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Assionara Souza

amanhã. com sorvete!

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mímica

i.Para desconforto do mímico, antes que entrasse com o seu show alguém lhe cochichou ao ouvido que todos os que estavam na plateia eram cegos. Considerando as pernas do artista, seu tama-nho, agilidade e força, para se chegar da coxia ao centro do palco eram suficientes cinco passos. Sendo que o primeiro teria sido um salto pairando com o pé esquerdo no chão. Os dois seguin-tes, freadas curtas como prolongamento do pulo da entrada. O quarto e o quinto passos, uma reviravolta com a direita atritan-do estridente o solado no piso; outra reviravolta com a esquerda, localizando-o na posição central. E em cheio flagrado pelos cegos, que mapeavam com o mover de todo o rosto e os nulos olhos abertos a figura do mímico.

ii.Não pôde usar de pronto o truque de arrastar uma enorme barra de ferro invisível. Os cegos não relacionariam sua roupa de presi-diário à narrativa que os seus gestos iriam expressar. Num súbi-to, veio-lhe a ideia de despir-se ali, na frente daqueles inusitados olhares. Mirou os pés. Poderia começar. Deu um espirro alto, para ajudar na marcação. Uns cegos riram. Alguns disseram: Saúde! Caiu com o peso do corpo no chão, mãos espalmadas e palmilhas no piso à toda. Começou. Descalçou um dos pés. Jogou um dos

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sapatos bem longe de si. Alguns cegos nas fileiras da frente recua-ram o corpo e não conseguiram sorrir. Tirou o outro calçado e des-te fez correr o fio do cadarço com força para que seus expectaditos não duvidassem do que estava ocorrendo ali diante de seus ouvidos de ver.

iii.Agora era a vez da calça. Como estivessem apertadas, seus ge-midos orientavam a obstinação por despir-se da peça. Algumas moças cegas baixavam a vista e erguiam as orelhas. O mímico, percebendo a reação, abusou do som do estalido do elástico em suas coxas. E rápido livrou-se de uma das pernas. Logo depois outra. Andou por um lado e outro do palco. Coçou os pelos da bunda. Brincou de fugir do canhão de luz. Isso era lá com ele. Os cegos não entenderam. Ergueu o corpo todo pra frente segurando o arco das costas com as palmas das mãos. Deslizou-as devagar em movimentos cruzados pela curva da roliça barriga. Agarrou uma e outra ponta da camisa e com um golpe rápido ergueu pelo tronco e pelos braços e cabeça seu disfarce de presidiário.

iv.Segurando firme com a mão direita, usou a camisa de chicote e brincou com a plateia. Narizes em riste sorviam o odor do corpo do mímico que era lançado em quentes bafos da boca de cena ao semi-círculo da plateia lotada de cegos. O mímico respirou fun-do, terminando com um assovio longo. Sem gargalhar. Pigarreou duas vezes de modo cínico e partiu para o grand finale. Tirou a samba-canção branca de bolinhas azuis. Virou para os cegos e ofereceu-lhes um flatulento bunda-lelê. O número por completo não excedeu os 4’ e 33”. E durante todo o tempo o mímico man-teve-se virtuosamente limpo e vestido.

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o pêndulo sonoro

A Sra. Stein diante do pêndulo sonoro. Assim uma criança num jogo de quem piscar primeiro perde. Diante de outra criança. Brincam o jogo de quem piscar primeiro perde. E em volta do pên-dulo as vibrações. Assim os braços soltos de uma criança. Assim os braços soltos da outra criança. No jogo do quem piscar primeiro perde. Assim a Sra. Stein diante do pêndulo sonoro. Desse modo e exatamente assim. Os olhos como se duas pedras bem pequenas. Uma primeiro e depois outra num lago em miniatura. Assim os dois olhos da Sra. Stein movendo-se fixos no centro do pêndulo sonoro. Assim os círculos concêntricos e os outros círculos con-cêntricos surgindo de dentro. Assim a pedra num lago em mi-niatura e mais uma pedra. Assim os olhos da Sra. Stein estáticos aqui e ali diante do pêndulo sonoro. Assim os pés de uma criança. Diante da outra criança. Brincando o jogo de quem piscar primeiro perde. Assim o corpo de uma. Diante do corpo da outra. Em in-sistente e fixo mover-se. Um corpo diante do outro. Assim a Sra. Stein diante do pêndulo sonoro. Assim a linguagem e o som. Esfe-ras concêntricas surgindo. Uma esfera e outra esfera. Compõem o universo da Sra. Stein diante do pêndulo sonoro. Assim somente o som quase inaudível do pêndulo sonoro no espaço vazio.

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órbita dos silêncios

O corpo e a voz eram disciplinados. Fez um voto de silêncio. Não sei como chama. Voto? Talvez seja. Ele fez um voto, então. Um voto de silêncio. É sempre muito estranho estar assim como estou agora. Olho e penso que ele percebe que eu sei. Sobre o voto de silêncio. Tento não pensar. Não quero pensar. As imagens vêm. O silêncio dele tem uma pretensão. Não que seja um silên-cio pretensioso. É um silêncio redoma. Incomoda-me. Quando o encontro, sempre penso. Assim como os meus olhos pensam agora. Por sobre as palavras meus olhos tentam traduzir o silên-cio dele. Estou aqui há um tempo. E ele não pronunciou uma sílaba. Olha-me como se pudesse ver mais. Acompanhando, por trás de palavras visíveis, outras menos flagrantes. Estas que estou pensando. Não parei de falar desde que cheguei. Os dois me esprei-tam como se eu fosse um animal condenado à própria condição. Minha febre são as palavras. Um animal que mexe os lábios e não para de falar por um segundo. O outro já acostumou. O outro diz que ele conversa. Vocês já repararam que os anões têm os pés e as mãos do mesmo tamanho que uma pessoa normal? Quando vocês virem um anão, observem. É bonito. Uma vez eu estava es-perando ônibus e uma mão tocou meu ombro. A voz macia. A voz que eu gostava de ouvir me contar histórias. Eu virei, e era uma anã. O que é uma pessoa normal? Num breve gesto ele inclina o

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rosto para minha direção. Sem nada dizer. Como se repetisse a pergunta. Não. Ele não conversa. Eu sei. Sempre que estou com ele penso que estou à espera de alguma revelação importante. Os dois sabem o quanto para mim é difícil não pensar. Mesmo quando estou falando não consigo parar de pensar. De pensar inclusive no silêncio dele. O diretor daquele filme consegue fazer com que os atores interpretem a personagem. O fracasso de alguns filmes é que algumas personagens acabam interpretando o ator. Eu já sei que não é a personagem. A roupa não veste bem aquele corpo porque o ator não está sendo a personagem. Está somente sendo um ator com uma roupa. Acho que deveria ter um curso de atores em que fosse observado somente o modo de vestir perso-nagens. Existe essa expressão: Vestir uma personagem. Eu já ouvi essa expressão. Agora mesmo ele mudou a entonação do olhar. O outro interrompe. Complementa. O outro já aprendeu a mar-gear o silêncio dele com algum comentário. E sem qualquer tom invasivo. Os dois formam uma dupla. Difícil isso. Formar uma dupla. Gosto de ver os dois. Um desafio. Enfrentar algo religioso. Consigo identificar o porquê de os gestos serem religiosos. Há muito tempo eu senti essa mesma sensação. O som mudo por trás dos gestos intensos. O silêncio difícil de achar. Um som mudo que existe por trás dos excessos. Sempre que venho aqui visitar os dois sinto essa experiência religiosa. As lembranças estão na pele. Memórias como um silêncio latente. O som mudo do silêncio é o que está por baixo da pele. Penso no corpo de nós três aqui. As roupas que ele veste. Extensões de uma mudez que está na pele. Como se todo o silêncio absorvesse as coisas que ele toca. Beckett tinha uma ou duas mudas de roupa. Deveríamos ter poucas roupas para amestrá-las ao nosso modo de ser. Até que elas pegassem o som mudo do silêncio do nosso corpo. O corpo do outro já havia

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se curado de muitas marcas. Só nesse compartilhar do silêncio com ele. As pessoas deixam transparecer as marcas. Era isso que eu tentava escutar dele. Buscar a história impregnada na roupa. Antes de nós estarmos ali. O mesmo que eu fazia no tempo em que não pensava tanto. Por trás de todo o som, encontrar o som mudo do silêncio. As coisas têm sua parte tátil. As coisas têm seus olhos e ouvidos. O antes de estarmos ali. O que o corpo viveu durante toda a semana. O corpo engessado em gestos previsíveis. Cumprindo rituais do hábito. Os nossos corpos aqui nesta sala. Envolvidos pelo silêncio dele. É tudo religioso. O som mudo do silêncio dele como um perfume esvaindo-se da pele. Saindo da pele como a lembrança dos gestos impuros saem da pele. Como os pensamentos que se soltam do corpo. Coisa viva. Sei disso. Um voto de silêncio. Estamos aqui conversando. Ele escuta tudo o que estamos dizendo. Esboça um mínimo gesto. Tenho vontade de estar com as mãos postas. Mas não posso deixar que percebam. Devo ser ou parecer ser natural. Nunca serei natural. Os meus gestos estão viciados. Os meus pensamentos estão viciados. Ten-tei inutilmente – influenciada por essa experiência que ele me faz sentir – livrar-me desses pensamentos. Tentei também eu fazer um voto de silêncio. Prometi. Uma promessa sem corpo. Agora penso que já comecei da maneira errada. Como poderia eu fazer uma promessa de silêncio? Transformar em linguagem já era não levar adiante a convicção do silêncio. Fiz a promessa. Na última passagem de ano. Não era uma passagem de ano qualquer. Era a última passagem de ano para alguém da casa. No momento em que os fogos explodiram no céu eu vi. Nesse momento pude ter a mesma experiência religiosa que sinto agora. Os fogos estoura-ram no céu. E os olhos ficaram cheios de silêncio porque aquela seria a última vez de contemplar a explosão dos fogos no céu.

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Nesse momento eu me lembrei dele. Lembrei que eu deveria fazer um voto de silêncio. Prometi: a partir de agora vou fazer um voto de silêncio. Vou passar o primeiro dia do ano em silêncio.

Não consegui. E por não conseguir deixei explodir em mim a linguagem como fogos. A linguagem estourava dentro de mim. Os outros me olhavam como se eu fosse louca. Alguns riram. Outros foram ficando fisicamente cansados de mim. O dom da linguagem tem essas pontes. Começa por seduzir. E depois o se-dutor é condenado pelo seu vício. Ele não. Jamais condenado. O silêncio o redime. Há algum tempo estou aqui. O que ele disse? Uma palavra ele não disse. E mantém-se sereno. Não sente ne-nhum orgulho. Somente beatitude no olhar. Há alguns anos ve-nho aqui. Nenhuma palavra. Um sorriso sim. Um abraço sim. Mas o abraço não é propriamente expressivo. O abraço encosta o corpo como numa despedida em que se quer ir logo embora, para não ter que prolongar a dor. O abraço final. Eu sei que den-tro da cabeça dele deve ter música. Ele aprendeu. Depois que fez o voto de silêncio ele aprendeu música. Vi os cadernos. O outro me mostrou os vários cadernos preenchidos com a caligrafia das claves. Não sei ler. Mas gosto de olhar. Sei que se eu olhar muito para as coisas elas também vão deixar o som mudo do silêncio escapar. O som mudo do silêncio está colado às coisas. Como se fosse a alma antiga das coisas. Uma alma meditativa que se agrega à superfície dos seres. Não consigo parar de pensar. Penso que dentro da cabeça dele devem correr sons como rios. Não quero mais os meus pensamentos. Cansam-me. Há muito tempo perce-bo isso. Sei também que os olhos dos doentes migram para o fun-do da alma. Na última passagem do ano pude olhar bem para uns olhos assim. Enquanto os fogos estouravam no céu. Vi um esforço tremendo. Um esforço para que os olhos vissem com o espírito.

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Onde a vida acontecia intensa. Vi esses olhos encherem-se de lá-grimas. Despedindo-se da luz. E depois houve luto na casa. Então, decido contar como tudo se deu. E como a casa ficou triste depois. A casa sentindo falta daquela presença que habitou por um tempo o espaço familiar. Nesse momento olho para os olhos dele. Estão fixos nos meus. Estou nesse momento me comunicando com o som mudo do silêncio. Sou absolutamente incapaz. Incapaz de me ceder a esse silêncio. Por isso venho aqui. Venho porque não tenho mais o lugar em que eu possa escutar – por trás dos gestos e gritos, o som mudo do silêncio. Enquanto a faixa de sol desce sorrateira pela parede, como se espreitasse para ouvir os meus pensamentos, ele não diz uma palavra. O silêncio é que rege uma partitura para todos os elementos a nossa volta. Sem que isso seja um sacrifício. Sem que ele publique sua virtude. Sem que ele se considere um santo entre pecadores. E eu compreendo. Depois de ter enchido a casa toda de palavras e gestos. Compreendo esse momento em que os olhos dele me deixam ouvir a música. Como a neblina úmida sobre um lago. Um véu de fumaça. Ele sorri. Em silêncio.

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esboço

O caderno aberto ali na mesa. Sobre a mesa. A mesa de madeira e em volta quatro cadeiras. O caderno em cima. Aberto. Um dese-nho a lápis está acontecendo. Flores que se formam sobre o influxo de uma mão distraída. O caderno com linhas. Então seria para escrever e não para desenhar. E não para desenhar flores. Escrever uma carta talvez que começasse com: Aqui, hoje d’este mês d’este ano. Uma mão deslizando tensa sobre a folha. Enchendo a página de um jardim carvão. Traços profundos. Furiosos. Ali sobre a mesa em que ao redor quatro cadeiras e numa delas a moça ao telefone.

O cigarro queimando lá no cinzeiro. Sobre a mesa. A mesa cheia de livros. Em volta três cadeiras. O cinzeiro sobre a mesa. E dentro, um cigarro queimando neste mesmo momento em que flores são desenhadas num caderno ali sobre a mesa. Sobre uma mesa também cheia de livros. E nas páginas histórias e teorias. Espalhados sem ins-talação. Lá, a obediente combustão de linhas de pólvora. E vez por outra movendo-se entre dedos até a boca. Cortando palavras ao meio. Cortando a voz que atravessa uma cidade inteira. Em vez de letras escritas numa folha de caderno. Começando por: Lá, antes de ontem d’este mês d’este ano. Ao mesmo tempo em que flores de carvão. Ao mesmo tempo em que cinzas. Da boca ao ouvido.

– Foi uma fatalidade. Um acidente.

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verossímil

Ia mentir. Pensou que estava a ponto de mentir. E mentiu. Espe-rou a reação. A mentira era vermelha e cheia de pétalas. Tinha folhas grandes com uma camada aveludada como se pelos. Não dava mais tempo de recuperar. A mentira já estava se reprodu-zindo, esgueirando-se, estendendo seus braços e destes outros pequenos bracinhos surgindo. Ela olhou para as próprias botas. Ainda, se quisesse, podia ir a algum lugar. Tentou segurar um riso. Sim, claro. Podia fugir dali a qualquer momento. Mas e se não pudesse? Riu de novo. Ficava tensa e o riso vinha. Um riso desesperado seguido de um frio na barriga e suor nas mãos.

Continuou por um tempo. Plantando mentiras e deixando que o sol dos dias desse conta de orientar a direção de seus galhos. A casa agora era tomada pelo vermelho. Os pelos agregavam-se à superfície dos móveis. E às roupas, mesmo àquelas que estavam guardadas limpas dentro das gavetas. As refeições eram sérias e acompanhadas de tosses e engasgos que os pelos provocavam. Fi-cavam na garganta e formavam um nó. Tinham que ser expelidos. Na hora do beijo, pensavam no incômodo de conviver ali naquela casa cercados dos tentáculos que proliferavam dia após dia. E se pudessem então congelar a mentira? Não custava tentar. À tarde, como sempre faziam, as portas eram todas fechadas. Para evitar assustar os que espiavam a vida alheia deles. Ao anoitecer é que

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podiam abrir as janelas. O vento frio entrava. Eles ficavam quie-tos e enrolados em lençóis grossos. Como dois velhos. Vez por outra trocavam gentilezas mínimas. Tolerava um a companhia do outro. Não conseguiam mais um viço de interesse mínimo um pelo outro. A mentira aos poucos foi enrijecendo. Tornando-se a própria vida que eles tinham construído. Os galhos iam da espes-sura mais grossa até os caminhos sanguíneos das veias que faziam o sangue circular; entrançavam-se no ar que enchia os pulmões e saíam no timbre da voz; amarravam-se ao esforço que condu-zia os gestos; enfeixavam o fluxo incontínuo dos pensamentos; e congelavam no vidro fosco dos olhos dos dois. Não dava pra diferenciar o que eram eles próprios e o que eram as mentiras que envolviam o espaço da casa e a extensão de seus corpos.

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