trazer mais um pacotinho na segunda-feira. Ou então

você pode ligar para o nosso quarto e pedir a Katie pra lhe entregar.

- É que eu queria dar um pouco para um conhecido meu, explicou

Donna. Há poucos dias, ele abriu uma livraria em Murrietta, com uma

cafeteria ao lado. Só que ali eles servem coisas diferentes. Acho que

gostaria de colocar este chá no menu dela.

- Mas será que primeiro a Katie não precisaria registrar o chá e tirar a

licença no departamento de alimentos e remédios? indagou Cris.

Cris não queria de forma nenhuma impedir que Katie vendesse seu

chá. Contudo ela já estava vendo a amiga, na pressa de atender ao pedido,

preparar uma mistura do chá e colocar espinheira junto com as outras

ervas. Já até imaginava os fregueses da cafeteria passando mal por causa

do chá e a colega sendo processada por danos físicos.

- É, acho que você tem razão, concordou Donna. Ultimamente as leis

estão muito rigorosas nessas questões. Isso é bom, mas também estringe

muito as pessoas, não é?

Nesse moneto, Cris sentiu certo contentamento por essas leis. Contudo

não expressou seu pensamento.

- Se você e a Katie puderem ir visitar essa cafeteria, acho que vão

gostar. Chama-se “Ninho da Pomba”. E a livraria é “A Arca”. Ótimos

nomes, não acha?

Cris ficou a olhar sua chefe por uns instantes. Estava usando uma

blusa de gola alta, cor de abóbora, e um cardigã creme. Tinha o cabelo todo

penteado para trás, seguro por um arquinho dourado. Às suas costas,

estavam fileiras e fileiras de livros nas estantes. E na mão ainda segurava a

xícara vazia. Parecia um modelo perfeito para um anúncio do chá da Katie.

A figura de Donna lembrava um ambiente agradável, caloroso e acolhedor.

- É, ótimo mesmo, concordou Cris. Dentro de mais alguns dias o Ted

deve ficar bom. Talvez possamos ir lá todos juntos.

- E como ele ‘tá? quis saber Donna.

- Bem melhor.

- E o namoro de vocês? Ainda ‘tá firme?

- Mais firme que nunca. ‘Tá quase perfeito.

Donna pôs a mão sobre o ombro de Cris.

- Então, Cris, disse, procure guardar bem na memória essa fase de sua

vida. Faça anotações em seu diário, narrando tudo que acontece. Anote

esses fatos para depois você se lembrar do que é realidade e do que são

sensações que “borbulham” em seu coração. É que no futuro, você pode vir

a ter dúvidas, a ficar confusa. Então, se você tiver anotado esta fase, será

mais fácil superar tudo.

Cris gostou do que Donna lhe disse, principalmente porque a outra

parecia estar falando por experiência. E nesse final de semana, ela se

lembrou de escrever em seu diário tudo que estava sentindo com relação ao

Ted. Uma parte do que ela escreveu foi o seguinte.

No momento, não consigo imaginar minha vida a não ser ao lado do

Ted, aconteça o que acontecer. A idéia de estarmos juntos parece muito

natural, uma combinação perfeita.

Sei que muito breve ele irá me pedir em casamento. Simplesmente

sinto isso. É possível até que, neste final de semana mesmo, ele pronuncie

essas palavras. Como será que ele vai pedir? Tenho certeza de que será de

um jeito muito criativo.

Ou, talvez, não. Tem um lado dele que é muito prático também. Eu

não ficaria nem um pouco espantada se um dia estivéssemos lanchando,

comendo tacos, por exemplo, e ele virasse para mim e dissesse: “E então?

Quer se casar?”

Não sei como nem quando é que ele vai me pedir em casamento, mas

sei que já estou preparada... mais do que preparada para dizer “Sim”.

Sim, sim, mil vezes, sim! Eu me casarei com você, Ted Spencer. E vou

passar o resto da vida amando-o de todo o coração!

Ah, mais uma coisa. Donna me disse para escrever tudo, com todos os

detalhes. Então tenho de registrar um detalhe aqui. Estou amando estar

apaixonada. Gosto demais do jeito que acordo de manhã e logo penso no

Ted e no grande amor que sinto por ele. E aí dou um sorriso.

Ultimamente, fico sorrindo o tempo todo. Não há nada que me deixe

pra baixo! Na semana passada, a Katie disse que tenho no rosto o

misterioso brilho do amor. Disse que parecia que meus olhos estavam

sempre rindo por causa de algum segredo meu; comentou até que

melhorei a postura. Dei uma risada. Ela falou que o amor do Ted por mim

está me tornando muito bonita e que o meu amor por ele está curando-o.

Só sei que o amor me ajudou a subir ao céu e aprofundar bastante

meu relacionamento com Deus, mais que antes. O amor me dá fôlego, pois

tenho “mergulhado” mais no mar da paciência e da compreensão. O amor

me fez ver detalhes da vida como uma joaninha andando numa pétala de

margarida. Ao mesmo tempo, porém, me levou a abrir mais o meu

“abraço” e alcançar familiares e amigos, chegando-os todos ao meu

coração.

O amor é... ah, como eu gostaria de ter palavras para descrevê-lo! O

amor é o maior dom que Deus nos concede. É o seu mais precioso

galardão. Aliás, ele é um eco do próprio coração de Deus, que vai de nós,

seus filhos, para ele. E isso se dá para que este mundo, que está se

desintegrando, possa ver, em primeira mão, o poder de uma vida nova,

ressurreta. Neste momento, só vejo amor em minha vida. Eu mesma fico

rindo das minhas tolices.

Estou percebendo que sou tão inexperiente em tudo. Nunca havia

experimentado uma sensação tão inebriante como essa do estar

apaixonada. Ela me deixa tonta! Ah! Estou emocionalmente embriagada

nesse grande dom de Deus que é o amor! Imagine só!

Dez dias depois, Cris releu o que escrevera no diário e que denominou

“Canto ao Amor”. Ainda sentia a mesma euforia. Ted já voltara a assistir

as aulas e reassumira sua posição de líder de jovens, na Igreja de

Riverveiw Heights. Já havia se passado pouco mais de um mês do

acidente. Ele ainda andava devagar e dormia bastante. Contudo já retomara

suas atividades normais. E Cris tinha o namorado de volta. A vida era um

mar de rosas.

Ted relatou para ela que o Tio Bob ainda estava demonstrando amor

para a esposa, e “lavando-a” com palavras. Tia Marta não o abandonara,

mas também não se tornara mais chegada a ele. Estava como que “parada”

no lugar. Contudo a opinião do rapaz era que essa era a melhor posição

para ela no momento.

Cris fez as aulas que a igreja exigia daqueles que quisessem se batizar.

Depois inscreveu-se para se batizar no domingo anterior ao feriado de

Ação de Graças. Comprou alguns cartões na livraria e convidou os

parentes e amigos para o evento. No momento em que escrevia nomes e

endereços no envelope, veio-lhe a indagação de quanto tempo ainda levaria

para estar fazendo o mesmo com o convite de casamento, que enviaria a

essas mesmas pessoas.

Ted ainda não a pedira em casamento. Contudo sabia que era apenas

uma questão de tempo. Haviam inclusive conversado sobre o assunto de

forma generalizada. Lembraram-se de como Douglas havia ido falar com o

pai de Trícia e lhe pedira a mão da moça em casamento. E ele fizera isso

antes de pedir a ela. Cris achava que o Ted também iria conversar com o

pai dela. Mas quando?

Dentro de mais alguns dias, todos iriam se encontrar na igreja. Além

disso, os pais dela já haviam convidado o rapaz e o pai dele para passarem

o Dia de Ação de Graças com eles. Bob e Marta também iriam. Cris ficou

a pensar se nesse dia, depois que acabassem de almoçar e antes de

comerem a sobremesa, o Ted não iria se ajoelhar e, na frente de todo

mundo, lhe pedir para se casar com ele. Seria um momento inesquecível.

A jovem sabia que, se ela não gostasse tanto de surpresas, esse

suspense iria deixá-la louca. Outro fator que a ajudava era que se sentia

plenamente preparada para dar a resposta. O Ted poderia fazer o pedido,

em qualquer momento, em qualquer lugar e de qualquer jeito. Sua resposta

seria “Sim”.

Na véspera do seu batismo, ela estava no quarto terminando um

trabalho da escola no laptop da Katie, quando o telefone tocou. Era sua

mãe.

- Nós ficamos um pouco espantados com esse convite para o seu

batismo, disse ela

- Vocês vão vir, não vão?

- Vamos, replicou a mãe, lentamente. Mas você sabe que foi batizada

quando era bebê, não sabe?

- Sei, e tenho muito respeito por isso, mãe, replicou Cris. Por favor,

não pense que estou discordando do que você e papai fizeram naquela

cerimônia, não. O que estou fazendo é demonstrar, com minha vida, que o

confirmo de todo o coração. É por isso que quero ser batizada agora, que

sou adulta.

- Tanto eu como seu pai fomos batizados quando criança e não

sentimos necessidade de nos batizar de novo, depois que nos tornamos

adultos.

- É, eu sei. E isso foi certo para os dois. Mas eu penso diferente, mãe.

Será que vocês podem respeitar essa minha decisão, embora não

concordem plenamente com ela?

Cris não conseguia entender por que essa questão deixava os pais

meio incomodados. Eles eram crentes. Por que não se alegravam ao ver

que ela estava dando esse passo de fé?

No fim da conversa, ambas concordaram em que cada um iria

procurar enxergar o ponto de vista da outra.

Quando os pais dela chegaram a Igreja de Riverview Heights, a mãe

foi até a saleta onde Cris já aguardava o momento do batismo, vestida com

uma bata branca apropriada. Estava de calça e os pés, em contato com o

chão, estavam gelados. Começou a desejar que não tivesse se aprontado

tão cedo. Nesse dia, ela era a única mulher a ser batizada. Por isso se sentiu

muito feliz de sua mãe ter ido ali, para vê-la.

- Que bom que vocês vieram! exclamou.

- Ah, nós não poderíamos deixar de vir, não, replicou a mãe,

abraçando-a. Eu receei que você interpretasse mal meu telefonema de

ontem; e não queria isso. Eu e seu pai conversamos sobre o assunto e

queremos que saiba que respeitamos sua decisão. Estamos muito felizes

com você. Aliás, sempre estivemos. Parece que os jovens de hoje tem uma

ligação mais emocional com a fé cristã. O Ted nos explicou que, fazendo

isso, você está como que se apropriando da fé. Então nós entendemos que

essa demonstração de fé é importante pra você.

- Obrigada, mãe, disse Cris, abraçando-a também.

De certa forma, esse momento era a realização de um anseio da

jovem. Ela sempre desejara ser mais chegada à mãe, mais amiga dela. Não

tinha como saber se a mãe estava vendo as coisas por um prisma diferente.

Mas ela estava. Cris sentia claramente que era como se as duas tivessem

chegado a um novo tipo de relacionamento, em que ambas eram adultas. E

sendo adultas, conseguiam enxergar uma a outra como amigas.

A mãe deve ter pensando mais ou menos o mesmo, pois deu-lhe um

sorriso amistoso.

- Eu e seu pai queremos lhe comunicar que apoiamos todas as

decisões que você tomar daqui em diante. Estamos muito felizes por você.

Aliás, pelos dois.

E com isso, a mãe saiu e foi para o salão. Cris ficou sozinha e se pôs a

pensar no que ela dissera. Ficou a bater os pés no chão frio, para tentar

aquecê-los. O que será que a mãe quisera dizer quando falou que estava

feliz pelos dois?

Está feliz pelo Ted também? Mas ele não vai se batizar!

Então se lembrou de que no dia anterior o rapaz saira com o carro

deles e ficara fora o dia todo. E não dissera aonde fora. Cris também não

perguntara, pois estava com muito trabalho da escola para fazer.

Mamãe disse também que ele lhes explicou por que quero me batizar.

Será que ele foi lá em casa ontem?

Sentiu o coração bater um pouco mais rápido.

Será que ele foi perguntar aos meus pais se podemos nos casar? Será

que ele agora vai me pedir em casamento? Hoje?

O pastor bateu a porta da saleta e avisou que assim que ela ouvisse a

música deveria subir para o batistério. Imediatamente, Cris parou de pensar

nos pais e no Ted e se concentrou no que estava para acontecer. Sabia que

seria a primeira da fila. Havia preparado algo para dizer no momento do

batismo. Nesse instante, começou a ouvir um hino bastante conhecido.

“Como um rio glorioso, e a perfeita paz de Deus.”

Cris sorriu. Gostava muito desse hino. Era um dos que ela mais

gostava lá em sua antiga igreja de Brightwater. Teve a sensação de que,

nesta ocasião tão importante, revivia um momento de sua infância. Nas

igrejas que frequentara nos últimos anos, cantavam-se quase que só os

corinhos modernos na hora do louvor. Então estava gostando muito de

ouvir um dos antigos cânticos no instante em que entraria no batistério.

O batistério era uma espécie de piscininha quadrada que ficava à

frente do salão. Geralmente, havia ali umas folhagens que a ocultavam.

Hoje haviam removido os vasos. O Pastor John já estava dentro dele, com

a água pela cintura, sorrindo para Cris e acenando-lhe para que entrasse

também.

“Firmado em Deus”, continuava o hino, “o coração é plenamente

feliz.”

Movendo-se cautelosamente, a jovem pôs um pé dentro da água e

constatou que estava morna. E o hino prosseguia:

“Encontrando paz e descanso perfeitos, como ele prometeu.”

Caminhou até o centro do batistério e se posicionou de frente para o

pastor. Ainda estava sem coragem de se virar para a congregação. O hino

terminou e o pastor explicou acerca do batismo de Jesus no Rio Jordão.

Disse também que Cris estava ali em obediência à ordenança do livro de

Atos: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus

Cristo para remissão dos vossos pecados”.

Ainda meio hesitante, a jovem se voltou para a congregação e avistou

o Ted na primeira fila, olhando para ela todo sorridente. Perto dele havia

vários dos jovens do grupo da igreja, pelo menos uns vinte. Todos

pareciam fitá-la muito sérios.

Que bom número de testemunhas! Não fazia idéia de que todos esses

iriam comparecer!

Em seguida, o Pastor John leu Mateus 28.19,20: “Ide, por tanto, fazei

discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e

do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho

ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até a consumação do

século”.

Aqui ele se virou para Cris e pôs a mão no ombro dela, como que a

tranquilizá-la.

- Eu pedi a Cris, disse ele, para explicar por que ela decidiu se batizar.

Pela primeira vez, a jovem compreendeu que, de fato, aquilo fora uma

decisão sua, e uma boa decisão. E ela a tomara por si mesma.

- Entreguei minha vida a Cristo, principiou ela, quando tinha quinze

anos.

Nesse momento, ela avistou Katie e Selena que estavam sentadas

perto do Ted e dos jovens do grupo. Mark também estava ali, bem como o

Wesley, irmão da Selena, e mais cinco alunos da Rancho Corona.

- Nesse dia, continuou, eu me ajoelhei e pedi a Cristo para perdoar

meus pecados, entrar em meu coração e assumir o controle de todo o meu

ser. Daquele dia pra cá, já vi o Senhor operar de várias maneiras na minha

vida.

Aqui ela percebeu que estava falando muito depressa e tentou se

acalmar para ir um pouco mais devagar.

- Sei que Deus está comigo, o tempo todo. Ele tem me transformado.

Estou aprendendo a confiar mais nele em todas circunstâncias.

Nesse ponto, ela fez outra pausa e depois concluiu:

- Em todas as decisões da minha vida.

Essa parte sobre as “decisões” não estava no que ela preparara para

falar. Contudo era verdade também.

- Resolvi me batizar, em primeiro lugar, para confirmar a direção que

meus pais já haviam dado à minha vida, pois eles me batizaram quando eu

era pequenina.

Nesse instante, olhou para a mãe, que sorriu. Com isso, Cris ficou

ainda mais segura de que sua decisão realmente fora acertada. Avistou a

Tia Marta sentada ao lado de sua mãe. Nunca pensara que ela iria

comparecer. E então fixou os olhos nela ao terminar sua palavra.

- A segunda razão por que resolvi me batizar é que entendo que isso é

um ato de obediência. É como diz naquele versículo que o Pastor John

citou há pouco. Deus nos ordena que abandonemos nosso viver egoísta, no

qual procuramos agradar somente a nos mesmos, e nos entreguemos a ele

de todo o coração. Só assim poderemos viver como ele quer que vivamos.

Sentindo uma empolgação maior, resolveu acrescentar mais detalhe

que não estava em seu pensamento antes.

- É como se Deus fosse o oleiro e nós, a cerâmica. Ele não quer que

nós saiamos por aí e procuremos nos transformar em algo que ele não quer,

pois não foi para isso que ele nos criou. Ele quer que fiquemos sempre no

seu “torno”, mesmo que às vezes fiquemos até meio tontos, com aquele

girar incessante, com a mão dele a nos moldar e apertar. Foi ele que nos

criou. Ele sabe nos dar a forma que devemos ter, ou melhor, a forma que

ele quer que tenhamos. Assim seremos como ele quer que sejamos. Então

Deus quer que fiquemos no “torno” para nos moldar com suas próprias

mãos.

Novamente ela fez uma parada e depois concluiu:

- É, com aquelas mãos que ainda têm as cicatrizes dos cravos.

Aqui ela se deu conta de que o que acabara de dizer fora totalmente de

improviso. Provavelmente sua tia ficaria irritada com sua palavra.

Entretanto ela se sentia interiormente “limpa”. Estava limpa e preparada

para ser imersa na água e depois levantada, identificando-se publicamente

com a morte e a ressurreição de Cristo.

Então o Pastor John, em voz baixa, pediu a Cris que juntasse as mãos

à altura do peito. Ela fez o que ele dizia e fechou olhos.

- Cristina Miller, continuou o pastor, num tom profundo, agora eu a

batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

Em seguida, Cris sentiu que ele a abaixava de costas, segurando-a

firmemente, e toda ela - o corpo, o rosto, o cabelo, tudo - mergulhou na

água. Por um segundo, houve um silêncio mortal.

Por fim, aquelas mãos firmes a ergueram, tirando-a da água. A

congregação rompeu em aplausos, recebendo-a de volta ao mundo dos

vivos. Assim que se levantou, com água escorrendo por todos os lados,

soltou uma risadinha repentina, por entre os lábios fechados.

- Vai em paz, disse o pastor, pois Jesus Cristo, o Senhor da tua vida,

estará contigo sempre.

18

Ao contrário do que Cris pensara, Tia Marta não teve uma reação forte

por causa do pequeno “sermão” que dera na hora do batismo. Ela só foi

mencionar o fato na quinta-feira, quando toda a família se reuniu na casa

dos pais da jovem para comemorar o Dia de Ação de Graças.

Cris e Ted chegaram a Escondido na véspera. E os dois foram ajudar a

mãe de Cris a fazer as tradicionais tortas de abóbora. O método de trabalho

de cada um dos três era diferente do dos outros. Além do mais, a cozinha

era meio pequena. Por causa disso, a confecção das tortas acabou se

tornando uma aventura de quatro horas, cercada de muitas risadas. E a

certa altura, os dois jovens inventaram uma “guerra” de farinha de trigo.

Isso bastou para que a mãe de Cris logo ficasse agitada, querendo dar uma

limpeza geral.

No dia seguinte, ao final do almoço, quando ela serviu as tortas, os

dois jovens começaram a se gabar, em tom brincalhão, de seu trabalho

como confeiteiros. Contudo a mãe logo os corrigiu, dizendo que, na

verdade, eles haviam exagerado um pouco na hora de colocar os

condimentos. Então anunciou que se alguém quisesse uma sobremesa de

sabor menos picante, deveria optar pela torta de maçã que ela fizera.

- A Cris tem mesmo a mania de exagerar e “condimentar” muito as

coisas, interpôs Tia Marta.

Ela estivera calada a maior parte do tempo. E quando disse isso,

dirigiu-se ao pai de Ted, que se achava sentado ao lado dela. Cris

compreendeu que ela se referia à palavra que dera no batistério.

- Então cada um diga o que vai querer, concluiu a mãe de Cris,

ignorando o comentário da irmã.

Nesse momento, Cris se deu conta de que ela deveria ter feito isso

quase que a vida toda.

- E você fez a torta de passas com frutas cristalizadas? quis saber o pai

de Cris.

A jovem sorriu. Todos os anos ele fazia a mesma pergunta. E todos os

anos, havia mais de vinte anos, no Dia de Ação de Graças, a mãe preparava

pelo menos uma dessas tortas. E toda vez seu pai era o único que comia

dela. E mesmo assim ele perguntava. Parecia até que ela poderia esquecer

da torta.

- Torta de passas? repetiu o pai de Ted. Se tiver, eu também aceito.

- Bryan, interpôs o pai de Cris, você gosta dela ainda quente, com

sorvete de creme?

- E existe outro jeito? indagou Bryan com um sorriso.

Cris foi para a cozinha ajudar a mãe a cortar as tortas. Estava sorrindo

interiormente ao ver como seu pai combinava com o do Ted no gosto pela

torta de passas.

Agora ‘tá tudo certo!

Não faltava mais nada para o Ted a pedir em casamento. Ele só teria

de dar uma escapada até a cozinha, vir por trás dela, abraçá-la e sussurrar

ao seu ouvido:

“Que tal se a gente passasse o resto da vida fazendo as tortas do Dia

de Ação de Graças juntos?”

E em sua fantasia, ela se imaginou respondendo com uma frase bem

espirituosa do tipo:

“Sim, desde que façamos tortas bem condimentadas!”

Ou talvez fosse melhor dizer algo bem romântico, como:

“Ah, você sabe que sempre vou ser o seu ‘docinho’ preferido!”

- Cris!

Virou-se e viu que a mãe a fitava com um ar de preocupação. No meio

de seu devaneio, ela ficara imobilizada segurando a faca no ar, ainda na

primeira torta.

- Ah, eu... e... estava pensando em quantos pedaços vamos cortar.

- Quantos quiser. Tem muita torta. Quer colocar estes dois pedaços de

torta de passas no microondas pra mim?

- Claro, mãe, replicou ela, voltando-se para a mãe e sentindo o rosto

avermelhar-se.

Quando será que vou superar essa idiotice de ficar vermelha?

Quando eu tinha quinze anos, ou mesmo dezoito, ainda era compreensível.

Mas agora já estou com vinte anos. Sou uma mulher prestes a assumir um

compromisso com um rapaz e ainda estou ficando com o rosto queimando,

como se fosse uma garotinha!

Cris se pôs a pensar se o Ted também tinha esses problemas de

envergonhar-se de certas situações. Talvez fosse por isso que ainda não a

tivesse pedido em casamento.

Após a sobremesa, o Tio Bob pediu que todos fossem para a sala, a

fim de bater uma foto do grupo todo. Sua câmara fotográfica era provida

de um disparador automático, e poderia colocá-la sobre uma cadeira.

Seus pais e mais a Tia Marta e o pai de Ted se sentaram no sofá, meio

apertados. O David se acomodou no chão, à frente do sofá, bem no centro.

Então sobrou espaço de cada lado dele. Cris se posicionou à direita do

irmão, à frente de sua mãe. O Ted se sentou à esquerda, à frente do pai

dele. Para surpresa de Cris, David, que não era de fazer demonstrações

afetivas, passou um braço em volta do pescoço da irmã e o outro no do

Ted. Suas mãos pendiam dos lados, sobre o peito dos dois, como os

tentáculos de um polvo. O Tio Bob veio se sentar no braço do sofá,

inclinando-se um pouco para o lado da esposa.

- Todo mundo diz “Ei!”, falou ele.

- Eu pensei que a gente tinha de falar era “giz”, comentou David.

E foi então que Cris observou que a voz dele estava mudando. Aliás,

estava com um som muito engraçado, principalmente porque ele se achava

muito perto dela.

- Mas, desta vez, vamos falar “ei”; insistiu Tio Bob. Fica um sorriso

mais natural do que com “giz”, que é mais rígido.

- Giz rígido! repetiu David, caindo na risada.

Ted e Cris se entreolharam, presos como estavam nos tentáculos

daquele “polvo” brincalhão. A expressão do olhar de ambos dizia:

“Ah, não! Será que eu era assim quando tinha a idade dele?” Nesse

instante, a câmera funcionou e o flash brilhou.

- Bate outra, gritou Tia Marta, imediatamente. Eu fechei os olhos.

Cris e Ted se viraram de frente para a máquina fotográfica.

- Vou contar até três, avisou Tio Bob. Um, dois, três!

Nesse instante, ouviu um grito geral:

- Ei!

E a câmera clicou.

- Agora quero um do Bryan e Ted sozinhos, disse Tio Bob, assumindo

o papel de fotógrafo oficial da família.

- Vocês dois podiam se sentar aqui nesta poltrona, orientou ele.

Vamos ficar mais perto da janela, para ter uma iluminação melhor. O

Bryan pode se sentar e o Ted ficar atrás.

Todos os outros se puseram a olhar o pai e o filho que ocuparam as

posições que ele designara. Cris observou o quanto os dois se pareciam. E

aqui ela sentiu uma emoção calorosa a envolvê-la.

Puxa, Ted, se daqui a vinte e cinco anos você tiver essa aparência que

seu pai tem agora, posso me considerar uma mulher feliz. Ei! Mas o que

estou dizendo? Com você, daqui a vinte e cinco anos, serei feliz de

qualquer maneira. Bom, mas se você ficar parecido com seu pai...

Em seguida, deu uma olhada rápida para sua mãe. Ela era mais baixa

do que a filha pelo menos uns dez a doze centímetros. Estava bem

gordinha. Tinha o rosto bastante arredondado e o corpo bem “cheinho”.

Seu cabelo estava quase todo branco, e ela não o tingia e tampouco mudara

o corte curto que adotara havia vários anos. Além disso, não usava nem um

pingo de maquiagem. Enfim, era uma mulher simples, honesta, reservada e

nada sofisticada. E Cris sempre admirara essas qualidades dela.

Mas espero que, daqui a alguns anos, eu me pareça mais com a Tia

Marta. É claro que não vou querer os alongamentos do cabelo e nada

disso. Quero apenas continuar sendo atraente para o Ted. Bom, pelo

menos, “puxei” meu pai na altura. Mas espero manter o peso e não

engordar muito.

Cris teve a impressão de que o processo de acompanhar o Ted nos

próximos vinte e cinco anos seria um esforço e tanto.

- Assim ‘tá bom, disse Tio Bob, ajustando a câmera. Ted, coloca a

mão no ombro do seu pai. Isso, assim!

Cris notou que o rapaz ainda parecia meio constrangido pela aparência

de suas mãos, desde que os médicos haviam tirado os pontos. As duas

tinham muitas cicatrizes claras, nos lugares onde ele havia se cortado no

vidro. Ele pôs a mão no ombro do pai, mas virou-a um pouco, para que a

palma, e não o dorso, estivesse de frente para a máquina, e as marcas não

aparecessem.

Foi então que Cris se lembrou de como ele fora feliz de os vidros não

terem atingido nem seu rosto, nem o pescoço. Alguns anos antes, o Tio

Bob sofrera um acidente e tivera queimaduras no pescoço e na orelha

esquerda. Contudo Cris já se acostumara com as cicatrizes dele e nem as

notava mais. Nesse momento, pensou se a Tia Marta, que sempre busca a

perfeição em tudo, havia tido dificuldade para aceitá-las.

Ted, pra mim, suas cicatrizes são lindas. São uma prova de que você

poderia ter morrido, mas não morreu. Deus o conservou com vida por

alguma razão. Por minha causa. Não, por nossa causa. Por aquilo que

vamos realizar para o avanço do reino dele aqui na Terra.

- Excelente! exclamou Tio Bob depois de bater a terceira foto de Ted

e o pai.

Em seguida, tirou várias fotos da família de Cris e depois mais cinco

da jovem ao lado de Ted.

- Ei! disse Cris, obedecendo ao comando dele para sair com um

sorriso bem natural.

- Ei você também, boca cheirando a torta! interpôs Ted, na

brincadeira.

- Ih, você ‘tá dizendo que a torta ficou muito condimentada? indagou

ela.

- Acho que, no ano que vem, podemos colocar de novo a canela em

dobro, mas tirar o cravo.

- “Como quiseres!” sussurrou ela.

O Tio Bob tirou o último retrato e a câmera automaticamente

começou a rebobinar.

- Acabou o filme, anunciou ele.

Cris deu uma espiada a sua volta e reparou que todo mundo ainda

estava de olho nos dois, que continuavam naquele diálogo rápido.

Tia Marta aproximou-se deles com um sorriso significativo.

- Essas fotos vão ser ótimas para o anúncio do jornal, comentou.

- Que anúncio do jornal? quis saber Ted.

Tia Marta ergueu ligeiramente uma das sobrancelhas, fitando Cris. A

jovem não precisou ouvir mais nada. Compreendeu perfeitamente o que

sua tia estava querendo dizei. Sabia que, na página social do jornal local,

eles publicavam notícias sobre casais que haviam ficado noivos, com a

fotografia dos dois e tudo o mais. No entanto não explicou isso para o

namorado.

E o Ted, por sua vez, também não fez o esperado pedido de casamento

naquele final de semana. Cris acabou se conformando com o fato. Tudo

bem. Seus sonhos não estavam desfeitos, simplesmente haviam sido

adiados.

E isso não a incomodou muito inicialmente. Na verdade, ela só

começou a se sentir um pouco transtornada quando voltou para a

faculdade. É que Selena foi conversar com ela na livraria. A amiga estava

toda empolgada, contando acerca do casamento da Tânia, sua irmã. Ela e

Jeremy haviam se casado na igreja de Paul, em San Diego, cujo pastor era

o pai dos dois rapazes. Selena fez uma careta horrível ao descrever as

roupas das damas, uma das quais era ela. Era um vestido verde hortelã,

cheio de babados. As duas combinaram de se encontrar na “Selva” naquela

noite, após a aula de Cris, para que Selena contasse tudo, com todos os

detalhes.

Depois que a colega foi embora, Cris se pôs a fazer alguns cálculos.

Douglas e Trícia estavam casados havia um ano e meio. Tânia e Jeremy

tinham se conhecido na época em que Douglas e Trícia tinham ficado

noivos. Na noite anterior, Katie lhe contara que uma colega delas do

dormitório tinha conhecido um rapaz na primeira semana de aula. Esses

dois tinham se casado também agora, no feriado de Ação de Graças.

Por que será que todo mundo ‘tá se casando, mas eu e o Ted não

estamos nem noivos ainda? Quanto será que ele ainda vai demorar? Ele

não deve estar esperando que eu diga alguma coisa. Ou ‘tá? Não. Ele é do

tipo que quer ele mesmo tomar a iniciativa do pedido. Então ele ‘tá

esperando o quê?

Entretanto não foi difícil arranjar várias explicações lógicas. As

primeiras da lista eram o dinheiro e os estudos. Então resolveu tirar tudo

isso do pensamento e se concentrar somente nos trabalhos que estava

fazendo. Tinha de terminar vários deles para entregar antes do recesso do

Natal. O único momento que tinha para estudar era o intervalo entre as

aulas e o trabalho. Havia muito tempo já, descobrira que não era de estudar

até mais tarde como a Katie. Então, à noite, preferia sair para fazer

caminhadas pelo campus na companhia do Ted ou para ir à “Selva” rir e

conversar com os amigos.

Nos finais de semana, sempre ficava ocupada com as atividades

relacionadas com o grupo de jovens da igreja, das quais, aliás, ela estava

começando a gostar muito. A cada domingo, o número de participantes

aumentava mais. No domingo seguinte ao Dia de Ação de Graças, mais de

vinte deles haviam comparecido à reunião da manhã, e dezesseis tinham

vindo ao culto da noite. Duas garotas disseram que, após terem assistido ao

batismo de Cris, elas também haviam decidido se batizar.

Como o plano de viajarem na semana do feriado de Ação de Graças

se frustrara devido ao acidente de Ted, ele estava pensando em organizar

uma viagem ao México. Nesse caso, iriam na semana intermediaria entre o

Natal e o Ano-Novo. Planejavam visitar um orfanato em Tecate. Pelo

visto, o grupo seria de mais ou menos trinta pessoas, entre estudantes da

Rancho Corona e jovens da igreja.

Quando faltava mais ou menos uns dez dias para o recesso de Natal,

Cris se ofereceu para preparar todo o alimento que iriam levar e, inclusive,

para fazer as compras. Ela se encontrava na cantina, sentada ao lado de

Ted, na mesa que costumavam ocupar. Foi então que disse para ele que iria

cuidar dessa parte do passeio.

- Então vou ajudá-la, disse o rapaz.

- Ah, não vai, não, retrucou Cris, abanando a cabeça.

Ted reagiu dando-lhe um ruidoso beijo no rosto, na frente de todo

mundo.

- Eu te amo! falou ele.

Ele nunca dera demonstrações afetuosas assim em público antes. Aí

Cris teve certeza de que, se algum dos amigos tinha alguma dúvida de que

os dois estavam namorando, agora não teria mais. Na verdade, nenhum

deles questionou nada. Todos pareciam bem à vontade na companhia dos

dois, apesar de o casal estar nessa nova fase do namoro em que se

mostravam mais apaixonados. Até o Mark se mostrava tranquilo e bem

natural.

Naquela noite, ao jantar, Mark comunicou à turma que decidira

convidar uma colega da sua turma de Geologia para sair com ele na sexta-

feira anterior ao recesso de Natal. E foi pedir conselhos a Cris e Katie.

- Bom, ainda faltam dez dias, principiou Katie. Mas você deve

conversar com ela pelo menos nesta sexta, pois, num primeiro encontro

assim, é bom ter uma semana de antecedência.

Depois, murmurou consigo mesma:

- Se bem que não tenho muita experiência nessas questões.

Cris deu-lhe um cutucão com o cotovelo, e Katie devolveu-o na

mesma hora.

- É; só estou dizendo que é muito bom saber com uma semana de

antecedência, comentou Katie em tom defensivo. É só isso.

- E aonde vai levá-la pra jantar? indagou Selena.

- Estou pensando nessa cafeteria nova que abriram em Murrieta,

replicou o rapaz. Chama-se “Ninho da Pomba”. Fica ao lado de uma

livraria que se chama “A Arca”. Nos finais de semana lá, eles têm música

ao vivo.

- Ah, por que não me disseram isso antes? perguntou Ronny. Minha

banda ‘tá procurando mais oportunidades de se apresentar.

- É, eu já ouvi falar desse lugar, interpôs Cris. A Donna, minha chefe,

disse que o gerente da lanchonete, Katie, talvez queira comprar o seu chá,

o “Verão Indiano”.

- Ah, por que não me disse isso antes? indagou a jovem, imitando o

Ronny.

- Ah, porque não sabia se primeiro você precisaria tirar uma licença ou

algo parecido no departamento de remédios e alimentos, explicou Cris.

- Então leve um pouco do seu chá para o México, sugeriu Ted. O

pessoal do orfanato vai gostar demais. E lá você não precisa de nenhuma

licença do governo.

A moça fitou-o com uma expressão de dúvida.

- É... disse, e eu vou levar um carrinho com uma daquelas

“sombrinhas” próprias e distribuir copinhos descartáveis de chá para todo

mundo do povoado...

- Cris, interpôs Mark, tentando voltar ao assunto inicial, você acha que

será legal se eu convidar a Jenna para ir ao “Ninho da Pomba”? Será que

não é um lugar pouco sofisticado para um primeiro encontro?

- Não, replicou a jovem. Acho que é perfeito.

- Você se importa se eu for também? perguntou Ronny, voltando-se

para o Mark.

Este fitou-o com um olhar estranho.

- Quero dizer, eu posso convidar uma menina pra ir comigo, se for o

caso. Só quero conhecer essa cafeteria.

- Ah, que negócio é esse de convidar uma menina pra ir com você se

for o caso? interveio Selena, dando um leve murro no braço do seu colega.

O rapaz dirigiu-lhe um sorriso com a boca meio torta, que era sua

marca registrada.

- ‘Tá querendo dizer que você vai comigo? indagou ele para a colega.

- Não, seu “panaca”, que não entende as coisas. Convide a Vicki!

Cris sabia que Vicki, a colega de quarto da Selena, sempre queria

receber atenção dos rapazes do campus.

- Mas será que ela ainda conversa comigo? perguntou Ronny.

- Só tem um jeito de ficarmos sabendo, explicou a colega. É se você a

convidar pra sair.

Ronny inclinou a cabeça de lado e fitou a amiga com uma expressão

meio tímida.

- Você pode convidá-la pra mim? pediu.

- Oh, seu medroso! exclamou Selena.

- O que e que há com vocês, rapazes? interveio Katie. Parece que têm

medo de nós, as garotas!

- Eu não tenho, disse Ted.

- Ah, você não conta, replicou Katie, dirigindo-lhe um olhar

significativo.

Num gesto brincalhão, Ted abraçou o próprio peito, como se as

palavras dela fossem flechas que o atingiram em cheio.

- Estou falando sério, gente, insistiu Katie. Por que não há homens

nesta escola... Não; vou mudar. Por que não há homens no mundo que

saibam iniciar um relacionamento com uma mulher?

- De que é que ela ‘tá falando? indagou Selena, olhando para Cris.

- Pois vou lhe dizer do que estou falando, replicou Katie. Estou

falando de namoro sério, de correr riscos, de homens que não têm medo de

ser homens. Estou falando de homens que não têm medo de se aproximar

ousadamente de uma moça e lhe dizer: “Os teus cabelos são como o

rebanho de cabras. Quer sair comigo hoje?”

Cris soltou uma risada e os outros riram também. Ela não sabia se

todos eles entendiam que sua colega estava fazendo referência a um texto

de Cântico dos Cânticos.

- E pode mandar flores também, mas isso é opcional, continuou Katie

em meio ao rumor dos risos que já iam diminuindo.

- Sabe o que mais? interpôs Mark. Você tem razão. Vou procurar a

Jenna agora mesmo e convidá-la pra sair comigo.

- Não vai querer que todos nós vamos juntos? perguntou Selena em

tom de brincadeira.

Os olhos do rapaz brilharam e ele se virou para a colega.

- Excelente idéia! exclamou. Assim, em vez de só eu e o Ronny

arranjarmos esse encontro de duplas, que ia ser meio estranho, todos vocês

poderiam ir também. Aí eu digo pra Jenna que é a turma toda que vai lá.

Desse modo, nem vai ficar parecendo que estamos tendo um encontro.

-Ah, você não tem jeito! disse Katie. Aqui estou eu, tentando lhe dar

um conselho sábio e você vira e chama todo mundo pra servir de “isca” pra

moça, e seu encontro fica mais ou menos “disfarçado”.

- Você não é “isca” não, Katie, replicou Mark, olhando com uma

expressão de admiração.

E aqui ele se debruçou ligeiramente sobre a mesa e, embora todos

estivessem ouvindo suas palavras, ele se dirigiu unicamente a ela.

- Você, continuou ele, é uma jovem muito especial e tenho certeza de

que, algum dia, vai aparecer um homem que tem um encanto e um jeito

espirituoso igual ao seu. Contudo acho que você já pensou nisso, esse cara

não pode ser um rapaz do interior, como eu.

- Ah, bobagem! replicou ela. Eu achava que só um rapaz do interior ia

saber dizer essa frase sobre o rebanho de cabras.

- Este rapaz do interior aqui não sabe.

- Não, retorquiu a moça, você não.

Katie disse isso com tanta ternura que Cris logo compreendeu que

Mark e sua amiga tinham uma amizade muito profunda.

Naquela noite, quando as duas estavam de volta ao quarto, Cris

resolveu sondar a colega.

- Que conversa foi aquela sua com o Mark sobre o “rapaz do interior”?

Katie estava digitando em seu laptop um trabalho de três páginas que

deveria ter entregado nesse dia, mas do qual havia se esquecido. Parecia

que ela sempre entregava seus trabalhos com um dia de atraso. Entretanto,

por algum motivo, sempre conseguia “dobrar” os professores, de modo que

eles não lhe tiravam pontos por causa disso.

- Ontem nós conversamos... não, foi anteontem, principiou Katie,

entre uma teclada e outra. Foi na segunda-feira. Na segunda-feira, nós

conversamos sobre você e o Ted.

- Você não me contou isso.

- Ué, nessas últimas duas noites, sempre que chego aqui, você já ‘tá

dormindo...

- Que foi que falaram sobre mim?

Katie virou-se na mesa ligeiramente e olhou para a amiga que já

estava acomodada entre as cobertas.

- Vai querer mesmo saber?

- Quero, sim!

- Ah, não foi nada importante. Só que você e o Ted estão muito felizes

e muito apaixonados, e que é isso o que todos nós queremos ter algum dia.

- Ahhhhh, fez Cris. Que lindo!

- É, lindo mesmo! Aí eu e o Mark entendemos que, como há muita

probabilidade de nós dois participarmos do seu casamento, é melhor a

gente ficar mais ou menos atento nisso. Vamos ter de ajudar um ao outro

quando chegar a hora de passar aqueles trotes no Ted, aqueles que as

pessoas fazem antes do casamento.

- Antes do casamento? disse Cris. Ainda vão ter de esperar muito.

Acho que vocês ainda não precisam pensar nem nos trotes de antes do

noivado.

- É, mas é apenas uma questão de tempo, replicou Katie. Você sabe

disso e eu também sei. Todos nós sabemos. Você vai ver. O Ted é um cara

muito criativo. O pedido de casamento vai ser um momento memorável.

Cris se encolheu mais debaixo das cobertas e ficou a escutar o

ruidozinho leve das teclas do computador. Seu coração estava tranquilo.

Fosse qual fosse o momento em que o Ted a pedisse em casamento, ela

estaria com a resposta preparada.

Katie continuou digitando, mas indagou:

- Você e o Ted também vão ao “Ninho da Pomba” com a turma?

- Acho que sim. Você vai?

- Não, creio que não.

- Por quê?

- Ah, Cris, vamos lá! Faça as contas. Você e Ted, Mark e Jenna,

Ronny e Vicki e a Selena vai chamar o Paul. Obviamente, vou ser a

número 9. Vou ficar sobrando.

- Mas somos todos amigos, Katie, insistiu Cris. Eu quero que você vá.

Ninguém vai deixar que tenha a sensação de que ‘tá sobrando. Você pode

levar um pouco do seu chá, como a Donna sugeriu. Vai ser legal demais.

Vamos, sim! Vou ligar para o Douglas e a Trícia. Faz um bom tempo que

você não os vê!

- Ah, é! Douglas e Trícia! Aí vou ser a número 11. Cris, seja qual for

o jeito que você pensar, eu vou sempre estar sobrando. Prefiro não ir.

- Não... prefere não! disse Cris. Você vai ficar aqui sozinha, muito

triste, sabendo que todos nós estamos lá nos divertindo.

- Sabe o que mais? interpôs Katie, caminhando para a porta. Nós

havíamos combinado que não iríamos “cantar essa música” nunca mais.

Essa musiquinha sobre a coitada da Katie. Vou abrir a porta e essa velha

música vai sair daqui agora. Certo?

E assim dizendo, abriu a porta. Em seguida, fez uma série de gestos

com a mão, como quem está “expulsando” algo porta afora e depois

fechou-a ruidosamente.

- Assunto encerrado, disse. Agora, se você não se importa, tenho de

terminar de digitar meu trabalho.

19

E Cris não voltou a conversar com a amiga sobre ela ir ao “Ninho da

Pomba”. Depois de pensar um pouco sobre a reação dela, resolveu deixar o

assunto morrer.

Na sexta-feira à tarde, Mark deu uma passada na livraria para lhe

contar que a Jenna havia aceitado seu convite. Então eles iriam na

caminhonete dele, a não ser que Ted e Cris ainda tivessem um lugar para

os dois no seu carro.

- Acho que o Ted chamou a Selena pra ir conosco, se o Paul não vier,

replicou ela.

- E a Katie? indagou o rapaz.

- Ela não vai, explicou a jovem, procurando dar à voz um tom bem

natural.

- Ué, por que não?

- Ah, isso você terá de perguntar a ela, disse Cris.

A jovem não sabia se tal resposta já era uma explicação ou se o rapaz

iria compreender e desistir do assunto.

Felizmente, nesse momento, chegou um freguês e ela teve de

interromper a conversa.

- ‘Tá, concluiu Mark. Então depois a gente se vê.

Cris fez um aceno de cabeça e abanou a mão para ele. Assim que saiu

do trabalho, foi ao seu quarto para pegar um agasalho. O “Ninho da

Pomba” ficava a apenas quinze quilômetros da universidade. Contudo

aquele passeio em grupo acabara se tornando um evento importante para

todos.

Cris chegou a pensar na hipótese de deixar um bilhete para Katie. Iria

sugerir-lhe que convidasse algumas das meninas do dormitório para irem

com ela no Buguinho. Contudo não o fez.

Quando desceu, viu que o Ted já a esperava no saguão. Para sua

surpresa, ele lhe entregou um cravo branco.

- Sem motivo, disse ele.

Cris ficou emocionada, mas também bastante curiosa. Onde teria ele

comprado a flor? Sabia que no campus não havia floricultura.

- Você foi à cidade hoje à tarde? indagou.

- Fui à igreja e fiquei algum tempo lá.

Foram descendo o morro com as janelas abertas e o sistema de

aquecimento do carro ligado. Já faziam isso habitualmente, pois gostavam

da sensação do ar fresco batendo no rosto. Contudo, agora que o inverno

chegara, mesmo ali no deserto, estava fazendo bastante frio. Durante o dia,

ainda fazia um pouco de calor, quando o Sol não estava encoberto.

Entretanto, assim que ele se punha, a temperatura baixava bastante.

- Havia muitos vendedores de flor na rua, como no Dia de Ação de

Graças? perguntou ela, girando o cravo entre os dedos e aspirando o

perfume acre da flor.

- Não, replicou Ted, fitando-a e sorrindo. Você ‘tá doida pra saber

como foi que arranjei esse cravo, né?

Cris disfarçou um sorriso.

- Só estou curiosa, explicou ela.

Ela calculou que ele dera uma passada numa floricultura e pedira um

único cravo. A questão era que ele não lhe dera a flor envolta num

embrulho típico dessas lojas.

- Eu o peguei na igreja. Estava jogado no lixo, disse o rapaz.

- Ah! exclamou Cris, largando a flor no colo.

Agora ela já não lhe parecia tão maravilhosa e romântica.

- Eles tinham tido lá um almoço de confraternização ou algo assim. E

depois jogaram as flores fora, claro. Então vi esse cravo e me lembrei de

você.

Aí Cris compreendeu que o que importava mesmo era o fato de ter

pensado nela. Para Ted, o mais importante era pensar nela, e não onde ele

pegara o cravo. Provavelmente, ele sempre seria assim.

- Obrigada, disse ela por fim. Amei!

Em seguida, inclinando-se para ele, deu-lhe um beijo no rosto.

- E te amo também, completou.

- Eu te amo mais, falou ele, brincando.

- Não, eu te amo mais, insistiu ela.

- Mas eu te amei primeiro, retorquiu o rapaz.

Cris riu.

- ‘Tá bom. Você venceu. Você me amou primeiro, mas eu te amo

mais.

- Não acho, disse ele, virando-se ligeiramente para ela. Acho que é

impossível você me amar de forma mais completa e profunda do que eu a

amo. Acho que ninguém neste mundo pode amar alguém tanto quanto eu te

amo.

Cris compreendeu que não poderia ganhar dele nisso. Nem queria.

- Conversei com seu tio hoje, disse Ted. Você falou com ele nestes

últimos dias?

- Não. A última vez foi no Dia de Ação de Graças.

- Ele disse que os retratos ficaram ótimos e que vai mandá-los pra nós.

Disse também que ontem à noite a Marta lhe falou que não vai mais

embora de casa.

- É mesmo? E o que mais ele contou?

- Parece que ela parou com as aulas de cerâmica e disse ao marido que

já que ele ‘tá se esforçando pra melhorar o casamento deles, ela vai fazer o

mesmo.

- Será que ela vai passar a ir à igreja com ele?

- Não sei, respondeu Ted.

- Você acha que eles vão procurar um conselheiro matrimonial?

- Ah, sei lá.

- Que bom que você me contou tudo isso. É um alívio pra mim. E que

bom que ela resolveu se esforçar pra salvar o casamento. Será que o fato de

você ter passado aqueles dias lá pode ter contribuído pra eles ficarem mais

unidos? É que tendo de cuidar de você, os dois tinham um objetivo em

comum que os uniu.

- Pode ser, replicou Ted.

- Pois eu acho que isso contribuiu, sim, e muito.

- Isso significa que você acha que eles devem ter um filho?

Cris ficou espantada com a idéia levantada pelo namorado.

- Ah, eles já estão muito velhos pra isso, não estão?

- E eu sei lá! replicou Ted, dando de ombros.

Aqui houve um momento de silêncio entre os dois, e depois o Ted

indagou:

- Quantos filhos você quer ter?

Cris pensou uns instantes.

- Não sei. Às vezes acho que foi bom sermos só nos dois na minha

casa, eu e o David, apesar de não sermos assim muito amigos. Quando eu

era mais nova, queria ter tido muitos irmãos, uns seis ou oito. Mas, depois

que trabalhei naquele orfanato, acho que dois é bom. Talvez quatro. Gosto

de números pares.

Ted deu um sorriso amplo. O Sol estava se pondo e sua luz, entrando

pela janela do lado do motorista, iluminava o perfil dele.

- Eu quero quatro, disse com voz forte, dois meninos e duas meninas.

Mas aceito o que Deus mandar. E se tiverem boa saúde, melhor ainda.

Cris ficou admirada ao se dar conta de como estavam conversando

sobre filhos, sobre o futuro deles, com a maior naturalidade. Na verdade,

ela não deveria se admirar com isso. Ultimamente, os dois vinham tendo

esse tipo de conversa com certa frequência. Ambos falavam do assunto

livremente e com muita franqueza, embora nenhum deles houvesse usado

expressões como “nossos filhos”, ou “o que Deus nos der”. Contudo, por

trás de tudo, havia o senso de que estavam falando de uma vida juntos.

Ted esticou o braço e pegou a mão dela. Fitou-a com um sorriso de

plena felicidade, depois voltou a se fixar na estrada. Cris passou os dedos

de leve sobre a mão dele, acompanhando as marcas das cicatrizes.

- Elas ainda doem? perguntou.

- Não muito. Algumas ainda estão um pouco doloridas.

- Amo suas mãos! disse.

Ela pegou a mão dele, levou-a aos lábios, beijou-a e em seguida

apertou-a de leve contra o próprio rosto.

- Ama? indagou ele.

- Sim.

Os dois se entreolharam de um jeito meio acanhado e sorriram.

Quando Cris dissera “Sim”, lembrara-se de que, um dia, os dois iriam

dizer essa mesma palavra, no altar, um para o outro. Ao que parecia, Ted

também pensara nisso.

Vamos lá, Ted, diga: “Quer casar comigo?” Você sabe que vou

responder que sim.

Contudo o rapaz não disse nada. Nesse momento, estavam entrando

no estacionamento do “Ninho da Pomba”. Cris sentiu um misto de alegria

e impaciência. Se fosse um pouco mais corajosa, iria fazer-lhe alguma

pergunta, colocando no meio palavra “casar”. Assim o Ted certamente iria

ser forçado a dizer o que ela tanto queria.

Entretanto, bem no fundo do coração, Cris sentia-se tranquila. Os dois

já haviam chegado até ali. Achavam-se bem ligados um ao outro. Tudo

estava perfeito. Então dava para esperar o pedido que ela já previa que ele

iria fazer. E esperaria, quer ele o fizesse dentro de três minutos ou de três

dias ou de três anos.

Quando caminhavam de mãos dadas em direção à entrada,Ted disse:

- Olhe ali! Não é o Buguinho?

- Oh, a Katie veio!

- Ótimo! exclamou o rapaz. Eu estava com esperança de que ela

viesse.

- Você conversou com ela sobre isso hoje?

- Não.

Cris se sentiu muito satisfeita com sua amiga. Calculou que ela deve

ter pensado melhor e concluído que ficaria mais feliz passando aquelas

horas na companhia dos amigos. Seria melhor do que continuar aborrecida

pelo fato de não ir lá com um rapaz.

Assim que os dois entraram, Cris logo sentiu vontade de se aproximar

da lareira. As chamas douradas pareciam acenar para lá e chamá-la para

junto delas.

- Ted, tem uma lareira aqui! exclamou.

Avistou Selena, Paul, Ronny e Vicki sentados perto do fogo. Eles

haviam ajuntado duas mesas pequenas e colocado ali as quatro cadeiras.

- Cris! gritou Selena, acenando para ela.

Paul estava sentado ao lado de Selena. O rapaz usava um típico gorro

escocês de tweed. Cris o vira algumas vezes, mas não se lembrava de que

ele usava uns óculos redondos, apoiados sobre o nariz reto.

- Vocês viram a Katie? indagou Cris, depois de cumprimentar o

grupo.

- Ela ‘tá lá na livraria com o Mark e a Jenna.

- Ela veio com alguém?

- Acho que não.

- Vocês vão pedir algo pra comer? quis saber o Ted.

- Já pedimos, informou Selena.

Nesse momento, Cris escutou uma voz grave atrás dela.

- Vocês falaram em comer?

Todos se viraram e avistaram Douglas e Trícia. Cris deu uma risada, e

eles começaram a se abraçar uns aos outros.

- Eu devia saber que assim que, alguém falasse em comer, você

apareceria, comentou ela.

- Você já pensou no que vai pedir? indagou Ted a ela. Se já resolveu,

vou fazer o pedido.

Como ela ainda não vira o menu, não sabia o que escolher. Como iria

resolver?

- Ah, pede um sanduíche qualquer, falou. Pode ser de rosbife, se

tiverem aí. Se não tiverem, qualquer um serve.

Ted e Douglas se entreolharam, como se estivessem fazendo um

comentário silencioso sobre a maneira como Cris geralmente fazia pedido

num restaurante.

- Puxa! exclamou Douglas. Essa foi a decisão mais rápida que já vi

você tomar.

E aqui ele deu um leve murro no braço de Ted.

- Você deve estar exercendo uma boa influência sobre ela, e ela sobre

você, amigo.

- É, confirmou o Ted, ela até me convence a pôr gasolina no carro

antes de o ponteiro chegar na reserva.

- Exatamente o que eu disse, continuou Douglas. Que boa dupla vocês

dois estão formando!

Trícia dirigiu um olhar significativo para Cris, que entendeu que sua

amiga casada estava lhe perguntando: “Ele já a pediu em casamento?”

Cris fechou os olhos e abanou a cabeça lentamente e bem de leve.

- Então vamos fazer nosso pedido, disse Douglas para Trícia. Oh,

gente, vamos puxar mais uma mesa e algumas cadeiras, se estas aqui já

estiverem ocupadas.

Cris e Trícia logo se puseram a contar para ver quantas pessoas havia

no grupo deles. Em seguida, arranjaram as cadeiras para todos. Cris se

sentou na que estava mais perto da lareira e ficou sentindo o calor do fogo

passar através da calça jeans que usava. Estava amando o ambiente da

lanchonete. No contorno da lareira, havia um “cordão” de pinheirinho bem

cheiroso, enfeitado com ornamentos típicos de Natal e pequeninas

sementes vermelhas. As janelas também estavam circundadas por luzinhas

bem brilhantes, e sobre a porta de entrada, via-se uma imensa grinalda com

motivos natalinos.

Aquele lugar lhe lembrava uma cafeteria a que ela e as amigas

costumavam ir quando estava em Basiléia. As lâmpadas eram cor de

âmbar; as mesas, cadeiras e outras peças, de uma madeira escura. Tudo

isso dava ao ambiente a sensação aconchegante de um lar. Cris estava

gostando muito das janelas bem amplas e daquele profundo aroma de café

no ar.

Entretanto o de que ela mais gostava era o fato de estar com os

amigos. A certa altura, avistou uma placa de bronze ao lado da lareira,

onde se achavam gravadas as palavras: Será que existe na Terra um prazer

maior do que o de se estar num círculo de amigos crentes, perto de uma

lareira? C. S. Lewis.

Cris pensou que, quando ela tivesse a casa dos seus sonhos, onde

moraria junto com o Ted, iria mandar fazer uma placa com esses dizeres e

a colocaria perto da lareira.

Instantes depois, Katie, Mark e Jenna chegaram e se juntaram ao

grupo. Cris sentiu que agora o círculo estava completo. E o fato de a

cafeteria estar toda decorada com enfeites de Natal tornava a ocasião ainda

mais festiva.

- Fiquei muito alegre de você ter vindo! disse baixinho para Katie.

A amiga se sentou numa cadeira ao lado de Cris.

- Que foi que você disse? indagou.

- Fiquei muito alegre de você ter vindo, repetiu.

- Eu também. Você tinha razão. Isso aqui é o meu lugar.

Cris sorriu.

- Já são sete horas? indagou Ronny, levantando-se.

- São 7:05h, respondeu Trícia.

- Ah, então vou lá ver se o gerente já chegou. Disseram que ele

chegava às 7:00h.

Quando o rapaz se afastava, Trícia perguntou:

- Por que ele quer ir lá saber do gerente. Ele o conhece?

- Não, explicou Selena. O Ronny tem uma banda e eles querem tocar

aqui.

Ted chegou à mesa trazendo guardanapos e talheres, que entregou a

Cris. Em seguida, sentou-se numa cadeira que se achava diretamente em

frente a da namorada.

- Você quer se sentar perto da Cris? indagou Katie

- Não, replicou o rapaz. Aqui ‘tá bom, pois posso fitar seus “olhos de

matar”.

Fazia tempo que Cris não ouvia essa expressão. A última vez fora

quando ainda estava cursando o ensino médio. E não fora seu namorado

que a dissera.

Nesse momento, o Ted se inclinou para o Mark, que se achava sentado

à sua esquerda, e cochichou algo para ele.

- Ei, não é justo vocês ficarem com segredinhos aí! protestou Katie.

- Não é segredinho, não, respondeu Ted.

O Mark não disse nada. Levantou-se e saiu. Cris não entendeu o que

estava acontecendo. Contudo, apesar de o outro ter saído, também não quis

descobrir o que fora que seu namorado lhe dissera, e que, segundo ele, não

era segredo.

Cris se achava de frente para a porta de entrada e de costas para o

balcão onde se faziam os pedidos. Observou que havia muita gente

chegando ao “Ninho”. Ficou satisfeita de seu grupo já ter pegado aqueles

lugares perto da lareira.

- Pedi sopa pra você, informou Ted. De cevada com carne.

- Ah, não tem sanduíche, não? indagou Cris.

- Só de presunto e de peito de peru. Achei que a sopa seria melhor

porque vem com carne. Ela é acompanhada de um pãozinho.

- ‘Tá bom, replicou.

Ela devia ter se lembrado de como Ted agia com certa lógica todas as

vezes que tinha de comprar algo. E no fim, a sopa seria melhor do que o

sanduíche, pois iria ajudá-la a se aquecer. O Ted compreendera isso.

Estendeu a perna debaixo da mesa e deu uma pisada de leve no pé dele.

- Ei Katie, disse o rapaz, você ‘tá querendo machucar meu pé?

indagou ele, brincando.

- E pra que eu iria querer fazer isso? perguntou a jovem.

Cris fitou o namorado com um fingido ar de raiva e deu-lhe um

chutezinho na perna. Ele dirigiu-lhe uma rápida piscadela. Ou será que

estava piscando para alguém que se achava atrás dela?

Então elas ouviram uma voz forte atrás de Katie:

- Ei, moça, os teus cabelos são como o rebanho...

As duas se viraram ao mesmo tempo e soltaram uma exclamação de

espanto.

- Rick! disse Katie, a primeira a recuperar a fala.

- Katie!

A voz dele falhou por um momento, mas em seguida concluiu a frase,

como se alguém lhe tivesse pagado para dizer isso à jovem. Então, dando

um sorriso amplo, ele repetiu bem alto:

- Os teus cabelos são como o rebanho de cabras. Quer sair comigo?

Todo mundo caiu na risada, menos Cris e Katie. Fora isso que esta

expressara, aliás com as mesmas palavras. Ela dissera que queria que

algum rapaz, um desconhecido, a convidasse para sair, dirigindo-lhe esse

estranho elogio. Só que aquele homem alto, de ombros largos, cabelos e

olhos castanhos, que fitava o rosto dela, examinando cada detalhe dele, não

era propriamente um desconhecido para nenhuma das duas.

Katie se levantou bem devagar, e ele se aproximou e abraçou-a.

- O.k., disse ela em tom expansivo, vou sair com você, já que pediu de

uma forma tão legal.

Rick sorriu.

- Olhe só! disse ele, afastando-se um pouco e olhando-a mais

atentamente. Puxa, quando foi que você cresceu?

- Ah, é por causa do meu cabelo. Eu o cortei.

- Um cara chamado Mark me disse pra vir aqui e lhe dizer que seu

cabelo é como o rebanho de cabras, mas eu não sabia que era você. E não

é, né? Quero dizer, é você, sim, mas seu cabelo não tem nenhuma

semelhança com cabras.

Cris nunca vira um cara como Rick Doyle ficar confuso ao falar.

Nesse momento, ele parecia mais um adolescente do que um astro do

futebol - aliás, muito convencido - como era quando estavam na escola.

O rapaz virou-se para olhar as outras pessoas que estavam por ali.

- Oi, Rick! disse Cris, calorosamente.

- Oh, Cris! exclamou o rapaz, abaixando-se para abraçá-la. Que bom

ver todos vocês aqui. Quase não acreditei quando vi o Ted e o Douglas

chegando lá no balcão. E o Ted me disse que vocês dois estão... e aqui ele

fez uma pausa e olhou para o Ted.

Cris também fitou o namorado. Este permaneceu com a mesma

expressão facial.

- Ele me contou que vocês dois estão cada vez mais unidos, concluiu o

recém-chegado. Isso é maravilhoso! Estou muito feliz pelos dois. Estou

mesmo!

- Também acho maravilhoso, concordou ela.

Cris estava muito alegre de perceber que conseguia conversar com

Rick Doyle com toda tranquilidade. Entre eles não havia nada que pudesse

constrangê-la, nenhuma recordação negativa do namoro tumultuado que

tinham tido no colégio.

Mark voltou a sentar-se, e Katie se pôs a repreendê-lo por haver

convencido o Rick a fazer uma brincadeira com ela, sendo que, na verdade,

a brincadeira acabara sendo com ele.

- Foi ele que me instigou a fazer isso, defendeu-se Mark, apontando

para o Ted.

Este, por sua vez, fez uma cara de inocente e se virou para o Douglas,

dando a entender que fora ele quem tivera a brilhante idéia.

- Não olhe pra mim, disse Douglas.

Nesse momento, Cris se deu conta de que todos os rapazes com quem

tivera algum relacionamento sério e profundo estavam ali naquela mesa.

Obviamente, porém, nenhum deles era mais importante do que o Ted. E a

firme devoção que tinha por ele aumentou mais um “grau”. Nenhum

daqueles homens se comparava com ele.

Depois que Rick foi apresentado aos outros, Katie indagou:

- Quer se sentar aqui conosco?

- Não, obrigado. Tenho de voltar para o trabalho. Disseram-me que

tem um rapaz aqui querendo conversar comigo. Parece que a banda dele

quer tocar aqui.

- Ah, é o Ronny, interpôs Selena. Ele ‘tá conosco.

- Voltar para o trabalho? indagou Katie.

- É. Sou o gerente. O Douglas não lhe disse?

- Não. Ele não disse nada. Você é o gerente?

Rick acenou que sim.

- Meu pai comprou esta lanchonete e me pôs pra trabalhar aqui. Quer

dar uma volta por aí comigo? Vou lhe mostrar tudo.

Ficou claro que ele estava convidando apenas a Katie. A jovem se

levantou e foi seguindo-o. Assim que eles saíram, Cris ouviu-a dizer:

- Você já pensou em servir aqui chás de ervas especiais?

Cris virou-se para Ted, com os olhos arregalados.

- Puxa! exclamou. Estou pasmada!

- Não se espante, replicou o rapaz simplesmente. Isso é coisa de Deus.

- Com uma pequena ajuda dos filhos dele, comentou Trícia.

- É, concordou Ted, com uma pequena ajuda dos filhos dele.

A garçonete trouxe as bandejas com os pedidos, e todo o grupo deu as

mãos para orar. Douglas fez uma oração em voz alta. Quando ele a

encerrou, Ted e Cris disseram em uníssono:

- Como quiseres, Senhor!

Os dois ergueram a cabeça e se entreolharam. Cris teve a sensação de

que estava fitando uma lagoazinha de águas claras, que refletiam sua

imagem. Seu “coração” estava fitando-a também e sorrindo.

Todos se puseram a comer, mas o prato de Katie, junto à cadeira

vazia, ficou intocado. Ronny voltou e anunciou que sua banda iria tocar no

“Ninho da Pomba” em fevereiro.

Cris achou a sopa deliciosa e o calor da lareira já a aquecera da cabeça

aos pés. Estava muito feliz.

Dois rapazes que se achavam junto à janela, montando um

equipamento de som, começaram a tocar algo. Com isso, Cris teve

dificuldade para conversar com Selena que estava do outro lado da mesa.

Contudo contentou-se em falar com Douglas, Trícia e Ted que se

encontravam mais próximos. Estavam comentando sobre a viagem que

fariam ao México, onde visitariam um orfanato. Nesse instante, Katie

retornou à mesa. Seus olhos verdes brilhavam como lâmpadas natalinas.

- Gente, estou simplesmente estonteada! exclamou ela. Vocês já

tiveram a chance de conversar com esse cara? Ele só fala assim: “O Senhor

fez isso! Deus cuidou daquilo”. Como é bom estar na companhia dele!

- É tremendo! disse Douglas.

- É, concordou Katie. É tremendo! E vocês também são tremendos.

Ele me contou que continuaram mantendo contato com ele estes anos

todos, que lhe escreveram incentivando-o a entregar a vida pra Deus. E

sabe o que mais? Ele atendeu. Estou... bom... estou estonteada,

maravilhada e...

- E um pouco fascinada também? disse Cris, sondando-a.

- É, um pouco talvez.

O grupo ficou em silêncio, esperando que Katie explicasse melhor.

- Bem, gente, o cara disse que meu cabelo era como um rebanho de

cabras, não disse? Quero dizer, como é que uma garota não vai ficar

fascinada com uma declaração tão poética?

Todos caíram na risada juntamente com a jovem.

- E olhem só o que encontrei no depósito! disse Katie, colocando

sobre a mesa um pacote de balas em formato de coração. Sobremesa!

concluiu ela.

- Ah, mas essas balas são muito velhas! comentou Trícia. Quero dizer,

esta lanchonete é nova, né? Mas não estão vendendo mais docinhos do Dia

dos Namorados *. Agora, em todo lugar, só tem balas com motivos

natalinos. Não quero nem saber de onde elas são.

- Do Galpão da Economia, replicou logo o Ted, abrindo o pacote e

derramando na mesa os corações. Estive lá hoje e tinha uma caixa cheia

dessas balas logo na entrada. Agora é a melhor época de comprá-las.

- Comprar, tudo bem, insistiu Trícia, mas chupar? Acho que não.

E assim dizendo, ela pegou uma das balas e leu uma mensagem

gravada nela.

- “Passe-me um fax”, leu. Passe-me um fax? Desde quando

começaram a escrever isso nessas balas? Sempre achei que eles punham

frases como: ‘Ama-me”, “Seja fiel”, etc.

Em seguida, ela pegou outra balinha e leu:

- “Beije-me!”

- Beijo, sim! disse Douglas, que, em seguida, puxou a esposa para si e

plantou-lhe um sonoro beijo nos lábios.

Trícia deu uma risadinha infantil. Até parecia que era a primeira vez

que ganhava um beijo. Cris sorriu ao ver os dois amigos tão apaixonados

um pelo outro. Antes de casar, o Douglas nunca havia beijado ninguém.

* O “Dia dos Namorados” nos Estados Unidos é comemorado em fevereiro. É por isso que “Trícia” disse que as balas eram velhas. (N. da T.)

Por isso, no dia do casamento, quando ele beijou a noiva no altar, a igreja

toda rompeu em palmas. Foi a maior “explosão” de aplausos que Cris já

vira num casamento.

- Olhem este aqui, interpôs Katie. “Chama-me pelo alto-falante”.

Todos os presentes começaram a ler as mensagens de sua bala.

Douglas pegou uma que dizia: “Mande-me um e-mail”.

- Esta aqui deve ser do pacote interativo, comentou.

Ted pegou um coraçãozinho e colocou-o diante dos olhos de Cris,

como que querendo provar o que Douglas acabara de dizer. Na bala estava

escrito: “Casa comigo.”

A jovem leu e em seguida ergueu os olhos para Trícia.

- Puxa, disse, não dá pra acreditar nas frases que eles escrevem hoje

em dia. Estou com você, Trícia. Antigamente eles punham: “Seja doce

comigo”, e coisas assim.

- Olhem só, falou Katie, lendo: “Doces lábios”.

- Quero essa aí, disse Trícia.

- O que você ‘tá fazendo? indagou Katie. ‘Tá formando uma sentença

de balas?

- Claro. Tente fazer uma.

- Aqui pra você, Trícia, disse Cris. Achei outra “Chama-me pelo alto-

falante”.

Ted colocou outra balinha à frente de Cris. Nela estava gravado:

“Casa comigo.”

- Acho que já temos uma dessas, disse a jovem, afastando-a para um

lado e procurando uma que tivesse algo que ninguém havia lido ainda.

Ted também se pôs a procurar. Por fim, ele pegou uma bala, levantou-

se e foi para o outro lado da mesa, ficando junto de Cris. Em seguida,

colocou a terceira balinha perto das outras duas que já havia dado para ela,

formando uma fileira de três.

- Pronto. Depois que se diz algo três vezes, aquilo fica valendo. Pra

sempre.

Cris ficou paralisada. Só conseguia ver as três balas enfileiradas diante

de seus olhos. E em todas elas estava escrito:

“Casa comigo. Casa comigo. Casa comigo.”

Virou-se para o namorado que nesse momento se abaixou, apoiando

um dos joelhos no chão e pegando as mãos dela nas suas. Fitou-a

diretamente nos olhos e disse:

- Kilikina, minha Kilikina, quer casar comigo?

A voz dele era como uma cachoeira que caía sobre Cris.

- Sim! replicou ela sem um minuto de hesitação. Sim, repetiu um

pouco mais alto.

Em seguida, falou uma terceira vez, com toda firmeza e em meio a

uma cascata de lágrimas:

- Sim, meu Ted, eu me caso com você!

Durante alguns segundos, foi como se o mundo todo tivesse parado, e

os dois ficaram imóveis. Não respiravam, nem piscavam, nem se mexiam.

Estavam imersos um na alma do outro. O único som que Cris escutava era

de um coração batendo. Contudo não sabia ao certo se era o seu ou o do

Ted. Os dois pareciam bater em uníssono.

- Que é que você ‘tá fazendo aí, Ted? indagou Katie. Deixou uma bala

cair aí no chão? Ainda tem muitas aqui.

O rapaz não se mexeu. Cris sorriu.

Ninguém sabe de nada. O Ted acaba de me pedir em casamento, mas

ninguém sabe disso ainda. É um segredo só nosso.

Katie deu uma espiada para a fileira de balas que estava perto de sua

amiga e soltou um grito como somente Katie era capaz de soltar. Aí o

segredo de Cris e Ted foi descoberto. Todos os presentes pararam de

conversar e até de comer. Os dois cantores que tocavam violão também

interromperam a música.

- Finalmente! exclamou Katie em voz bem alta.

E assim dizendo, ela se pôs de pé e gritou:

- Ei, pessoal! Preciso fazer uma comunicação a todos! Minha melhor

amiga aqui foi pedida em casamento!

Imediatamente todos cercaram Cris e Ted, abraçando-os e dando-lhes

os parabéns. E Katie indagou à amiga:

- O que você respondeu?

- Eu disse “Sim”! replicou a jovem num tom firme.

- Ela respondeu que “Sim”, falou Katie, pondo-se a bater palmas.

E todos que estavam na lanchonete também começaram a aplaudir.

Mark passou os braços em volta de Cris e lhe deu um abraço tipo

“amigo de infância”.

- Sua avó vai gostar muito dele, disse o rapaz. E eu não vou mais dizer

“Você não me pega!”, pois ‘tá claro que o Ted é o homem de sua vida.

- E é mesmo, concordou Cris, sorrindo e depois dando uma risadinha.

Trícia estava chorando, e Selena, também. Quando está última

abraçou Cris, comentou:

- Puxa, no casamento da minha irmã eu quase não chorei, mas aqui...

O que há de diferente com você e o Ted?

Rick aproximou-se e também dirigiu um sorriso afetuoso para Cris.

Inclinou-se para a jovem e lhe deu um beijo no rosto.

- Você esperou um herói e o conquistou, disse o rapaz, falando-lhe ao

ouvido. Parabéns, “olhos de matar”!

- Obrigada, Rick!

Cris virou-se para o namorado. Ele estava recebendo os cumprimentos

com um amplo sorriso nos lábios.

Ele parece um garotinho de cinco anos para quem fizeram uma festa

surpresa, com a presença de uma porção de amigos.

Enquanto ela ainda pensava isso, um garçom se aproximou trazendo

um bolo redondo, no qual havia uma velinha acesa.

- Com os cumprimentos do Sr. Doyle, explicou o rapaz.

- Faça um pedido! disse Katie. Faça um pedido!

- Já fiz, replicou Ted, passando os braços em torno de Cris. E ela

aceitou.

- Ah, que lindo! suspirou Trícia. Oh, Ted, não sabia que você era tão

romântico!

- Você ainda não viu nada, replicou o rapaz.

Levou a mão ao queixo de Cris e, com um leve toque, ergueu a cabeça

dela. E em seguida, beijou-a como nunca a beijara antes.

Quando se afastaram um do outro, Cris viu, com o canto dos olhos,

que a velinha ainda estava acesa. Ele não tinha mais nada a pedir.

Tampouco tinha fôlego para soprar a vela.

- E a vela, gente? indagou Katie. E a vela?

Cris fitou Ted bem nos olhos. O rapaz a estava olhando “daquele

jeito”. Seus olhos azul-acinzentados pareciam ainda mais luminosos, com

um brilho diferente.

- Deixe acesa, murmurou ele, segurando o rosto dela suavemente.

Deixe acesa pelo resto da vida.

Cris deu um beijo na palma da mão do namorado, aquela mão forte

que agora tinha uma cicatriz. E com voz bem baixa, que só Deus e o Ted

poderiam ouvir, disse:

- Como quiseres!

Fim