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Revista AMAZÔNIA LEGAL de estudos sócio-jurídico-ambientais 3 Jan./Jun. – 2008

AMAZÔNIA LEGAL200.129.241.80/ppgda/arquivos/img-conteudo/files/Revista3.pdf · Valerio de Oliveira Mazzuoli (Diretor da Revista) Parte I AMAZÔNIA LEGAL Revista Amazônia Legal de

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Revista

AMAZÔNIA LEGAL de estudos sócio-jurídico-ambientais

3

Jan./Jun. – 2008

Ministério da EducaçãoUniversidade Federal de Mato Grosso

Reitor Paulo Speller

Vice-Reitor Elias Alves de Andrade

Pró-Reitora Administrativa Adriana Rigon Weska

Pró-Reitora de Ensino e de Graduação Matilde Araki CrudoPró-Reitor de Pesquisa

Paulo Teixeira de Sousa JúniorPró-Reitora de Planejamento

Tereza Cristina de Souza HigaPró-Reitora de Ensino de Graduação

Matilde Araki CrudoPró-Reitora de Pós-Graduação

Marinêz Isaac MarquesPró-Reitora de Vivência Acadêmica e Social

Marilda Esteves Calháo MatsubaraDiretora da Faculdade de Direito

Beatrice Maria Pedroso da SilvaDiretores da Revista

Valerio de Oliveira Mazzuoli Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray

CONSELHO EDITORIAL Prof Dr Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray – UFMT

Profª Drª Beatrice Maria Pedroso da Silva – UFMT Prof. Dr. Benedito Dias Pereira – UFMT

Prof. Dr. Bismarck Duarte Diniz – UFMTProf. Dr. Francisco Mafra – UFMT

Prof. Dr. Marcos Prado de Albuquerque – UFMTProf. Dr. Florisbal de S. Del’Olmo – (URI - Santo Ângelo)

Prof. Dr. Antonio Maués – UFPAProf. Dr. José Heder Benatti – UFPAProf. Dr. Paulo Sérgio Weyl – UFPA

Prof. Dr. José Rubens Morato Leite – UFSCProfª Drª Carolina Joana da Silva – UNEMAT

Profª Drª Maria de Fátima Ribeiro – UEL

COLABORADORES DISCENTES Ana Spoladore Ferreira dos Reis

Dimas Simões Franco NetoJônathas Borges HosakaTalissa de Oliveira Aoki

Wladimir Ormond Mattioli

Universidade Federal de Mato Grosso Avenida Fernando Corrêa, s/n Coxipó – Cuiabá-MT – CEP: 78060-900

Fone: PABX (+55 65) 3615-8000 / FAX: (+55 65) 3628-1219 www.ufmt.br

ISSN 1981-6774

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais Cuiabá Ano 2 n. 3 p. 1-143 jan.-jun. 2008

Revista

AMAZÔNIA LEGAL de estudos sócio-jurídico-ambientais

3

Jan./Jun. – 2008

Editora da Universidade Federal de Mato GrossoAv. Fernando Corrêa da Costa s/n.Fone (65) 3615 8322 – fax: (65) 3615 8325Coxipó da Ponte – Cuiabá – MT – [email protected]

Rua 03, s/n., 3º andar, Prédio da IOMAT, C.P.A. - Fone 65-613-3500 - Fax: 65-613-3502, CEP: 78050-970 - Cuiabá-MT. [email protected]

Revisão e Normalização: Eliete Hugueney de Figueiredo | Maria Auxiliadora Silva PereiraCapa, Projeto Gráfico e Editoração: Candida Bitencourt Haesbaert | Sérgio PugaImpressão: Gráfica Bartira - São Paulo, SP

Revista Amazônia Legal: de estudos sócio-jurídico-ambientais / Universidade Federal de Mato Grosso, Ano 2, n. 3 ( jan/jun – 2008) – Cuiabá: EdUFMT, 2008. Semestral 143 p. ISSN 1981-6774

1. Amazônia – Estudos sócio-jurídicos-ambientais. 2. Universidade Federal de Mato Grosso – Periódicos .

CDU – 908(811A)

© 2008 Faculdade de Direito da UFMT.

FAPEMAT

Sumário

Editorial .......................................................................................................9

Parte 1 – Amazônia Legal ..............................................................................11

1. Tributação ambiental no Amazonas: políticas fiscais para o desenvolvimento sustentável .......................................13 German Alejandro San Martín Fernández Florence Karine Laloë

2. O instituto do usufruto exclusivo de recursos naturais por comunidades indígenas em suas terras: manejo e exploração de recursos florestais pelos Paiter (Suruí) na terra indígena Sete de Setembro em Rondônia ......................33 Rafael Clemente Oliveira do Prado Narai Agoteme Suruí Paiter

3. A possibilidade de dispensa do EIA/RIMA de Pequenas Centrais Hidrelétricas de até 30 MW na Amazônia Mato-Grossense ............................45 André Luiz Falquetti e Silva

4. Prática Jurídica Ambiental: A atuação do Escritório Modelo de Advocacia Ambiental da UFMT no combate ao desmatamento ilegal em Mato Grosso .....61 Carlos Teodoro J. Hugueney Irigaray Giselle Ferreira Vieira Gustavo Crestani Fava

Parte II – Direito Ambiental Brasileiro .........................................................73

1. A tutela ambiental e as tendências para a sua aplicabilidade na atualidade .........75 Liane Marli Schäfer Lucca Luciano André Glowacki

2. Dimensões da Sustentabilidade ...................................................................93 Clair Kemer de Melo Janete Rosa Martins

3. Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da Constituição Federal de 1988 ................................................105

Elisa Cerioli Del´Olmo

Parte III – Direito Internacional do Meio Ambiente ..................................129

1. Propriedade intelectual como fator de regulação do desenvolvimento: análise de acordos e tratados internacionais e legislação nacional em matéria de patentes na biotecnologia ....................................................131 Salete Oro Boff Vilmar Antonio Boff

Summary

Editorial .......................................................................................................9

Part 1 – Legal Amazon ...................................................................................11

1. Taxation in the Amazon region: tax policies for sustainable development .........13 German Alejandro San Martín Fernández Florence Karine Laloë

2. The exclusive use of natural resources by indigenous communities in their land: management and exploitation of forest resources by Paiter (Surui) on indigenous land Sete de Setembro in Rondonia.............................................................33 Rafael Clemente Oliveira do Prado Narai Agoteme Suruí Paiter

3. The possibility of releasing the EIA / RIMA of Small Hydroelectric up to 30 MW in the Amazon environment in Mato-Grossoe ..................................45 André Luiz Falquetti e Silva

4. Environmental Legal Practice: The performance of the Model Law Office of Environmental UFMT to fight illegal deforestation in Mato Grosso ................61 Carlos Teodoro J. Hugueney Irigaray Giselle Ferreira Vieira Gustavo Crestani Fava

Part II – Brazilian Environmental Law ..........................................................73

1. The environmental protection and trends for its modern application ...............75 Liane Marli Schäfer Lucca Luciano André Glowacki

2. Dimensions of Sustainability......................................................................93 Clair Kemer de Melo Janete Rosa Martins

3. Information as environmental law and fundamental right under the Federal Constitution of 1988 ..............................................................105

Elisa Cerioli Del´Olmo

Part III – International Environmental Law ...............................................129

1. Intellectual property as a regulating factor of development: analysis of international agreements and treaties and national legislation on patents in biotechnology .....................................................................131 Salete Oro Boff Vilmar Antonio Boff

Editorial

É com imensa satisfação que trazemos a público o terceiro volume da Revista Amazônia Legal, que já se constituiu num novo fôro de discussões sociojurídico-ambientais sobre as questões amazônicas e agroambientais no Brasil e nos Estados da região amazônica.

A publicação da Revista Amazônia Legal é fruto dos resultados alcançados pelo grupo de estudos em Direito Agroambiental da UFMT, que conta com pesqui-sadores da Faculdade de Direito, bem assim de outras instituições nacionais e internacionais parceiras de nossa Universidade (a exemplo da Universidade da Flórida, dentre outras).

Este volume traz colaborações de ambientalistas e profissionais do Direito de diversas instituições. Participaram desta coletânea German Alejandro San Martín Fernández, Florence Karine Laloë, Rafael Clemente Oliveira do Prado, Narai Agoteme Suruí Paiter, André Luiz Falquetti e Silva, Liane Marli Schäfer Lucca, Luciano André Glowacki, Clair Kemer de Melo, Janete Rosa Martins, Elisa Cerioli Del´Olmo, Carlos Teodoro J. Hugueney Irigaray, Giselle Ferreira Vieira, Gustavo Crestani Fava, Salete Oro Boff e Vilmar Antonio Boff.

Um agradecimento especial deve ser feito à Editora da UFMT, na pessoa da Prof.ª Elizabeth Madureira Siqueira, cujo profissionalismo e dedicação constantes fizeram dessa publicação uma realidade.

Esperamos que este terceiro volume da Revista Amazônia Legal possa continuar no propósito de ser o incentivo para o estudo cada vez mais crescente das questões amazônicas e agroambientais em nosso país.

Cuiabá, 1° de julho de 2008.

Carlos Teodoro José Hugueney Irigaray(Coordenador Geral)

Valerio de Oliveira Mazzuoli(Diretor da Revista)

Parte I

AMAZÔNIA LEGAL

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais Cuiabá Ano 2 n. 2 p. 11-72 Jan.-jun. 2007

German Alejandro San Martín Fernández*

Florence Karine Laloë**

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais Cuiabá Ano 2 n. 3 p. 13-32 jan.-jun. 2007

Tributação Ambiental no Amazonas

políticas fiscais para o desenvolvimento sustentável

Resumo1

Em tempos de modernidade reflexiva, em que a sociedade de risco, tal como tratada por Ulrich Beck2, impõe uma nova ética para o futuro no que se refere à responsabilidade, aceitação e gestão dos riscos globais, novos instrumentos devem ser utilizados na busca de um novo equilíbrio entre o homem e o meio ambiente. De poluição urbana ao avanço predatório da agrope-cuária e às mudanças climáticas, a problemática merece uma atenção diversificada, especialmente na Amazônia. Muito já se falou sobre a atuação do Estado na proteção do meio ambiente, por meio da implementação de normas proibitivas e de controle e fiscalização estatal. Contudo, maior espaço tem se dado às normas indutoras, utilizando-se de termo utilizado por Luis Edu-ardo Schoueri3, não somente no que tange à intervenção na ordem econômica, mas também no que tange ao incentivo, à fiscalização e ao planejamento de um desenvolvimento nacional equilibrado, conforme preceitua o artigo 174 da Constituição Federal. Nesse sentido, em

* Advogado, Mestre e Doutorando em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.** Advogada, Mestre em Ciências Políticas (Assuntos Internacionais – Desenvolvimento, foco em Desenvolvimento

Sustentável) pelo « Institut d´Etudes Politiques de Paris – IEP Paris/Sciences Po » e Mestranda em Direito Ambiental Internacional e Comparado pela “Université de Limoges”, França.

1 Este resumo constou dos Anais do XV Congresso do CONPEDI, publicado em 2007.2 BECK, Ulrich. La société du risque. Sur la voie d’une autre modernité. Trad. de L’allemand par L. Bernardi. Paris: Aubier,

2001.3 SHOUERI, Luis Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. São Paulo, Forense, 2005.

AbstractIn an era where the risk society, as addressed by Ulrich Beck, imposes a new ethic for the future with regard to tolerance and management of global risks, new instruments should be used in the search for a new balance between man and the environment. Much has been said about the effectiveness of the state’s protection of the environment through the implementation of prohibitive norms and supervision. However, more space has been given to a new approach of the problem, not only with regard to intervention in the economic order, but also with regard to incentives, supervision and planning a national development structure, as stipulates Article 174 of the Federal Constitution. Accordingly with constitutional principles, the tax is a valuable and effective tool to stimulate an ecological sustainable development. This study intent to analyze the issue in Amazonas’s State, within the context of the Zona Franca Verde created in 2003 as an alternative for sustainable development of the state. It approaches with an interdisciplinary

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consonância com os princípios constitucionais tributários e ambientais, a tributação surge como um instrumento valioso e eficaz. O presente estudo não tem a pretensão de exaurir a matéria e propor uma reforma tributária verde em todo o País, ainda que esta última seja almejada e espe-rada, mas sim abordar a temática no Amazonas, dentro do contexto da Zona Franca Verde criada em 2003 como alternativa sustentável de desen-volvimento do Estado. Analisaremos, de maneira interdisciplinar, algumas medidas já tomadas nesse sentido, questões políticas, econômicas, sociais e jurídicas a elas conexas, na tentativa de trazer alguns elementos teóricos para propos-tas futuras de tributação ambiental no Estado, especialmente em matéria de Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI ecológico.

Palavras-Chave: Tributação. Desenvolvimen-to sustentável. Norma Indutora.

view, some political and economical measures already taken in that field.

Keywords: Taxation. Sustainable development.

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IntroduçãoOs desafios atuais relacionados à escassez de recursos naturais e aos impactos

da atividade humana sobre o meio ambiente impõem à sociedade moderna uma maior atenção à temática de gestão de riscos, surgindo a necessidade de se pensar em direitos e justiça intergeracionais.

De acordo com o sociólogo alemão Ulrich Beck4, o advento da era tecnológi-ca e industrial, impulsionada pela Revolução Industrial, no século XVIII, trouxe conseqüências importantes à sociedade moderna atual, dentre as quais se encontra o aparecimento de novos riscos não conhecidos ou previsíveis, assim como sua globalização. Os conceitos de território, responsabilidade e ética já não são mais os mesmos, abrindo espaço ao desenvolvimento de uma nova cidadania, ao for-talecimento dos princípios de prevenção e da precaução, e à gestão de riscos sob novas óticas. E não haveria de ser diferente, tendo em vista a transfronteiridade dos impactos ambientais e a responsabilidade comum, ainda que diferenciada, no tratamento das problemáticas sócio-ambientais.

A ordem internacional seguiu esse caminho, e a problemática, desde o aumento da pobreza, das desigualdades sociais e de doenças à necessidade de proteção do meio ambiente de forma com que as gerações futuras não sejam prejudicadas por decisões e ações do presente, foi objeto de diversas Conferências Internacionais que deram origem por sua vez a Tratados específicos sobre as diversas temáticas sócio-ambientais5.

Com efeito, a distribuição dos riscos à sociedade como um todo se torna impe-rativa, sem a qual os princípios universais de justiça e eqüidade restariam obsoletos. Para tanto, faz-se necessária não somente a participação social mais efetiva no processo decisório de políticas públicas ambientais e, de um modo geral, a evolu-ção democrática em todos seus níveis, mas também a utilização de instrumentos jurídicos de modo mais adequado à realidade da sociedade de risco.

Nesse sentido, as normas proibitivas, o controle e a fiscalização pelo Estado e pela sociedade civil são fundamentais. É o chamado comando e controle (command and control), citado pela doutrina internacional. No entanto, há também as normas indutoras6 de comportamentos, que têm o condão de estimular ações ou omissões desejadas dos atores econômicos e sociais, dentro do contexto de uma Constituição

4 Para aprofundar-se no tema, ver BECK, Ulrich. La société du risque. Sur la voie d’une autre modernité- Trad. de L’allemand par L. Bernardi. Paris, Aubier, 2001.

5 Apenas para citar algumas das mais importantes, Estocolmo em 1972, que representou um marco na “ecopolítica” internacional e trouxe o embrião de alguns princípios ambientais, Rio de Janeiro em 1992, ao trazer o desenvolvimento sustentável como objetivo primordial das Nações, além de colocar em pauta o eminente problema das mudanças climáticas, e por fim, Johannesburgo, em 2002.

6 SHOUERI, Luis Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. São Paulo: Forense, 2005.

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dirigente7. Nesse campo se inserem as normas de tributação ambiental, que podem ser utilizadas para incitar a redução de atividades poluidoras, o desenvolvimento de tecnologias ecologicamente e socialmente corretas e a conseqüente mudança de modos de produção, a conscientização dos produtores, industriais e consu-midores, agindo tanto na demanda como na oferta, de modo a restabelecer um novo equilíbrio de mercado. A tributação visa também a auxiliar na obtenção de recursos financeiros para a concretização de políticas públicas voltadas à temática ambiental e proporcionar o pagamento dos custos ambientais pelos verdadeiros atores responsáveis pela degradação do meio ambiente, internalizando as externali-dades negativas8. Os princípios do poluidor pagador, prevenção e precaução podem assim se tornar mais eficazes e efetivos.

O instrumento da tributação para este fim já vem sendo utilizado no Estado Brasileiro, mas a norma indutora para fins ambientais ainda é pouco explorada em todos seus aspectos. Muitos países da União Européia já vêm utilizando as normas tributárias indutoras para fins ambientais nas últimas décadas. A título de exemplo, citamos os países nórdicos (em especial Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca), que instituíram pioneiramente tributos para combater as emissões de CO29. A redução das emissões de CO2 foi de aproximadamente 21% ao ano10.

A evolução da utilização das normas de comando e controle às normas indu-toras obteve um marco importante no estado do Amazonas com a implementação do Programa Zona Franca Verde, em 2003, que tem como objetivo promover o desenvolvimento sob seus três aspectos: desenvolvimento econômico, social, e defesa do meio ambiente. De fato, um novo modelo de desenvolvimento, mais sustentável e alternativo, a Zona Franca de Manaus adquire progressivamente

7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador – Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra Editora, 2001.

8 SHOUERI, Luis Eduardo. Op. cit., p. 43-44: “Caracteriza-as o fato de serem normas dispositivas. O agente econô-mico não se vê sem alternativas, ao contrário, recebe ele estímulos e desestímulos que, atuando no campo de sua formação de vontade, levam-no a se decidir pelo caminho proposto pelo legislador. [...] Assim, quando se cogita, por exemplo, do instrumento tributário como meio de internalizar as chamadas ́ externalidades´, o que se faz é transferir ao mercado, por meio do mecanismo do preço, aqueles custos, cabendo aos produtores e consumidores decidir, em última instância, sobre o sucesso ou fracasso de um produto. Do mesmo modo, o incremento da tributação de um produto poderá implicar seu menor consumo, conforme esteja ou não o mercado disposto a assumir tais custos. No sentido inverso, isenções pontuais podem induzir os consumidores em direção a determinados produtos. Em todos os casos, de qualquer modo, no lugar da decisão política, privilegia-se o mercado como centro decisório, para determinar quem vai produzir (ou consumir) e quanto será produzido (ou consumido)”.

9 A Noruega, por exemplo, instituiu, em 1991, tributo destinado a combater as emissões das indústrias petrolíferas e de carvão, assim como de transporte marítimo e aéreo comercial, bem como a fomentar o desenvolvimento de energias alternativas. De maneira a garantir a neutralidade fiscal, a compensação dos valores recolhidos a título do tributo em referência se dá em grande parte com a redução dos encargos sociais dos empregados e eventuais ajudas e subsídios a setores de energias alternativas. (NOMIDÈS, Paul. La Fiscalité Ecologique – Fondation Robert Shuman, 2002). Evidentemente, no estado do Amazonas, a questão das emissões de CO2 e de mudanças climáticas merece um tratamento distinto, já que grande parte da contribuição às emissões ocorre pelo desmatamento. No entanto, o exemplo é importante para demonstrar a utilização da tributação ambiental no combate aos desafios ambientais globais, assim como na elaboração de uma política fiscal eficaz.

10 SAINTENY, Guillaume. Quelle Fiscalité de l’environnement? Revue Française de Finances Publiques n 63, septembre 1998, L. G. D. J, p. 109.

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espaço no Estado graças a marcos políticos e legais usados para este fim. Con-tudo, conforme será tratado no presente artigo, as normas indutoras tributárias ambientais ainda não atingiram o seu pleno potencial. Para isso, é necessário um esforço comum entre todas as pessoas de direito público interno, em consonância com os princípios ambientais e tributários anteriormente citados, tais como o não confisco, capacidade contributiva, caráter não sancionatório do tributo, entre outros, de modo a desenvolver políticas fiscais eficazes para o desenvolvimento verdadeiramente sustentável.

1 O desenvolvimento sustentável como princípio constitucional e o desenvolvimento

do estado do AmazonasA Constituição de 1988 positiva expressamente a proteção do meio ambiente,

inserindo em seus enunciados previsões a respeito da necessária criação de políticas ambientais baseadas no tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental causado dos produtos e serviços e de seus respectivos processos de elaboração e prestação (artigo 170, VI da CF/88).

A seguir, no artigo 225, resta também positivado o direito às presentes e futuras gerações ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo o dever de de-fesa a toda a coletividade e ao Poder Público. Diante destes enunciados não resta dúvida que a Constituição Federal de 1988 positiva expressamente o princípio do desenvolvimento sustentável.

Resta saber qual a natureza jurídica desses enunciados e o alcance eficacial de seus dispositivos. Isso porque não há como negar que a Constituição de 1988 possui, dentre suas disposições, normas programáticas e principiológiocas em contraposição a normas de natureza imperativa, cujos conteúdos interferem me-diata ou imediatamente na regulação de comportamentos sociais e na elaboração legislativa e atuação administrativa. Vejamos.

A doutrina se utiliza de várias classificações, como sempre, guiadas por crité-rios de utilidade11, para identificar o grau eficacial das normas constitucionais e classificá-las de acordo com o grau de eficácia ou efetividade e de aplicabilidade.

Nesse sentido, é praticamente pacífico na doutrina que a Constituição Federal não se trata apenas de uma carta de intenções ou recomendações. Não haveria, portanto, norma constitucional destituída de eficácia. O que existe é apenas uma graduação quanto à sua eficácia e aplicabilidade, se plena, contida ou limitada.

11 Classificar, nas palavras de Garcia Maynes: “es un problema de perspectiva. ... Las clasificaciones tienen unicamente valor cuando respondem a exigencias de orden práctico o a necesidades sistemáticas” - Introducción al estudio del derecho, p. 78.

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Para José Afonso da Silva12: “Todas elas irradiam efeitos jurídicos, importando sempre uma inovação da ordem jurídica preexistente à entrada em vigor da cons-tituição a que aderem e a nova ordenação instaurada”. O que temos é a existência de normas constitucionais que não emanam de seus dispositivos ordens imediatas proibitivas ou obrigatórias de comportamentos, vez que dependentes de outras normas jurídicas que lhe confiram a plenitude dos efeitos jurídicos pretendidos pelo poder constituinte.

Daí a consagrada classificação de José Afonso da Silva, entre normas de eficácia plena e aplicabilidade imediata (direta ou integral) contida e aplicabilidade direta e imediata (mas possivelmente não integral) e limitada (declaratórias de princípios institutivos, ou organizativos, ou ainda declaratórias de princípio programático).

Por essa classificação, as normas constitucionais podem ser de aplicabilidade di-reta, imediata e integral, cuja característica é a impossibilidade de que seu conteúdo seja restringido por outra norma (ex. direitos e garantias fundamentais) e por não trazerem previsão de processo de sua execução. São aquelas normas cujos enun-ciados já se encontram suficientemente explicitados no Texto Constitucional13.

Em seguida aparecem as normas de eficácia contida. Estas não dependem de lei para produzir efeitos imediatos, no entanto, na ausência de regulamentação a aplicabilidade não poderá ser integral. As normas de eficácia contida são passíveis de restrição; contudo, enquanto não restringidas por lei superveniente, produ-zem os mesmos efeitos das normas de eficácia plena (embora nunca se tornem normas de eficácia plena pela singela razão de que em algum momento as suas disposições podem ser restringidas por lei superveniente). São auto-executáveis, bastantes em si, tanto as normas de eficácia plena quanto as de eficácia contida (ex. art. 5º, XIII da CR/88).

As normas de eficácia contida podem ser restringidas por conceitos de direito público (ordem pública, bons costumes e necessidade ou utilidade pública), ou por outras normas constitucionais (art. 139, inciso IV da CR/88)14. E por último e derradeiro, as normas de eficácia limitada ou reduzida (que compreendem as normas definidoras de princípio institutivo ou organizatório e as definidoras de princípios programáticos), em geral dependentes de integração infraconstitucional para operarem a plenitude de seus efeitos15.

12 In Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6ª ed., p. 81/82, São Paulo: Malheiros.13 Maria Helena Diniz chama de normas de eficácia absoluta aquelas que sequer poderiam ter seu alcance normativo

restringido por emendas constitucionais. Pela classificação de Silva, as normas de eficácia plena poderiam sofrer essa restrição pelo poder constituinte derivado.

14 Michel Temer chama essas normas de eficácia redutível ou restringível.15 Vale ainda citar a classificação de Luis Roberto Barroso: a) normas constitucionais de organização, b) definidoras

de direito e c) programáticas e de Celso Bastos e Ayres Brito: quanto ao seu modo de incidência em: normas de integração e normas de mera aplicação e; quanto à produção de efeitos, em normas de eficácia parcial e plena.

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Não restam dúvidas de que os enunciados dos artigos 170, VI e 225 da CF/88, correspondem a normas de eficácia limitada ou reduzida, por serem dependentes de regulação infraconstitucional para que produzam em sua totalidade os efeitos pretendidos pelo legislador constituinte. Isto não quer dizer, contudo, que sejam apenas conselhos ao legislador ou à Administração. Pelo contrário, são imperativos de finalidades dirigidos aos poderes legislativo e executivo, em suas várias formas de expressão de poder e atuação.

O fato dos enunciados que positivam no direito brasileiro e o desenvolvimento sustentável serem programáticos16 e, portanto, tratar de normas de eficácia limitada, não autoriza produção legislativa ou atuação administrativa contrária aos seus de-sígnios. Pelo contrário, as normas de eficácia limitada são aptas a serem utilizadas como normas parâmetros no controle de constitucionalidade de qualquer ato legislativo que viole ou contrarie seus desígnios, sendo que o contraste entre as normas para fins de controle de constitucionalidade deve se dar através de uma verificação de fins e não de meios (programação finalística e não condicional).

Nesse sentido, a utilização da chamada tributação ambiental deriva diretamente da criação de princípios e regras de direito envolvendo a regulação da atividade econômica17 dada através da positivação jurídica de conceitos políticos (valores), próprios dos Estados liberais, em atividade nitidamente finalística, ou seja, visando a satisfação dos desígnios constitucionais relativos à proteção do meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável.

Daí a inserção na Constituição Federal de princípios gerais da atividade econô-mica cuja finalidade é assegurar a soberania nacional, a propriedade privada, a livre concorrência, a defesa do consumidor, A DEFESA DO MEIO AMBIENTE, a redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego (artigo 170 e incisos), mas sem prever expressamente quais deverão ser os meios adotados pelo legislador infraconstitucional para atingir esses objetivos.

Por essas razões, conclui-se que a Constituição Federal, ao traçar as diretrizes jurídicas das ações estatais relacionadas à regulação da atividade econômica, impõe ao desenvolvimento econômico e às ações de fiscalização, incentivo e planejamento que tenham também por objetivo a proteção do meio ambiente. Pela análise do inciso VI do artigo 170, combinado como o artigo 22518, todos da CR/88, não restam dúvidas de que o Brasil positivou o princípio do desenvolvimento sustentável

16 Aquelas: “através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado” (SILVA, José Afonso, op. cit., p. 138).

17 O artigo 174 da Constituição Federal18 assegura ainda ao Estado o papel de regulador da atividade econômica, outorgando-lhe funções de fiscalização, incentivo e planejamento.

18 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

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na qualidade de norma-fim, sujeita, portanto, a controle de constitucionalidade não quanto aos meios utilizados, mas sim, em relação aos fins almejados pelo legislador constituinte19.

Pelo princípio-fim do desenvolvimento sustentável, propõe-se ao menos a utilização racional do meio ambiente em índices que permitam renovação sem prejuízos às gerações futuras. Implica na escolha dos meios menos gravosos ao meio ambiente em detrimento da utilização de outras fontes de recursos (razoabilidade e propor-cionalidade), cuja utilização, mesmo sendo mais viáveis economicamente, possam comprometer a qualidade de vida de presentes e futuras gerações.

O princípio do desenvolvimento sustentável, sem alongar-se sobre o tema, não pode, contudo, ser limitado e interpretado tão somente sob seu aspecto formal, normativo-positivo. Com efeito, uma interpretação mais extensiva de-monstra que o mesmo abrange diversos direitos e princípios fundamentais, tais como a dignidade humana, a cidadania, o trabalho e a livre iniciativa (artigo 1º da CR/88)20 e os direitos sociais previstos no artigo 6º da CR/88. O princípio está, portanto, consagrado na Constituição Federal pela correlação de diversos direitos fundamentais e princípios tributários, sociais, ambientais e econômicos, que não se sobrepõem, mas se complementam, de maneira a formar seu tríplice aspecto econômico, social e ambiental, como forma de desenvolvimento almejado para o Estado Democrático de Direito Brasileiro21. A dificuldade está em transpor tais direitos e princípios em políticas públicas justas e eqüitativas, nas quais o equilíbrio entre os três aspectos seja encontrado.

No que se refere ao estado Amazonas, a aplicação do mencionado princípio é ainda mais desafiador, tendo em vista a heterogeneidade e complexidade dos atores sociais e realidades sócio-econômicas. Não obstante, há que se levar em consideração que, para alcançar o tão desejado justo meio entre os três referidos aspectos, dentro do contexto da Zona Franca Verde, torna-se imprescindível a intensa fiscalização e controle do extrativismo sustentável desenvolvido. Por um lado, tem-se a necessidade de que as populações locais receberão de fato os be-nefícios obtidos e, por outro lado, a garantia de que o meio-ambiente está sendo

19 No âmbito do Direito Internacional, o princípio do desenvolvimento sustentável ocupa 12 dos 25 princípios da Declaração do Rio, fruto de discussões na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, de 3 a 14 de junho de 1992. No Princípio 3 pode-se extrair o conceito de desenvolvimento sustentável: “O direito ao desenvolvimento deve ser exercido, de modo a permitir que sejam atendidas eqüitativamente as necessidades de desenvolvimento e ambientais de gerações presentes e futuras”.

20 Ricardo Lobo TORRES, em Valores e Princípios no Direito Tributário Ambiental. In: Direito Tributário Ambiental, Malheiros Editores, 2005, p. 23, se refere especificamente como sendo o princípio do poluidor pagador integrante do princípio da “justiça tributária ambiental”.

21 “A lei dirigente cede o lugar ao contrato, o espaço nacional alarga-se à transnacionalização e globalização, mas o ânimo de mudanças aí está de novo nos ‘quatro contratos globais’. Referimo-nos ao contrato para ‘as necessidades globais’- remover as desigualdades – o contrato cultural – tolerância e diálogo de culturas – contrato democrático – democracia como governo global, e o contrato do planeta terra – desenvolvimento sustentado.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. XXII, apud. Limites à competição, Lisboa, 1994, obra coletiva.

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protegido (a qual pode ocorrer por meio de obtenção das diversas formas de certificação ambiental dos produtos madeireiros e não-madeireiros), sem as quais as disposições contidas no artigo 170, VI combinado com o artigo 225 da CR/88, poderiam restar prejudicadas.

Com efeito, se por um lado faz-se necessário “um crescimento econômico que envolva eqüitativa redistribuição dos resultados do processo produtivo e a erradicação da pobreza”22, tais valores não podem prevalecer sobre a proteção do meio ambiente. O princípio 14 da Declaração de Estocolmo, de 1972, já previa que “o planejamento racional constitui um instrumento indispensável para con-ciliar as diferenças que possam surgir entre as exigências do desenvolvimento e a necessidade de proteger e melhorar o meio”. E de fato, tais certificações, como instrumento de planejamento racional, têm o condão de controlar que sejam atingidas as finalidades de proteção ambiental.

É nesse ponto que a tributação ambiental encontra o seu lugar, na qualidade de um dos meios postos à disposição do Estado na busca da obtenção dos desígnios constitucionais de proteção ao meio-ambiente e de equilíbrio entre os princípios constitucionais de desenvolvimento socioeconômico e preservação e utilização racional dos recursos naturais.

1.1 Os princípios ambientais de prevenção e do poluidor pagador na ordem econômica

O princípio do poluidor pagador já se encontrava consagrado na legislação brasileira na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81) em seu artigo 4º, VII, ao prever como um de seus objetivos visar “à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados, e ao usuário, de contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”.

O dispositivo prevê, portanto, não somente a responsabilidade de recuperação e indenização pelos danos ao meio ambiente ocasionados por agente poluidor, como também a obrigatoriedade do agente econômico de recurso ambiental em arcar financeiramente com custos de sua utilização e da poluição.

O princípio também se encontra consagrado no Princípio 16, da Declaração do Rio de 199223.

Ambos dispositivos têm como objetivo impedir que outro agente alheio à ati-vidade suporte custo pelo qual não seja responsável. Tratando-se de produção de mercadoria, poderá ser refletido seu verdadeiro preço e o custo de sua utilização 22 A SILVA, José Afonso. In: Direito Ambiental Constitucional. Malheiros Editores, 2003, p. 27.23 “As autoridades nacionais deverão envidar esforços no sentido de promover a internalização dos custos ambientais e o

uso de instrumentos econômicos, levando em consideração a política de que o poluidor deverá, em princípio, arcar com os custos da poluição, considerado o interesse público e sem distorcer-se o comércio e as inversões internacionais”.

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suportado por todos os seus utilizadores, desde o produtor até o consumidor final. Em outras palavras, as ditas externalidades negativas, originalmente não contabilizadas no preço e que acarretam um custo à coletividade de um modo geral, são assim internalizadas e repassadas24.

Incontestavelmente, o princípio do poluidor pagador25 não se dissocia dos princípios de justiça e eqüidade. E não haveria de ser diferente, já que não pode a coletividade ou o Estado serem penalizados financeiramente por atividade eco-nômica da qual não fazem parte26.

Não obstante, o referido princípio da mesma forma é indissociável dos prin-cípios de prevenção e precaução, já que eventuais despesas do Estado ou da cole-tividade com medidas tomadas a fim de prevenir ou evitar o dano são suportadas pelo verdadeiro agente27.

Dessa forma, a tributação ambiental, em consonância com o princípio do poluidor pagador, permite a internalizaçao de tais custos (esperando-se que seja feita nos tributos já existentes, sem a criação de novos tributos, onerando-se a mais os contribuintes poluidores nos limites do princípio de justiça e eqüidade), induzindo-se ainda a comportamentos preventivos e sustentáveis.

1.2 Desafios de eficácia da política pública fiscal na busca do desenvolvimento sustentável

A tributação ambiental se insere num contexto de renovação do Direito Tribu-tário, em que novos desafios se impõem à sociedade de risco. Um novo equilíbrio de mercado e das leis da oferta e da demanda tornou-se indispensável de modo a conceder mais espaço ao desenvolvimento das atividades ditas limpas, desesti-mulando-se para tanto aquelas danosas ao meio ambiente de modo gradativo. A política fiscal é eficiente e eficaz para este fim, possibilitando tanto o financiamento de políticas ambientais, bem como a imposição de mudanças sociais.

Alfredo Augusto Becker ensina que

“[...] os ‘dados’coligidos e analisados pela Economia Política, Finanças Públicas e Política Fiscal, em vertiginoso progresso técnico, apresentam-se suficientes e idôneos para a elaboração do construído: um Direito Tributário rejuvenescido que pelo impacto dos tributos realize a revolução social e,

24 LE PRESTRE, Philippe. Protection de l´environnement et relations internationales. Les défis de l´écopolitique mondiale – Ar-mand Colin, 2005, p. 23. «le concept d´externalité fait référence aux conséquences d´une activité économique extérieure au marché ; c´est à dire aux impacts non comptabilisés dans le prix de revient. Il existe deux sortes d´externalités : les externalités positives apportent un bénéfice, tandis que les externalités négatives imposent un coût à la société».

25 Neste caso, Paulo Affonso Leme Machado se refere ao princípio do usuário-pagador. Direito Ambiental Brasileiro, Malheiros, 2004, p. 53.

26 Ricardo Lobo TORRES, op, cit. p. 27.27 TORRES. Ricardo Lobo. op. cit., p. 27.

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simultaneamente, financie a tarefa de reconstrução social disciplinada pelos demais ramos do Direito Positivo”28.

As dificuldades são numerosas: o tributo ambiental deve conciliar o direito de propriedade (artigo 5, XXII CR/88) e a livre concorrência (artigo 170, IV CR/88) ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à qualidade de vida sadia (artigo 225 CR/88) e aos direitos sociais (artigo 6 CR/88), de acordo com os princípios tributários (tais como os princípios da legalidade – artigo 150, I CR/88 -, da isonomia tributária – artigo 150, II CR/88 - e da competência tributária e regulatória)29, induzindo comportamentos sem que haja um aumento excessivo da pressão fiscal sobre o contribuinte, sob pena de violação ao princípio de não confisco (artigo 150, IV CR/88), e mantendo-se a estabilidade econômica.

Por um lado, tem-se o caráter fiscal do tributo, que visa à obtenção de recursos financeiros, com finalidade redistributiva30, e o caráter extrafiscal, que visa induzir comportamentos. Ambos caracteres estarão presentes em todos os tributos, mui-to embora haja “maior ou menor prevalência neste ou naquele sentido, a fim de melhor estabelecer o equilíbrio econômico-social do orçamento cíclico”31.

Evidente, no entanto, o legislador deverá optar pelo objetivo principal, indutor ou arrecadatório, almejado por cada tributo. Isto porque, na hipótese de instituição de um tributo de caráter meramente extrafiscal, no qual se opta por tributar pro-gressivamente a atividade lícita poluidora de modo a desestimular sua manutenção, a tendência é que tal atividade acabe por desaparecer a médio ou longo prazos, já que o agente preferirá alterar seu modo de produção e reduzir os custos de sua atividade (na hipótese da norma indutora produzir o comportamento esperado) a se submeter à tributação-sanção. No entanto, o Estado não poderá se tornar dependente da arrecadação decorrente da atividade poluidora. Essa dependência indicaria o fracasso quanto à realização do objetivo da finalidade extrafiscal do referido tributo32.

Assim, o objetivo da tributação ambiental deve ser o de primeiramente incentivar a mudança de comportamentos do agente econômico de modo gradativo, de acordo com os princípios de prevenção e de precaução. Além disso, deve ser garantida a

28 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. p. 587.29 SHOUERI, Luis Eduardo. Normas Tributárias Indutoras em matéria ambiental – Direito Tributário Ambiental, Malhei-

ros, 2005, p. 239-252, elenca os principais princípios tributários a serem observados para fins de normas tributárias ambientais indutoras, concomitantemente aos princípios da ordem econômica.

30 SOARES, Cláudia Dias. In: O imposto ambiental: Direito Fiscal do Ambiente. Cadernos CEDOUA, Almedina, Portugal, 2002, p. 12.

31 BECKER, Alfredo Augusto, op. cit., p. 597.32 Nesse sentido, Guillaume SAINTENY esclarece: “Si la taxe permet des rentrées importantes, c’est qu’elle a échouée, c’est-à-dire

que lês redevables préfèrent payer la payer plutôt que de diminuer leur pollution. Il est donc illusoire, voire presque pervers, d’attendre, de ce dernier type de fiscalité environnementale, des ressources publiques à redistribuer, fut-ce au profit de l’environnement. D’ailleurs, ne vaut-il pas mieux prevenir que guérir; c’est-à-dire empêcher ou diminuer la pollution à la source que dépolluer ensuite? Dans le deuxième cas le coût est plus eleve et la pollution a eu lieu. Taxer une assiette fiscale polluante pose donc um vrai problème: si le but est la suppression de la pollution, la base fiscale et donc lês rentrées fiscales disparaissent; (...)33” Op.cit. p. 111.

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neutralidade fiscal, qual seja, a cada aumento de tributação de determinada atividade poluidora, é concedido um incentivo fiscal a atividade ecologicamente mais limpa ou socialmente mais correta33. E de fato, caso assim não o fosse, restaria prejudicado o “equilíbrio econômico-social do orçamento público”, definido como “o equilíbrio qualitativo entre, de um lado: a despesa mais a receita, e de outro lado: a realidade econômico-social”34, segundo elucidação de Alfredo Augusto Becker.

Dessa forma, é necessária a estimativa das eventuais conseqüências socioeco-nômicas de uma norma indutora tributária ambiental, para que não se obtenham efeitos contrários ou menos adequados ao desenvolvimento sustentável, tais como efeitos migratórios, aumento dos índices de desemprego, entre outros35. Daí a importância já ressaltada da interdisciplinaridade com os demais ramos das Ciências Sociais, da Economia Política e das Finanças Públicas para fins de tributação ambiental.

Ademais, a eficácia do tributo depende do:

[...] montante absoluto de custos externos que o poluidor é obrigado a suportar e da proporcionalidade entre a sua capacidade contaminante a esse valor. Porquanto, o sujeito passivo, ao decidir sobre se vai eliminar a poluição ou saldar o gravame, elege o montante da obrigação deste como valor de referência, comparando-o com a despesa em que necessitará de incorrer para adoptar um comportamento mais sustentável36.

Tal aspecto é importante em respeito ao princípio da capacidade contributiva e, ainda, para que o princípio do poluidor pagador aplicado na tributação não acabe por se tornar um direito de poluir.

Outras dificuldades se impõem à conciliação da tributação ambiental, quais sejam, o cálculo das externalidades negativas e a segurança de que os recursos obtidos sejam verdadeiramente destinados ao investimento em tecnologias limpas e à recuperação de áreas degradadas. O controle social, pelo exercício da democracia participativa, e o judicial, surgem, para tanto, como primordiais.

33 A título de exemplo, ver os tributos instituídos nos países nórdicos para fins de redução das emissões de gases na atmosfera, citados na introdução do presente artigo.

34 Op. cit., p. 217, apud. L. Trotabas. Institutions Financières, 2ª ed., Paris, 1957, p. 62-63.35 “A neutralidade fiscal deve indicar, portanto, que a tributação ecológica deve ao máximo procurar ser um elemento

de aumento geral de eficiência do sistema e não um obstáculo ao desenvolvimento. Deve-se procurar, dessa forma, um equilíbrio fino entre desenvolvimento e proteção ambiental, o qual pode ser sintetizada pela fórmula ´desen-volvimento auto-sustentável´.” CALIENDO, Paulo. Tributação e mercado de carbono - Direito Tributário Ambiental, Malheiros Editores, 2005, p. 878.

36 SOARES, Claudia Dias, op. cit. p. 43.

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2 Políticas fiscais para o fomento do desenvolvimento sustentável no

estado do AmazonasNo tocante ao estado do Amazonas, a temática ganha papel de destaque, não

somente levando-se em consideração que se trata do Estado Brasileiro onde a Amazônia Legal encontra-se mais preservada, mas também em face da necessidade de planejamento socioeconômico que possibilite o desenvolvimento sustentável do Estado sem a dependência da Zona Franca de Manaus e de seus respectivos benefícios fiscais delimitados temporalmente.

O Programa Zona Franca Verde, criada em 2003 pelo Governo do Estado do Amazonas, tem como objetivo primordial o fomento não somente à conservação e à proteção dos recursos naturais, mas também à exploração sustentável de recursos madeireiros e não madeireiros, de modo a gerar renda à população do interior do Estado e a melhorar seus índices de desenvolvimento humano - IDH (de um modo geral, por meio de melhoria de políticas de educação, saúde e renda).

Sem alongar-se nas políticas públicas realizadas para este fim, já que o pre-sente estudo perderia seu foco principal, é possível afirmar que o programa vem colocando em prática políticas de gestão sustentável dos recursos das florestas, incentivando a organização social e a capacitação das comunidades (unidades de uso sustentável), concomitantemente à criação de unidades de conservação de proteção integral, como forma de maior proteção dos recursos naturais, em con-sonância com a Lei n. 9.985/2000 que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.

Nesse contexto de marco político e legal da Zona Franca Verde foram intro-duzidas alterações substanciais nas políticas fiscais do Estado, por meio da Lei n. 2.826/2003, alterada pelas Leis n. 2.879/2004, 2.927/2004 e 3.022/2005, que regulamentam a Política Estadual de Incentivos Fiscais e Extrafiscais.

Com efeito, até o advento da Lei n. 2.826/2003, era expressamente vedada a concessão de incentivos fiscais estaduais do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interesta-dual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS aos produtos de origem vegetal e animal e produtos de origem extrativa de processo elementar de produção37. No entanto, a Lei n. 2.826/2003 passou a incluir o setor florestal como de fundamental interesse do Estado, desde que as atividades desenvolvidas preencham no mínimo

37 Lei nº 1.939/1989:“Art. 12. Excluem-se dos incentivos de que trata a Lei 1.939, de 27 de dezembro de 1989, os produtos das empresas que explorem quaisquer das seguintes atividades:

(...) V - beneficiamento elementar de produtos de origem vegetal e animal, como preparação primária de couros e peles, beneficiamento de sal, preparação de fumos, serragem de madeira e outras atividades assemelhadas; VIII - obtenção de produtos de origem extrativa caracterizados por processo elementar de produção.”

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três condições previstas na Lei38, tais como a contribuição à utilização sustentável da matéria-prima florestal, em respeito à biodiversidade amazônica, a contribuição ao fomento do volume de produção florestal sustentável do Estado e às exportações de tais produtos nos mercados nacional e internacional, entre outras.

E não haveria de ser diferente, já que o manejo ecológico das espécies e ecos-sistemas caracteriza-se como dever constitucional do Poder Público na garantia do direito a todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e à sadia qualidade de vida da população (artigo 225, 1, I, CR/88).

Trata-se de benefício fiscal condicionado, já que a sua fruição depende obri-gatoriamente da adequação a no mínimo três das condições previstas na lei. Não obstante, a mesma depende de pedido formal fundamentado em projeto técni-coeconômico, o qual já deverá ter obtido licença ambiental do órgão competente, garantindo-se assim a preservação do meio-ambiente e a adequação à realidade socioeconômica na qual o mesmo se insere. No entanto, não é imposta como condição para fruição dos benefícios a existência de certificação ambiental, o que, conforme já exposto, poderia prejudicar a eficácia do artigo 170, VI, combinado com o artigo 225 da CR/88, caso a fiscalização e o controle não sejam eficazes.

A política fiscal compreende a concessão de crédito estímulo, deferimento, crédito fiscal presumido de regionalização, isenções e reduções de base de cálcu-lo de ICMS, bem como financiamentos a estabelecimentos de micro e pequeno porte dos setores agropecuário, agroindustrial e florestal, aplicação de recursos em investimentos estatais nos setores de infra-estrutura social, apoio tecnológico, mercadológico e gerencial, entre outros3940.

38 Art. 4º - A concessão dos incentivos fiscais caberá unicamente aos produtos resultantes de atividades consideradas de fundamental interesse para o desenvolvimento do Estado.

Parágrafo 1º - Consideram-se de fundamental interesse ao desenvolvimento do Estado, para efeito do que dispõe esta Lei, as empresas cujas atividades satisfaçam pelo menos 3 (três) das seguintes condições:

I - concorram para o adensamento da cadeia produtiva, com o objetivo de integrar e consolidar o parque industrial, agroindustrial e de indústrias de base florestal do Estado;

II - contribuam para o incremento do volume de produção industrial, agroindustrial e florestal do Estado; III - contribuam para o aumento da exportação para os mercados nacional e internacional; IV - promovam investimento em pesquisa e desenvolvimento de tecnologia de processo e/ou produto; V - contribuam para substituir importações nacionais e/ou estrangeiras; VI - promovam a interiorização de desenvolvimento econômico e social do Estado; VII - concorram para a utilização racional e sustentável de matéria-prima florestal e de princípios ativos da biodiversidade amazônica,

bem como dos respectivos insumos resultantes de sua exploração; VIII - contribuam para o aumento das produções agropecuária e afins, pesqueira e florestal do Estado; IX - gerem empregos diretos e/ou indiretos no Estado; X - promovam atividades ligadas à indústria do turismo. Parágrafo 2º - A condição prevista no inciso IX é de satisfação obrigatória na cumulatividade exigida no parágrafo anterior.”(grifos

nossos).39 Note-se o Projeto de Lei nº 5974/05, de autoria do Senado Federal, e seu apenso PLS nº 5162/05, que prevêem a

concessão de incentivos fiscais para projetos ambientais, de suma importância para o Estado do Amazonas: dedução de Imposto de Renda - IR de até 80% para pessoas físicas e até 40% para pessoas jurídicas de valores doados a enti-dades sem fins lucrativos para aplicação em projetos destinados a promover o uso sustentável de recursos naturais e a preservação do meio-ambiente; dedução de IR de até 5% sobre doações ou patrocínios utilizados em projetos para preservação do meio-ambiente, sem fins lucrativos, habilitados pelo órgão federal ambiental competente; dedução de IR de até 5% para doações ao Fundo Nacional de Meio Ambiente – FNMA.

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2.2 Imposto sobre produtos industrializados – IPI ecológico: o princípio da seletividade e da essencialidade e o incentivo

a novos modos de produção socialmente mais corretos e ambientalmente mais limpos

O artigo 153, IV da Constituição Federal outorga competência para que a União Federal, por lei, institua de modo uniforme, em todo território nacional o Imposto sobre Produtos Industrializados.

A exigência de uniformidade geográfica desse imposto não impede concessão de incentivos fiscais regionais, visando ao desenvolvimento socioeconômico entre as diferentes regiões do País (artigo 151, I, segunda parte da CR/88). Essa auto-rização constitucional, portanto, possibilita a concessão de incentivos a produtos oriundos de regiões economicamente menos desenvolvidas, mas possuidoras de grandes áreas preservadas.

A aparente exceção ao princípio da legalidade a que se submete o IPI, por força do § 1º do artigo 153 da CR/88, permite ao Poder Executivo alterar as alíquotas do imposto, sem a necessidade que haja, a exemplo dos demais tributos existentes do Sistema Constitucional Tributário, edição de lei em sentido estrito.

A Constituição Federal estabelece limites claros e objetivos às alterações de alíquotas no IPI, em especial no tocante à necessidade de que as alíquotas do IPI, por serem seletivas para cada produto, sejam fixadas em face da sua utilização e destinação. O Poder Executivo, em atividade regulamentar e administrativa, deve levar em consideração no ato de eleição das alíquotas constantes da TIPI, a essen-cialidade do produto, tomando como valor, como vetor interpretativo desse dever-poder atribuído pela Constituição Federal à administração, o seu aproveitamento pela sociedade em atividades reconhecidas pelo ordenamento jurídico como de extrema importância e relevância para a consecução do bem comum.

O vetor interpretativo a ser adotado pela administração tributária no ato de elaboração da TIPI e de fixação de alíquotas na respectiva classificação fiscal ado-tada, deve guiar-se pelo grau de essencialidade do produto. É essa a determinação constitucional do 3º do artigo 153 da CR/88.

A argumentação fazendária no sentido de tratar-se de atividade discricionária, própria de atos de política fiscal, não se sustenta em face de caráter impositivo do princípio da essencialidade inscrito na CR/88 e cujo destinatário constitucional di-reto é o Chefe do Poder Executivo Federal. Se no ato de eleição o administrador se guia por critérios meramente técnicos, desconsiderando a utilidade e o destino dos produtos, ou então, toma os critérios de interpretação do Sistema Harmonizado na qualidade de únicos aplicáveis na busca da correta classificação fiscal, viola-se o § 3º do artigo 153 e sobrepõe-se à Constituição Federal. Trata-se sim de ordem expressa, cuja constatação se dá pela imperatividade do enunciado contido no inciso I do §

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3º do artigo 153 da CF/88: [...] “§ 3º. O imposto previsto no inciso IV: I – SERÁ SELETIVO, EM FUNÇÃO DA ESSENCIALIDADE DO PRODUTO.”

O artigo 6º da Constituição Federal, ao disciplinar os direito sociais, dá balizas objetivas para identificar, do ponto de vista estritamente jurídico, quais são os va-lores tidos por essenciais pelo ordenamento jurídico e que servem de norte para a inteligência das disposições normativas que versam sobre a correta fixação das alíquotas e da respectiva classificação fiscal.

Nesse artigo da Constituição se encontra, na qualidade de direitos sociais, portanto básicos e vitais, característicos do welfare state, o direito à educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados.

No IPI, facilmente se identificam quais os direitos assegurados pela Constituição Federal que devem ser observados pelo Poder Executivo em sua função normativa e pelo administrador em sua função administrativa de exigência do imposto. Isso significa que qualquer produto industrializado cuja utilização esteja relacionada com a educação, moradia, saúde e trabalho, deve necessariamente receber uma alíquota menos onerosa ou até mesmo ser desonerado do imposto.

No entanto, não são apenas estes direitos básicos expressos, corolários diretos do princípio da dignidade da pessoa humana, que justificam a eleição pelo Poder Executivo, de alíquotas menos gravosas para produtos industrializados cuja des-tinação esteja relacionada com a proteção desses direitos.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, se relaciona diretamente com o conceito de essencialidade a que se refere a Constituição. Isso autoriza o Poder Executivo, no ato de fixação das alíquotas de produtos cujos processos de produção e elaboração respeitem as normas ambientais e evitem a degradação do meio ambiente, a estimular, via redução de alíquotas, a continuidade e o aprimoramento desses processos de produção ecologicamente corretos40.

Eduardo Domingos Botallo41 coaduna no mesmo entendimento, dando maior ênfase a importante aspecto, de que o princípio da seletividade em função da

40 Antonio Maurício da Cruz, em festejada obra a respeito do tema, nos ensina: “[...] Vemos, pois, que a Constituição prestigia valores que poderiam ser facilmente prejudicados por uma tributação indiscriminada do IPI. Produtos que propiciem trabalho a populações carentes, que sirvam de base a economia regionais, que atendam às necessidades básicas de alimentação, vestuário, HABITAÇÃO, saúde e educação, SÃO PRODUTOS ESSENCIAIS, SÃO PRO-DUTOS QUE TEM ESSENCIALIDADE. Gravá-los ao mesmo nível de taxação de produtos nocivos como cigarros e bebidas alcoólicas, ou de produtos supérfluos como perfumes, cosméticos, jóias e bijouterias, seria contrariar os propósitos de justiça social do sistema, explícitos no caput do art. 160, ou dos propósitos de fomento à educação, solenizados no art. 176, ambos da Lei Maior” - O IPI, Limites Constitucionais, p. 67, Ed. RT, São Paulo, 1984.

41 “Aliás, não é desconhecido que há produtos essenciais cujos componentes são ‘mais caros’ do que eles próprios. De que valeria a lei ‘dar com uma mão’ para ‘retirar com a outra’? Seria o mesmo que escarnecer da Constituição que exige que produtos essenciais recebam tratamento fiscal menos oneroso do que o reservado a produtos mais dispensáveis. [...] o importante a fixar, portanto, é que o princípio da seletividade não está a serviço dos interesses de indústrias regionais, mas, sim, dos consumidores finais que são os que, de fato, suportam a sua carga econômica” - Fundamentos do IPI - Ed. RT, São Paulo, 2002, pp. 70-72.

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essencialidade busca, acima de tudo, favorecer os consumidores finais, afastando obstáculos que possam dificultar o acesso a produtos considerados pelo ordena-mento jurídico como essenciais. Ademais, ressalta a adoção do princípio também aos componentes dos produtos, sem o que, seria fácil demais burlar o princípio constitucional, gravando as partes e depois desonerando o todo.

Em face da autorização constitucional expressa do inciso VI, do artigo 170, da CR/88, no sentido de possibilitar ao Poder Público dispensa de tratamento diferenciado às empresas, de acordo com o impacto ambiental causado pelos processos de produção adotados, conclui-se pela aplicação do princípio da seleti-vidade das alíquotas em face da essencialidade do produto, em relação a produtos ecologicamente corretos, cuja desoneração tributária via redução de alíquotas tenha por efeito o estímulo à adoção de meios de produção menos danosos ao meio ambiente.

O próprio caput do artigo 170 da CR/88 faz referência expressa à existência digna, conforme os ditames de justiça social, na qualidade de um dos princípios vetores da atividade econômica, que aliado ao princípio da essencialidade legitimam a utilização de critérios ambientais na tributação do IPI.

E mais. Sem a necessidade de movimentação do Poder Legislativo para a adoção imediata de técnicas de tributação ambiental. Basta a edição de Decreto do Poder Executivo Federal e imediatamente a alíquota do IPI é reduzida, beneficiando os contribuintes que optaram pela adoção de métodos e processos ecologicamente corretos42.

42 Alguns projetos de lei e inclusive de emenda à constituição tramitam no Congresso Nacional, criando uma série de incentivos fiscais ambientais de IPI. O PL de autoria de Carlos Nader, por exemplo, busca isentar de IPI as empresas de reciclagem de materiais em todo o território nacional, sem especificar quais os materiais, importante dado para fins de classificação fiscal e fruição do benefício. Com a criação de incentivos fiscais de IPI para setores da indústria que se utilizam materiais reciclados, busca-se reduzir o desmate de áreas com florestas nativas e a conversão em florestas homogêneas para corte e produção de polpa de papel de áreas para possível recuperação da cobertura vegetal e a redução da quantidade de lixo não biodegradável formados por resíduos sólidos que demoram anos para se decompor.

A vantagem da utilização da isenção, dependente de lei, ao invés da alíquota zero, que pode ser instituída por mero decreto, seria a garantia do adquirente do produto reciclado que venha a sofrer qualquer operação de industrialização, do crédito integral de IPI na entrada do produto, o que não ocorreria na hipótese de entrada de produto sujeito ä alíquota zero, de acordo com o recente posicionamento do Supremo Tribunal Federal.

Outro PL, de autoria de Antonio Carlos Mendes Thame, se refere à redução de base de cálculo do IPI incidente na saída do produto reciclado, proporcional ao custo do material reciclável utilizado para a produção do bem ou produto final acabado, estabelecendo ainda o diferimento do IPI sobre o produto reciclado e sobre o “diferencial de alíquota” devido sobre a aquisição de bens de capital. Em outra passagem do PL, atribui-se ao adquirente do produto a responsabilidade pelo recolhimento do IPI (responsabilidade tributária, artigo 128 do CTN). Neste PL é previsto o prévio reconhecimento administrativo para fins de fruição do incentivo, mediante aprovação do Mi-nistério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, de plano de modernização e desenvolvimento, que contemple projeções de ampliação da capacidade produtiva instalada. Trata-se de incentivo condicionado à prévia aprovação administrativa e a compromisso da empresa industrial a operar no País e aumentar o consumo em sua linha de produção de material reciclável de origem exclusivamente interna. No entanto, se excede em questões como exigência de regularidade fiscal municipal, estadual e federal da empresa postulante ao benefício e dos seus sócios ou acionistas (pessoa física ou jurídica), praticamente vedando a fruição do benefício a empresas de capital aberto ou cujas estruturas societárias sejam formadas por vários sócios (físicas e jurídicas).

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Conclui-se que, a Constituição Federal de 1988, ao prever no inciso VI do artigo 170, a proteção do meio ambiente e a possibilidade de tratamento diferenciado das empresas, de acordo com o impacto ambiental causado pelo processo de produção adotado, combinado com o reconhecimento constitucional do artigo 225 do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado essencial à sadia qualidade de vida, de que a essencialidade a que se refere o 3º do artigo 153 da CF/88, autoriza o Poder Executivo a classificar produtos ecologicamente corretos em alíquotas menos gravosas (ou até estipular alíquota zero), de modo a estimular a adoção de processos industriais que não causem impactos ambientais significativos.

Pode ainda o Poder Legislativo, pelas mesmas razões, criar incentivos fiscais, tais como reduções de base de cálculo, diferimentos e créditos presumidos, com vistas a estimular comportamentos por parte de estabelecimentos industriais menos danosos ao meio ambiente.

Mostra-se, portanto, a importância do caráter extrafiscal do IPI no Estado do Amazonas, talvez ainda não suficientemente utilizado diante da nova realidade introduzida pela Zona Franca Verde, sendo imprescindíveis da mesma forma incentivos à reciclagem (como forma de induzir a alteração de comportamentos das indústrias localizadas na Zona Franca de Manaus) e a produtos dotados de certificações ambientais (ainda que a produção florestal no Estado esteja ainda em sua fase inicial de implementação).

Considerações FinaisO desenvolvimento sustentável encontra gradativamente mais espaço no debate

acadêmico e na reformulação das políticas públicas. O estado do Amazonas, nesse contexto, merece especial atenção em face da imprescindibilidade de se assegurar a preservação da Amazônia e o desenvolvimento sustentável do Estado. Para tanto, a tributação ambiental ganha papel de destaque, já que permite não somente a arrecadação de recursos financeiros para posterior aplicação em políticas públi-cas ambientais e a internalização das “externalidades negativas”, como também a indução da sociedade a comportamentos ecologicamente e socialmente mais corretos, de forma a garantir a efetividade do artigo 225 da CR/88 e dos demais princípios ambientais.

A política fiscal para fins de desenvolvimento sustentável já vem sendo utilizada no estado do Amazonas. No entanto, é necessário o esforço comum de todas as pessoas de direito público interno para que o instrumento da tributação ambien-tal atinja sua plena potencialidade no Estado Brasileiro, sem que, para tanto, seja preciso criar novos tributos e aumentar a pressão fiscal sobre os contribuintes. De fato, desde que em consonância com os princípios constitucionais tributários, alterações importantes podem ser feitas nos tributos já existentes, de modo com que os direitos e princípios constitucionais sejam mais eficazes.

Tributação Ambiental no Amazonas – políticas fiscais para o desenvolvimento sustentável – 31

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O instituto do usufruto exclusivo de recursos naturais por comunidades

indígenas em suas terras manejo e exploração de recursos florestais pelos Paiter (Suruí) na terra indígena sete de setembro

em RondôniaRafael Clemente Oliveira do Prado43

Narai Agoteme Suruí Paiter44

43 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR e Professor de Direito Ambiental e Direitos Indígenas na mesma e na União das Escolas Superiores de Rondônia – UNIRON. Consultor jurídico da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé.

44 Acadêmico do 4º período de Direito da Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia – FARO, membro do povo indígena Paiter (Suruí de Rondônia).

ResumoO trabalho ora apresentado analisa o instituto do usufruto exclusivo dos recursos naturais encon-trados em terras indígenas, nomeadamente o uso de recursos florestais sob a luz do direito positivo brasileiro, com a intenção de convidar para uma reflexão a respeito de como os povos indígenas podem fazer jus a este instituto, e de como algumas vezes ele é confundido com a exploração comercial de recursos naturais. Também trazemos aqui a experiência do povo Paiter (Suruí de Rondônia) quanto ao usufruto de seus recursos florestais e de como esta comunidade indígena tem obtido êxito no seu manejo no interior de suas terras em busca do desenvolvimento sustentável e a preservação do meio ambiente da Terra Indígena Sete de Setembro.

Palavras-Chave: Direito ambiental. Direito indigenista. Desenvolvimento. Meio ambiente. Manejo florestal.

AbstractThis work intends to analyze the institute of exclusive usufructo of naturals resources founded into the indigenous reserves under the light of the positive Brazilian law, by the indigenous peoples that live in these protected spaces. Its intention is to do also a reflexion, showing how the indigenous peoples can use this institute in them benefits, and how could sometimes to do a mistake between it and the commercial exploration of natural resources. We bring in this work the experience of the Paiter Indian People (Suruí de Rondônia), to show how this community into the Amazon region, use the institute of exclusive usufructo with success inside your Indian Reserve, searching a sustainable development and an environment in the Terra Indígena Sete de Setembro.

Keywords: Environmental law. Indigenous law. Development. Environment. Forest ma-nagement.

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1 O instituto do usufruto exclusivo das riquezas naturais por índios em suas terras

O direito de usufruto exclusivo das comunidades indígenas sobre os recursos naturais existentes em suas terras tradicionais, incluídas as riquezas do solo, dos rios e dos lagos, está indissociavelmente ligado ao conceito de posse permanente e cultural (a exceção ao usufruto exclusivo das comunidades indígenas sobre os recursos naturais de suas terras estão previstas constitucionalmente).

De plano, é fundamental compreendermos o conceito jurídico de usufruto exclusivo, trazido pela legislação que regula a exploração dos recursos naturais das terras indígenas. Segundo o Código Civil, art. 713, o usufruto é o “direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto temporariamente destacado da propriedade”, e o usufruto estende-se aos acessórios da coisa e seus acrescidos (art. 716). Ainda de acordo com o Código Civil, no seu art. 718, “o usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos”.

O Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) assegura aos índios o usufruto dos recursos naturais no interior de suas terras, ligado ao direito à posse, uso e percepção das riquezas naturais e de todas as utilidades existentes nas terras ocupadas, bem como ao produto da exploração econômica de tais riquezas e utilidades.

Vê-se que o direito de usufruto assegura aos índios a utilização de todos os bens e recursos naturais existentes em suas terras, assim como a possibilidade de explorar comercialmente tais recursos. Portanto, os índios podem usar e fruir de suas riquezas naturais, tanto para seu próprio consumo quanto para suprir as necessidades de consumo de bens de que não dispõem. Podem plantar, criar gado, caçar, pescar, navegar, extrair castanhas e outros alimentos, coletar, fazer roças e aldeias, bem como extrair madeiras e garimpar. Quando tais atividades se destinar a fins comerciais, deixando de caracterizar o usufruto dos recursos naturais da terra indígena, estarão sujeitas às normas legais específicas, inclusive de natureza ambiental. O usufruto exclusivo dos índios sobre as riquezas naturais de suas terras deve ser sempre entendido como um benefício aos índios, uma proteção especial e não como uma restrição às suas atividades produtivas. O direito de usufruto exclusivo se destina a assegurar aos índios meios para a sua subsistência, para que possam se reproduzir, física e culturalmente e não tolher as suas iniciativas e projetos de auto-sustentação econômica.

O direito de usufruto exclusivo é assegurado constitucionalmente aos índios, o que implica que eles podem tirar dos recursos naturais de suas terras todos os frutos, utilidades e rendimentos possíveis, desde que não lhe alterem a substância ou comprometam a sua sustentabilidade para usufruto das futuras gerações (art. 225 CF 88). Os índios não podem, entretanto, alienar a terceiros o seu direito de

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usufruto, isso não significa que estejam obrigados a gozar direta e imediatamente de seus bens, ou que não possam fazer parcerias ou ser assessorados por terceiros em projetos que visem a exploração de seus recursos naturais, entretanto, os índios não podem, definitivamente, se envolver em projetos que impliquem a perda da posse de suas terras, ou que comprometam a sustentabilidade de seus recursos ambientais, pois estes devem ser preservados para as próximas gerações, por se tratarem de direitos coletivos inalienáveis.

Considerando o fato das terras indígenas ser o habitat de um povo, nestas tem de ser asseguradas a sustentabilidade das riquezas naturais que delas são extraídas e a reprodução física e cultural das comunidades indígenas que nelas habitam. E foi justamente por reconhecer a dependência das comunidades indígenas de seu habitat natural, que a Constituição de 1988 impôs ao Poder Público a obrigação de defender e preservar não só as terras habitadas pelos índios, como também as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e às necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (art. 231, caput).

Vê-se, portanto, que o direito de usufruto exclusivo indígena não pode impedir os índios de desenvolver suas próprias atividades produtivas, ainda que com finalidades comerciais. A preservação dos recursos ambientais existentes nas terras indígenas é fundamental, de forma a assegurar a sobrevivência das próximas gerações, bem como a manutenção da posse e do controle das comunidades indígenas sobre as atividades e projetos desenvolvidos em suas terras, posto que estes devem promover a sua auto-sustentação econômica e ambiental, e não a sua dependência em relação a terceiros. Saliente-se que, em qualquer hipótese, o próprio Estatuto do Índio, em seu art. 8º, parágrafo único, estabelece a nulidade dos atos negociais praticados entre índios e terceiros que lhe sejam prejudiciais, ou cujos efeitos nocivos sejam desconhecidos pelos índios, devido às suas diferenças culturais.

Dentro do conceito de usufruto exclusivo, entretanto, há que se fazer distinções entre o uso de recursos naturais para o atendimento de necessidades internas de uma comunidade indígena, segundo seus usos, costumes e tradições, e a produção de excedentes para comercialização, ainda que vise a sua própria subsistência. Sobre esta distinção, Marés45 (2006) diz que:

[...] o usufruto de suas terras (indígenas), segundo seus usos, costumes e tradições, implica na possibilidade de, sem restrições, utilizar os bens e recursos da área”. E segue concluindo que “os indígenas, portanto, podem fazer roça, aldeia, extrair lenha e alimentos para o uso da comunidade, sem qualquer restrição, porque restrições impostas administrativamente ou por lei, implicariam em inconstitucionalidade.

45 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O Renascer dos Povos Indígenas para o Direitos. 2ª. ed. Curitiba: Juruá, 2006.

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Por outro lado, as populações indígenas produzem excedentes que comer-cializam para a aquisição de bens e serviços de que não dispõem internamente. A extração destes excedentes deve ser orientada segundo os padrões legais de proteção ambiental nacional, levando-se em conta as normas gerais aplicáveis. Assim, somente podem vender madeira ou minerais extraídos conforme as normas específicas para tal fim.

Em outras palavras: as atividades tradicionais das comunidades indígenas, voltadas para a sua subsistência ou consumo interno, não estão sujeitas a qualquer restrição ou condicionadas por qualquer autorização do Poder Público. Já as ativi-dades de exploração comercial de recursos naturais dependem do cumprimento das exigências e normas legais específicas do ordenamento jurídico nacional.

Como alerta Santilli46 (2005), “deve ser salientado que a prática, pelos índios, de atividades não tradicionais, tais como pesca comercial, exploração florestal, garimpo, etc. sem o cumprimento da legislação ambiental enseja não só a respon-sabilidade criminal – quando estiver caracterizado algum dos crimes ambientais previstos na Lei 9.605/98 ou em outras leis penais – como também a responsabi-lidade civil e administrativa pelos danos ambientais decorrentes destas atividades”. O conceito de usufruto exclusivo tem implicações jurídicas diretas em relação a atividades e madeireiras em terras indígenas, conforme se verá adiante.

2 Os recursos florestais madeireiros e o seu usufruto exclusivo por índios em suas terras

Conforme salientado anteriormente, a Constituição Federal, em seu art. 231, § 3º, assegura aos índios a posse permanente de suas terras e o “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. Portanto, a utilização das riquezas do solo de suas terras tradicionais é expressamente permitida aos índios, e, de acordo com o Código Civil, art. 43, I, são bens imóveis: “o solo com a sua superfície, os seus acessórios e adjacências naturais, compreendendo as árvores e frutos pendentes”. Não resta dúvida, portanto, que os recursos florestais existentes nas terras indígenas estão entre as riquezas naturais que são objeto do usufruto exclusivo assegurado constitucionalmente aos índios.

Assim, os índios podem usar livremente os recursos florestais de suas terras em atividades tradicionais voltadas para a subsistência ou consumo interno, podendo cortar árvores para construir casas, fazer utensílios domésticos, móveis, instru-mentos de trabalho, cercas, canoas e barcos, e usar seus recursos florestais para quaisquer outros fins que visem proporcionar bem estar à comunidade indígena. 46 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Ed. Peirópolis e ISA, 2005.

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No desenvolvimento de suas atividades tradicionais, as comunidades indígenas não estão sujeitas a quaisquer limitações legais, pois a Constituição Federal lhes assegura o reconhecimento de sua “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” e direitos “originários” sobre as terras que tradicionalmente ocupam (art. 231, caput). Ao conceituar as terras indígenas, a Constituição lhes assegura ainda não só a habitação de suas terras em caráter permanente como também a sua utilização em atividades produtivas, a preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem estar e a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (art. 231, § 1º).

Portanto, não incidem sobre as atividades tradicionais desenvolvidas pelas comunidades indígenas, as limitações gerais estabelecidas pelo Código Florestal. O art. 3º deste Código, por exemplo, considera de preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação natural situadas no topo de morros, montes, montanhas e serras, nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues e em altitudes superiores a 1.800 metros, além de muitas outras florestas de preservação permanente instituídas em seu art. 2º ou previstas em seu art. 3º. Também a Lei 7.754/89 estabelece medidas para proteção das florestas existentes nas nascentes dos rios, proibindo qualquer derrubada de árvores ou desmatamento na área que denomina de “paralelogramo de cobertura florestal”. Tais restrições ao corte de florestas, entretanto, não se aplicarão às terras indígenas quando se trate de atividades tradicionais desenvolvidas pelos índios de acordo com seus usos, costumes e tradições, como traz a Constituição. Assim, podem fazer roças e aldeias mesmo nas áreas de preservação permanente estabelecidas pelo Código Florestal.

Saliente-se, entretanto, medidas suasórias e persuasivas de proteção ambiental (inclusive dos recursos florestais existentes nas terras indígenas) podem e devem ser aplicadas, tendo o Decreto 1.141/94, regulado a articulação de áreas gover-namentais visando desenvolver ações de proteção ambiental em terras indígenas. O próprio art. 3º deste decreto salienta, entretanto, que tais ações de proteção ambiental “fundamentar-se-ão no reconhecimento da organização social e política, dos costumes, das línguas, das crenças e das tradições das comunidades indígenas”. Ou seja: as medidas de proteção ambiental às terras indígenas devem respeitar sempre os padrões culturais das comunidades indígenas que nelas vivem, sendo vedada a imposição coercitiva de medidas e sanções administrativas contra práticas tradicionais indígenas.

Diversas são, entretanto, as condições jurídicas para a exploração de recursos florestais de terras indígenas visando a sua comercialização. Tais atividades ma-deireiras comerciais devem se submeter à legislação ambiental aplicável. Assim, estarão sujeitas a todas as restrições impostas pelo Código Florestal, pela Lei 7.754/89 e pela legislação que regula a exploração de recursos florestais, sob a

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forma de manejo florestal sustentável e que proíbe o corte e a comercialização de determinadas espécies. Lembrando que as terras indígenas são consideradas áreas de preservação permanente.

O Código Florestal, em seu art. 3º, § 2º dispõe que “as florestas que integram o patrimônio indígena ficam sujeitas ao regime de preservação permanente (letra g) pelo só efeito desta lei”, ou seja, a norma do Código Florestal é de que as florestas que estão sujeitas ao regime de preservação permanente só poderão ser cortadas com autorização do Poder Executivo Federal, para a execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social. Sem o cumprimento de tais exigências legais, o corte de madeira será ilegal.

Entretanto, a matéria é também tratada no Estatuto do Índio, lei posterior e específica e que, portanto, prevalece sobre o Código Florestal naquilo que con-tradiz suas disposições. O Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) estabelece no seu art. 46 que o corte de madeira nas florestas indígenas consideradas em regime de preservação permanente, de acordo com a letra g e § 2º do art. 3º do Código Florestal, está condicionado à existência de programas ou projetos para o apro-veitamento das terras respectivas na exploração agropecuária, na indústria ou no reflorestamento.

Certo é que: o aproveitamento dos recursos madeireiros em projetos de auto-sustentação econômica desenvolvidos pelas próprias comunidades indígenas é legalmente possível, devido ao direito de usufruto exclusivo que têm sobre os recursos naturais do solo de suas terras. As normas do Estatuto do Índio e do Código Florestal devem ser lidas e interpretadas à luz dos novos princípios con-sagrados na Constituição.

Quando se tratar de atividades madeireiras destinadas à comercialização, deve-se aplicar o manejo florestal em terras indígenas, de acordo com as normas ambientais aplicáveis, portanto, os empreendimentos florestais em terras indígenas que visem a comercialização de madeira deverão respeitar todas essas disposições aplicáveis da legislação florestal, não havendo regulamentação legal, são expedidas autoriza-ções ad hoc, para cada caso concreto, pelo órgão ambiental federal (Ibama) com a participação da Funai, que deverá ser responsável pelo monitoramento, avaliação e fiscalização do cumprimento da legislação florestal pertinente.

As comunidades indígenas não poderão ser privadas de exercer o direito ao usufruto exclusivo de suas riquezas naturais, e de desenvolver projetos próprios de auto-sustentação econômica devido à ausência de uma regulamentação legal do procedimento a ser observado para a emissão de autorização do Poder Público Federal para seus empreendimentos florestais. Assim, a autorização para exploração florestal deve ser emitida pelo Ibama (devido às suas competências institucionais estabelecidas em lei), recomendando que este ouça a Funai, caso a caso, após uma avaliação técnica do plano de manejo florestal.

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Saliente-se, finalmente, que a exploração florestal realizada por terceiros em áreas indígenas, viola flagrantemente o direito de usufruto exclusivo assegurado constitucionalmente às comunidades indígenas. Tal conduta ilegal é passível de ser responsabilizada tanto no plano administrativo (através de multas, apreensões e outras sanções administrativas impostas pelo Ibama), quanto no plano cível (paga-mento de indenizações às comunidades indígenas) e no plano criminal (condenação pelos crimes de furto, roubo, extorsão etc. conforme o caso).

Há de se ressalvar que os Planos de Manejo Florestal de Uso Múltiplos Co-munitário realizados por indígenas com assessoramento técnico de terceiros, e ou contratos de serviços que não têm condições de realizar pessoalmente, são plenamente legais.

Já os contratos de madeira assinados por índios com terceiros, permitindo-lhes o ingresso e a retirada indiscriminada e predatória de madeira, em troca de alguns bens, serviços ou pagamento irrisório, com evidentes prejuízos econômicos, são ilegais, pois violam o direito de posse permanente dos índios sobre suas terras e de usufruto exclusivo de seus recursos naturais, já que, na sua implementação, o uso e fruição destes são transferidos a terceiros, sem qualquer controle efetivo pelas comunidades indígenas. Além disso, tais contratos são inconstitucionais porque comprometem a existência e utilização futura dos recursos ambientais das terras indígenas, bem como o desenvolvimento de outras atividades produtivas pelas comunidades indígenas.

À luz do Estatuto do Índio, no art. 8º, parágrafo único, tais contratos são nulos e não produzem conseqüências jurídicas, quando os índios que os assinam não tenham consciência da extensão de seus efeitos, ou quando simplesmente lhes sejam prejudiciais, como é o caso da esmagadora maioria de tais negócios. À luz do Direito Civil e dos princípios gerais de Direito, tais contratos são, via de regra, flagrantemente leoninos, pois os madeireiros levam todas as vantagens, ou sua maioria, em detrimento da comunidade indígena envolvida, o que caracteriza, por si só, a sua ilegalidade. Na oportunidade, aproveitamos para considerar o perigo trazido pelo novo decreto 6.063, de 20 de março de 2007, do presidente Lula, que inclui a exploração de áreas florestais de terras indígenas através de licenciamento, como consta no art. 2º, § 2º, inc. I.

À luz da legislação ambiental, a exploração de recursos florestais sem a neces-sária aprovação dos órgãos responsáveis, de plano de manejo florestal sustentável, e de Estudo de Impacto Ambiental - EIA e o Relatório de Impacto Ambiental (quando se tratar de áreas superiores a 2.000 hectares), e sem o atendimento das demais exigências da legislação florestal, é também absolutamente ilegal.

O Poder Judiciário também já se pronunciou sobre a ilegalidade de contratos firmados por administrações passadas da Funai que autorizavam madeireiras de

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Mato Grosso e Rondônia, por exemplo, a retirar milhares de metros cúbicos de madeira de lei de terras indígenas, em troca de bens (tratores, veículos etc.) e de serviços (construção de escolas, estradas, postos de enfermagem etc.), serviços estes que são de responsabilidade do próprio Poder Público e que as comunidades não têm que pagar por eles, dando madeira em troca. Tais contratos, antes mes-mo de serem declarados nulos pelo Poder Judiciário, foram administrativamente rescindidos.

3 Caracterização sintética e avaliação das experiências Paiter na Terra Indígena Sete de

Setembro, em RondôniaO povo Paiter tem atualmente como seu território a Terra Indígena Sete de

Setembro, nome dado pela política indigenista-positivista nacional em homena-gem à data em que foram feitos os primeiros contatos deste povo com o Estado brasileiro, o feriado da Independência do Brasil de 1969. O povo Paiter teve a homologação de suas terras somente em 17 de outubro de 1983, 14 anos após terem visto pela primeira vez o Nabekod’ abalá kibá, expressão paiter que na língua portuguesa significa o lugar onde deixaram facões pendurados.

A TI Sete de Setembro possui aproximadamente 248 mil ha que abrangem os municípios de Cacoal – RO e Rondolândia – MT, e possui também uma população de aproximadamente 1.200 indígenas que se autodenominam Paiter, que significa literalmente Gente de Verdade, mas que são denominados pela FUNAI como os Suruí de Rondônia, estes falam a língua Paiter do tronco lingüístico Tupi-Mondé e se dividem em 4 clãs: Gamep, Gamir, Makor e Kaban.

A seguir, trazemos um cartograma demonstrando a localização da TI Sete de Setembro em primeiro plano no contexto dos estados de Rondônia e Mato Grosso:

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O povo Paiter foi contatado pela FUNAI no ano de 1969, tendo nessa ocasião uma população de aproximadamente 5.000 pessoas, caindo para apenas 250 em menos de dois anos, devido a doenças adquiridas de não índios como: tuberculose, gripe, pneumonia, sarampo etc.

Conhecidos como um povo guerreiro, os Paiter lutaram para conquistar seus direitos de demarcação e homologação de suas terras e, tendo seu território as-segurado, os Paiter sofreram pressão de missionários, na sua maioria evangélicos, chamados comumente pelos próprios índios de “crentes”, que impõem aos Paiter, através de um forte poder de persuasão e proselitismo, uma religião com paradig-mas e conceitos alienígenas, que implica diretamente na profunda modificação da cultura e modo de vida tradicional deste povo, pois fazem os índios perderem a sua noção de territorialidade, e senso de manutenção de posse e proteção de seu território.

Os Paiter sofrem atualmente também com a ação indiscriminada de madeireiros e funcionários corruptos e coniventes da FUNAI que aliciam e envolvem algumas lideranças na retirada ilegal de madeira da terra indígena.

Para se contrapor a essa situação, os Paiter criaram em 1988 a Associação Metareilá do Povo Indígena Suruí, que passou a combater o roubo de madeira e a buscar alternativas econômicas sustentáveis, que gerassem renda e garantisse a conservação do meio ambiente, buscando junto ao órgão indigenista oficial apoio para a realização de um Plano de Manejo Florestal, porém a FUNAI se negou a apoiá-los, enquanto isso, saem ilegalmente da Sete de Setembro milhares de metros cúbicos de madeira de lei e ameaçadas de extinção. A fiscalização não funciona e os funcionários da FUNAI nada fazem para impedir a ação dos madeireiros e invasores.

A Metareilá busca apoio junto as organizações não-governamentais e consegue com a colaboração da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé e do Minis-tério do Meio Ambiente, realizar, em 2001, o Diagnóstico Agroambiental do seu território e, em 2006, com o apoio da ACT-Brasil, consegue realizar também o Etnomapeamento da Terra Indígena Sete de Setembro.

Em dezembro de 2005, com apoio da Kanindé e da Aguaverde, os Paiter iniciam um projeto de reflorestamento e enriquecimento florestal da TI Sete de Setembro, com espécies nativas, entre essas o tucumã, espécie muito utilizada na confecção de artesanato e que até então estava quase extinta, pois as regiões geográficas onde ocorrem a distribuição desta espécie ficou fora da área demarcada. Não é intenção do povo Paiter explorar comercialmente a madeira destas espécies, mas coletar os frutos para propagação e reposição do estoque. O projeto de promover ainda a articulação entre aldeias, incentivar a importância da defesa e da proteção, conservação e fiscalização da Terra e a aquisição de novos conhecimentos no

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plantio das mudas, além de enriquecer a floresta, tem valorizado a cultura, princi-palmente no que se refere aos rituais paiter, voltados para os espíritos da floresta, e nas atividades que promovem a união entre os clãs.

Dentro do contexto ambiental, esse projeto tem importância por recuperar áreas desflorestadas, algumas com solo exposto, apresentando-se em forma de capoeiras em estágio de sucessão ecológicas diferenciadas e outras que sofreram lixiviação genética através da exploração seletiva de madeiras de lei, apresentando-se em forma de floresta primária degradada.

A escolha destes locais degradados para o plantio de árvores irá acelerar o processo de sucessão ecológica, onde a natureza levaria muito mais tempo para recuperar naturalmente essas áreas. Além deste aspecto, devemos considerar os benefícios indiretos do plantio destas árvores, principalmente no tocante a questão da água, que passará a ter aumento em volume após alguns anos, além de melhorar seus aspectos potáveis (parâmetros físicos e químicos), tendo em vista que as cabeceiras de cursos d’água que abastecem nascentes serão reflorestadas. Não devemos ainda esquecer que a recuperação das áreas desnudas auxiliará no processo de contenção da lixiviação de solo, que afetam sobremaneira as nascentes e a qualidade da água.

Outro serviço ambiental importante nesse processo levado a cabo, povo Paiter está relacionado com o seqüestro de carbono. Após o plantio de árvores (reflo-restamento ou enriquecimento florestal) aumentará bruscamente a absorção de carbono pelas árvores introduzidas, o que ambientalmente estará contribuindo com a diminuição do efeito estufa e, automaticamente, com a regularização climática (diminuição da temperatura) a nível global, mesmo que seja em pequena escala.

Dentro do contexto econômico, é esperado em certo período de tempo, con-forme o ciclo de vida das espécies botânicas introduzidas através do refloresta-mento, benefícios econômicos satisfatórios. Algumas espécies introduzidas, como a exemplo da pupunha, dentro de um horizonte de tempo de aproximadamente três anos, já começa a dar rendimentos econômicos, tanto na comercialização dos frutos como no aproveitamento da madeira para confecção de arco, e assim suces-sivamente, conforme as atribuições e importância de cada espécies introduzida.

Os Paiter buscam realizar todas estas atividades, fazendo jus ao seu direito de usufruto exclusivo de recursos naturais no interior da TI Sete de Setembro e se preocupam em cumprir as determinações impostas pelo ordenamento jurídico dominante, através das leis ambientais, entretanto, encontram obstáculos e difi-culdades em coadunar essas leis com as leis indigenistas brasileiras.

Em 2007, com apoio das duas ONG’s supracitadas, os Paiter iniciam os pri-meiros procedimentos para a elaboração do tão sonhado Plano de Manejo. Essas experiências mostram que os Paiter estão buscando sustentabilidade econômica

O instituto do usufruto exclusivo de recursos naturais por comunidades indígenas em suas terras – manejo e exploração de recursos florestais pelos Paiter (Suruí) na terra indígena sete de setembro em Rondônia – 43

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e ambiental para as suas terras, fazendo jus ao instituto do usufruto exclusivo de exploração de recursos naturais inseridos dentro de seu território, porém também mostram a necessidade de se adaptar as leis à nova realidade.

4 Conclusões Articuladas4.1 Os recursos florestais existentes nas terras indígenas são de usufruto

exclusivo dos povos indígenas que nelas vivem, podendo utilizá-los livremente para suas práticas e atividades tradicionais voltadas para a subsistência ou consumo interno.

4.2 Quando a exploração florestal visar a comercialização, entretanto, deve se submeter às normas da legislação florestal e ambiental em vigor. Os procedimentos a ser observados pelas comunidades indígenas interessadas em desenvolver projetos de exploração florestal não se encontra legalmente regulamentados.

4.3 Tais projetos podem ser objeto de autorizações ad-hoc, concedidas em cada caso concreto pelo órgão ambiental federal (Ibama), com anuência da FUNAI, que deverá fazer uma avaliação técnica do plano de manejo florestal apresentado e poderá consultar o órgão indigenista sobre o impacto do projeto sobre a comunidade indígena, pedindo-lhe que emita um parecer sobre o mesmo, ao qual o órgão ambiental não está legalmente vinculado.

4.4 O gozo do instituto do usufruto exclusivo de recursos naturais por povos indígenas dentro de suas terras pode obter o devido sucesso se for feito de forma correta através de plano de manejo, em parceria com organizações sérias e comprometidas com a causa indígena, como demonstra a experiência dos Paiter na TI Sete de Setembro em RO-MT.

4.5 Planos de manejo de recursos florestais madeireiros, associados ao instituto do usufruto, pensados e desenvolvidos por iniciativa dos próprios índios no interior de suas terras, inibem o roubo de madeira e contribui com planos associados de reflorestamento, reconstituição da flora, formação de corredores ecológicos e seqüestro de carbono.

A possibilidade de dispensa do EIA/RIMA de pequenas centrais

hidrelétricas com potência de 10 Mw a 30 Mw na

Amazônia Mato-grossense André Luiz Falquetti e Silva47

47 Advogado. Especialista em Direito do Estado pela UNIRONDON.

ResumoO trabalho versa sobre a possibilidade de o órgão ambiental exigir estudos ambientais diversos da apresentação do EIA/RIMA nas obras de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) com potência de 10 MW a 30 MW na Amazônia Mato-Grossense, independentemente do dis-posto nos incisos VII e XI, ambos do art. 2° da Resolução CONAMA nº 1, de 23 de janeiro de 1986.

Palavras-Chave: Pequena Central Hidrelé-trica. Impacto Ambiental. EIA/RIMA. Poder Discricionário.

AbstractThis paper discuss about the possibility of the environmental secretariat to require environ-mental studies different from EIA/RIMA for the projects of Hydroeletric Centrals (PCH) with power between 10 MW and 30 MW in the Amazon area in Mato Grosso, whatever is mentioned on the VII and XI items, both from the 2nd article of CONAMA’s Resolution nº 1, from January 23rd 1986.

Keywords: Small Central Hydroelectric Power Station. Environmental Impact. EIA/RIMA. Discretionary Power.

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1 Considerações iniciaisO desenvolvimento econômico do país é um anseio e uma realidade a ser in-

crementados gradativamente, com políticas públicas de planejamento das quais se destaca a de geração de energia, principalmente em razão da experiência de crises anteriores, como o “Apagão”, ocorrido no período de 2001 a 2002, que acarretou o racionamento do consumo.

A partir daquele momento, a atenção do Poder Público voltou-se à necessi-dade de garantir energia para o consumo doméstico e sistema de produção, que estavam e continuam em processo de crescimento, pois ficou evidente que, sem energia, não havia com se falar em desenvolvimento econômico e, sequer, bem-estar da população.

No Brasil, mais de 90% da energia são produzidos nas hidrelétricas. Todavia, é importante destacar que a distribuição dos recursos hídricos no país é bastante desigual, pois 68% da água brasileira encontram-se na região Norte, onde vive apenas 7% da população. Enquanto as regiões Sudeste e Nordeste concentram 43% e 29% da população, respectivamente, estas contam com somente 7% (SE) e 3% (NE) da disponibilidade hídrica48. Por essas razões, é inevitável o avanço ou desenvolvimento do setor energético na região Norte e, conseqüentemente, na Amazônia.

Aumentar a produção de energética é importante, porém, diante de problemas como aquecimento global e mudanças climáticas, em que a preocupação com o meio ambiente ganha ainda maior relevância no âmbito internacional, não se po-deria pensar em incrementar um programa de desenvolvimento do setor energético sem o devido respaldo das normas de proteção ambiental, sob pena de censura da comunidade internacional e ainda de acarretar graves danos às populações do local atingido por essas obras.

2 Possíveis impactos negativosDe acordo com os dados disponibilizados no site da Secretaria de Estado de

Meio Ambiente de Mato Grosso (SEMA), no período dos anos de 2001 a 2002, percebe-se nitidamente que houve um aumento significativo das expedições de Licenças Prévias para PCH, destacando-se o ano de 2002, com a expedição de mais de 20 (vinte) Licenças Prévias para usinas hidrelétricas com potência de 10 MW a 30 MW. O gráfico abaixo demonstra a variação do percentual das concessões de licenças prévias para PCH, pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso, no período de 1999 a 2005:

48 Site: http://www.brasilescola.com/historiab/apagao.htm. Acesso em 13/02/2008.

A possibilidade de dispensa do EIA/RIMA de pequenas centrais hidrelétricas com potência de 10 Mw a 30 Mw na amazônia mato-grossense – 47

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É certo que na sociedade brasileira existe a necessidade do aumento da geração de energia, tendo em vista que sua economia se encontra em pleno desenvolvi-mento. Todavia, além desses benefícios econômicos, insta observar quais são os impactos negativos que a construção de PCH pode vir a causar ao meio ambiente e às pessoas que dele dependem diretamente, como os povos indígenas.

A construção de PCH pode provocar alterações na qualidade da água em decorrência da elevação dos níveis de matéria orgânica decorrentes da decompo-sição de vegetação ciliar. Os impactos da alteração da qualidade da água poderão comprometer a integridade das áreas de reprodução da ictiofauna.

A inundação sujeitará ambientes não hidromórficos ao contato fluvial do reser-vatório. As novas margens formadas nas bordas do reservatório e nos trechos em topografias mais movimentados tornam-se desestabilizadas por processos erosivos e solapamentos. A cobertura vegetal antecessora poderá não se adaptar ao ambiente úmido ou alagado, morrendo ou se desestruturando gradativamente.

A formação florestal nas marginais compreende o ambiente de maior biodiver-sidade e a fragmentação desta vegetação pode causar um impacto relevante, pois a densidade da fauna na área é maior, devido a recursos como abrigo e alimento. Além disso, a usina pode constituir um obstáculo à migração da fauna, tendo em vista a descontinuidade e fragmentação da cobertura vegetal, que desempenha a função de corredor ecológico.

Como os impactos decorrentes da supressão da vegetação ciliar refletem na fauna, as populações indígenas poderão ser diretamente atingidas, principalmente àquelas que dependem da caça para sobrevivência. As barragens podem representar obstáculos às espécies migradoras de peixes, devendo-se considerar a importância desses peixes nos hábitos alimentares dos povos indígenas.

A existência de muitos territórios indígenas na região Amazônica é fato comum, por isso é importante saber a influência da implantação dos empreendimentos sobre

Concessões de Licenças Prévias para Pequenas Centrais Hidrelétricas em MAto Grosso

50%

40%

30%

20%

10%

0%1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005

Potência menor que 10 MW

Potência entre 10 MW e 30 MW

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estes povos. A implantação desses empreendimentos poderá levar à destruição e ou modificação de habitats terrestres e aquáticos, interferindo diretamente na densidade e na diversidade das populações faunísticas, que assegura a sustentabi-lidade alimentar indígena.

É importante também fazer o levantamento de campo sobre a proliferação dos possíveis vetores de doenças tropicais restritas à Amazônia Legal, como Malária, Leishmaniose e Febre Amarela.

Em síntese, na análise dos estudos ambientais deve o órgão ambiental levar em conta a necessidade de compatibilizar a geração de energia com a conservação da biodiversidade e a preservação da cultura indígena, que está bastante presente na região Amazônica.

3 Legalidade dos processos de licenciamento ambiental

A definição do que seja considerada Pequena Central Hidrelétrica (PCH) encontra-se nas resoluções da ANEEL. Nesse sentido, dispõe a Resolução n. 395, de 04/12/1998: “[...] que a implantação de aproveitamentos hidrelétricos de potência superior a 1.000 kW e igual ou inferior a 30.000 kW, caracterizados como Pequenas Centrais Hidrelétricas, depende de autorização da ANEEL”.

A Resolução ANEEL n° 394, de 04 de dezembro de 1998, estabelecia crité-rios discricionários para o enquadramento de empreendimentos hidrelétricos na condição de Pequenas Centrais Hidrelétricas, porém foi revogada expressamente pela Resolução ANEEL n° 652, de 9 de dezembro de 2003, que estabeleceu de forma objetiva os empreendimentos classificados como Pequenas Centrais Hi-drelétricas, no art. 1°, in verbis:

Art. 1° Estabelecer, na forma desta Resolução, os critérios para o enquadra-mento de aproveitamento hidrelétrico, com potência superior a 1.000 kW e igual ou inferior a 30.000 kW, destinado a produção independente, auto-produção ou produção independente autônoma, na condição de Pequena Central Hidrelétrica (PCH).

Vale salientar que licenciamentos de Pequenas Centrais Hidrelétricas dentro da Amazônia Mato-Grossense, com potência superior a 10 MW e igual ou inferior a 30 MW, podem ser autorizados sem a exigência do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), com fundamento no art. 24 do Código Estadual de Meio Ambiente:

Art. 24. Dependerá de elaboração do EIA e respectivo RIMA, a serem submetidos à aprovação da FEMA, o licenciamento da implantação das seguintes atividades modificadoras do meio ambiente:

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[...]

XI - usinas de geração de eletricidade, qualquer que seja a fonte de energia primária acima de 30 (trinta) MW;

Deste modo, para os empreendimentos que não possuem capacidade de geração de energia superior ou igual a 30 MW, a apresentação do projeto não necessita ser acompanhada de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), mas de outros estudos ambientais exigidos pelo órgão ambiental, como o Diagnóstico Ambiental e outros estudos de menor complexidade.

Ressalte-se, entres todas as modalidades de estudos ambientais, o EIA/RIMA é o estudo ambiental mais complexo e dispendioso, sendo justificável sua exigência so-mente em casos de extrema necessidade. Nesse sentido, é a lição de Édis Milaré49:

Há que se reconhecer que o EIA é um instrumento dispendioso, desen-volvido para possibilitar a análise de empreendimentos complexos; envolve múltiplos parâmetros, de naturezas diferentes, associados à implantação de um dado projeto, com o objetivo de oferecer uma relação custo-benefício ao tomador de decisão. Por ter sido no início utilizado de forma indiscriminada, o EIA foi considerado, por alguns setores da sociedade, uma espécie de punição, sendo questionado e duramente criticado, dado o prazo necessário para a consecução do licenciamento, assim como por seus custos. De fato, não há sentido em se exigirem estudos complexos, caros e demorados, para obras e/ou atividades simples e/ou de pequeno porte, sem trazer benefícios ambientais.

O art. 24 do Código Estadual de Meio Ambiente, encontra respaldo na le-gislação ambiental federal, por força da Competência Legislativa Concorrente, conforme art. 24 da Constituição Federal, como se observa:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar con-correntemente sobre:...VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;...§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.§ 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

§ 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

49 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 393.

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§ 4º - A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

Ocorre que o art. 2° da Resolução CONAMA n° 1, de 23 de janeiro de 1986, traz um rol de atividades que dependem da elaboração do EIA/RIMA, entre elas as usinas de geração de eletricidade acima de 10 MW, como se pode notar a seguir:

Artigo 2º - Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto ambiental - RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do IBAMA em caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como: ...VII - Obras hidráulicas para exploração de recursos hídricos, tais como: barragem para fins hidrelétricos, acima de 10MW, de saneamento ou de irrigação, abertura de canais para navegação, drenagem e irrigação, retifi-cação de cursos d’água, abertura de barras e embocaduras, transposição de bacias, diques; [...]Xl - Usinas de geração de eletricidade, qualquer que seja a fonte de energia primária, acima de 10MW; [...]

Bem se vê que o aparente obstáculo à dispensa do EIA/RIMA, na hipótese trazida pelo art. 24 do Código Estadual de Meio Ambiente, encontra seu fundamento jurídico concentrado no disposto no inciso VII e XI do art. 2° da Resolução CONAMA n.° 01, de 23 de janeiro de 1986. Logo, é imprescindível verificar sua consonância com a nova ordem jurídica trazida com o advento da Constituição de 1988.

É evidente que os incisos VII e XI, ambos da Resolução CONAMA n.° 1, de 23 de janeiro de 1986, não devem ser aplicados no seu sentido literal, indepen-dentemente dos atos normativos que lhe sucedem, sendo imperativo verificar sua recepção50 pela Constituição Federal de 1988.

Nessa esteira, deve-se considerar o disposto no art. 225, § 1°, inciso IV, da Cons-tituição Federal, e um dos seus corolários a Resolução CONAMA n. 237/97, de 19 de dezembro de 1997 e a Resolução CONAMA n. 279, de 27 de junho de 2001. Pois, caso o texto do art. 2°, da Resolução CONAMA n. 1, de 23 de janeiro de 1986 fosse aplicado de forma literal às atividades arroladas em seu rol, estas deveriam apresentar EIA/RIMA, ainda que o impacto ambiental não fosse significativo.

50 Segundo Marcelo Novelino, Direito Constitucional, pp. 103: “A constituição é o fundamento de validade de todas as demais normas jurídicas. Com o objetivo de dar continuidade às relações sociais sem necessidade de nova e quase impossível manifestação legislativa, quando da elaboração de uma nova constituição esta recepciona a ordem normativa anterior que for compatível com ela.”

A possibilidade de dispensa do EIA/RIMA de pequenas centrais hidrelétricas com potência de 10 Mw a 30 Mw na amazônia mato-grossense – 51

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Com o advento da Constituição de 1988 e com base no Princípio da Razoa-bilidade, entende-se que a necessidade do EIA/RIMA é exigível tão somente em todo e qualquer empreendimento, obras ou atividades potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental, independentemente do que disponha o rol do art. 2°, da Resolução CONAMA n. 1, de 23 de janeiro de 1986. Por oportuno, cita-se o entendimento de Édis Milaré51:

Assim é que, dessa aplicação da lei no tempo, alcança-se a conclusão de que os casos exemplificativamente listados na Resolução CONAMA 001/1986 só são passíveis de apresentação de EIA/RIMA se e quando houver sig-nificativa degradação ambiental.

Nesse contexto, os estudos ambientais desenvolvidos no processo de licen-ciamento deverão indicar claramente a potencialidade dos impactos ambientais, podendo classificá-los em grau baixo, médio e alto. A partir disto, o órgão am-biental poderá, com base nessas informações e de forma motivada, atestar se existe significativa degradação e conseqüentemente exigir estudos ambientais diversos do EIA/RIMA. Nesse sentido, é a lição do Doutrinador Édis Milaré52, senão vejamos:

De tal arte, quando a Administração opta por uma das alternativas aponta-das pelo EIA que não seja, ambientalmente falando, a melhor, ou quando deixa de determinar a elaboração do EIA por reconhecer a inexistência de “significativa degradação”, deve fundamentar sua decisão, inclusive para possibilitar seu questionamento futuro pelo Poder Judiciário.

Dos estudos apresentados e pareceres do órgão ambiental deve-se concluir que existe significativa degradação ambiental, não se esquecendo de sopesar na determinação do grau de impacto a presença das medidas compensatórias apre-sentadas. Assim, dispõem o art. 4° da Resolução CONAMA n° 279, de 27 de junho de 2001, in verbis:

Art. 4° O órgão ambiental competente definirá, com base no Relatório Ambiental Simplificado, o enquadramento do empreendimento elétrico no procedimento de licenciamento ambiental simplificado, mediante decisão fundamentada em parecer técnico. § 1º Os empreendimentos que, após análise do órgão ambiental competente, não atenderem ao disposto no caput ficarão sujeitos ao licenciamento não simplificado, na forma da legislação vigente, o que será comunicado, no prazo de até dez dias úteis, ao empreendedor.

51 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 5ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 368.

52 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 368.

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§ 2º Os estudos e documentos juntados ao RAS poderão ser utilizados no Estudo Prévio de Impacto Ambiental, com ou sem complementação, após manifestação favorável do órgão ambiental.

Por oportuno, a seguir, vale destacar o entendimento do Doutrinador Paulo de Bessa Antunes53, que expõem a finalidade da edição da Resolução CONAMA n° 279/01:

A Resolução CONAMA nº 279, de 27 de junho de 2001, é, infelizmente, o reconhecimento cabal de que o modelo de licenciamento ambiental at-ualmente vigente encontra-se profundamente desgastado e não consegue cumprir com as suas finalidades e objetivos básicos, basta que se observe o conjunto de consideranda que inauguram a mencionada Resolução.

Se a atividade ou obra não causar significativa degradação ambiental, sendo baixo o impacto ambiental, seria inócuo exigir o EIA/RIMA, tão somente porque a lei à época de sua edição, em 1986, considerou aquele empreendimento causador de significativo impacto ambiental, independentemente do que um estudo técnico possa concluir.

Na verdade, em 1986, quando a Resolução CONAMA n. 01 foi editada, as circunstâncias fáticas e métodos utilizados para construção de uma usina de ge-ração de eletricidade de capacidade superior a 10 MW, faziam com que esse tipo de obra fosse considerado presumidamente de significativo impacto ambiental, sendo, portanto, prima facie exigível do interessado a elaboração de EIA/RIMA.

Porém, após mais de vinte anos, a Resolução CONAMA n. 01/86 se mostra ultrapassada em alguns pontos, mormente no que tange à presunção de significativo impacto ambiental das usinas de geração de eletricidade de capacidade superior a 10 MW. Pois, no transcurso desse prazo, novas tecnologias foram devolvidas, podendo haver estudos que comprovem a inexistência de significativa degradação ambiental neste tipo de empreendimento.

Segundo José Afonso da Silva54, o art. 225, § 1°, inciso IV, da Constituição Federal é uma norma de eficácia contida, porque, apesar de possuir aplicação imediata, integral e plena, o legislador permitiu a restrição de seus efeitos, ao prever como condição sine qua non para sua aplicação a existência de significativa degradação do meio ambiente. Nesse mesmo sentido, entende Celso Antônio Pacheco Fiorilho55:

A Constituição Federal, através do aludido dispositivo, passou a admitir a existência de atividades impactantes que não se sujeitam ao EIA/RIMA, porquanto o estudo somente será destinado àquelas atividades ou obras

53 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9ª edição. Rio Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 141.54 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003.55 FIORILHO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 68.

A possibilidade de dispensa do EIA/RIMA de pequenas centrais hidrelétricas com potência de 10 Mw a 30 Mw na amazônia mato-grossense – 53

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potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente.

Deste modo, se o inciso IV do § 1° do art. 225 da Constituição Federal, que assevera a necessidade do EIA/RIMA, possui sua eficácia condicionada à existên-cia de significativa degradação do meio ambiente, logo o artigo 2°, da Resolução CONAMA n. 1, de 23 de janeiro de 1986, também deve seguir a mesma regra56.

Alinhado com o entendimento expresso no art. 225, § 1°, inciso IV, da Cons-tituição Federal, o art. 3°, parágrafo único, da Resolução CONAMA n. 237, de 19 de dezembro de 1997, é claro ao dizer que o órgão ambiental definirá os estudos ambientais pertinentes ao respectivo processo de licenciamento, sendo prescindível a exigência do EIA/RIMA nos casos que não forem considerados como efetivo ou potencialmente causadores de “significativa” degradação.

Art. 3º - A licença ambiental para empreendimentos e atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio depen-derá de prévio estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto sobre o meio ambiente (EIA/RIMA), ao qual dar-se-á publicidade, garantida a realização de audiências públicas, quando couber, de acordo com a regulamentação:

Parágrafo único. O órgão ambiental competente, verificando que a ativi-dade ou empreendimento não é potencialmente causador de significativa degradação do meio ambiente, definirá os estudos ambientais pertinentes ao respectivo processo de licenciamento.

Diante da nítida antinomia entre o art. 2°, da Resolução CONAMA n. 1, de 23 de janeiro de 1986, e o art. 3°, parágrafo único, da Resolução CONAMA n. 237, de 19 de dezembro de 1997, resolve-se a presente questão por meio do cri-tério cronológico, por intermédio do brocardo lex posterior derogat legi priori, norma posterior revoga anterior, conforme expressamente prevê o art. 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Assim sendo, deve prevalecer o entendimento expresso no art. 3°, parágrafo único, da Resolução CONAMA n. 237, de 19 de dezembro de 1997, que é posterior e revoga o anterior do art. 2°, da Resolução CONAMA n. 1, de 23 de janeiro de 1986. Portanto, por força do critério cronológico, o órgão ambiental deve seguir o disposto no art. 3°, parágrafo único, da Resolução CONAMA n. 237, de 19 de dezembro de 1997, que assevera ser o EIA/RIMA obrigatório sempre que houver significativa degradação ambiental.

56 Assim dispõem o entendimento expresso na Terceira Turma do TRF da 4ª Região, Apelação Cível nº 2003.04.0101470-4, Relator Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, DJU de 03/09/2003, a seguir transcrito, in verbis: 2. A aplicação da Resolução nº 237/97 do CONAMA deve ser feita com razoabilidade à luz do que dispõe o art. 225 da Consti-tuição, sem esquecer que a obra que necessita de estudo de impacto ambiental/relatório de impacto ambiental, é predicada pela “significativa degradação do meio ambiente. 3. Verificando a situação concreta, limpeza e desassoreamento de canais vintenários, operação que deveria ocorrer periodicamente, anualmente quiçá, não se mostra necessário o EIA/RIMA a cada operação de limpeza, o que seria uma demasia, pelo seu alto custo e complexidade, daí a conclusão de que as autoridades avaliaram bem a situação, ao dispensá-los, neste caso.

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Além disso, o critério hierárquico, lex superior derogat legi inferiori, assevera que sempre prevalecerá a lei superior no conflito. Desse modo, o art. 225, § 1°, inciso IV, da Constituição Federal, por razões óbvias, prevalece sobre o disposto no art. 2°, da Resolução CONAMA n° 1/86.

Pelo exposto, o rol do art. 2° da Resolução CONAMA n. 1/86, como única condição de exigibilidade de EIA/RIMA, independentemente de verificar se a obra ou atividade provoca significativa degradação ambiental, contraria o sentido do disposto no art. 225, § 1°, inciso IV, da Constituição Federal. Porém, como a Resolução CONAMA n. 1/86 é anterior à Constituição de 1988, pode-se concluir que não houve recepção da norma nesse particular57.

4 A escolha dos estudos ambientaisNo caso concreto, o órgão ambiental pode exigir dos interessados outros

estudos ambientais diversos do EIA/RIMA, conforme lhe assegura o art. 3°, parágrafo único, da Resolução CONAMA n. 237, de 19 de dezembro de 1997, como o Relatório Ambiental Simplificado (RAS), Diagnóstico Ambiental, Avaliação Ambiental Integrada (AAI), Diagnóstico Antropológico etc. Vale reiterar que o órgão ambiental pode exigir os estudos ambientais que julgar pertinentes entre aqueles previstos no inc. III do art. 1° da citada Resolução, a seguir transcrito:

Art. 1º - Para efeito desta Resolução são adotadas as seguintes definições:...III - Estudos Ambientais: são todos e quaisquer estudos relativos aos aspectos ambientais relacionados à localização, instalação, operação e ampliação de uma atividade ou empreendimento, apresentado como subsídio para a análise da licença requerida, tais como: relatório am-biental, plano e projeto de controle ambiental, relatório ambiental

57 Nesse sentido, vai ao encontro do exposto o julgamento da Quinta Turma do TRF da 1ª Região, Apelação Cível nº 1998.34.00.027682-0/DF, Relatora Desembargadora Federal Selene Maria de Almeida, DJU de 01/09/2004. Dada a sua extensão, transcrevemos apenas alguns tópicos do citado julgado: “11. A Lei 6.938/81 é anterior à Constituição de 1988 e não restringia a exigência do estudo de impacto ambiental às obras ou atividades potencialmente causadoras de significativa degradação do meio ambiente. 12. A Lei 6.938/81 outorgou competência ao Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA para editar normas, critérios e padrões nacionais de controle e de manutenção da qualidade do meio ambiente com vista ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos (inc. VII do art. 8º) e também para editar normas e critérios para o licenciamento de atividades efetivas ou potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos Estados e supervisionado pelo Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA. 13. O CONAMA editou a Resolução 1, de 23 de janeiro de 1986, que previa a elaboração do estudo de impacto ambiental para o licenciamento, pelo órgão estadual competente e pela SEMA, em caráter supletivo, de uma série de atividades, exemplificativamente arroladas em dezoito incisos, conforme previa o seu art. 2º. Sendo a norma exemplificativa, previa o estudo para qualquer atividade, e não é daquelas que significasse alguma degradação do meio ambiente.(...)15. Em 19 de dezembro de 1997, o CONAMA editou a Resolução 237, publicada no D.O.U. de 22 de dezembro de 1997, adaptando a Resolução 1, de 23.01.86 às normas da Constituição Federal de 1988, no que se refere às competências para o licenciamento ambiental. 16. A Resolução tem que se adaptar à Constituição e não a Constituição à Resolução. Se a Constituição diz que o estudo de impacto ambiental é obrigatório sempre que houver significativa degradação ambiental, não é possível se aplicar a Resolução que diz que o estudo de impacto ambiental é obrigatório em qualquer caso. Mesmo que a Resolução CONAMA 1/86 não tivesse sido revogada pela Re-solução CONAMA 237, de 19 de dezembro de 1997, não teria validade em face do que dispõe o inciso IV, do §1º, do art. 225 da Constituição Federal de 1988”.

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preliminar, diagnóstico ambiental, plano de manejo, plano de recu-peração de área degradada e análise preliminar de risco.

Neste ponto, vale trazer à baila as lições de Hely Lopes Meirelles58, Celso An-tônio Bandeira de Mello59 e Maria Sylvia Zanella Di Pietro60, de onde subsume o entendimento de que o órgão ambiental realmente possui o Poder Discricionário para optar pelos estudos ambientais, previstos no inc. III do art. 1° da Resolução 237/97, conforme o art. 4° desta Resolução, abaixo:

Artigo 4º - Os órgãos ambientais competentes e os órgãos setoriais do SISNAMA deverão compatibilizar os processos de licenciamento com as etapas de planejamento e implantação das atividades modificadoras do Meio Ambiente, respeitados os critérios e diretrizes estabelecidos por esta Resolução e tendo por base a natureza o porte e as peculiaridades de cada atividade.

Nessa seara, a seguir, o ensinamento de Édis Milaré61 é esclarecedor no sen-tido de que o órgão ambiental possui discricionariedade para avaliar e verificar a inexistência de significativo impacto ambiental do empreendimento:

Destarte, com base em todos esses atos normativos e idéias que referendam a tese da relatividade da presunção de significativo im-pacto ambiental das atividades relacionadas no art. 2° da Resolução 001/1986, é possível concluir que o órgão de controle mantém certa dose de liberdade para avaliar dito pressuposto do EIA/RIMA, isto é, o significativo impacto ambiental. Evidenciada, porém, por regular prova técnica, a insignificância do impacto, torna-se inviável a exigência do estudo.

É certo que o órgão ambiental pode optar por alguns dos estudos previstos no inc. III do art. 1° da Resolução 237/97, porém sempre deve ter como parâ-metro aqueles que melhor atenda o interesse público, nesse sentido corrobora o entendimento de Marçal Justen Filho62, senão vejamos:

58 Cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 29 ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p.116: “Poder discricionário é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo”.

59 Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 396: “A margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal”.

60 Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 17 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 205: “A atuação é discricionária quando a Administração, diante do caso concreto, tem a possibilidade de apreciá-lo segundo critérios de oportunidade e conveniência e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas para o direito”.

61 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 5ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 374.

62 Cf. Marçal Justen Filho. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva. 2005. p. 149.

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A decisão adotada por ocasião da aplicação da lei não reflete avaliações livres e ilimitadas do administrador, mas traduz a concretização da solução mais adequada e satisfatória, tomando em vista critérios abstratamente previsto em lei ou derivados do conhecimento técnico-científico ou da prudente avaliação da realidade.

Deve-se ressaltar que constitui mérito do ato administrativo63 a escolha e exi-gência dos estudos ambientais pertinentes ao caso concreto, sendo defeso ao Poder Judiciário apreciar o mérito do ato administrativo, sob pena de violar o Princípio da Separação dos Poderes64. Assim observa José dos Santos Carvalho Filho65 acerca da importância de se respeitar o mérito do ato administrativo:

A valoração de conduta que configura o mérito administrativo pode alterar-se, bastando para tanto imaginar a mudança dos fatores de conveniência e oportunidade sopesados pelo agente da Administração. Na verdade, o que foi conveniente e oportuno hoje para o agente praticar o ato pode não sê-lo amanhã. O tempo, como sabemos, provoca alteração das linhas que definem esses critérios.

Com tal natureza, vemos que o agente pode mudar sua concepção quanto à conveniência e oportunidade da conduta. Desse modo, é a ele que cabe exercer esse controle, de índole eminentemente administrativa.

Neste contexto, o exercício do controle da Administração Pública não deve se apegar tão somente a vícios formais, mas necessita focar sua atenção em vícios técnicos dos estudos ambientais que comprometam substancialmente a aprovação do projeto ou elementos objetivos que justifiquem sua inadequação ao caso con-creto. Como observa Paulo de Bessa Antunes66: “ A juridicização extremada das questões ambientais tem levado a que, seguidamente, sejam privilegiadas as questões meramente de forma, em detrimento do próprio conteúdo dos EIA”.

Nessa seara, o Princípio da Instrumentalidade, que é uma máxima jurídica, desempenha importante função, devendo ser tomado como exemplo, mutatis mutantis, o art. 244 do Código de Processo Civil que preceitua “o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade”, ainda que a lei prescreva determinada forma.

63 Cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, p.150/151: “O mérito administrativo consubstancia-se, portanto, na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar.”

64 Nesse mesmo sentido, segue o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, Recurso Especial n. 4.526, 2ª Turma, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro, DJ 01.10.1990: “Recurso Especial - Ato Administrativo - Mérito - A tripartição dos poderes enseja a cada um decidir, no âmbito do discricionário, a oportunidade e conveniência. O mérito do ato e definido, no caso dos autos, pelo executivo. Ao judiciário e vedado substituir o administrador. O exame da legalidade, além do aspecto formal, compreende também a análise dos fatos levados em conta pelo executivo. Inadequado, porém, simplesmente, alterar a opção daquele poder.”

65 Cf. José dos Santos Carvalho Filho. Manual de Direito Administrativo. 16 ed. Rio Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 10966 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9ª edição. Rio Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 286/287.

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Não é demais lembrar que o excesso de formalidades no direito não atende ao interesse público, por esse motivo a Administração Pública deve conciliar os aparentes conflitos entre os princípios constitucionais da legalidade e eficiência.

O § 1° do art. 24 do Código Estadual de Meio Ambiente, a seguir transcrito, confirmar o Poder Discricionário do órgão ambiental que, com base nos estudos ambientais apresentados, constata que não existe significativa degradação ambiental e, por conseguinte, poderá recomendar a dispensa do EIA/RIMA ao Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA).

Art. 24. Dependerá de elaboração do EIA e respectivo RIMA, a serem submetidos à aprovação da FEMA, o licenciamento da implantação das seguintes atividades modificadoras do meio ambiente:...§ 1º A FEMA, desde que em exame prévio constate que a obra ou atividade tem baixo potencial de causar significativa degradação ambiental, poderá recomendar ao CONSEMA a dispensa da elaboração do Estudo de Impacto Ambiental-EIA, para fins de licenciamento de atividades mencionadas nos incisos deste artigo.§ 2° Com base em justificativa técnica adequada e em função da magnitude das alterações ambientais efetivas ou potenciais decorrentes de sua implan-tação, a FEMA poderá determinar a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental-EIA e do respectivo Relatório de Impacto Ambiental-RIMA, para atividades não referidas nos incisos deste artigo ou com potência, consumo ou área inferiores às nele exigidas.

Conforme o inciso V do art. 3° do Código Estadual do Meio Ambiente, que se segue transcrito, ao CONSEMA pode referendar a decisão do órgão ambiental que considerou a obra de baixo impacto e sem significativo impacto, o que evi-dentemente consiste em uma valorização e efetivação do Princípio Democrático67 presente no âmbito ambiental:

Art. 3º O CONSEMA, órgão colegiado do Sistema Estadual de Meio Ambiente-SIMA, tem a finalidade de assessorar, avaliar e propor ao Governo do Estado de Mato Grosso diretrizes da Política Estadual do Meio Ambi-ente, bem como deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à qualidade de vida, possuindo as seguintes atribuições:...V - deliberar sobre a dispensa do Estudo de Impacto Ambiental, para as atividades elencadas no Artigo 24, mediante recomendação da FEMA;

67 Cf. Paulo de Bessa Antunes. Direito Ambiental, p. 29: “O princípio democrático é aquele que assegura aos cidadãos o direito pleno de participar na elaboração das políticas públicas ambientais e de obter informações dos órgãos públicos sobre matéria referente à defesa do meio ambiente e de empreendimentos utilizadores de recursos ambientais e que tenham significativas repercussões sobre o ambiente”.

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Deve-se enfatizar que sob a Lei Complementar Estadual n. 70, de 15/09/2000, que alterou o art. 24 do Código Estadual do Meio Ambiente, recai a presunção de constitucionalidade, que determina a aplicação imediata e integral da lei estadual até que o Poder Judiciário declare, de forma definitiva, sua inconstitucionalidade.

Por fim, verifica-se que, nesse caso, somente após a constatação da inconstitu-cionalidade da Lei Complementar Estadual nº 70/2000, que esta norma deixará de ser aplicada pelo administrador público. Ademais, caso ela seja considerada inconstitucional, a decisão judicial deve deliberar acerca dos seus efeitos retroativos, como a validade das licenças ambientais que já foram expedidas com fundamento nesta lei e constituem fato consumado ou ato jurídico perfeito.

5 Considerações finaisEm razão do grau de impacto ambiental, o EIA/RIMA pode ser substituído

por outros estudos ambientais que melhor atendem as circunstâncias fáticas dos projetos, não havendo qualquer irregularidade nesse procedimento, desde que o órgão ambiental previamente motive o ato de inexigibilidade.

O EIA/RIMA será exigido de obras que provoquem significativo impacto ambiental, independentemente do rol do art. 2° da Resolução CONAMA 01/86. Pois, deve-se afastar o fundamento da aplicação isolada do disposto no inciso XI do art. 2° da Resolução CONAMA n. 01/86, tendo em vista que se encontra nesse ponto não recepcionado pela atual Constituição no seu § 1°, inciso IV, art. 225, e tacitamente revogado pelo disposto no parágrafo único do art. 3° da Resolução CONAMA n. 237/97.

A dispensa do EIA/RIMA nos processos de licenciamento ambiental de Pe-quenas Centrais Hidrelétricas com potência de 10 MW a 30 MW pode ocorrer na Amazônia Mato-Grossense, tendo respaldo na legislação estadual de forma explí-cita no inciso XI do art. 24, Código Estadual do Meio Ambiente, que é corolário do disposto no inciso VI e § 2° do art. 24 da Constituição Federal.

De fato, existe a necessidade de produção de energia, que pode ser suprida pela construção de PCH. Por outro lado, não pode se esquecer dos impactos negativos decorrentes dessas obras no meio ambiente, que podem atingir os povos indígenas, bastante presentes na região da Amazônia Mato-Grossense.

Porém, é preciso compatibilizar a questão econômica com o interesse am-biental, de forma que um interesse não suprima ou anule o outro. Deste modo, a exigibilidade de estudos ambientais complexos, como o EIA/RIMA, deve ser utilizada com ponderação, sob pena de tornar o procedimento de licenciamento ambiental excessivamente burocrático, inviabilizando ou desestimulando o desen-volvimento econômico.

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ReferênciasANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 9ª edição. Rio Janeiro: Lúmen Juris, 2006.CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16 ed. Rio Janeiro: Lúmen Juris, 2006.DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.FIORILHO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2001.JUSTEN Filho, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004.MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 1ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2007.SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2003.Site: http://www.brasilescola.com/historiab/apagao.htm. consulta em 13/02/2008.Site: http://www.sema.mt.gov.br

Prática jurídica ambiental: a atuação do Escritório Modelo de Advocacia

Ambiental da uFMT no combate ao desmatamento ilegal em Mato Grosso

Carlos Teodoro J. Hugueney Irigaray68

Giselle Ferreira Vieira69

Gustavo Crestani Fava70

68 Procurador do Estado de Mato Grosso. Professor Adjunto da UFMT. Coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq “A questão agroambiental: Direito e Estado” da Faculdade de Direito da UFMT.

69 Professora da UFMT. Coordenadora do Escritório Modelo de Advocacia Ambiental-EMA. Integra o Grupo de Pesquisa CNPq “A questão agroambiental: Direito e Estado” da Faculdade de Direito da UFMT.

70 Acadêmico do Curso de Direito da UFMT. Estagiou no EMA. Integra o Grupo de Pesquisa CNPq “A questão agroambiental: Direito e Estado” da Faculdade de Direito da UFMT.

ResumoEste artigo apresenta a experiência do Escritório Modelo de Advocacia Ambiental da UFMT, juntamente com um projeto de organização e funcionamento de escritórios similares a serem implementados e adequados à realidade da região amazônica e suas universidades, bem como das demais universidades da América Latina, ampliando assim o alcance da especiali-zação ambiental e da inserção social da academia no enfrentamento das questões ambientais.

Palavras-chave:

AbstractThis article presents the experience of the Model Office of Environmental law, from UFMT Law School. It also presents concepts of haw to organize and operate similar offices to be imple-mented in the Amazon region’s universities, and other universities in Latin America, in order to promote a further engagement of universities in social and environmental issues on society.

Keywords: Office Model Law. Environmental Advocacy. Universities.

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No ano de 2006, a Universidade Federal de Mato Grosso criou o Escritório Modelo de Advocacia Ambiental – EMA, em parceria com a ONG Instituto Centro de Vida – ICV, tendo como objetivo contribuir na efetivação da responsa-bilização dos infratores ambientais, especialmente no que tange ao desmatamento e queimadas autuadas no estado de Mato Grosso. Para alcançar tal objetivo, a Universidades firmou acordos de cooperação técnica com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente - SEMA, a Procuradoria Geral do Estado – PGE e o Institu-to Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis-IBAMA71. Nos termos dessas parceirias, o EMA se compromete a apoiar a atuação desses órgãos através da elaboração e encaminhamento de relatórios individuais de danos am-bientais (RIDAs) e minutas de peças processuais cabíveis, visando a propositura de Ação Civil Pública e de Ação Penal nos casos de desmatamentos ilegais já autuados pela SEMA ou IBMA.

Atualmente, o EMA integra a estrutura do Núcleo de Estudos e Prática Jurídica Ambiental, juntamente com a Coordenação de Perícias e de Estudos Ambientais. Desde a sua criação o EMA já elaborou e encaminhou à PGE e ao MPE, um total de 21 Ridas e igual número de minutas de Ação Civil Pública, referente aos maiores desmatamentos autuados pelo no Estado, desde 2002, pela SEMA. Além de outros trabalhos de produção acadêmica, de levantamento e divulgação de dados atinentes à gestão ambiental no Estado.

Trata-se de uma experiência inovadora com grande repercussão social, na medida em que mobiliza professores, estudantes e servidores públicos em uma ação integrada e interdisciplinar voltada para a contenção do desmatamento, so-bretudo na Amazônia Legal, que merece ser replicada em outras instituições de ensino superior.

Com essa finalidade e visando contribuir na tutela ambiental e também obje-tivando uma maior atuação das Universidades frente aos problemas ambientais enfrentados pela sociedade latino-americana, em especial na região Amazônica, apresentamos neste artigo o projeto de instauração e gerenciamento de um escri-tório modelo de advocacia ambiental, a fim de promover e apoiar a implantação destes núcleos no âmbito das faculdades de direito e, por conseqüência, incentivar a ampliação da rede de combate a infrações ambientais, por meio da responsabi-lização dos infratores.

O presente projeto foi desenvolvido no decurso do Programa de Verão de Direito Ambiental promovido pela Universidade da Costa Rica e Universidade da Flórida, realizado na Costa Rica, no ano de 2007, tendo sido produzido a partir da experiência vivenciada no EMA da Faculdade de Direito da UFMT, enrique-cida por experiências de outros núcleos jurídicos ambientais em funcionamento

71 Proposta nesse sentido foi formalizada junto ao MP Estadual que não demonstrou interesse em firmar essa parceria.

Prática Jurídica Ambiental: a atuação do escritório modelo de advocacia ambiental da uFMT no combate ao desmatamento ilegal em Mato Grosso – 63

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em universidades dos Estados Unidos e de outros países da América Latina, em especial a University of Flórida, Pace University, Universidade da Costa Rica e CEDHA, da Argentina.

** *

Desenvolvimento, planejamento estratégico e administração do

escritório modelo de Advocacia Ambiental

Resumo ExecutivoEsta proposta contempla a elaboração de um modelo de organização e fun-

cionamento de Escritório Modelo de Advocacia Ambiental, a ser implementado e adequado à realidade da região Amazônica e suas universidades, bem como das demais instituições de ensino superior da América Latina, ampliando assim o alcance da especialização ambiental.

1 JustificativaO Escritório Modelo de Advocacia Ambiental – EMA, criado no âmbito

da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso, insere-se no Núcleo de Estudos e Prática Jurídica Ambiental com atuação específica na área ambiental, contemplando atividade de extensão universitária e complementação à prática jurídica obrigatória. Tem como objetivo primordial promover a capaci-tação e qualificação dos discentes para a atuação na área ambiental, contribuindo com a formação de uma consciência social na qualidade de operador do direito, a partir da qual conceba o direito como uma ferramenta de mudança social e de promoção de políticas públicas.

A atuação do EMA está concentrada no combate ao desmatamento por se tratar do problema ambiental mais relevante na região onde o mesmo se insere. Mato Grosso é o Estado brasileiro campeão em queimadas e derrubadas de florestas e localiza-se na área denominada como fronteira agrícola ou arco do desmatamento. Sofrendo, portanto, com a permanente pressão econômica para abertura de novas áreas para o cultivo de cereais e criação de gado.

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Por outro lado, a questão do desmatamento além de seus efeitos sobre a bio-diversidade e o clima, relaciona-se adicionalmente com a questão indígena, com a proteção dos recursos hídricos ameaçados pelo desflorestamento e também com a utilização abusiva de agrotóxicos e com o trabalho escravo, ainda presentes nesta região do Brasil.

Sem evadir-se da esfera regional, a área de atuação do EMA envolve também ques-tões internacionais, haja visto que o Estado compartilha com a Bolívia áreas de florestas e parte do Pantanal Mato-grossense, a maior área úmida contínua do planeta.

Além de sua função social, a atuação do EMA envolve aspectos processuais, objetivando apoiar a implementação da responsabilização dos degradadores, além de desenvolver atividades de pesquisa, extensão, produção de artigos científicos e monografias, em razão de sua inserção acadêmica, que tem como foco a produção científica e a difusão de conhecimentos.

Resta evidente, portanto, que os objetivos do EMA se retroalimentam, na medida em que os problemas na seara processual ensejam a discussão técnica e científica para sua resolução, e, por outro lado, na medida em que os estudos temáticos também proporcionam uma melhora na qualidade das peças apresentadas, além de contribuir com a elaboração de políticas públicas e com o aprimoramento da legislação.

E é neste cenário que o presente projeto visa fortalecer a atuação do Escritório Modelo da UFMT e construir uma proposta comum para as demais Universidades, na medida em que, apesar das especificidades da realidade mato-grossense, os demais Estados brasileiros também enfrentam problemas de agressões ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

2 Estrutura proposta para os Escritórios Modelo de Advocacia Ambiental

2.1 ObjetivosObjetivo Geral

Contribuir para a redução das elevadas taxas de desmatamento e queimadas na Amazônia, mediante a atuação qualificada das Universidades e engajamento de seus acadêmicos na atuação voltada para implementação da responsabilidade civil, penal e administrativa dos degradadores.

Objetivos Específicos• Promover a capacitação e qualificação dos acadêmicos para atuação na área

ambiental, fomentado a produção e difusão de conhecimentos em direito ambiental;

Prática Jurídica Ambiental: a atuação do escritório modelo de advocacia ambiental da uFMT no combate ao desmatamento ilegal em Mato Grosso – 65

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• Fomentar a distribuição de ações judiciais de responsabilização e preservação ambiental;

• Contribuir, principalmente, para a redução das taxas de desmatamento e queimada na Amazônia, bem como, dos demais danos ambientais ocorridos, no âmbito da realidade regional.

• Incentivar e impulsionar as intervenções do poder público na tutela ambiental, bem como contribuir com a modificação dos parâmetros com que os juízes, advogados, políticos e outros atores sociais concebem as questões relacionadas à proteção do meio ambiente;

2.2 Método• Apoiar a atuação dos órgãos ambientais e do Ministério Público, visando a

implementação da responsabilidade civil, administrativa e penal dos poluidores, mediante encaminhamento de representações, recomendações e minutas de petições, tendo como prioridade os maiores desmatamentos autuados72;

• Apoiar a realização de pesquisas acadêmicas voltadas para a temática agro-ambiental na Amazônia, mediante interação com o Núcleo de Apoio à Pesquisa;

• Prestar consultoria e assessoria jurídica às Organizações sociais (ONGs, associações) e cidadão que atuem na proteção ambiental;

• Promover a publicação e difusão dos trabalhos produzidos e das atividades realizadas pelo EMA, por meio de sítio na rede mundial de computadores;

2.3 Potenciais usuários• Organizações não-governamentais, associações populares e cidadãos que

atuem na defesa do meio ambiente;• Governo: Procuradoria Geral do Estado73, IBAMA e Secretaria do Estado

do Meio Ambiente74 e Ministério Público Federal e Estadual75.

72 A propositura de ações dessa natureza possui alguns requisitos, especificamente no Brasil, as denominadas ações civis públicas tem seu pólo ativo bastante restringido pela legislação, limitando a possibilidade de manuseio de tal instrumento à associações, fundações, ministério público e Estado. Já as ações penais, são de titularidade única e exclusiva do Minis-tério Público. Desta forma para que figure no pólo passivo da ACP, exigi-se que os núcleos ambientais amoldem-se a uma das estruturas previamente definidas pela legislação. Do contrário, terá que assumir apenas o papel de fomentador e auxiliador das esferas governamentais legitimadas à proteção ambiental. Já no que se refere às ações penais, não há possibilidade alguma de fomento independente, por critérios históricos, optou o constituinte nacional em atribuir apenas ao Ministério Público a legitimidade para proposição desta natureza de ações, salvo em raríssimos casos.

73 A Procuradoria do Estado é um dos órgãos legitimados a propositura da Ação Civil Pública, enquanto representante judicial dos Estados, nos termos da lei 7.347/85, por essa razão recomenda-se que, mediante assinatura do termo de cooperação (anexo2), o Escritório Modelo ofereça suporte técnico à Procuradoria, comprometendo-se a encaminhar a este órgão minutas de ACP, devidamente instruídas.

74 O IBAMA e a SEMA – Secretaria de Estado do Meio ambiente são responsáveis, na esfera federal e estadual, respectivamente, pela responsabilização administrativa do degradador, por esta razão recomenda-se que, mediante assinatura do termo de cooperação, o Escritório Modelo ofereça suporte técnico aos mesmos, comprometendo-se a encaminhar-lhes recomendações sobre o trâmite do processo administrativo, e prováveis óbices que estejam impedido ou limitando a efetivação de responsabilização administrativa.

75 Sendo o Ministério Público o único titular da Ação Penal, recomenda-se que o EMA, mediante assinatura de termo de coope-ração, comprometa-se a encaminhar relatórios individuais de dano ambiental, constando a descrição do dano e os documento necessários para que o MP instaure a devida Ação Penal, garantindo assim a responsabilização penal do degradador.

66 – Parte I: Amazônia Legal

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2.4 Serviços legais ofertados

• Representação: Incluir pesquisas básicas, consultoria e advocacia perante tribunais, agências da administração e legisladores;

• Educação: promover treinamento técnico em direito ambiental, organizando conferências, simpósios e publicando materiais de treinamento e cartilhas informativas;

• Política: Participar e contribuir na criação de normas e procedimentos que afetam o ambiente; oferecer assistência técnica para projetistas do governo no desenvolvimento de planos; publicar estudos, formular propostas de regulação/legislação, dentre outras estratégias de proteção do ambiente e promover e a aplicação do direito ambiental.

2.5 Critério de seleção dos casos

A equipe deve ter autonomia para decidir sobre o aceitamento do caso, o que deve ser precedido de uma reflexão individual do estudante sobre a importância social do caso, a oportunidade de aprendizagem do mesmo, os recursos financeiros comprometidos, a viabilidade jurídica etc.

Além do acima exposto, seguem os demais critérios a serem apreciados na seleção dos casos:

• Promoção do interesse público;• Novidade do caso;• Leading case (Influenciará na mudança dos fundamentos das decisões);• Viabilidade Jurídica;• Condição econômica da vítima: Devem ter preferência ao atendimento dos

clientes advindos de parcelas carentes da sociedade;• Localização geográfica do caso76; • Abrangência do dano: Priorizar-se-á os maiores desmatamentos;Outros critérios de valoração do caso concreto, dentre esse:

- O valor agregado à experiência;- A experiência obtida pelos estudantes na condução de casos similares;- A circunstância em que se encontra o caso, no momento da apresentação

ao escritório;

76 Por questões de custo, recomenda-se que cada Estado limite a sua atuação aos danos ocorridos em seu território.

Prática Jurídica Ambiental: a atuação do escritório modelo de advocacia ambiental da uFMT no combate ao desmatamento ilegal em Mato Grosso – 67

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2.6 Estrutura Administrativa

A. SuperviSão: O EMA deve contar com um coordenador e uma equipe de advogados es-

pecialistas em direitos difusos e coletivos, que atuarão como tutores prestando orientação técnico-jurídica e avaliando os trabalhos e atividades desenvolvidas pelos estagiários.

• Compete ao Coordenador: i. Efetuar o controle de freqüência dos estagiários;ii. Estabelecer os primeiros contatos com os clientes, analisando o caso

e emitindo parecer quanto ao diferimento de sua seleção, mediante a verificação do cumprimento dos critérios de seleção de casos previsto neste projeto;

iii. Gerenciar administrativamente o EMA, encaminhando à Secretaria da faculdade de direito solicitação de serviços e aquisição de materiais de expediente;

iv. Propor, juntamente com a equipe, os parâmetros de produtividade;v. Coordenar a distribuição dos casos aos estagiários;vi. Estabelecer contatos e negociação com Parceiros e financiadores;vii. Elaborar e encaminhar proposta de concorrência à fundos de

financiamento;viii. Controlar e emitir folha de pagamento dos estagiários bolsista;viii. Realizar e preparar o processo de seleção dos estagiários;vix.Estabelecer contatos com outros departamentos visando uma integração

interdisciplinar na atuação do escritório;vx. Propor e organizar cursos, palestras e demais encontros de formação;x. Fornecer informações a serem disponibilizadas no site do EMA;

• Compete ao Professor:i. Orientar, supervisionar e avaliar as pesquisas, seminários e projetos dos

estagiários;ii. Assinar, juntamente com os estagiários, as petições encaminhadas ao

Poder Judiciário;iii. Acompanhar, juntamente com os estagiários, as audiências dos processos

encaminhados ao Poder Judiciário;iv. Desempenhar todas as demais atividades decorrentes da sua função.

68 – Parte I: Amazônia Legal

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B. eStudante:

i. Bolsistas – alunos matriculados a partir do 4º ano de direito, os quais serão responsáveis pela produção de peças e por consultorias jurídicas;

ii. Voluntários – Alunos vinculados ao grupo de pesquisa, responsáveis pela produção de representações, artigos científicos, pesquisas relacionadas à questão ambiental77 e demais projetos78;

iii. Graduados em direito – Na qualidade de voluntários, servindo como apoiadores dos projetos jurídicos empreendidos pelo escritório;

iv. Profissionais de outras áreas do conhecimento – Será estabelecido um sistema de cooperação entre a Faculdade de direito e outras faculdades em que a área de conhecimento interaja com a questão ambiental, visando a obtenção de pareceres técnicos essenciais a tutela ambiental e a promoção de palestras e debates que cooperem com a formação interdisciplinar do operador do direito.

• Compete ao estudante bolsista:i. Cumprir a carga horária de 20 horas semanais;ii. Participar dos seminários semanais de formação;iii. Entregar semanalmente os informativos de produção semanais;iv. Participar das reuniões da equipe, previamente estabelecidas;v. Participar e realizar ativamente os projetos a ele atribuídos;vi. Atuar com dedicação, seriedade, interesse e criatividade, zelando pelo

correto cumprimento dos prazos e tarefas que lhe forem atribuídos.• ApoioAdministrAtivo: Secretaria da Faculdade de Direito79;

2.7 Da seleção dos estudantes bolsistas:

A seleção dar-se-á por meio de exame subjetivo e entrevista. E habilitará os aprovados para o estágio com tempo limite de um ano letivo.

Os candidatos deverão estar matriculados no quarto ano de direito e possuir interesse por litígios e assuntos de interesse públicos. Também serão considerados fatores como: habilidades do estudante, necessidades, interesses e experiências.

77 Sugestões de pesquisas: jurisprudências pró-ambiente, monitoramento das Ações Civis Públicas e Ações Penais em andamento no Estado, Análise e avaliação do sistema de Responsabilização administrativa e fiscalização.

78 Sugestão de projeto: Elaboração de uma coletânea de comentários à legislação ambiental estadual.79 Sendo possível recomenda-se a alocação de um agente administrativo na estrutura do EMA, ficando a cargo deste

o desempenho da função administrativa, mantendo, para isso, a interlocução com a faculdade de Direito.

Prática Jurídica Ambiental: a atuação do escritório modelo de advocacia ambiental da uFMT no combate ao desmatamento ilegal em Mato Grosso – 69

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As pessoas interessadas deverão enviar uma solicitação de inscrição contendo:• Curriculum Vitae (2 páginas no máximo, incluindo experiência acadêmica

e profissional);• Referência acadêmica e profissionais relevantes;• Um resumo de uma página mencionando os pontos de interesse e o que

espera obter na clínica.

2.8 Grupo de pesquisa:

O EMA interagirá com o grupo de pesquisa no âmbito da Faculdade de Di-reito, participando das reuniões semanais, oportunidade em que se desenvolverão atividades de leitura, debates, seminários, palestras e produção de trabalhos.

Também poderá ser estabelecido termo de cooperação com organizações de pesquisa, em que estas se predisponham a oferecer aporte científico para desen-volvimento de projetos de pesquisa propostos por acadêmicos.

2.9 Experiências a serem obtidas:

Formar operadores do direito vinculados à função social da ciência jurídica e conscientes da responsabilidade da nossa geração com a preservação dos recursos naturais tão irracionalmente explorados, pautá-los na ética profissional e no tra-balho em equipe, capacitando-os no desenvolvimento de pesquisas, na assessoria e consultoria jurídica ambiental.

2.10 Carga horária:

Os estagiários devem ter uma carga horária de 20 horas semanais. Parte desse horário poderá ser desempenhado em pesquisa e produção de peças processuais.

2.11 Do calendário:

O escritório funcionará conforme ao calendário acadêmico, funcionando em regime de plantão nos períodos de recesso.

2.12 Do horário de funcionamento:

Período Matutino e Vespertino

2.13 Critério de produtividade:

Os parâmetros de produtividade devem ser estabelecidos de forma que não frustre os objetivos acadêmicos, dentre os quais estão a formação dos estudantes, a qualidade das produções e a projeção ambiental.

70 – Parte I: Amazônia Legal

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 2, n. 3, p. 61-72, jan.-jun. 2007

Estabelecidos os parâmetros, a equipe do EMA deve ter autonomia para eleger e limitar o número e os tipos de atividades que deverão ser empreendidas, evitando assim uma sobrecarga de atividades e, por conseqüência, um prejuízo no desempenho das funções.

Isso posto, ressalta-se que os resultados exigidos pelos parceiros também deverão respeitar e se submeter a esses parâmetros.

2.14 Avaliação e Contabilização de Horas

• Os alunos matriculados em Prática Forense, a partir do segundo semestre do quarto ano, poderão contabilizar a carga horária de atividade junto ao Escritório como projeto alternativo de estágio, até o limite de 50% (cinqüenta por cento);

• As atividades desenvolvidas no escritório serão computadas como horas complementares, nos termos do regulamento;

• A coordenação do EMA emitirá semestralmente certificado atestando a carga horária cumprida pelos estagiários;

• Os alunos deverão cumprir os requisitos presente neste regulamento;• Será avaliado semestralmente o desempenho dos alunos bolsistas, o qual,

caso seja julgado insuficiente, resultará na perda da bolsa e no desligamento do escritório.

2.15 Vínculo institucional:

O EMA está vinculado à Faculdade de Direito e será supervisionado pelo Diretor da Faculdade80.

2.16 Parceiros:

• Universidade: Pode disponibilizar o espaço físico e os custos operacionais;

• ONG: Conceder suporte financeiro, suportando o pagamento de salário dos advogados e dos alunos bolsistas;

• Governo: Disponibilizar recursos por meio de concorrência a fundos públicos destinados à implementação de direitos difusos e coletivos;

• Comunidade: Doações;• Financiadores: Fundações que financiem projeto de defesa e conservação

do meio ambiente.

80 A exemplo do que ocorre em Mato Grosso, O EMA encontra-se vinculado ao Núcleo de Estudos e Prática Jurídica Ambiental - NEPA criado no âmbito da Faculdade de direito FMT.

Prática Jurídica Ambiental: a atuação do escritório modelo de advocacia ambiental da uFMT no combate ao desmatamento ilegal em Mato Grosso – 71

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Estrutura Física do Escritório81

• Duas salas;• Um telefone;• Quatro computadores e um notebook;• 1 impressora• Uma pequena biblioteca.• 6 mesas e respectivas cadeiras para computador;• 1 mesa para reunião com 6 cadeiras;Estratégia de trabalho: • Seleção dos maiores desmatamentos;• Manutenção de um banco de dados atualizado das autuações referentes aos

desmatamentos ocorridos desde 2.002;• Elaboração e encaminhamento de Relatório Individual de danos ambientais82

ao Ministério Público, à PGE e à SEMA; • Os dados obtidos por meio dos trabalhos desenvolvidos pelo EMA, desde

que cingidos de publicidade, serão disponibilizados a toda e qualquer pessoa, sendo necessário para tanto apenas o pagamento das custas eventualmente necessárias a sua reprodução.

• O escritório manterá um sítio na rede mundial de computadores, onde disponibilizar-se-á todos os trabalhos desenvolvidos direta ou indiretamente, bem como uma base de jurisprudência pró-ambiente e rol de infratores (lista suja).

• Contabilização e identificação das ações de responsabilização ambiental pré-existentes ao projeto83.

RecursosO escritório deve ter como meta a autonomia financeira.O escritório deve contar inicialmente com apoio financeiro de fundos ambien-

tais ou de ONGs. Também, deve ser considerada como fonte de recursos, quando cabíveis, a cobrança de honorários advocatícios pelos serviços prestados.

81 Este item apresenta uma estrutura básica para o funcionamento do EMA, devendo para tanto ser adaptada conforme a realidade de cada Universidade.

82 O RIDA – Relatório Individual de danos ambientais refere-se a um conjunto de documentos organizados em forma de dossiê, em que consta um resumo contendo a descrição da infração e do dano, uma síntese do processo administrativo e uma relação de recomendações aos órgão ambientais, no sentido de garantir a responsabilização civil, administrativa e penal dos degradadores, cópia de imagens de satélite confirmando a existência do dano e cópia de todo o processo administrativo.

83 Recomenda-se esta pesquisa, a fim de que se possa estabelecer um quadro comparativo constando o número de ação judiciais ambientais proposta antes do início das atividades do EMA e os novos números obtido por meio de sua atuação, o que viabilizará uma avaliação de seu desempenho.

72 – Parte I: Amazônia Legal

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 2, n. 3, p. 61-72, jan.-jun. 2007

As contraprestações advindas do apoio financeiro dos entes parceiros, não devem gerar ônus ao escritório, que venha resultar em uma descaracterização de seus objetivos e da perda sua autonomia.

3 Metodologia para a disseminação e implantação do projeto

, a fim Encontro anual de núcleos de prática jurídica ambiental;Realização de Workshops auxiliar na implantação.

3.1 Informações sobre o projeto piloto

Sobre os trabalhos e documentos elaborados pelo EMA-MT, acessar: www.amazonialegal.org.br/NEPA.

PARTE II

DIREITO AMBIENTAL BRASILEIRO

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais Cuiabá Ano 2 n. 3 p. 73-127 jan.-jun. 2007

A tutela ambiental e as tendências para a sua aplicabilidade

na atualidade

Liane Marli Schäfer Lucca84

Luciano André Glowacki85

84 Advogada e Contadora, Pós-graduada em nível de Especialização em Contabilidade e Gestão Empresarial pela URI Campus Santo Ângelo (RS), Mestranda do Curso de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito da URI – Campus Santo Ângelo (RS), Membro do Grupo de Pesquisas CNPq – Tutela dos Direitos e sua Efetividade, sob a coordenação do Prof. Dr. Florisbal de Souza Del’Olmo.

85 Contador, Pós-graduado em Controladoria pela UNICRUZ.

ResumoO questionamento em torno da tutela ambien-tal efetiva encontra respaldo na preocupação quando as implicações dos processos e procedi-mentos adotados na atualidade apresentar refle-xos diretos no meio ambiente das presentes e futuras gerações, no acesso aos recursos naturais, a vida em sociedade, manutenção do trabalho, aspectos sociais, dentre outras tantas implicações que podem surgir com o total descaso com o ambiente natural. Neste importante contexto o presente trabalho se ocupa da análise de aspectos relativos aos princípios ambientais da prevenção e da precaução enquanto balizadores das ações ambientais considerando as tendências, possibilidades e a sua efetiva aplicabilidade de forma a possibilitar ao direito ambiental a con-ciliação entre conservação do meio ambiente com desenvolvimento econômico alcançando o desenvolvimento sustentável tão almejado na atualidade.

Palavras Chaves: Princípios da prevenção e precaução. Gerenciamento ambiental. Desen-volvimento sustentável.

AbstractThe controversy around an effective attention towards the environment makes sense whe-never the procedures and processes in course nowadays can have direct influences in the environment of present-day and future gene-rations, in the availability to natural resources, life in society, labor, social aspects among many others which can have strong implications if the natural environment is not preserved. In this important context this research analyses aspects which have to do with the environmen-tal principles of prevention and precaution, while landmarks of environmental actions considering the tendencies, the possibilities and its effective applicability,in order to make it possible to conciliate the preservation of the environment and the economic development reaching a sustainable development which is so eagerly looked for.

Keywords: Principles of prevention and pre-caution. Environmental management. Sustai-nable development.

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais Cuiabá Ano 2 n. 3 p. 75-91 jan.-jun. 2007

76 – Parte II: Direito Ambiental Brasileiro

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 2, n. 3, p. 75-91, jan.-jun. 2007

IntroduçãoA preocupação com a qualidade de vida do planeta envolve, na variável ambien-

tal, questões relacionadas à preservação e reciclagem. A sociedade está a perceber cada vez mais que a manutenção e preservação ambiental são importantes para a continuidade das condições de vida no planeta, sendo que essa é uma responsa-bilidade de todos: sociedade, governo e organizações.

Com a emergente preocupação em torno do preservar hoje, para que as gerações futuras tenham acesso aos recursos naturais disponibilizados pelo meio ambiente, nos deparamos com diversos questionamentos que põem em dúvida a efetiva possibilidade de o Direito Ambiental ter aplicabilidade plena, principalmente no que tange aos seus princípios da prevenção e precaução.

O Direito Ambiental apresenta-se elencado no rol dos direitos emergentes em uma sociedade globalizada, onde se deixou de lado a preocupação restrita ao pacato e limitado meio em que as pessoas se inter-relacionam de forma con-vencional, preocupando-se com os limites territoriais de suas propriedades ou comunidades, passando-se a tomar conhecimento e interagir com acontecimentos de todas as longínquas partes do planeta, alimentando preocupações em torno dos reflexos de ações praticadas, em âmbito local, no que diz respeito à gestão do meio ambiente.

Muito se questiona até que ponto é possível conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental, de forma a maximizar os resultados do setor produtivo sem, no entanto, destruir tudo que se encontra em seu entorno através da poluição, degradação ambiental, desmatamento, dentre outros reflexos verificados juntamente com a expansão das indústrias e meios de produção. Fican-do a dúvida quanto à eficácia dos instrumentos utilizados para a efetiva proteção ambiental, tema de base que fundamenta o estudo desenvolvido.

Os problemas e danos gerados ao meio ambiente ultrapassam os limites da organização, os efeitos vão além das suas fronteiras. Uma vez atingidos por esses efeitos, governos e sociedade acabam impondo barreiras legais e de mercado para essas organizações. Para as organizações, além das exigências por produtos de qualidade melhor, também é exigido seu comprometimento com as questões am-bientais, e essas devem estar atentas para ter uma imagem ambientalmente correta e, através disso, aumentar sua lucratividade e competitividade no mercado.

1 Considerações gerais sobre o temaConforme Bergamini (2000, p. 9), o direito moderno incorporou o princípio

da função social da propriedade, preservando os direitos individuais, mas abrindo brecha para o reconhecimento dos direitos coletivos e difusos. Os direitos difusos

A tutela ambiental e as tendências para a sua aplicabilidade na atualidade – 77

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 2, n. 3, p. 75-91, jan.-jun. 2007

estão direta ou indiretamente ligados à questão ambiental, o que deu origem a um novo conjunto de normas, o direito ambiental, conceituado como o conjunto de leis, princípios e políticas públicas que rege a interação do homem com o Meio Ambiente para assegurar, através de processo participativo, a manutenção de um equilíbrio da natureza, um ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

Segundo Kinlaw (1997, p. 50), enquanto aumentam as exigências regulamentares e enquanto grupos ambientalistas perseguem os poluidores com insistência cada vez maior por parte das organizações, crescem os custos decorrentes da não ob-servância da lei e casos de despoluição e tratamento corretos dos resíduos deixados pelos processos produtivos. Conforme o EPA, os custos do não cumprimento dos regulamentos, já é maior que o custo da prevenção e cumprimento da legislação.

O Brasil possui umas das mais completas legislações ambiental do mundo, po-rém o que ocorre é que muitas vezes ela não é cumprida, causando graves impactos ao meio ambiente, pois dificuldades econômicas e políticas apresentadas em outros setores da sociedade brasileira fazem com que assuntos de ordem ambiental sejam repriorizados pelo governo, organizações e sociedade em geral.

O Direito Ambiental encontra-se dentre os temas que compõem o elenco dos novos direitos, reforçando a preocupação em torno da preservação e proteção dos recursos naturais, cada vez mais escassos e do meio ambiente como um todo, considerando as diversas catástrofes ambientais de dimensões planetárias desenca-deadas pelas ações degradadoras do ser humano na natureza. Nessa perspectiva, verifica-se que a discussão em torno da concretização, apesar da abundância de normas jurídicas que possuem por objetivo a proteção ambiental.

Na perspectiva de Ulrich Beck (1992), o “paradigma industrial está prota-gonizando uma sociedade de risco, aonde o homem e o planeta vêm cercados pelo perigo decorrente da inobservância do fator finito dos recursos naturais. Os perigos, por seu turno, considerando a degradação ambiental, trazem como conseqüência as catástrofes de escala planetária”.

Hodiernamente é inegável que se vive em uma intensa crise ambiental, que, segundo Leite e Ayala (2003, p. 182-183), são provenientes de uma sociedade de risco, deflagrada, principalmente, a partir da constatação de que as condições tec-nológicas, industriais e formas de organização e gestão econômicas da sociedade estão em conflito com a qualidade de vida, onde se verifica que o desenvolvimento econômico do Estado marginaliza a proteção do meio ambiente, ensejando crise ambiental crescente. Essa crise ambiental propiciou o surgimento de uma confli-tuosidade social intensa quanto à proteção do ambiente.

Considerando as experiências passadas, relativas ao desenvolvimento, é necessá-rio observar, conforme referido por Leite & Ayala (2003), que o desenvolvimento

78 – Parte II: Direito Ambiental Brasileiro

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 2, n. 3, p. 75-91, jan.-jun. 2007

duradouro fundado na eqüidade intergeracional possui por base experiências de construção do Estado de direito do ambiente, diagnosticadas por políticas anterio-res e ineficazes, porém, para o alcance de um novo modelo é necessário observar o paradoxo existente, quando os Estados são forçados a garantir, ao mesmo tempo, a produção, tecnologia de ponta e o equilíbrio ecológico. Dessa forma, torna-se imperativo criar um novo sistema de mercado que privilegie mais a qualidade de vida e o direito ecologicamente equilibrado, possibilitando um equilíbrio entre direito e responsabilidades, tanto do ente público como dos indivíduos em sua esfera privada.

Nesse contexto, os princípios do Direito do Ambiente adquirem importância diferenciada quanto à sua apreciação, considerando o valor jurídico dos princípios, pois, de acordo com Leite & Ayala (2003), em um primeiro momento conservam elevado potencial de colisão com as diversas espécies de diretos fundamentais objetivamente protegidos e tenderem a avocar uma pretensa posição de valor de precedência absoluta para a condição do ambiente ecologicamente sadio, con-siderado como direito fundamental, cuja particular configuração difusa exigiria imposições por iniciativas de organização e procedimento de condições especia-lizadas para sua realização e proteção.

2 Princípios da precaução e da prevençãoNo âmbito internacional tem se notícia do princípio da precaução, desde a

década de 70, mais precisamente introduzido pelo Direito Germânico, onde, se-gundo Cezar e Abrantes (2003), encontrava-se inserido na idéia de que a sociedade poderia evitar danos ambientais a partir de cuidadosos planejamentos que evitas-sem a instalação e propagação de atividades com potencial de causar degradação ambiental. Encontrando-se contemplado singelamente no Ato de Poluição do Ar de 1974, do ordenamento Alemão.

Com a Declaração do Rio, de 1992, o princípio da precaução foi representati-vamente formulado no direito internacional, quando estabeleceu em seu princípio 15 (United Nations, 1992) que:

De modo a proteger o meio ambiente, a abordagem precautória deve ser largamente aplicada pelos Estados de acordo com suas capacidades. Onde houver ameaça de dano sério ou irreversível, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como uma razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.

Após este marco histórico, diversos acordos internacionais passaram a adotar definições semelhantes para o Principio da Precaução, buscando dar efetividade ao novo direito ambiental.

A tutela ambiental e as tendências para a sua aplicabilidade na atualidade – 79

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 2, n. 3, p. 75-91, jan.-jun. 2007

Referem Cezar e Abrantes (2003) que, dada à complexidade das relações sociais, das interações ecológicas e do próprio ser humano, e pela própria impossibilidade da onisciência, muitas vezes o processo de tomada de decisões com implicações econômicas, sociais e ambientais encontram-se no contexto de incerteza. Assim, o princípio da precaução, utilizando-se de suas diversas formulações e aplicações regula a participação do conhecimento de senso comum e/ou técnico-científico, em casos envolvendo potencial danoso ao meio ambiente, considerando a análise ética, política ou socioeconômica, e na esfera epistemológica considera a “ausência de absoluta certeza científica”, conforme redação dada pela Declaração Rio/92, de forma a considerar que poder-se-á ter uma previsão de que haverá ou não dano ambiental em certas condições.

Esse contexto implica a análise de risco, entendida sob o prisma da aplicação de um conjunto de conhecimentos disponíveis na identificação de efeitos adversos potencializados por um determinado agente, referindo Cezar e Abrantes (2003, p. 254) que:

Em um sentido mais formal de moderno, a Análise de risco é entendida como a aplicação de uma metodologia e de um conhecimento tecnológico, matemático e científico especializados de sorte a quantificar a probabilidade de um efeito adverso potencializado por um dado agente. Essa concepção formal da Análise de Risco pressupõe que, enquanto a consideração sobre o que sejam efeitos adversos pode ser uma decisão conduzida pelo senso co-mum, os demais aspectos suscitados por aquela Análise, pela complexidade do jargão e dos detalhes envolvidos, devem ser tratados por especialistas.

Porém, neste ínterim salienta-se que, além de ser de fundamental importância a concepção apresentada, é necessário considerar, também, percepções baseadas na situação de fato, fazendo-se contraponto que considere os processos de decisão política, voltados à gestão de riscos, e os princípios da proporcionalidade, da não discriminação, da coerência, da fungibilidade e do balanceamento, de acordo com Leite e Ayala (2003).

Assim, para que seja possível a compreensão do âmbito cabível, a cada um dos princípios, quer seja precaução ou prevenção, é preciso estabelecer uma distinção entre as categorias caracterizadas como de risco e de perigo, onde, segundo Leite e Ayala (2003, p. 226), “o princípio da prevenção se dá em relação ao perigo con-creto, enquanto, em se tratando do princípio da precaução, a prevenção é dirigida ao perigo abstrato”.

O princípio da prevenção possui conteúdo cautelar, pois é dirigido pela ciência e pela detenção das informações certas e precisas sobre a periculosidade e o risco corrido da atividade ou comportamento, revelando situação de maior verossimi-lhança e potencial lesivo que aquela controlada pelo princípio da precaução.

80 – Parte II: Direito Ambiental Brasileiro

Revista Amazônia Legal de estudos sócio-jurídico-ambientais. Cuiabá, Ano 2, n. 3, p. 75-91, jan.-jun. 2007

3 Perspectivas ambientais na atualidadeAtualmente, a preocupação em torno das perspectivas ambientais tornou-se

uma constante, pois a humanidade vive uma realidade dotada de incertezas, sob o aspecto ecológico, considerando que a degradação ambiental aumentou signifi-cativamente nas ultimas décadas, ocasionando um redirecionamento de atenções para a poluição atmosférica, chuvas ácidas, morte dos rios, mares e oceanos, pela ação devastadora do homem, bem como o surgimento de produtos geneticamente modificados.

A preocupação em torno da sobrevivência do ser humano na atualidade e no futuro tem movido uma série de movimentos na busca de alternativas diante das implicações complexas e polêmicas que se encontram envolvidas.

Nesse contexto, a questão ambiental tem se transformado em um centro de preocupações e debates, considerando a complexa quantidade de pessoas, normas, evoluções tecnológicas, necessidades atuais e futuras, assim como interesses en-volvidos direta ou indiretamente com o meio ambiente explorado e preservado de forma sustentável. Impulsionando movimentos de organizações governamentais e não-governamentais, no sentido de se encontrar um meio termo aceitável dian-te das perspectivas existentes, através de uma visão holística acerca da natureza como um todo.

A questão ecológica, segundo Ulrich Beck (1997, p. 66), na percepção do mundo como sistema coordenado do auto-risco ecológico-industrial transformou a moralidade, a religião, o fundamentalismo, a desesperança, a tragédia, o suicídio e a morte – sempre interligados com o oposto, salvação ou esperança – em um drama universal.

Nesta linha, refere Beck que:

Somente uma sociedade que desperta do pessimismo da constelação do confronto e concebe a questão ecológica como um dom providencial para a auto-reforma universal de uma modernidade industrial previamente fatalista pode esgotar o potencial de ajuda e os papéis heróicos e conseguir estímulo a partir deles, não para conduzir a ecologia cosmética em uma grande escala, mas para realmente assegurar viabilidade no futuro. A ecologia cancela o apoliticismo objeto da esfera econômica (1997, p. 67).

Considerando a evolução global das mudanças e ameaças com as quais depa-ramo-nos, refere Giddens (1997, p. 76-77) que:

A grande experiência da modernidade, repleta de perigos globais, não é de maneira alguma o que os pais do Iluminismo tinham em mente quando falaram da importância de se contestar a tradição. Nem está próxima do que Marx imaginou – na verdade, entre muitas outras finalizações, atualmente

A tutela ambiental e as tendências para a sua aplicabilidade na atualidade – 81

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podemos falar do fim do prometeísmo. “Os seres humanos só se colocam problemas à medida que podem resolvê-los”: para nós, o princípio de Marx passou a ser apenas um princípio de esperança. O mundo social tornou-se, em grande parte, organizado de uma maneira consciente, e a natureza moldou-se conforme uma imagem humana, mas estas circunstâncias, pelo menos em alguns setores, criaram incertezas maiores – a despeito de seus impactos – do que jamais se viu antes.

Na época atual, refere-se o mesmo autor que a ecologia ambiental surgiu especialmente como uma resposta à percepção da destrutividade humana (Gi-ddens, 1997, p. 97). Nesse contexto, o verdadeiro conceito de meio ambiente, comparativamente à natureza, aponta para uma transição mais profunda, onde o meio ambiente parece não ser mais que um parâmetro independente da existência humana, realmente é o seu oposto: a natureza completamente transfigurada pela intervenção humana. Desta forma, a socialização da natureza significa muito mais que apenas o fato de o mundo natural estar sendo cada vez mais marcado pela humanidade. A ação humana, de acordo com Giddens, há muito deixou sua marca no ambiente físico.

Hoje, conforme Giddens (1997, p. 98-99), a preocupação com o aquecimento global provém do fato de que o clima da terra não segue mais uma ordem natural, ele é efeito da tomada de decisão humana, quando da emissão de poluentes, consu-mo de energia, dentre outros. Também refere o mesmo autor que a externalidade da natureza nos tempos pré-modernos não incluem apenas o ambiente físico, dizendo respeito ao corpo e, em íntima conjunção com a tradição, a qualquer coisa que existisse como parte da natureza humana. As mudanças técnicas, juntamente com outras inovações das tecnologias reprodutivas, fragmentaram radicalmente a natureza externa, aqui temos como exemplos a fertilização in vitro e o transplante de embriões, criando novas possibilidades e dilemas que se abrem em relação às categorias e identidades de parentesco estabelecidas.

4 O gerenciamento ambiental nas organizaçõesO gerenciamento ambiental, conforme Andrade (2000, p. 9) , não se limita à

ciência da administração pública ou privada. Ele reúne questões ligadas à Sociolo-gia, Economia, Finanças, Teoria dos Estados, Teoria das Organizações, Psicologia, Direito e Planejamento. Portanto, os problemas da Gestão ambiental, não são meramente administrativos.

As questões relativas à conservação ambiental ocupam hoje uma significativa parcela dos investimentos e esforços de todos os segmentos da atividade econômi-ca. A legislação e as normas e os regulamentos aplicáveis aos mais diversos setores produtivos exigem a adoção de sistemas de gerenciamento ambiental cada vez

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mais aprimorados, especialmente se considerada a natureza multidisciplinar das relações entre o homem e o meio ambiente. Tais sistemas visam primordialmente ao equacionamento da difícil questão econômica, já que uma empresa, ou todo um segmento poderá sucumbir diante da indispensável necessidade de atender às exigências legais, normativas ou comunitárias.

Esse novo paradigma, para Andrade (2000, p. 11) , pode ser descrito como uma visão holística do mundo, a visão como um todo integrado e não como um conjunto de partes dissociadas. Pode ser descrito como uma visão sistêmica, ou com sistemas, em referência ao seu embasamento mais teórico e abstrato, a teoria dos sistemas.

Conforme posicionamento do mesmo autor, esse novo pensamento precisa ser acompanhado por uma mudança de valores, passando da expansão para a conservação, da quantidade para a qualidade, da dominação para a parceria. O novo pensamento e o novo sistema de valores, juntamente com as correspondentes percepções e práticas novas.

O mercado rapidamente percebeu que as exigências podem atuar fortemente em favor da competitividade de uns, em oposição à inviabilização de outros. Uma empresa, ou um setor que identifique nas questões ambientais uma vantagem com-petitiva utilizará tal arma com vigor, especialmente se fomentar no seio da comu-nidade que abriga uma atividade concorrente, uma oposição poluidor, mesmo que tal classificação esteja desprovida de sustentação técnica ou de amparo legal.

Existem organizações que utilizam, de fachada, uma organização não gover-namental para tirar proveito da situação de empresa amiga do meio ambiente, ou até mesmo instituições e pesquisadores que emprestam seus nomes para essas empresas, mas, com o passar do tempo, vê-se o mal que fizeram não a si mesmas, mas a toda sociedade.

O componente meio ambiente chegou para ficar, e isto é uma verdade que não pode ser escondida. Esse é o dilema da empresa moderna, adaptar-se ou correr o risco de perder espaços que demoraram até décadas para serem conquistados, daí a necessidade de um bom gerenciamento ambiental. Várias empresas já identifica-ram nas questões ambientais, um dos mais importantes fatores de sucesso para a continuidade da aceitação dos seus produtos e serviços nos mercados externos e internos, especialmente se considerarmos as leis existentes em países desenvolvi-dos, que tendem a exigir essa qualidade de seus fornecedores e dos países de onde importam seus produtos. A conseqüência disso é a criação na OMC (Organização Mundial do Comércio) da Comissão de Meio Ambiente.

Para Andrade (2000, p. 9),

O gerenciamento ecológico ou ambiental envolve a passagem do pen-samento mecanicista para o pensamento sistêmico. Um aspecto essencial dessa mudança é que a percepção do mundo como máquina cede lugar à

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percepção do mundo como sistema vivo. Essa mudança diz respeito a nossa concepção da natureza, do organismo humano, da sociedade e, portanto, também de nossa percepção de uma organização de negócios. As empresas são sistemas vivos cuja compreensão não é possível apenas pelo prisma econômico. Como sistema vivo, a empresa não pode ser rigidamente con-trolada por meio da intervenção direta, porém pode ser influenciada pela transmissão de orientações e emissão de impulsos. Esse novo sistema de administração é conhecida como administração sistêmica.

A gestão ecológica não questiona a ideologia do crescimento econômico que é a principal força motriz das atuais políticas econômicas e tragicamente da destruição do ambiente global. A gestão ecológica implica o reconhecimento de que o crescimento econômico ilimitado em um planeta finito só pode levar a um desastre. Dessa forma, faz-se uma restrição ao conceito de crescimento, introduzindo-se a sustentabilidade ecológica como critério fundamental de todas as atividades de negócios.

Gerenciamento Ambiental é um conjunto de rotinas e procedimentos que permite a uma organização administrar adequadamente as relações entre suas atividades e o meio ambiente que as abriga, atentando para expec-tativas das partes interessadas. É um processo que objetiva, dentre suas várias atribuições, identificar as ações mais adequadas ao atendimento das imposições legais aplicáveis às várias fases dos processos, desde a produção até o descarte final passando pela comercialização, zelando para que os parâmetros legais sejam permanentemente observados, além de manter os procedimentos preventivos e pro - ativos que contemplam os aspectos e feitos ambientais da atividade, produtos e serviços e os interesses e expec-tativas das partes interessadas (REIS, 1996).

Para Andrade (2000, p. 13), uma gestão ecológica é o exame e a revisão das operações de uma empresa da perspectiva da ecologia profunda ou do novo paradigma. É motivada por uma mudança nos valores da cultura empresarial, da dominação para a parceria, da ideologia do crescimento econômico para a ideologia da sustentabilidade ecológica. Envolve uma mudança correspondente do pensamento mecanicista para o pensamento sistêmico e, por conseguinte, um novo estilo de administração, o da administração sistêmica.

Assim, a administração ambiental está associada à idéia de resolver os proble-mas ambientais da organização. Seus administradores, preocupados com a questão ambiental, muitas vezes entram em conflito, ao tentar adotar um enfoque ecológico, se vêem às voltas com exigências conflitantes de interessados que rivalizam entre si, principalmente os acionistas, cujas expectativas giram em torno do lucro.

Em função disso, verifica-se que as respostas da indústria ao novo desafio ocorrem em três fases, muitas vezes superpostas, dependendo do grau de conscien-

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tização da questão ambiental dentro da empresa: controle ambiental nas emissões externas, integração do controle ambiental nas práticas e processos industriais e integração do controle ambiental na gestão administrativa (DONAIRE, 1999).

5 Risco e princípio da precauçãoConsidera-se que, nas perspectivas atuais, os conceitos de modernidade e pós-

modernidade se apresentam insatisfatórios para explicar escolhas, desejos e medos das populações. Segundo Varella (2005), com as novas tecnologias, o terrorismo e as mudanças globais, o ser humano e o planeta como um todo são submetidos a riscos, que pretendem governar, mas, na maioria das vezes são governados por eles.

Neste contexto, refere Giddens (2005, p. 73) que um compromisso positivo com o risco é um componente necessário da mobilização social e econômica. Alguns riscos nós queremos minimizar, tanto quanto possível; outros, como os envolvidos em nossas decisões de investimentos, são uma parte positiva e inevitável de uma economia de mercado bem-sucedida. De acordo com o autor, risco não é o mesmo que perigo, ele se refere a perigos que buscamos ativamente confrontar e avaliar.

O princípio da precaução, de acordo com Hermitte (2005, p. 27-28), procura instituir procedimentos que permitem elaborar uma decisão racional na fase de incertezas e controvérsias, de forma a diminuir os custos sanitários de uma experi-mentação geral. A racionalidade da decisão a ser tomada vai depender da resposta satisfatória a um conjunto de exigências precisas, trabalhadas na jurisprudência. Refere a autora que a mais forte é a exigência e uma avaliação científica de riscos que antecede toda e qualquer decisão política, elemento de sua legalidade.

Quanto à importância do princípio da precaução refere Hermitte (2005, p. 29) que:

A importância do princípio da precaução não está ligada somente ao con-teúdo do princípio, independentemente de sua importância, mas também a sua capacidade de levar, de forma lógica, a outras regras. Assim, junto com o princípio da precaução, jurisdições incluíram uma obrigação de acompan-hamento dos produtos potencialmente perigosos. De forma mais indireta, o princípio da precaução conforta avanços políticos, elaborados fora do direito do risco. É o caso dos princípios de informação e de transparência.

De acordo com Noiville (2005, p. 57-58), na Europa aqueles que são favoráveis ao princípio da precaução vêem nele um instrumento indispensável ao desenvol-vimento sustentável e à proteção da saúde. Constituindo as próprias finalidades atribuídas ao princípio, considerando-se o fato de que em sua essência, esse prin-cípio afirma que a ausência de certeza científica quanto aos riscos de um produto

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ou de uma atividade, não constitui motivo para retardar a adoção de medidas que possam permitir a prevenção de um eventual prejuízo. Segundo a autora, o princípio implica uma contraposição a essa atitude clássica e convida a agir antes mesmo de se obter a prova do risco real. Nesse contexto, o princípio da precaução levaria à tomada de decisões de cunho oportunístico e político, muito mais do que aquela preocupação típica de nossa sociedade industrializada, que é a prevenção do risco sempre considerado um mal a ser erradicado.

Trazendo a baila a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, Noiville (2005, p. 62-64) considera que:

Em sucessivas decisões, essa Corte reafirmou que não se pode es-perar que a aplicação do princípio da precaução exija que se esteja diante de uma situação de urgência ou que se tenha em mãos dados confiáveis e definitivos, por que isso significaria esvaziar a “utilidade” do próprio princípio, mas que, no entanto, uma medida de pre-caução somente poderá ser adotada sob uma condição: que o risco seja “suficientemente documentado” levando-se em consideração “indicações científicas aparentemente confiáveis e sólidas” em face das análises científicas disponíveis realizadas segundo os princípios da excelência, da independência e da transparência. Um risco “pelo menos plausível”: na prática, essa condição é bastante fluida.[...] Uma coisa é certa, no entanto: o risco alegado não pode apoiar-se em pura elucubração e foi exatamente com base nesse fundamento que o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, recentemente, considerou que a França não apresenta indícios suficientes de riscos que pudesse, justificar a proibição de importação de produtos de confeitaria ou de bebidas enriquecidas com vitaminas.

Verifica-se que quando da aplicabilidade do princípio da precaução há a neces-sidade de se observar a exigência da devida proporcionalidade, que condiciona o encarregado pela tomada de decisão a ponderar os interesses em causa, antes de adotar qualquer medida de precaução. Desta forma, ao se contextualizar o risco potencial, em conformidade com Noiville (2005, p. 70-80), é possível verificar que a proibição está longe de ser a única modalidade de implementação do princípio da precaução. É necessário considerar não somente o risco, mas a relação risco/benefício, cabendo ao paciente expor-se a um risco, desde que lhe proporcione um benefício terapêutico ainda maior. Nesse contexto, o princípio da precaução não afasta a necessidade de se fazer escolhas, nem afasta a utilização do bom senso, que consiste em ponderar os interesses em jogo quanto a tais escolhas. Assim, redefinir claramente os critérios e as condições sob as quais o risco se torna aceitável ou não, é precisamente o ponto modal das verdadeiras dificuldades, muito mais do que o significado stricto sensu do princípio da precaução.

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O princípio da precaução, traduzido como fenômeno social, segundo Dallari e Ventura (2002), levou ao desenvolvimento de uma filosofia da precaução, cons-truída com base em uma história da prudência, que revela, a princípio, o domínio do paradigma da responsabilidade, substituído, na passagem para o século XX, pelo da solidariedade. É a segurança, paradigma em fase de formação, que dá às obrigações morais a forma de ética e transforma o princípio de responsabilidade em precaução. Dessa forma, em um contexto de incertezas científicas e do risco da ocorrência de danos graves e irreversíveis, o desenvolvimento social introduz o princípio da precaução.

Comparando-se o princípio da precaução com o da atuação preventiva, de acordo com Leite (2003, p. 47) observa-se que a atuação preventiva exige que os perigos comprovados sejam eliminados. Já o princípio da precaução determina que a ação, para eliminar possíveis impactos danosos ao ambiente, seja tomada antes de um nexo causal ter sido estabelecido com evidência científica absoluta.

Nessa linha segue Leite (2003, p. 47-48) referindo que a precaução exige uma atuação racional, para com os bens ambientais e com a mais cuidadosa apreensão dos recursos naturais, que vai além de simples medidas para afastar o perigo. Quanto ao desdobramento da precaução pode-se configurar como as seguintes ações:

Defesa contra perigo ambiental iminente, afastamento ou diminuição de risco para o ambiente, proteção à configuração futura do ambiente, principalmente com a proteção e desenvolvimento das bases naturais de existência, e exige, segundo a sua percepção, as seguintes tarefas das políticas ambientais do Estado: Implementação de pesquisas no campo ambiental, melhoramento e desenvolvimento de tecnologia ambiental, construção de um sistema para observação de mudanças ecológicas, imposição de objetivos de política ambiental a serem alcançados a médio e longo prazo, sistematização das organizações no plano de uma política de proteção am-biental, fortalecimento dos órgãos estatais competentes para a melhora na execução de planos ambientais, bem como de textos legislativos visando a uma efetiva organização política e legislativa de proteção ambiental.

Em conformidade com Leme Machado apud Leite (2003, p. 49), no que tange à aplicação efetiva do princípio da precaução, tem-se que suplantar a pressa, a rapidez insensata e a vontade de resultado imediato [...] Não é possível o confronto com esses comportamentos porque estão corroendo a sociedade contemporânea. O princípio da precaução não significa a prostração diante do medo, não elimina a audácia saudável, mas equivale à busca de segurança do meio ambiente, indispen-sável para dar continuidade à vida.

Ainda quanto à aplicação do princípio da precaução, referem Dallari e Ventura (2002) que o princípio impõe uma obrigação de vigilância, tanto para preparar a

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decisão, quanto para acompanhar suas conseqüências. E, sobretudo, ela promo-ve a responsabilidade política em seu grau mais elevado, uma vez que obriga a avaliação competente dos impactos econômicos e sociais decorrentes da decisão de agir ou se abster.

6 Passivo AmbientalSegundo Ribeiro e Lisboa (2000, p. 8-9), passivo ambiental são as obrigações

que exigirão a entrega de ativos ou prestação de serviços em um momento futuro, em decorrência das transações passadas ou presentes e que envolveram a empresa e o meio ambiente.

O passivo ambiental associou-se a danos e acidentes ambientais ocorridos em décadas passadas com as empresas, assim como as demais obrigações, essa implica no sacrifício futuro de resultados econômicos em função de obrigações contraídas perante terceiros, porém nem sempre tais obrigações são contraídas de forma voluntária, sendo que algum tempo atrás podia-se afirmar que muitas eram originadas de forma inconsciente, uma vez que os efeitos nocivos da exposição dos resíduos das atividades econômicas não eram conhecidos, reconhecidos ou divulgados.

A obrigação deve existir no presente como decorrência de um evento ou transação passados, de onde se depreende que a mera intenção de realização de gastos futuros de natureza preventiva não gera qualquer obrigação, há de se ter à ocorrência de um fato gerador, como uma compra, um consumo normal ou anormal.

Ressalta-se, nesse sentido, que não é necessário haver uma cobrança externa para que se configure a obrigação, mas sim, a consciência de que, por exemplo, o meio ambiente foi afetado pelo resíduos da atividade operacional da empresa e que tal efeito precisa ser revertido, constituindo-se, portanto, em um passivo ambiental, independente de haver ou não uma cobrança legal ou de terceiros para a restituição da qualidade do meio. Nos casos em que as empresas são obrigadas a recuperar danos causados ao meio ambiente, parte de sua mão-de-obra e de seus estoques poderão ser utilizados no processo de reparação dos prejuízos ecológicos.

Para a ONU apud Ribeiro & Lisboa (2000, p. 8-9), o passivo ambiental passa a existir quando:

a) Houver uma obrigação de a entidade prevenir, reduzir ou retificar um dano ambiental, sob a premissa de que a entidade não possui condições para evitar tal obrigação. Esta ausência de condições é definida pelas seguintes situações: existência de uma obrigação legal ou contratual; política ou intenções de administração, prática do ramo de atividade, ou expectativas públicas; divulgação, por parte da administração, interna

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ou externamente, de sua decisão de prevenir, reduzir ou retificar o dano ambiental de sua responsabilidade.

b) o valor da exigibilidade pode ser razoavelmente estimado. A essência do passivo ambiental está no controle e reversão dos impactos das atividades econômica sobre o meio natural, envolvendo, portanto, todos os custos das atividades que sejam desenvolvidos nesse sentido. Assim o eventos que ocorrem e que podem ser registrados são os seguintes: aquisição de ativos para contenção dos impactos ambientais (chaminés, depuradores de águas químicas); aquisição insumos quer serão inseridos no processo operacional para que não produza resíduo tóxico; despesas de manutenção e operação do departamento de gerenciamento ambiental; gastos de recuperação e tratamento de áreas contaminadas (máquinas, equipamentos, mão-de-obra, insumos em geral); pagamento de multas por infrações ambientais; gastos para compensar danos irreversíveis, inclusive os relacionados à tentativa de reduzir o desgaste da imagem da empresa perante a opinião pública.

O passivo ambiental deve ser reconhecido a partir do momento da ocorrência do fato gerador, independente de qualquer cobrança externa. Devido às carac-terísticas das várias formas de agressões ao patrimônio ecológico, nem sempre a obrigação pode ser definida com precisão no momento presente, mas tal fato não isenta a empresa de seu reconhecimento, devendo-se procurar todos os mecanis-mos disponíveis para a identificação e mensuração, ainda que aproximadas.

O reconhecimento do passivo ambiental é de fundamental importância para a correta avaliação da situação econômico-financeira das empresas de uma for-ma geral. Pelo que se tem observado nas grandes reorganizações societárias, o montante das obrigações de reparação de danos ao meio ambiente tem efeito significativo sobre as negociações, causando sérios prejuízos ao comprador quando não detectado no ato da negociação.

7 Meio ambiente sustentávelConsiderando as colocações preliminares, verifica-se que desde a Antiguidade

a preocupação em torno do meio ambiente sustentável é um constante, prelimi-narmente fez-se alusão à obra de Montesquieu, que trouxe a passagem relativa à expulsão dos poluidores das águas, como forma de punição e precaução contra novos fatos daquela natureza, a seguir, passou-se à análise do risco e do princípio da precaução como instrumentos de ação efetiva na atualidade contra a degradação do meio ambiente em que vivemos, levando em consideração a poluição, destruição cultural, pesquisas genéticas, desmatamento, dentre outros.

É nesse contexto que passamos a analisar efetivamente o que é e o que se es-pera de um meio ambiente sustentável. A sustentabilidade do meio ambiente passa

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pelo desenvolvimento sustentável que remete, segundo Sachs (2004, p. 15-16), a sustentabilidade ambiental à dimensão da sustentabilidade social:

Ela é baseada no duplo imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com as gerações futuras. Ela nos compele a trabalhar com escalas múltiplas de tempo e espaço, o que desarruma a caixa de ferramentas do economista convencional. Ela nos impele ainda a buscar soluções triplamente vencedoras, eliminando o crescimento selvagem obtido ao custo de elevadas externalidades negativas, tanto sociais quanto ambientais. Outras estratégias, de curto prazo, levam ao crescimento ambien-talmente destrutivo, mas socialmente benéfico, ou ao crescimento ambientalmente benéfico, mas socialmente destrutivo.

Nesse contexto, verifica-se que, para termos um mundo sustentável, há a ne-cessidade de um progresso simultâneo em todas as frentes, tanto social, ambiental, territorial, econômico quanto político.

Segundo Sachs (2004, p. 96), quanto às possibilidades de crescimento, relata que todas as atividades orientadas para poupar recursos naturais, reciclar resíduos e reutilizar materiais resultam numa melhor utilização das capacidades produtivas existentes, e ceteris paribus contribuem para uma taxa maior de crescimento e para a sustentabilidade ambiental deste crescimento.

Ainda, refere Sachs (2004, p. 118-119), que é normal que recursos financeiros vultosos sejam mobilizados para a indispensável expansão do núcleo modernizador da economia brasileira, constituído de indústrias e agronegócios de alta tecnologia, amparados por uma infra-estrutura eficiente nos setores de energia e transporte, capazes de expandir as exportações em condições de competitividade genuína, baseada em conhecimentos, tecnologias avançadas e aproveitamento das vanta-gens comparativas naturais. Porém, refere o autor que esse processo deverá ainda respeitar os preceitos de sustentabilidade ambiental. Devemos nos esforçar para desenhar uma estratégia de desenvolvimento que seja ambientalmente sustentável, economicamente sustentada e socialmente includente.

Nesse contexto, refere Giddens (2005, p. 67) que a noção de desenvolvimento sustentável corresponde bem à noção mais ampla de modernização ecológica. Modernização que implica uma parceria em que governos, empresas, ambientalistas moderados e cientistas cooperam na reestruturação da economia política capitalista em linhas mais defensáveis ambientalmente. Assim, os países mais influenciados pela idéia de modernização ecológica são os mais limpos e os mais verdes, entre as nações industrializadas.

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Considerações finaisCom a realização do estudo foi possível observar como a teoria política in-

fluencia e é influenciada pelas transformações ocorridas na sociedade através dos tempos, apesar de uma fundamentação basilar que, à semelhança das necessidades dos povos, se transformam e impulsionam uma busca de novas soluções para os paradigmas emergentes. Se em outros tempos a atenção estava voltada aos costumes cultuados quanto ao meio ambiente, hoje a preocupação em torno da preservação ambiental tornou-se uma constante.

Com a contínua evolução das tecnologias de informação, da globalização em todos os seus aspectos, os progressos da ciência, desenvolvendo pesquisas cada vez mais audaciosas, nos deparamos com riscos de dimensões ainda imensuráveis. Assim, direcionando-se as preocupações políticas em torno de se evitar danos irreversíveis a todo o ecossistema, surgem mecanismos inibidores e acautelado-res dos interesses da coletividade, dentre os quais podemos citar o princípio da precaução objeto do presente estudo.

As organizações estão preocupadas com as questões relacionadas com o meio ambiente, isso se deve às exigências impostas pelo mercado e a outros agentes externos. A manutenção dessas organizações no mercado envolve questões que vão além de preço de venda, visto que geralmente essas organizações exportam seus produtos para o mercado externo, onde a variável sanidade animal e ambiental possui grande peso nas negociações.

Considerando todos os aspectos abordados, buscou-se apresentar estudo di-recionado às preocupações presentes e futuras com o rumo dos acontecimentos que envolvem a realidade em que vivemos, pois a velocidade das informações vindas de todos os cantos do planeta, demonstra o quanto está se evoluindo para um mundo sem fronteiras e limites, que precisam ser de alguma forma impostos para preservar a individualidade do ser humano, sua cultura e seu ambiente como um todo, não deixando de as futuras gerações percam sua identidade cultural e encontrem um meio ambiente sustentável a sua disposição, assim como a todos foi disponibilizado atualmente.

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Dimensões da sustentabilidade

Clair Kemer de Melo86

Janete Rosa Martins87

86 Advogada, Professora da graduação em Direito da Cathedral em Barra dos Garças em Mato Grosso, Especialista em Direito Privado e Mestre em Desenvolvimento. E-mail: [email protected]

87 Advogada, Professora da graduação e da pós-graduação do Curso de Direito da URI – campus de Santo Ângelo –RS, Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica, Especialista em Direito Público e Mestre em Direito. E-mail: [email protected].

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ResumoColocando em termos simples, a sustentabili-dade é prover o melhor para as pessoas e para o ambiente tanto agora como para um futuro próximo, indefinido. A abordagem que obte-mos de sustentabilidade, nos remete a ação de configurar a civilização e as atividades humanas, de tal forma que a sociedade, os seus membros e as suas economias possam preencher as suas necessidades e expressar o seu maior potencial no presente, e ao mesmo tempo preservar a biodiversidade e os ecossistemas naturais, planejando e agindo de forma a atingir pró-eficiência na manutenção indefinida desses ideais. O homem enquanto sujeito promove suas escolhas na perspectiva da construção do pensamento, considerando a convivência com novos valores, culturas e saberes, baseados em princípios éticos, conformando o conhecimento baseado na prática da constante reflexão do conhecimento.

Palavras-chave: Desenvolvimento sustentá-vel. Dimensões. Sustentabilidade.

AbstractPlacing in simple terms, the sustentability is to provide the best for the people and the envi-ronment now as for a next, indefinite future. The approaching that we get of sustentability, remind us the action to configure the civilization and the human activities, in such a way that the society, its members and its economies can fill its needs and express its greater potential in the present, and at the same time preserve biodiver-sity and natural ecosystems, planning and acting in a way to reach pro-efficiency in the indefinite maintenance of these ideals. Man promotes its choices in the perspective of the construction of the thought, considering the convivence with new values, cultures and knowledges, based in ethical principles, conforming the knowledge based on the practical of the constant reflection of the knowledge.

Keywords: Sustainable development. Dimen-sions. Sustentability.

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1 IntroduçãoO presente trabalho consiste em traçar alguns aspectos que evidenciam a

necessidade de se estimular o entendimento sobre as discussões que envolvem o estudo das dimensões da sustentabilidade. O trabalho irá discorrer sobre o tema proposto, tendo como ponto de partida a pesquisa das origens da sustentabilidade, desenvolvimento e desenvolvimento sustentável enfatizando a preocupação que o homem deve ter com o meio ambiente. Faz-se também uma abordagem múltipla das dimensões da sustentabilidade: a dimensão social, cultural, política, econômica, ambiental e ecológica. O método utilizado foi a pesquisa bibliográfica. A partir do estudo realizado foi possível vislumbrar resultados no sentido de se buscar cada vez mais avaliar a necessidade de se olhar de forma não dissociada cada uma das dimensões estudadas, pois se evidencia que elas devem estar integradas. Uma das conclusões a ser explicitada é que as dimensões da sustentabilidade podem ser referenciais importantes para se buscar alternativas viáveis para o desenvolvimento sustentável como um todo.

2 Origens da sustentabilidadeAlguns autores localizam a origem do conceito da sustentabilidade na Euro-

pa e nos Estados Unidos. A Alemanha, no início do século XIX, implementava estratégias de preservação ambiental em função dos problemas oriundos da exploração de bosques madeireiros. Na Grã-Bretanha, desde o século XVIII, se observa a preocupação com as conseqüências ambientais advindas do crescimento econômico capitalista: a reserva florestal mais antiga que se conhece está na ilha de Tobago, no Caribe, criada por decisão do Parlamento Britânico em 1764, para proteger as plantações de açúcar e garantir as chuvas nesta ilha, com a denomina-ção de “reserva de bosques para chuva”. Nos Estados Unidos, o filósofo Henry D. Thoreau, em meados da metade do século XIX, também se empenhou pela administração sustentável de bosques e ficou conhecido por sua radical defesa da natureza. Estes exemplos, apontados por Castro (1994), mostram uma tradição ambientalista em suas mais distintas variantes desenvolvidas desde muito tempo nos países centrais do sistema capitalista mundial.

Entretanto, a necessidade do homem harmonizar-se com a natureza faz parte de sua essência de preservação, revelada pelos ensinamentos de Epícuro e Aristó-teles, na Grécia antiga. Particularmente no caso brasileiro, essas questões são bem demonstradas por Dean (1996), no seu excelente livro A ferro e fogo, onde aborda a história e a devastação da nossa Mata Atlântica.

Mais recentemente, no século XX, os países desenvolvidos retomam essas preocupações em função da deterioração do meio ambiente, verificado em seus

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territórios. A partir da Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano (1972) os organismos e instituições financeiras internacionais passaram a associar o fluxo de capital para o desenvolvimento às exigências ambientais, reconhecendo que meio ambiente e desenvolvimento são faces da mesma moeda. Curiosamente, alguns destes países cujas normativas ambientais são bastante rígidas em seus próprios territórios, não são tão cuidadosos com a natureza dos países menos desenvolvidos.

3 Desenvolvimento O conceito de desenvolvimento eqüitativo em harmonia com a natureza deve

permear todo nosso modo de pensar, informando as ações dos decisores tomadas por profissionais de todos os tipos, inclusive por parte dos funcionários burocrá-ticos, que preparam e avaliam os projetos de desenvolvimento.

A longa luta só será vencida no dia em que for possível, ao se falar do desen-volvimento, suprimir o prefixo ‘eco’ e o adjetivo ‘sustentável’ (Ignacy Sachs). O desenvolvimento está presente em vários contextos que podem ser vistos também como dimensões: o desenvolvimento biológico, infantil, softwares, econômico, sociológico, urbano, corporativo, internacional, pessoal, profissional etc.

4 Desenvolvimento sustentávelO conceito de Desenvolvimento Sustentável surgiu na última década para

traduzir várias idéias e preocupações relativas à gravidade dos problemas que estão causando risco às condições de vida no planeta. A crescente necessidade de proteger o meio ambiente das agressões humanas fez surgir, após vários anos de discussão, a busca de um desenvolvimento sustentável como solução do conflito homem x meio ambiente.

De acordo com Camargo (2003), o termo desenvolvimento sustentável foi divulgado pela primeira vez por Robert Allen, no artigo How to save the world (“Como salvar o mundo”), publicado em 1980, sendo conjuntamente lançado por várias instituições, como Fundo para a Vida Selvagem (WWF), Pela União Mundial para a Conservação da Natureza (UICN e pelo programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).

Quando se fala atualmente em desenvolvimento sustentável, vários são os con-ceitos que definem essa expressão. De acordo com Camargo (2003), as definições mais conhecidas estão presentes no relatório Nosso Futuro comum, quais sejam:

– Desenvolvimento sustentável é um novo tipo de desenvolvimento capaz de manter o progresso humano não apenas em alguns lugares e por alguns anos, mas em todo o planeta e até um futuro longínquo.

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– O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades.

– Em essência o desenvolvimento sustentável é um processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de atender às necessidades e aspirações humanas (CAMARGO, 2003, p. 71).

Desta forma, a necessidade da consciência ambiental é um dos pressupostos para se alcançar o desenvolvimento sustentável, tendo em vista a falta de informa-ção que a população possui quando se fala dos problemas que existem em relação ao meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas.

Várias são as denominações dadas, ou melhor, sinônimas para os valores ecológicos, como coloca Camargo (2003), tais como: conscientização ecológica ou ambiental, percepção ecológica ou ambiental e sensibilização ecológica ou ambiental.

A noção de desenvolvimento sustentável leva à necessária redefinição das relações sociedade humana/natureza e, portanto, a uma mudança substancial do próprio processo civilizatório. Desenvolvimento sustentável é aquele que harmo-niza o imperativo do crescimento econômico com a promoção da eqüidade social e preservação do patrimônio natural, garantindo, assim, que as necessidades das atuais gerações sejam atendidas sem comprometer o atendimento das necessi-dades das gerações futuras” (RELATÓRIO BRUNDTLAND - Nosso Futuro Comum, 1997).

O Desenvolvimento Sustentável é um programa de mudança e aprimoramento do processo de desenvolvimento econômico, de forma que ele garanta um nível básico de qualidade de vida para todas as pessoas e proteja os sistemas ambientais e sociais que fazem com que a vida seja possível e valha a pena.

5 Dimensões da sustentabilidadeEntende-se importante abarcar o paradigma do desenvolvimento humano

sustentável (IDHS, 2004) enfatizando as várias dimensões necessárias para o desenvolvimento de um povo, abrangendo também a sustentabilidade ambiental e a participação política dos direitos humanos, todos considerados fatores deter-minantes para o aumento da qualidade da vida humana.

Em 1973, o canadense Maurice Strong utilizou o conceito de eco-desenvolvi-mento, caracterizando uma nova concepção de política desenvolvimentista. Com Ignacy Sachs formularam-se as primícias básicas dessa nova visão, voltada para a

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satisfação das necessidades básicas do ser humano; preservação do meio ambiente; atenção especial com as gerações futuras; engajamento da população no processo desenvolvimentista e aplicação de programas educacionais (BRUSEKE, 1995).

O conceito de Desenvolvimento Sustentável, como é proposto, tem uma conotação positiva, uma vez que associa eficiência econômica com justiça social e a prudência ecológica, abrindo as portas para uma nova alternativa de oposição aos modelos tradicionais de desenvolvimento (BRUSEKE, 1995).

Com a necessidade de conciliar desenvolvimento econômico e preservação ambiental, duas questões, antes tratadas separadamente, levaram à formação do conceito de desenvolvimento sustentável. A consciência de que é necessário tra-tar com racionalidade os recursos naturais, uma vez que eles podem se esgotar, mobiliza a sociedade no sentido de se organizar para que o desenvolvimento econômico não seja predatório, mas, sim, “sustentável”. Tal aspecto é lembrado por Leff (2001), ao afirmar que “a questão ambiental não é ideologicamente neutra nem distante dos problemas sociais e interesses econômicos”.

A noção de sustentabilidade implica uma necessária inter-relação entre justiça social, qualidade de vida equilíbrio ambiental e a necessidade de desenvolvimento com capacidade de suporte. Sachs considera a abordagem da sustentabilidade fundamentada na harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos, primeiro chamada de ecodesenvolvimento, e, depois, de desenvolvimento sustentável, afir-mando que essa abordagem não se alterou substancialmente nos vinte anos que separam as conferências de Estocolmo e a do Rio.

Acredita-se que permanece válida a abordagem da sustentabilidade, na reco-mendação de objetivos específicos para tratar de questões como: social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômica, política nacional e política interna-cional.

No que se refere às dimensões ecológicas e ambientais, os objetivos de sustenta-bilidade formam um tripé: 1) preservação do potencial da natureza para a produção de recursos renováveis; 2) limitação do uso de recursos não renováveis; 3) respeito e realce para a capacidade de autodepuração dos ecossistemas naturais.

A atual retórica sobre o desenvolvimento sustentável oscila entre esta sinis-tra visão de futuro, delineada por Roegen, e a confiante crença de que surgirão os novos mercados e inovações tecnológicas capazes de evitar ou contornar as catástrofes ambientais. Além de já ter surgido a distinção entre sustentabilidade forte e fraca, surgiu um debate sobre o caráter objetivo e subjetivo do conceito de sustentabilidade. Também pode ser necessário ir além da sustentabilidade, para que seja possível abordar a desordem existente no relacionamento humano.

É nas fraquezas, impressões e ambivalências da noção de sustentabilidade que se encontram as razões de sua força e aceitação quase total. A força da noção de susten-

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tabilidade está em delimitar um campo bastante amplo em que se dá a luta política sobre o sentido que deveria ter o meio ambiente no mundo contemporâneo.

Para Nobre e Amazonas apud Veiga (2005), a sustentabilidade é o carro che-fe desse processo de institucionalização que insere o meio ambiente na agenda política internacional, além de fazer com que essa dimensão passe a permear a formulação e implantação de políticas públicas, em todos os níveis, nos Estados Internacionais e nos órgãos multilaterais e de caráter supranacional.

Por evocar uma espécie de ética de perpetuação da humanidade e da vida, a expressão sustentabilidade passou a exprimir a necessidade de um uso mais responsável dos recursos ambientais, o que pode ser complicado para qualquer corrente de pensamento, que se fundamente no utilitarismo, individualismo e equilíbrio, como é no caso da economia neoclássica, isto é, uma racionalidade da maximização das utilidades individuais com a resultante determinação do uso ótimo ou eficiente dos recursos em equilíbrio.

Amartya Sen observa que, além das necessidades das atuais e futuras gerações, as pessoas também têm valores, capacidade de pensar, agir, avaliar, e participar. Elas são agentes, cuja liberdade de decidir qual o valor atribuído às coisas e de que maneira preservar estes valores podem se estender muito além do atendimento de suas necessidades.

É preciso perguntar se as prioridades ambientais não podem ser encaradas em termos da sustentação das liberdades humanas. No contexto ecológico, basta con-siderar um ambiente deteriorado, no qual as gerações futuras não poderão respirar ar fresco, mas no qual estas mesmas gerações sejam bem ricas e bem servidas de outros confortos, que seu padrão de vida talvez se sustente.

Mann, apud Veiga (2005), ao explicar o que entende por sustentável, lembra que o significado literal da palavra é inadequado. Para ele, o que se está procurando abarca é um tantinho de desejabilidade junto à sustentabilidade. Há um consenso sobre as aspirações da humanidade. A humanidade precisa evitar guerras, tiranias, pobreza, como a degradação desastrosa da biosfera e a destruição da diversidade biológica e ecológica. Trata-se de obter qualidade de vida para o homem e para a biosfera, que não seja conseguida principalmente a custa do futuro. Abarca a sobre-vivência de diversidade cultural humana e também dos muitos dos organismos com os quais ela divide o planeta, assim como as comunidades que eles formam.

Ignacy Sachs considera que a abordagem fundamentada na harmonização dos objetivos sociais ambientais e econômicos, primeiro chamada de eco-desenvolvi-mento e, depois, de desenvolvimento sustentável, não se alterou nos vinte anos que separam as conferências de Estocolmo e a do Rio.

Acredita que permanecem válidas oito de suas dimensões: social, cultural, eco-lógica, ambiental, territorial, econômica, política, nacional e política internacional.

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No que se refere à dimensão ecológica e ambiental, os objetivos da sustentabilidade formam um verdadeiro tripé, composto da preservação do potencial da natureza para produção de recursos renováveis, a limitação do uso de recursos não renová-veis e o respeito e realce para a capacidade de outra depuração dos ecossistemas naturais. Desta forma, serão abordadas algumas delas.

5.1 Dimensão Social

A dimensão social da sustentabilidade encontra-se ancorada no princípio da equidade, na distribuição de renda e de bens, no princípio da igualdade de direitos, dignidade humana e no princípio de solidariedade dos laços sociais.

É poder garantir que todas as pessoas tenham condições iguais de acesso a bens, serviços de boa qualidade necessários para uma vida digna. O desenvolvimento deve ser baseado em outro tipo de crescimento e orientado por outra visão do que é a boa sociedade.

O objetivo é construir uma civilização do ser, em que exista maior eqüidade na distribuição do ter e da renda, de modo a melhorar substancialmente os direitos e as condições de amplas massas de população, reduzindo a distância entre os padrões de vida de abastados e não-abastados.

Deve-se considerar a sustentabilidade em sua multidimensionalidade, abrangen-do necessidades materiais e não-materiais, como corretamente enfatiza o PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], no Relatório sobre Desenvolvimento Humano, ainda que tal ênfase não se reflita no reducionismo de seu índice de desenvolvimento humano.

5.2. Dimensão Cultural

É promover, preservar e divulgar a história, tradições e valores regionais, acompanhando suas transformações. Para se buscar essa dimensão precisamos: valorizar culturas tradicionais, divulgar a história regional e nacional, garantir a todos oportunidade de acesso à informação e ao conhecimento e investir na construção, reforme ou restauração de equipamentos culturais.

Essa dimensão está voltada para a busca das raízes endógenas dos modelos de modernização e dos sistemas rurais integrados de produção, privilegiando processos de mudança no seio da continuidade cultural e traduzindo o conceito normativo de ecodesenvolvimento, em uma pluralidade de soluções particulares que respeitem as especificidades de cada ecossistema, de cada cultura e de cada local.

A dimensão espacial está voltada a uma configuração rural-urbana mais equi-librada e a melhor distribuição territorial de assentamentos humanos e atividades econômicas, com ênfase em questões como: Concentração excessiva de pessoas

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nas áreas metropolitanas; destruição de ecossistemas frágeis, mas vitalmente im-portantes, por processos de colonização descontrolados; promoção de projetos modernos de agricultura regenerativa e agroflorestamento, operados por pequenos produtores, proporcionando para isso o acesso a pacotes técnicos adequados, ao crédito e aos mercados; ênfase no potencial para industrialização descentralizada, associada à tecnologias de nova geração. estabelecimento de uma rede de reservas naturais e de biosfera para proteger a biodiversidade.

5.3. Dimensão Política

Sensibilizar, motivar e mobilizar a participação ativa das pessoas, favorecer seu acesso às informações, permitindo maior compreensão dos problemas e oportunidades, superar as práticas e políticas de exclusão e buscar o consenso nas decisões coletivas.

O debate sobre sustentabilidade tem suas bases no movimento ambientalista, sendo que uma ampla bibliografia já vem criticando o uso conceitual do termo somente para a dimensão ambiental. Nesse caminho, Acselrad (2003) examina a discussão que tem se pautado predominantemente pelo recurso a categorizações socialmente vazias, com noções evocadas que não contemplam a diversidade social e as contradições, pautadas somente no campo técnico e descoladas da dinâmica da sociedade e das lutas sociais. Como exemplo, cita as definições do relatório Brundtland e do Banco Mundial.

A sustentabilidade política será alcançada, “com a democratização da sociedade e a democratização do Estado, a democratização de um sendo condição da do ou-tro”. Dentro de um projeto de desenvolvimento sustentável, a sociedade deve estar em condições de gerar e conduzir suas próprias políticas, valendo o exercício da cidadania como instrumento gestor. O que se observa, apesar dos esforços políticos de alguns atores, é que a sociedade parece não ter se apropriado de sua posição de agente. A questão que se coloca é como se podem constituir atores sociais que participem da gestão local na construção do desenvolvimento sustentável.

5.4. Dimensão Econômica

Essa dimensão de sustentabilidade engloba a geração de trabalho de forma digna, a possibilidade a distribuição de renda, a promoção do desenvolvimento das potencialidades locais e a diversificação de setores e atividades econômicas.

A dimensão econômica engloba estudos com ênfase nos seguintes objetivos principais: busca de crescimento sustentável com estabilidade econômica, geração de emprego e renda, ampliação do mercado de trabalho, melhoria da infra-estrutura do país, ampliação da produtividade em todos os setores, conquista de novos mercados internacionais e redução da vulnerabilidade externa.

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A dimensão econômica é possibilitada por uma alocação e gestão mais eficientes dos recursos e por um fluxo regular de investimentos públicos e privados e deve ser alcançada através do gerenciamento e alocação mais eficientes dos recursos e de um fluxo constante de investimentos também públicos e privados.

Uma condição fundamental para isso é superar as atuais condições externas decorrentes de uma combinação de fatores negativos,como o ônus do serviço da dívida e do fluxo líquido de recursos financeiros do Sul para o Norte, as relações adversas de troca, as barreiras protecionistas ainda existentes nos países industria-lizados, e, finalmente, as limitações do acesso à ciência e à tecnologia.

A eficiência econômica deve ser avaliada por meio de critérios de lucratividade microempresarial, nem sempre equânimes.

5.5 Dimensão Ambiental e Ecológica

A sustentabilidade ambiental é baseada no duplo imperativo ético de solida-riedade sincrônica da geração atual com as gerações futuras e para que isso possa ocorrer, existe a necessidade latente de discutir a conscientização ambiental. À sustentabilidade ambiental compele a trabalhar com escalas múltiplas de tempo e espaço, a que desarruma a caixa de ferramentas do economista convencional. Ele impele ainda a buscar soluções triplamente vencedoras, eliminando o crescimen-to selvagem obtido ao custo de elevadas externalidades negativas, tanto sociais quanto ambientais.

Para buscar a sustentabilidade ambiental devemos: compreender e respeitar as dinâmicas do meio ambiente, entender que o ser humano é apenas uma das partes deste ambiente e melhorar e controlar o uso dos recursos naturais, respeitando sua capacidade de renovação.

A dimensão ecológica está ancorada no princípio da solidariedade com o planeta e suas riquezas e com a biosfera que o envolve. Decorre da dimensão ambiental.

6 Considerações finaisO homem enquanto sujeito promove suas escolhas na perspectiva da cons-

trução do pensamento, considerando a convivência com novos valores, culturas e saberes, baseados em princípios éticos, conformando o conhecimento baseado na prática da constante “re-flexão” do conhecimento.

Ou seja, quando o homem procura compensar a sua “falta de ser” pelo co-nhecimento, procura idéias ordenadoras e absolutas sobre si mesmo e sobre a natureza, o que faz uma obstrução de sua capacidade de escolher e respeitar a diversidade. Parece que, a princípio, as políticas públicas devem ser redirecionadas

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no sentido de respeito às dimensões, postas hoje em termos de sustentabilidade, e às diferenças, obedecendo a complexidade ambiental.

Para Ignacy Sachs (2004), a renúncia à idéia de desenvolvimento deve-se ao fato de ter funcionado como armadilha ideológica inventada para perpetrar as assimétricas relações entre as minorias dominantes e as maiorias dominadas, nos países e entre eles. Esta corrente se propõe a passar a um estágio de pós-desenvolvimento, sem explicar o concreto conteúdo operacional. Estão certos em desafiar a possibilidade de crescimento indefinido do produto material, tendo em vista a finitude do planeta, o que não resolve o problema do desemprego e da desigualdade e de outros tantos.

É preciso, além da disposição de recursos, um projeto social que priorize a efetiva melhoria das condições de vida da população, considerando as dimensões da sustentabilidade. O crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento, onde o principal problema ecológico que se coloca à humanidade é o da relação entre qualidade de vida de uma geração a outra, e particularmente o da repartição do dote da humanidade entre outras gerações.

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Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da

Constituição Federal de 198888

Elisa Cerioli Del´Olmo89

88 Artigo adaptado do Trabalho de Conclusão de Curso, cujo orientador foi o Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet, apre-sentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado, com grau máximo, em novembro de 2007.

89 Bacharel em Direito pela Pontifícia da Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre (2007). Ex-bolsista do Baden-Württemberg-Stipendium e do DAAD. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq – Tutela dos Direitos e sua Efetividade, sob a coordenação do Prof. Dr. Florisbal de Souza Del´Olmo.

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ResumoAtualmente, o meio ambiente é relacionado com o desequilíbrio ecológico. Neste sentido, pretendemos questionar os instrumentos que vêm sendo implementados e usados pelo Estado a fim de alcançar a prerrogativa constitucional do art. 225. Entre esses instrumentos está o acesso à livre informação ambiental de todos os entes sociais, seja Estado, indústrias, entidades ambientalistas ou população civil. Pretendemos demonstrar que a informação é condição ine-rente para concretizar o objetivo constitucional de preservação do meio ambiente. Assim, o objetivo deste artigo é ressaltar a importância do direito e do dever da informação ambiental, sob o prisma do direito constitucional e da teoria dos direitos e dos deveres fundamentais, como instrumento essencial para proteger os bens naturais e lutar por um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Palavras-chave: Informação ambiental. O di-reito a informação.

AbstractCurrently, the environment is related to the ecological imbalance. Accordingly, we intend to question the instruments that are being imple-mented and used by the State to achieve the constitutional prerogative of art. 225. Among them, it is the access to free environmental edu-cation in all social areas, whether government, industry, environmentalists or private entities. We intent to demonstrate that information is an essential condition to achieve the goal of consti-tutional protection of the environment.

The goal of this article is to emphasize the importance of the right to environmental information, through the view of constitutional law and the theory of fundamental rights and duties as essential tool to protect the natural assets and strive for an ecologically balanced environment.

Keywords: Environmental education. The ri-ght of information.

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1 A problemática ambiental na sociedade contemporânea

O século XXI começou turbulento sob o ponto de vista ambiental: a intensa e descontrolada depredação ocorrida nas últimas décadas causou inúmeros da-nos, talvez irreversíveis, como o buraco na camada de ozônio, o efeito estufa, a desertificação de extensas áreas e o desmatamento de florestas e matas nativas. O capitalismo desenfreado, a ganância de sempre querer mais com o menor custo, a falta de controle e de instrumentos de fiscalização e os passos ainda lentos em que avança a implementação das leis ambientais são elementos que mostram o longo caminho a ser percorrido pelo homem para que encontre harmonia com o ambiente em que vive90.

Entretanto, pode-se afirmar que, em meados do século XVIII, a partir da Pri-meira Revolução Industrial, a exploração dos recursos naturais pela atividade hu-mana passou a ter conseqüências funestas, fragilizando o planeta ambientalmente. Nesse período, houve grandes avanços tecnológicos que mudaram drasticamente o modo de vida das pessoas: a indústria se expandiu, o carvão e a máquina a vapor forneceram combustível e energia para a produção em larga escala91.

Michael Kloepfer complementa que a poluição ambiental existe há muito tempo (desde catástrofes ambientais, como a alteração da área do Mediterrâneo, causadas pelo desmatamento desmedido iniciado na Antigüidade), mas somente no século XX houve uma grande explosão no crescimento populacional com um quase irrestrito avanço técnico, intenso crescimento econômico com as emergentes necessidades de consumo, bem como a crescente aglomeração espacial (urbani-zação) da população, que trouxeram consigo uma intensa poluição ambiental, implicando em enorme risco aos recursos naturais vitais do homem92.

A partir da segunda metade do século passado, não era mais possível ignorar o novo estado em que a humanidade se colocou. A preservação da natureza e a busca de um meio ambiente ecologicamente equilibrado passaram a receber atenção de governos, consistindo em objeto de discussões legislativas. Além disso, grupos ambientais, pesquisadores, imprensa e emergentes organizações não-govenamentais tiveram um papel essencial na introdução do tema ecológico. Enfim, foi uma época marcada pelo aumento da conscientização ambiental na população93.

90 Neste sentido: MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 23-25.

91 ASHTON, T. S.. A Revolução Industrial: 1760-1830. 4. ed. Lisboa: Europa-América, 1977, p. 42. Nesse sentido também: BARRAL, Welber; FERREIRA, Gustavo Assed. Direito Ambiental e Desenvolvimento. In: BARRAL, Welber; PI-MENTEL, Luiz Otávio (Orgs.). Direito Ambiental e Desenvolvimento. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 14-15.

92 KLOEPFER, Michael; unter Mitarb. von BRANDNER, Thilo. Umweltrecht. München: C.H. Beck´sche Verlagsbu-chhandlung, 1998.

93 Nesse sentido: MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 30.

Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da Constituição Federal de 1988 – 107

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Diante desse quadro, Canotilho sabiamente afirma que uma das qualidades do Estado de direito democrático-constitucional seria a de ser também um Estado ambiental (juntamente com o Estado de direito, o Estado constitucional, o Estado democrático e o Estado social). Perante a incapacidade das instituições e do Direito de evitar a degradação ambiental, ele discorre sobre a necessidade de a teoria da constituição compreender os novos conceitos da teoria social, incluindo o risco, a fim de que englobe as experiências das sociedades altamente industrializadas94.

Aliás, Morato Leite, Pilati e Jamundá95 argumentam sobre a sociedade de risco, que surgiu após o período industrial, representando a conscientização do esgotamento do modelo de produção, em que, devido ao crescimento econômi-co permanente, sem a adequação dos mecanismos jurídicos a fim de solucionar os problemas, pode vir a sofrer, a qualquer momento, as conseqüências de uma catástrofe ambiental. Apesar da conscientização desse quadro pelo governo, não são desenvolvidas políticas de gestão, o que os autores denominam irresponsa-bilidade organizada.

Vivemos um momento de crise ambiental, decorrente da sociedade de risco, seja do processo civilizatório moderno e das práticas utilizadas pelo homem. Não se trata, entretanto, de uma crise somente do ponto de vista físico, biológico e químico do meio ambiente, mas sim, uma crise da civilização contemporânea: crise de valores, cultural e espiritual96.

Diante disso, o Estado moderno deve criar mecanismos e implementar a defesa dos recursos naturais, especialmente os não-renováveis, intervindo na economia e limitando o exercício das atividades humanas em prol do bem-estar coletivo. Isso é responsabilidade de todos os Estados, não consistindo em uma faculdade, mas em um dever97.

A partir do final do século XIX, inúmeros tratados, convenções, congressos, pesquisas e movimentos de conotação ambiental tiveram lugar em importantes centros do mundo industrializado, com o objetivo de discutir questões relativas ao meio ambiente, como a preservação da flora e da fauna, a diminuição do impacto ambiental, enfim, as precauções a serem tomadas visando ao bem-estar das gerações vindouras. Esse processo contínuo e longo pode-se chamar de internacionalização da idéia de proteção ambiental, movida pela vontade de defender e proteger os bens

94 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1354-1355.

95 LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso; JAMUNDÁ, Woldemar. Estado de Direito Ambiental no Brasil. In: KISHI, Sandra Akemi Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (Orgs.). Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 611-612.

96 NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. O Estado Ambiental de Direito. Revista de Informação Legislativa, v. 14, no 163, jul/set 2004, p. 296-297.

97 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado como Direito Fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 31.

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ambientais, sugerindo deveres aos Estados como meio de atingir esse ideal98. Fica demonstrado que esse tema, que até então não havia alcançado maiores dimensões, passou a consistir numa preocupação constante dos governantes.

Dentre tantas manifestações, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo em 1972, resultou a Convenção de Estocolmo, com seus 26 princípios e 109 resoluções, que constituem um prolongamento da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Essa Convenção consiste na base da política ambiental internacional, sendo de extrema importância, pois a partir dela se estabeleceu que é obrigação de qualquer governo e preocupação primordial do mundo a proteção e melhora do meio ambiente99. São necessários muito mais que esforços isolados para conter a depredação da natureza: é preciso um esforço constante e global. Anizio Gavião Filho100 salienta que foi nesse momento pela primeira vez foi proclamado o “direito humano ao meio ambiente”, o que viria a alicerçar o direito fundamental ao ambiente.

De acordo com José Afonso da Silva, abriu-se então o caminho para que as Constituições posteriores reconhecessem o meio ambiente ecologicamente equi-librado como um direito fundamental do homem, pois somente através da tutela do meio ambiente se assegurará a qualidade de vida. Os princípios estabelecidos pela Declaração de Estocolmo influenciaram os constituintes na elaboração do capítulo sobre o meio ambiente da Constituição Brasileira de 1988101.

Duas décadas após Estocolmo, foi realizada a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como Eco 92 ou Cúpula da Terra. O Rio de Janeiro foi escolhido para ser a sede desse evento sem precedentes, seguramente um dos mais importantes do ambientalismo internacional, com a participação de 178 países, 108 chefes de Estado, 2400 ONGs, cientistas e diplomatas. Buscavam-se meios de conciliar o desenvolvimento sócio-econômico e industrial com a conservação e proteção dos ecossistemas da Terra. Como resultado de onze dias de discussões, debates e tratativas foram estabelecidas a Agenda 21 e a Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente, além da Declaração dos Princípios da Floresta, a Convenção sobre Mudanças Climáticas e a Convenção sobre a Diver-sidade Biológica. A Eco 92 influenciou as conferências subseqüentes e legislações de diversos países. A partir dela, passou-se a questionar de maneira mais intensa os efeitos colaterais do desenvolvimento econômico descontrolado, tendo em vista a poluição do planeta e o exaurimento dos recursos naturais não-renováveis.

98 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado como Direito Fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 27.

99 KLOEPFER, Michael; unter Mitarb. von BRANDNER, Thilo. Umweltrecht. München: C.H. Beck´sche Verlagsbuch-handlung, 1998. p. 582.

100 GAVIÃO FILHO, Anizio Pires. Direito Fundamental ao Ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 22.101 SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2002.

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Menos conhecida, porém de grande importância, principalmente para o objeto do presente estudo, a Convenção sobre o Acesso à Informação, a Participação do Público no Processo Decisório e o Acesso à Justiça em Matéria de Meio Ambien-te, também conhecida como Convenção de Aarhus (Dinamarca), preparada pelo Comitê de Políticas de Meio Ambiente da Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas, foi realizada de 23 a 25 de junho de 1998, entrando em vigor em 30 de outubro de 2001. A União Européia, juntamente com 35 países, assi-nou o documento, com 22 artigos e 2 anexos, cujo fundamento consiste em que toda pessoa tem o direito de viver em um ambiente adequado para a sua saúde e bem-estar, permanecendo o dever, individual e coletivo, de preservação do meio ambiente para benefício da presente e das futuras gerações.

Em seu art. 1º, afirma que “para contribuir para a proteção do direito de qualquer pessoa das presentes e futuras gerações a viver num ambiente adequado para o seu bem-estar, deverá ser garantido o seu direito de acesso à informação, à participa-ção pública em processos decisórios e à justiça em matéria de meio ambiente”102. Trata-se de um direito humano e fundamental e, apesar de ser de caráter regional, serve de exemplo para muitos países, como base para adoção de normas em várias localidades103, tendo sido recepcionado no direito interno de vários países.

Conforme Bratrschovsky104, a convenção apresenta um modelo com três pilares (drei-Säulen-Modell): a) o primeiro pilar garante a todos o acesso às informações ambientais (art. 4-5); b) o segundo assegura a participação do público em pro-cessos decisórios (art. 6-8); c) o terceiro garante o acesso à inspeção judicial ou outras que dizem respeito às questões ambientais (art. 9). O acesso à informação pode ser dividido em duas partes, seja a passiva, em que reconhece o direito da população de requisitar informações às autoridades públicas, e a parte ativa, que se caracteriza por ser a obrigação das autoridades de juntar informações e deixá-las disponíveis à população, mesmo se não foram requisitadas.

Fernanda Medeiros105 esclarece que a universalização da consciência ecológica levou a um processo de positivação nas constituições de normas atinentes à pro-teção ambiental, sem desfazer, contudo, o valor das normas infraconstitucionais, tendo em vista que são elas que sustentam e mantêm os princípios relativos à proteção do ambiente na Carta Magna.

102 CONVENTION on Access to Information, Public Participation in Decision-making and Access to Justice in Environmental Matters, Aahrus, 25 jul 1998. Disponível em: <http://www.unece.org/env/pp/documents/cep43e.pdf>. Acesso em: 15 de jul. 2007.

103 FURRIELA, Rachel Biderman. A Lei Brasileira sobre Acesso à Informação Ambiental como Ferramenta para a Gestão Democrática do Meio Ambiente. Revista Brasileira de Direito Constitucional, no 3, jan/jun 2004, p. 286.

104 BRATRSCHOSKY Katja. Wissen ist Macht – Auch im Umweltschutz – Zugang zu Umweltinformationen in Europa. In: EISENBERGER, Iris et al. (Orgs.). Festschrift für Bernd-Christian Funk zum 60. Geburstag. Wien: Springer Verlag, 2003, p. 8.

105 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 48-49.

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A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, coerente com o seu caráter participativo e democrático, seguindo forte impulso internacional, versou pela primeira vez diretamente sobre o tema e transformou o tratamento jurídico dado ao meio ambiente até então, reconhecendo-o como bem jurídico autônomo. Sua importância valeu um capítulo inteiro (Capítulo VI – Do Meio Ambiente no Título VIII – Da Ordem Social) e, no que tange a matéria ambiental, a nossa Carta Magna é considerada uma das mais avançadas e inovadoras. Ademais, há dispositivos esparsos ao longo da Carta que dispõem, direta ou indiretamente, sobre a tutela do meio ambiente106.

Entre eles, o inc. LXXIII do art. 5º da Constituição proclama que qualquer cidadão é parte legítima para impetrar ação popular destinada a anular ato lesivo ao ambiente; o inc. III do art. 129 permite ao Ministério Público promover ação civil pública para a proteção do ambiente; e o art. 225, mais importante dispositivo da constitucionalização do ambiente, afirma que todos têm direito ao ambiente ecologicamente equilibrado107.

No âmbito infraconstitucional brasileiro, as primeiras normas a tutelarem o meio ambiente são da década de 30 do século passado, mas ganharam impulso somente na década de 60 e se consolidaram nas de 80 e 90. Inúmeras leis se re-ferem à informação em determinada matéria ambiental, mesmo que brevemente. Entre as mais notáveis estão: Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – Lei no 6.938/1981 (cria o Sistema Nacional de Meio Ambiente/SISNAMA, o Conselho Nacional do Meio Ambiente/CONAMA e determina instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente), Lei da Ação Civil Pública – Lei no 7.347/1985 (instrumento de tutela de bens jurídicos ambientais), Lei dos Agrotóxicos – Lei no 7.802/1989 (determina a publicidade), entre outros.

2 Ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental e como dimensão da

dignidade da pessoa humanaHá praticamente um consenso no que diz respeito ao reconhecimento de que o

direito a um ambiente ecologicamente equilibrado está diretamente relacionado ao direito à vida, o direito base de todos os demais, já que é essencial para se desfrutar de uma vida digna, sadia e com qualidade. Nesse sentido, dentre tantos, adotam

106 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 62-63. Entre os dispositivos esparsos no decorrer da carta, referem-se implicitamente ao meio ambiente: art. 43, §§ 2°, inc. IV, e 3°; 40, incs. XIV e XVI; 91, § 1°, inc. III; 129, inc. III: 170, incs. II, III e VI; 174, §§ 3° e 4°. Ainda, referem-se explicitamente: art. 5°, inc. LXXIII (ação popular que visa anular ato lesivo ao meio ambiente); art. 91, § 1°, inc. III (atribui ao Conselho de Defesa Nacional opinar sobre o efetivo uso das áreas indis-pensáveis à segurança do território nacional).

107 GAVIÃO FILHO, Anizio Pires. Direito Fundamental ao Ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 23 e 24.

Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da Constituição Federal de 1988 – 111

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esse entendimento Orci Teixeira, Fernanda Medeiros e José Afonso da Silva108. Por essa razão, um ambiente ecologicamente equilibrado é considerado um direito fundamental, pois esse direito e o direito à vida são pressupostos recíprocos, um depende do outro. Confirma essa assertiva o fato de parte substancial das Cons-tituições modernas preverem esse direito, como abordado no item anterior.

Nesse aspecto, cabe breve explanação sobre a evolução dos direitos funda-mentais e suas gerações. A primeira dimensão dos direitos surgiu como expressão do individualismo liberal do século XVIII que predominava em uma época em que se lutava por uma prestação negativa do Estado, ou seja, buscava-se antes uma abstenção do Poder Público do que uma intervenção. Correspondem aos direitos de liberdade (liberté), sejam os direitos civis e políticos, os primeiros a serem consolidados e presentes em qualquer Constituição da atualidade digna de ser assim chamada. O titular desses direitos é o indivíduo e são oponíveis perante o poder Estado109, embora, segundo entendimento hoje predominante, também gere efeitos nas relações privadas.

Os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos, ligados prevalentemente ao princípio da igualdade (égalité) na sua dimensão material e proveniente da ideologia antiliberal do século XX, dominando as Constituições após a Segunda Guerra. Esses direitos exigem uma prestação do Estado, que deve oferecer aos cidadãos educação, assistência social, trabalho, saúde, enfim, preencher as necessidades básicas para o bem-estar social. Para tanto, são necessários recursos suficientes, de que muitos Estados carecem, inviabilizando a sua efetivação plena. De qualquer forma, Paulo Bonavides afirma que esses direitos, ao contrário dos de primeira dimensão, possuem aplicabilidade mediata, por meio do legislador110.

Já os direitos de terceira dimensão se assentam na solidariedade, cristalizando-se no final do século XX. São os direitos considerados difusos, emergidos da reflexão sobre questões como o desenvolvimento, a paz, o meio ambiente, a comunica-ção e o patrimônio comum da humanidade, tendo como destinatário o gênero humano. O cidadão é ao mesmo tempo titular desses direitos, bem como tem o dever, em comum esforço com o Estado, de defendê-los com os instrumentos que dispuser.

Nesse sentido, vislumbra-se que o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de terceira dimensão, diferenciando-se de um direito me-

108 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado como Direito Fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 67; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 109, 113; SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 58.

109 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 562-564.110 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2004, p. 71-73; BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 565.

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ramente individual ou social, mas sim, difuso, de todos. Não é apenas um dever jurídico do Estado proteger o meio ambiente, mas um dever de cada pessoa, pois todos são titulares, bem como todos são os beneficiários.

Há, ainda, quem sustente a existência de uma quarta dimensão de direitos fundamentais, que surgiu sob a influência do neoliberalismo e da globalização econômica. Paulo Bonavides111 sintetiza-os afirmando que consistem em direitos que concretizam uma sociedade “aberta ao futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de convivência”. Nesse rol inclui-se o direito à informação ambiental, bem como o direito à democracia (direta), à informação e ao pluralismo.

Enfatizando a dificuldade em conceituar a dignidade da pessoa humana, Ingo Sarlet112 afirma que a definição, comumente feita de que a dignidade consiste no valor próprio inerente ao ser humano que o identifica como tal, não contribui para a sua melhor compreensão no âmbito jurídico-normativo. Nessa perspectiva, o autor traça dimensões da dignidade da pessoa humana, abordando a complexidade da própria pessoa e do meio no qual desenvolve sua personalidade. Esse autor comenta sobre sua dimensão ontológica, em que a dignidade constitui elemento irrenunciável, inalienável e intrínseco do ser humano, e dele não pode ser desta-cada, independendo das situações concretas, já que o denominador comum dos homens habita no fato de serem todos dotados de razão e consciência, expressos na sua igualdade. No entanto, a dignidade também possui um sentido cultural, fruto de diversas gerações e da evolução da humanidade, lembrando que o Estado deve observar os direitos e deveres fundamentais, bem como princípios (como igualdade, liberdade, integridade física e moral e solidariedade), garantindo as condições mínimas para uma existência digna.

Atualmente, já se fala, além da dignidade do homem, na dignidade do seres vivos. Nesse sentido, Klaus Bosselmann113 relaciona a dignidade do homem à da natureza. Segundo o autor, a dignidade do homem e a dignidade da natureza não são iguais. Essa última também não vai suprimir do homem a sua dignidade, pelo contrário, o reconhecimento da dignidade da natureza vai revalorizar a própria dignidade do homem, que assumirá um nível qualitativo mais alto. Complementa que toda dignidade do homem tem origem na dignidade da natureza.

Conforme os ensinamentos de Ingo Sarlet, tendo em vista a época em que vivemos, pode se sustentar, antes da dignidade da pessoa humana, a dignidade da própria vida de um modo geral, pois o reconhecimento da proteção do meio

111 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 16. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 570-572.112 SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da Dignidade da Pessoa Humana: contruindo uma compreensão jurídico-

constitucional necessária e possível. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da Dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 13-40.

113 BOSSELMANN, Klaus. Ökologische Grundrechte: zum Verhältnis zwischen individueller Freiheti und Natur. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1998, p. 89-90.

Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da Constituição Federal de 1988 – 113

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ambiente como valor fundamental nos mostra que se deve, além da vida humana, preservar igualmente todos os bens naturais e as formas de vida existentes no planeta, mesmo se argumentando que tal proteção é, por fim, requisito da própria vida humana com dignidade114.

Há de se reconhecer que a qualidade do meio ambiente correlaciona-se direta-mente com a dignidade da pessoa humana, já que nos dias atuais é inviável, perante o valor e o direito (formal e materialmente) constitucionalizado da necessidade de preservar os bens ambientais, pensar em uma vida digna sem um meio am-biente saudável. A fim de que a humanidade tenha uma existência e não apenas a subsistência (e quiçá nem mesmo ela), é imprescindível um ambiente saudável e propício. Sem ele, outros direitos restam prejudicados.

Ingo Sarlet115 enfatiza que o direito ao meio ambiente ecologicamente equili-brado, consagrado no caput do art. 225 da Constituição, mesmo estando localizado fora do título dos direitos fundamentais, deve ser considerado como tal, tendo como objetivo o resguardo de uma existência digna do ser humano, na sua di-mensão individual e social. O autor esclarece que, o art. 5º, § 2º, da Magna Carta estabelece um conceito materialmente aberto de direitos fundamentais, apontando para a existência de direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitucional, em tratados internacionais e, até mesmo, a possibilidade de se reco-nhecerem direitos fundamentais não escritos, implícitos nas normas do catálogo, bem como decorrentes do regime e dos princípios da constituição116.

Diante da sociedade de risco em que vivemos e o reconhecimento do direito fundamental a um ambiente ecologicamente equilibrado, surgiu, na década de 90, a noção abstrata do denominado Estado Socioambiental (ou Estado Ambiental de Direito ou Estado de Direito Ecológico117), isto é, além de ser um Estado de Direito, um Estado Democrático e um Estado Social, deve também modelar-se com um Estado Ambiental.

Conforme Carlos Molinaro, um Estado Socioambiental e Democrático de Direito se preocupa primordialmente com o direito fundamental à vida e à ma-nutenção das bases que a sustentam, o que inclui um ambiente ecologicamente equilibrado e saudável. Privilegia-se a existência de um mínimo existencial ecológi-

114 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, 34-35. No mesmo sentido: BOSSELMANN, Klaus. Ökologische Grundrechte: zum Verhältnis zwischen individueller Freiheti und Natur. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1998, p. 51.

115 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 74 e 128-129.

116 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3. ed., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Ad-vogado, 2003, p. 74.

117 BOSSELMANN, Klaus. Ökologische Grundrechte: zum Verhältnis zwischen individueller Freiheit und Natur. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1998, p. 47-53. e BOSSELMANN, Klaus. In Name der Natur: der Weg zum ökologischen Rechstsstaat, Bern: Scherz Verlag , 1992, p. 351-388.

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co, expressão material da dignidade da pessoa humana118. Consiste em um Estado social e ambiental, comprometido com a causa ambiental e com a justiça social. Para o autor, o disposto no art. 225 da Carta Constitucional não deixa dúvidas de que o nosso Estado pode assim ser caracterizado: socioambiental e democrático de direito119.

Esse Estado deve primar e ter como tarefas os valores ambientais. Conforme Orci Teixeira120 sabiamente expõe, é elemento essencial de um Estado de Direito Ambiental, sob o ponto de vista democrático, o estímulo do pleno exercício da cidadania, sobretudo no que diz respeito ao gerenciamento de recursos ambientais, no qual deverá haver também a constante participação de ONGs.

Conclui-se, portanto, que nesse modelo de Estado os valores ambientais devem ser amplamente discutidos para que a coletividade possa preservar aquilo que existe e recuperar o que foi depredado. O Estado perde parte de sua prerrogativa de controlar as políticas econômicas e o espaço econômico nacional, dando lugar a uma economia mais ampla, dirigida também por valores ambientais. Além disso, nesse novo modelo, o Poder Público tem várias funções que devem ter papel prioritário: promover a educação ambiental, criar espaços de proteção ambiental, executar o planejamento ambiental e, principalmente, defender e proteger o meio ambiente. Para tanto, a democracia e a cidadania participativa que visam à justiça ambiental são elementos que orientam a reforma do Estado, pois a sociedade deve contribuir com o Poder Público.

4 A informação ambiental como dever do estado e do cidadão

O tema dos deveres fundamentais, conforme salienta José Nabais121, é pouco lembrado pelos doutrinadores, faceta do escassso desenvolvimento teórico das situações jurídicas passivas. Eles são uma exigência estrutural de qualquer consti-tuição, pois as normas relativas a eles constituem a legitimação para a intervenção dos poderes públicos em determinadas relações sociais e no âmbito da autonomia pessoal dos cidadãos, essencial para a determinação dos objetivos decorrentes de

118 MOLINARO, Carlos Alberto. Racionalidade Ecológica e Estado Socioambiental e Democrático de Direito. 2006. 198 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2006, p. 102.

119 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito Ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 103.

120 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado como Direito Fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 105-109.

121 NABAIS, José Cassalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreensão constitucional de estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina 1998, p. 15-19.

Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da Constituição Federal de 1988 – 115

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um estado social122. Constituem-se em posições jurídicas passivas, autônomas, subjetivas, individuais, universais e permanentes e essenciais123.

De fato, tornou-se necessário positivar os direitos fundamentais do homem após períodos de forte totalitarismo, arbítrio e opressão, em que o legislador pro-curou afirmar os valores pessoais contra o poder e as suas constantes ameaças, editando Constituições de liberdade. Nesse contexto jurídico-político-social, não era simpático abordar a questão dos deveres fundamentais124.

No entanto, conforme Vieira de Andrade125, a concepção dos direitos funda-mentais como poderes individuais contra o Estado não é suficiente e adequada para exprimir juridicamente as relações entre os cidadãos e os poderes públicos, já que aos indivíduos cabem, além de direitos, também deveres. Ambos promo-vem a defesa da democracia e a participação dos cidadãos na vida pública, da mesma maneira que buscam um empenho solidário de todos na transformação das estruturas sociais.

Na perspectiva apresentada por José Nabais126, os deveres fundamentais, a fim de serem adequadamente compreendidos, devem ser estudados como uma categoria jurídica própria, tratando-se de deveres jurídicos e não a soma de meros pressupostos éticos ou morais, o que não anula a assertiva de que, antes mesmo de deveres jurídico-constitucionais integrados ao direito, eles já consistiam em deveres morais. É uma categoria constitucional que deve ser colocada ao lado dos direitos fundamentais. Em um estado de direito, em que se prima a pessoa humana (indivíduo) face à comunidade, os deveres fundamentais gravitam forço-samente em torno dos direitos fundamentais, consistindo em um vetor do estatuto constitucional do indivíduo, que foi erguido com base na posição fundamental da pessoa na sociedade organizada em estado. Os deveres fundamentais podem ser definidos como deveres jurídicos do homem e do cidadão que, por determinarem a posição fundamental do mesmo, têm relevante significado para a comunidade

122 Época de reação contra o nacional-socialismo, em que a Constituição tinha primoridialmente um caráter provisório e se regressou ao entendimento das declarações revolucionárias de direito do homem e do cidadão que conheciam tão somente os deveres fundamentais ligados aos direitos que acompanharam o home na sua passagem do estão de natureza para o estado civil.

123 Explana-se de acordo com MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 95-96. Situações jurídicas passivas: expressa a dependência dos indivíduos em relação ao estado e à comunidade. Posições jurídicas autônomas: categorias próprias. Posições jurídicas subjetivas: imputadas ao indivíduo. Posições jurídicas individuais: incluindo pessoas coletivas e organizações como tutulares e destinatários dos deveres. Posições universais e permanentes: regidos pelo princípio da generalidade. Posições jurídicas permanentes: irrenunciá-veis por parte do legislador. Posições essenciais: vinculados à existência, subsistência e funcionamento da comunidade.

124 Nesse sentido: MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 93-94; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Por-tuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 162; NABAIS, José Cassalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreensão constitucional de estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina 1998, p. 15-16.

125 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 155.

126 NABAIS, José Cassalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreensão constitucional de estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina 1998, p. 35-36.

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e por ela podem ser exigidos. Eles traduzem a mobilização do homem para a realização dos objetivos do bem comum127.

No mesmo sentido, Canotilho128 salienta que se deve afastar a perspectiva de que o titular de um direito fundamental corresponderia a um dever por parte de um outro titular, ou seja, pressupondo que o particular está vinculado aos direitos fundamentais como destinatário de um dever fundamental. Os deveres fundamen-tais são uma categoria autônoma, mesmo com a existência de deveres conexos com direitos fundamentais. O autor ainda comenta a estrutura dos deveres, em que só excepcionalmente são diretamente exigíveis, necessitando, na generalidade, de uma interposição legislativa, necessária para a criação de esquemas organizatórios, pro-cedimentais e processuais que definam e regulem o cumprimento dos deveres.

De acordo com o sábio ensinamento de Vieira de Andrade129, a imagem antropológica de uma pessoa não se compreende sem deveres, sua capacidade para ser titular de deveres corresponde à própria natureza humana. Da mesma forma, a vida jurídica não seria possível sem a imposição de deveres individuais, intimamente associados à interdependência social. Esses deveres não precisam estar necessariamente formalizados, eles podem decorrer da aceitação de todos os homens, pelo fato de consistirem em um conjunto de princípios axiológicos e deontológicos que regem as suas relações com o próximo e com a sociedade em que vivem. Complementa que na Constituição Portuguesa (à semelhança com a nossa), há previsão de deveres fundamentais em conexão com direitos fundamen-tais (inclusive o dever de defesa do ambiente).

José Nabais130 comenta que historicamente, na medida em que os direitos fun-damentais deixam de ser apenas os clássicos direitos de liberdade, mas também o direito à participação política, às prestações sociais e aos direitos ecológicos (que o autor chama de camada ou geração ecológica), passando a exprimir, além de direitos (que são) uma exigência do indivíduo face ao Estado, alargando e densi-ficando a esfera jurídica fundamental do cidadão e limitando-a por deveres que estão àqueles associados. O autor os chama de direitos boomerang (ou com efeito boomerang), já que são direitos e deveres para o respectivo titular ativo, que se voltam contra os próprios titulares131.

127 NABAIS, José Cassalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreensão constitucional de estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina 1998, p. 36-37 e 64.

128 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. reeimp.. Coimbra: Almedina, 2003, p. 479.

129 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 162-163.

130 NABAIS, José Cassalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreensão constitucional de estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina 1998, p. 49-50.

131 Conforme Nabais, associados aos direitos ecológicos estão os deveres de defesa do ambiente e de preservação e a defesa e valorização do patrimônio cultural. Em: NABAIS, José Cassalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreensão constitucional de estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina 1998, p. 51-53.

Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da Constituição Federal de 1988 – 117

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De forma semelhante, Vieira de Andrade132 distingue os deveres fundamentais autônomos, aqueles impostos pela Constituição independentemente de qualquer direito ou provenientes de normas materialmente constitucionais, e os associados a direitos fundamentais133. Como exemplo dos primeiros, o autor cita (tendo como parâmetro a Constituição Portuguesa de 1976) os deveres de respeitar os direitos dos outros e de obedecer atos legítimos dos poderes públicos, o dever do não uso da força privada, da defesa da Pátria, entre outros. Quanto aos deveres asso-ciados com direitos fundamentais, há de se ter uma certa precaução, pois o seu reconhecimento pode, na opinião desse autor, alterar a estrututura e até mesmo o significado dos direitos, “que teriam que admitir uma mais profunda intervenção dos poderes públicos e que poderiam acabar por ser anulados ou funcionalizados”. Essa questão134 é polêmica no que diz respeito aos direitos políticos (direitos de participação) e às liberdades individuais (direitos de atuação privada), inclusive o direito à informação.

Fernanda Medeiros135 afirma que os deveres fundamentais não devem ser entendidos como limites aos direitos individuais, mas, sim, como obrigações positivas perante a comunidade e parcela inerente às ações sociais e individuais dessa mesma comunidade.

José Nabais traça considerações sobre os titulares ativos dos deveres fundamen-tais, define que todos os deveres, de certa maneira, são para com a comunidade136, diretamente ligados ao serviço da realização de valores assumidos pela coletivi-dade organizada. Nesse sentido, os destinatários seriam os indivíduos, as pessoas físicas, mas também as pessoas coletivas (abarcando organizações coletivas, que por sua vez também são, dentro de certos limites, sujeitas de deveres) e as próprias pessoas coletivas públicas137.

No nosso ordenamento, a titularidade do dever jurídico provém do próprio art. 225 da Constituição Federal, que se dirige a toda a coletividade (“todos têm direito...” e “todos têm o dever ...”), cabendo tanto ao Estado, como aos parti-

132 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 156-157.

133 CANOTILHO os chama de deveres conexos com direitos fundamentais em: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 479-480.

134 O autor esclarece que não há essa polêmica no que diz respeito ao âmbito dos direitos à proteção de bens, como a vida, a honra, a integridade física etc. No mesmo sentido, incorre com os direitos-garantia, como garantia do processo penal, e dos direitos à prestações, como os direitos à habitação ou à segurança social. Isso se dá pelo fato de que nessas hipóteses não há a atuação dos indivíduos, mas fundamentalmente a atuação dos poderes públicos.

135 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 94-95

136 O autor lembra que, no que concerne os deveres ecológicos, extravasa-se a órbita da comunidade nacional, projetando-se na comunidade internacional, como deveres para com toda a comunidade humana.

137 NABAIS, José Cassalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos: contributo para a compreensão constitucional de estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina 1998, p. 103.

118 – Parte II: Direito Ambiental Brasileiro

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cipantes da sociedade138. Particulares e Estado são sujeitos passivos e ativos do dever de defender e preservar o meio ambiente.

Nesse sentido, Carlos Molinaro139 afirma, ao estudar sobre o princípio de proibição da retrogradação ambiental, que é dever do Estado e de cada um dos cidadãos ter um comportamento pautado por uma postura ecologicamente res-ponsável. Somente dessa maneira, viabilizar-se-á o mínimo existencial ecológico, de forma que o Estado e o cidadão possuem direitos, deveres, pretensões e obri-gações inderrogáveis, presentes e futuras (solidariedade intergeracional), que, por serem indispensáveis à vida e consistirem em direito fundamental, estão na esfera de proteção do art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal.

No que tange ao meio ambiente, Vieira de Andrade140 sabiamente expõe que o direito ao meio ambiente não se limita à intervenção prestadora do Estado e à exigência do respeito por um bem individual, implicando no tipo de compor-tamento de todos os indivíduos e sendo exercido num quadro de reciprocidade e de solidariedade. O autor os denomina de direitos circulares, cujo conteúdo é definido de acordo com o interesse comum.

No contexto jurídico brasileiro, conforme o art. 225, todos têm direito a um meio ambiente saudável e equilibrado, bem como o dever de protegê-lo e conservá-lo. Fernanda Medeiros141 afirma que não consistem apenas em deveres do Estado, mas de todos os participantes da sociedade, já que cabe a cada membro da comu-nidade realizar e cumprir o ordenamento positivo que configura um dever jurídico condicionante de todos ao viver e conviver. Dessa forma, inerentes aos direitos fundamentais, estão os deveres fundamentais (e outras situações jurídicas passivas), já que o indivíduo nao é somente sujeito de direitos, mas também de deveres.

Conclui-se, diante do exposto que, para se assegurar um meio ambiente equili-brado, o cidadão, sujeito ativo e responsável pelos seus atos e conseqüências, tem o dever de preservá-lo. No que tange à proteção ambiental, a coletividade, ao lado do Estado, possui o poder e o dever de preservar e, nele, proteger o meio ambiente.

Como bem acentua José Afonso da Silva142, o art. 225 da Constituição Federal não somente impõe ao Poder Público o dever de defender e preservar o meio ambiente para as futuras gerações, como também o de tomar as providências indicadas no §1° do mesmo artigo a fim de assegurar a efetividade do direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

138 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 100-101.

139 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito Ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 98.

140 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 164.

141 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 100-101.

142 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed.. São Paulo: Malheiros, 2004, p.75.

Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da Constituição Federal de 1988 – 119

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Do mencionando artigo extrai-se a idéia de que deve haver uma atuação con-junta das organizações ambientalistas, sindicatos, indústrias, comércio, agricultura e todos os organismos sociais que devem estar comprometidos e se empenharem na defesa do meio ambiente. A fim de que esses organismos sociais conheçam e compreendam satisfatoriamente a problemática ambiental, o Estado deve ser o primeiro a dar o exemplo, possibilitando a todos o acesso às informações, de forma que, cientes da crise ecológica e das necessidades imperativas do meio ambiente, possam participar e contribuir na prevenção e preservação ambiental.

Como se observa no decorrer do presente trabalho, sem uma política efetiva para tornar as informações de cunho ambiental ao alcance de todos, não será possível assegurar a defesa e a preservação ambiental mínima para garantir uma saudável qualidade de vida. Informar as pessoas é uma prerrogativa que maximizará a preservação do meio ambiente também por parte dos cidadãos.

Depreende-se, portanto, que é dever do Estado possibilitar o acesso da popu-lação a informações ambientais, publicando as notícias de maior relevância pública ambiental, cujas conseqüências são mais notáveis e sentidas pela população, bem como fornecendo dados específicos de situações que afetam somente uma minoria de pessoas. De qualquer sorte, é interesse da coletividade que essas informações sejam fornecidas, pois afetam direito difuso de terceira dimensão, ou seja, o direito ao meio ambiente saudável. Somente quando estiverem informados, os cidadãos poderão controlar e fiscalizar os atos da Administração Pública, bem como par-ticipar ativamente nas decisões. Esse dever não é exclusivo do Estado, cabendo também à sociedade, na medida em que é seu dever proteger a natureza, o dever de informação nas situações cabíveis.

Certamente nosso país já vem tomando algumas atitudes no sentido de infor-mar a população com o auxílio dos meios de comunicação de massa, projetos em escolas, incentivos, entre outros. No entanto, ainda se torna necessária a imple-mentação de inúmeros outros mecanismos e instrumentos para alcançar um nível adequado de dados e informações à disposição de todos, independentemente da classe social ou do lugar onde residam, possibilitando, dessa maneira, assegurar uma preservação e prevenção ambiental mais abrangente, só possível em uma sociedade informada e organizada.

Deve-se lembrar, no entanto, que a informação ambiental é pública devido a sua natureza, por ser interesse público ou social e não pelo fato de estar na posse do Poder Público. Dessa maneira, mesmo que esses dados estejam em poder de pessoas ou empresas privadas, eles não perdem seu caráter público, de interesse da coletividade. O Poder Público, ao mesmo tempo em que deve fornecer essas informações, pode também solicitá-las ou exigi-las quando em posse de outro organismo143.

143 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito à Informação e Meio Ambiente. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 104-105.

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Somente quando bem informada, poderá a sociedade utilizar-se dos instru-mentos oferecidos pelo Estado para, conjuntamente, defender os interesses ambientais e, consequentemente, os seus próprios interesses, dada a natureza do bem jurídico protegido. Apenas a título exemplificativo (pois não é intuito do presente trabalho dissertar sobre os meios processuais de proteção ambiental), conforme os ensinamentos de José Afonso da Silva144, o cidadão (ou o Ministério Público, dependendo do caso) pode reivindicar suas pretensões através de ação penal (apurando-se responsabilidade da prática de um crime ambiental, por exem-plo), procedimento civil ordinário (para julgar a responsabilidade civil de danos ambientais), ação civil pública145 (instrumento processual adequando para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente), ação popular146 (art. 5°, LXXIII, da CF/88, visa a anular ato lesivo ao meio ambiente), mandado de segurança coletivo (art. 5°, LXX, da CF/88), tutela cautelar (por meio de ação ou medida cautelar) e execução específica e mandamento cominatório (quando obrigação de fazer ou não-fazer determinada por ação civil pública não for cumprida).

Enfatiza-se que, por meio desses instrumentos, se pode realizar o direito fundamental ao meio ambiente. Anizio Gavião Filho147 lembra, ainda, que são caminhos hábeis para proteger o direito fundamental ao ambiente a ação direta de inconstitucionalidade, a ação de inconstitucionalidade por omissão, o habeas data e o mandado de injunção. Em princípio, nenhum meio judicial do sistema processual poderia ser excluído a priori da possibilidade de proteger esse direito, face ao art. 5°, XXXV, da Constituição Federal, sobre a inafastabilidade da tutela judiciária. No entanto, somente a ação popular e a ação civil pública têm como finalidade constitucional expressa a realização do direito fundamental ao ambiente.

5 A informação ambiental como dever e direito fundamental no Brasil

No sábio e tão citado ensinamento de Canotilho148, o direito à informação tem três níveis: o direito de informar, ou seja, a liberdade de transmitir ou comunicar

144 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed.. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 318-326.145 Conforme a lei da ação civil pública – Lei 7.347/1985 – são parte legítima para impetrá-la as pessoas jurídicas estatais,

autárquicas e paraestatais, bem como as associações destinadas à proteção do meio ambiente e o Ministério Público. Seu objeto mediato é a tutela do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, do direito do consumidor e dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 1º) que, de acordo com SILVA, tendo em vista a Constituição vigente, não podem ser considerados meros interesses difusos, mas formas de direitos humanos fundamentais, ditos de terceira geração. Já o objeto imediato consiste na condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou de não-fazer. Ver: SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 5. ed.. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 320-321.

146 Ver Lei 4.717/65 que regula a ação popular.147 GAVIÃO FILHO, Anizio Pires. Direito Fundamental ao Ambiente. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.148 CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3. ed. rev. Coimbra:

Coimbra Editora, 1993, p. 225-226.

Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da Constituição Federal de 1988 – 121

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informações a outrem; o direito de se informar, liberdade de buscar as informa-ções e não ser impedido para tanto; e o direito de ser informado, a versão positiva do direito de se informar, ser mantido informado pelos meios de comunicações disponíveis e pelos poderes públicos.

A Carta Magna traz diversos dispositivos que tratam do direito genérico à in-formação, que podem ser igualmente utilizados na esfera do direito ambiental. O princípio da informação é consagrado na Constituição, no rol dos direitos funda-mentais, no art. 5°, inc. XIV, assegura a todos o acesso à informação, resguardando o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional. Ora esse dispositivo garante, na verdade, o acesso de todos a qualquer forma de informação, incluindo a ambiental, cuja importância é demonstrada no fato de que constitui direito di-fuso, de todos, em que o cidadão é, ao mesmo tempo, titular e destinatário desse direito, conforme a sua posição. O inc. XXXIII também se depara com o direito implícito à informação ambiental, referindo-se que os cidadãos “têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”, ressalvadas as situações determinadas (aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado).

O direito à informação ambiental é essencial para proteger efetivamente o meio ambiente, pois constitui um instrumento do cidadão para que, ciente dos problemas já existentes, potenciais e da repercussão de novas políticas públicas participe e contribua junto ao Poder Público.

Como se demonstrou no decorrer do artigo, tendo em vista os documentos internacionais firmados e as iniciativas estatais até o momento tomadas, é inegável a ligação entre o meio ambiente e o direito de ser informado. Além disso, desde a década de 60 vivemos a era das comunicações: informações chegam a nós e são repassadas a todo instante149.

De acordo com os ensinamentos de Antônio Benjamin150, há na Constituição Federal de 1988 princípios ambientais que podem ser explícitos ou implícitos, substantivos ou procedimentais e genéricos, ou específicos. Serão implícitos aqueles que, através de uma análise interpretativa, defluem da norma e do sistema constitu-cional de proteção do meio ambiente. Ora, não há na Constituição explicitamente a expressão direito à informação ambiental ou dever de informação ambiental, porém podemos extraí-los diante dos vários dispositivos constitucionais, que não geram dúvida sobre a sua existência e importância.

149 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 12. ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 78.

150 BENJAMIN, Antônio Herman. O Meio Ambiente na Constituição Federal de 1998. In: KISHI, Sandra Akemi Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (Orgs.). Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 378-379.

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Ainda implicitamente, a informação ambiental está prevista no inciso IV do §1° do art. 225 da Constituição Federal, pois o dispositivo prevê que, para assegurar um meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbe ao Poder Público exigir para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, um Estudo Prévio de Impacto Ambiental – EIA – que deverá ser disponibilizado a todos. Esse estudo nada mais é do que um instrumento que informa e alerta o Estado e a sociedade civil sobre os riscos de determinado projeto.

Entre outros princípios que costumam ser mencionados no ramo do direito ambiental como democracia, cidadania, cooperação e a participação ambiental, inviável, será observá-los se antes não forem concretizados os fundamentos pregados pelo princípio da informação. Ignorantes do que se passa, não há cons-ciência pública, não há efetiva democracia ambiental e muito menos cooperação e participação do povo.

Da mesma forma que a Constituição prevê o direito à informação ambiental, há também o dever de informação, tanto por parte do Estado como por parte do cidadão. Quando o art. 225 afirma que o Estado e a coletividade têm o dever de preservar o meio ambiente, implicitamente deduz-se que a coletividade também tem o dever de prestar informações ambientais significativas, quando delas tiver posse. Ora, inviabilizada fica a preservação ambiental sem a ampla troca de in-formação entre os entes sociais. O dever de preservar o meio ambiente seria um gênero, do qual o dever de informar seria a espécie.

Fernanda Medeiros151, tendo em vista a classificação apontada por Vieira de Andrade, classifica o dever fundamental da defesa do ambiente como um dever eminentemente aderido a um direito (ou seja, conexo, não-autônomo), já que um não pode existir na ausência do outro. No dever de defesa, não se fala em limitações do direito fundamental, o que ocorre é a exigência do cumprimento de um dever para que se possa usufruir plenamente o direito fundamental a um ambiente saudável.

A autora diferencia os deveres fundamentais positivos e os negativos, seja aqueles que pressupõem um comportamento positivo ou negativo do destinatário. Aqueles ainda podem ser divididos entre deveres de prestações de fato e prestações materiais. Tendo em vista essa classificação, o dever de proteger o meio ambiente em si é um dever positivo e negativo, devido à complexidade múltipla que seu conteúdo integra, impondo ao indivíduo um comportamento dual de defesa, ora através de uma ação, ora através de uma abstenção. O dever de informar, por sua vez, é um dever positivo, que depende de uma ação do indivíduo ou do Estado.

151 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 126-127 e 130..

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Mais uma vez parafraseando Antônio Benjamin152, o caráter ambiental de certos direitos, deveres ou princípios podem ser diretos (ou originais) e derivados (reflexos ou indiretos). No caso do direito e dever à informação ambiental, é derivada na medida em que, embora não trate de maneira exclusiva ou original do ambiente, acaba por assegurar valores ambientais, sendo de essencial importância.

De acordo com Bratrschosky153, um caminho realista e efetivo para a conse-cução de uma melhor proteção ambiental consiste em conceder para os cidadãos o seu devido lugar em uma sociedade civil. Antes o acesso à informação pelas autoridades era fortemente limitado. Na maioria dos sistemas jurídicos, só tinham acesso às informações de um processo, aqueles diretamente interessados. Ora, saber é poder e em um estado democrático de direito, esse conhecimento não deve jamais ser dificultado a qualquer cidadão.

A constitucionalização do princípio, do direito e do dever da informação ambiental repercute sobre a própria teoria da Constituição e sobre os outros princípios ambientais. O princípio se torna norma do ordenamento jurídico e, uma vez inserido na Carta Magna, ele ganha rigidez formal, orientando de forma irradiadora a interpretação das demais normas constitucionais, bem como a pro-dução e a aplicação dos dispositivos de norma de hierarquia inferior. Ainda, se torna mais difícil alterá-los, necessitando de um procedimento mais complexo, o de emenda constitucional154.

Para Patryck Ayala155, as alternativas de regulação dos riscos dependem de uma cada vez mais presente democracia ambiental nos processos de decisão, como condi-ção necessária para a gestão dos riscos proveniente de situações de indisponibilidade de informação. Afirma ainda esse autor que o conteúdo jurídico do princípio da precaução já não é fundado na segurança técnica ou científica, mas privilegia modelos que garantam também a segurança ética. Assim, em sociedades que não oferecem as condições de segurança técnica, científica e informativa, mais importante ainda se tornam os processos decisórios e a observância do princípio da precaução. Para tanto, outros caminhos devem ser tomados nas ações das instituições, através de elementos que permitam o desenvolvimento dos melhores pontos de consensos

152 BENJAMIN, Antônio Herman. O Meio Ambiente na Constituição Federal de 1998. In: KISHI, Sandra Akemi Shimada; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês Virgínia Prado (Orgs.). Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 379.

153 BRATRSCHOVSKY, Katja. Wissen ist Macht – Auch im Umweltschutz – Zugang zu Umweltinformationen in Europa. In: EISENBERGER, Iris et al (Orgs.) Festschrift für Bernd-Christian Funk zum 60. Geburstag. Wien: Springer Verlag, 2003, p. 4.

154 SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constitucionalização dos Princípios de Direito Ambiental. In: SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio (Orgs.). Princípios de Direito Ambiental: na dimensão internacional e comparada. Belo Horizonte: Del Rey. 2003, p. 85-86.

155 AYALA, Patryck de Araújo. A Proteção Jurídica das Futuras Gerações na Sociedade do Risco Global: o direito ao futuro na ordem constitucional brasileira. In: FERREIRA, Heline Sivini; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.). Estado de Direito Ambiental: tendências, aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 250-252.

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democráticos na gestão da informação nos processos de decisão sobre os riscos, como a necessidade de participação popular, identificação e comunicação dos riscos, submissão da percepção dos riscos à avaliação pública, entre outros.

Por fim, como salienta sabiamente Fernanda Medeiros156, o direito fundamental da defesa do meio ambiente e o dever fundamental de preservá-lo são conexos, pois não é viável considerar o direito de usufruir um ambiente equilibrado na medida em que se olvida a obrigação jurídico-ética de colaborar para sua preservação. Ora, é um dever perante a coletividade a manutenção da vida com qualidade. Nesse contexto, a ampla informação ambiental é um fator essencial em uma sociedade na qual se visa a transparência, a publicidade e a prevenção de danos futuros.

A atribuição de direitos e deveres pressupõe também o valor de solidariedade, sobre o qual paira a responsabilidade comunitária nos indivíduos, alicerçada em uma dimensão participativa e social. Em suma, apenas dessa maneira poderar-se-á caminhar rumo a um desenvolvimento sustentável, quando governos, indústrias, ciência e população, unirem esforços, pois o amanhã de todos depende de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Essa é a meta: um futuro digno para a humanidade. O estado de estar bem informado é um direito e dever de todos imprescindível para alcançar o objetivo maior: a plenitude da vida.

6 Considerações finaisA atenção que o meio ambiente tem despertado atualmente é proporcional

às catástrofes e problemas relacionados com o desequilíbrio ecológico de hoje. A proteção e a tutela desse meio ambiente são fundamentais para assegurar uma sadia qualidade de vida para as gerações vindouras, e o direito de elas o encon-trarem ecologicamente equilibrado tem surgido cada vez com mais freqüência em textos constitucionais, além de ser tema abordado em tratados e convenções internacionais no decorrer do século passado.

Nesse estado de coisas, inquestionável se torna a importância dos valores e princípios ambientais nos sistemas jurídicos. Resta questionar os instrumentos que vêm sendo implementados e usados pelo Estado a fim de alcançar a prerrogativa constitucional do art. 225. Entre esses instrumentos, o acesso à livre informação ambiental de todos os entes sociais, seja Estado, indústrias, entidades ambien-talistas ou população civil é condição inerente para concretizar o exposto no artigo supracitado segundo o qual todos têm o direito de viver em um ambiente ecologicamente equilibrado.

O Estado e a sociedade nessa era informatizada em que se restringem os limites do espaço e do tempo, devem disponibilizar aos cidadãos, através dos meios de

156 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 131.

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comunicação de massa, a divulgação constante das informações ambientalmente relevantes, em linguagem acessível a todos, já que eles consistem em meios eficazes e alcançam quase a totalidade da população brasileira.

Dessa forma, pretendeu-se, neste breve artigo, demonstrar a importância do direito e do dever da informação ambiental, sob o prisma do direito constitucio-nal e da teoria dos direitos e dos deveres fundamentais, reconhecendo-o também como princípio formal e materialmente reconhecido pela Magna Carta de 1988 e como instrumento essencial para proteger os bens naturais e lutar por um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

A informação é o início da conscientização do povo. Ela deve ser, na medida do possível, irrestrita e abrangente. Somente quando houver entendimento e cla-reza da necessidade de um meio ambiente saudável e de como conservá-lo, haverá uma mobilização adequada por parte da sociedade, sujeita às conseqüências da sua utilização. Devem ser observados, neste ínterim, os limites à informação legal-mente estabelecidos concernentes ao segredo de Estado, propriedade industrial e intelectual, entre outras disposições.

Almejou-se tornar inquestionável a importância e a relação da informação e da concretização dos princípios ambientais constitucionalmente assentados para que, em situações concretas, eles também sirvam de parâmetro no conflito com outras normas. Devem ser observadas as restrições legais e o bom senso comum diante de uma situação concreta, mas a tutela do meio ambiente, na sociedade de risco em que vivemos, permanece em lugar prioritário, a fim de que erros humanos e decisões precipitadas e nocivas não sejam tomadas, provocando danos, o mais das vezes irreparáveis. A informação é o início da boa administração e da participação popular, a fim de alcançar uma democracia ambiental.

No Brasil, a Constituição Federal trouxe avanços significativos no que tange à matéria ambiental e, apesar de o país ainda ter um longo caminho pela frente para atingir a plena efetivação do acesso às informações e educação ambiental, esforços têm sido feitos, alcançando resultados influenciadores. No entanto, é inegável que esses esforços precisam ser redobrados, pois os resultados brotam aos poucos e a atual situação ambiental do Brasil, particularmente, carece de medidas rápidas e eficazes.

Considerando, ainda, as disposições constitucionais sobre o direito e o dever, do Estado e do cidadão, da informação ambiental, bem como o princípio do acesso à informação, não há como se vislumbrar a efetivação e concretização da proteção do meio ambiente e dos princípios expostos no art. 225, se não se vis-lumbrar a informação ambiental como direito e dever fundamental, a fim de que se alcance uma maior participação popular e conscientização por todos os entes da sociedade da necessidade de prevenir danos futuros, buscando ainda soluções

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Informação ambiental como direito e dever fundamental no âmbito da Constituição Federal de 1988 – 127

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PARTE III

DIREITO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE

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Propriedade intelectual como fator de regulação do desenvolvimento:análise de acordos e tratados internacionais e legislação nacional em matéria de patentes

na biotecnologia

Salete Oro Boff157

Vilmar Antonio Boff158

157 Pós-Doutoranda pela UFSC. Doutora em Direito pela UNISINOS. Professora da Faculdade Meridional-IMED. Pesquisadora CNPq.

158 Doutor em Desenvolvimento Regional pela UNISC. Professor da Faculdade Meridional – IMED Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional-IMED.

Resumo A era do conhecimento tem nas inovações científicas e tecnológicas a mola propulsora do desenvolvimento. O conhecimento está intrinse-camente associado ao poder, como fator contro-lador decisivo, e a sua proteção e gestão garanti-rão a capacidade competitiva do país. Os meios de proteção serão escolhidos de acordo com a natureza e, o tipo de tecnologia, entre patentes, desenho industrial, cultivares, direitos autorais e conexos, marcas, programas de computador, proteção de divulgação não-informada, segredos ou combinações destes. Envolto nestas questões, o presente trabalho tem por objetivo apresentar os principais aspectos dos Acordos e Tratados Internacionais e a legislação nacional vinculados à matéria das patentes na biotecnologia.

Palavras-chave: Propriedade intelectual. De-senvolvimento. Biotecnologia. Patentes.

AbstractThe development. Knowledge is intrinsically linked to power, as a decisive factor controller, and its protection and management to ensure competitiveness of the country. The means of protection will be chosen according to the nature and type of technology between patents, industrial design, cultivars, copyright and related, trademarks, computer programs, protection of non-disclosure informed, or combinations of these secrets. Envolto these issues, the present study aims to present the main aspects of the agreements and international treaties and natio-nal legislation tied to the matter of patents in biotechnology.

Keywords: Intellectual property. Develop-ment. Biotechnology. Patents.

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1 Considerações iniciaisA Propriedade Intelectual assume papel relevante no processo de desenvol-

vimento dos países, pois se constitui em garantia da proteção dos direitos dos criadores e inovadores. Mais recentemente, ganha destaque a proteção jurídica dos resultados das descobertas e invenções na área da biotecnologia, incentivando o desenvolvimento de novos estudos e como retribuição ao investimento dos pes-quisadores. E, para regulamentar os interesses convergentes de vários Estados em matéria de propriedade intelectual, os Tratados e Convenções Internacionais são os instrumentos usualmente utilizados159. Nesse contexto, o presente estudo tem por objetivo analisar a proteção jurídica das criações humanas e o tratamento jurídico previsto nos principais documentos internacionais e na legislação brasileira.

2 Proteção jurídica das criações humanasO desenvolvimento, tomado em sua concepção ampla (econômico, so-

cial, cultural e humano), está diretamente vinculado à capacidade criadora do ser humano. Na Antigüidade, já era visível o poder criativo do homem, nas mais diversas formas de manifestação e o uso da técnica apresenta-se como um diferencial entre os povos dominantes e os dominados. Alguns trechos bíblicos retratavam essa dominação: os povos que detinham o co-nhecimento utilizavam ferramentas mais avançadas e proibiam o seu uso por outras nações160.

Pode-se aproximar o direito de proteção concedido pela patente aos privilégios feudais. No século XVI, cria-se o Estatuto dos Monopólios161 na Inglaterra. Esse Estatuto exerceu papel fundamental “na definição do valor jurídico e histórico dos privilégios”162, pois reconhecia o direito de obter patente a quem contribuísse realmente com a introdução de inovações para a indústria. O documento limitava as faculdades do rei, impedia a concessão de monopólios ou privilégios de forma indiscriminada. Estabelecia como condição necessária para a proteção, que as manufaturas fossem novas e distintas das já existentes163.

A partir do século XVIII, alguns países passam a adotar um sistema de pa-tente fortemente nacionalista. Isso se verifica nas colônias britânicas da América 159 Hildebrando Accioly identifica os tratados e convenções internacionais como “as manifestações de um acordo de

vontade entre Estados”, com o fim de melhor proteger os direitos dos indivíduos (inventores). ACCIOLY, Hilde-brando. Direito Internacional Público. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 14-15.

160 SILVEIRA, Newton. Curso de propriedade industrial. 2.ed. São Paulo: RT, 1987, p. 11.161 O Estatuto exerceu influência no sistema atual de patentes. Foi a legislação que estabeleceu o reconhecimento do

monopólio somente ao primeiro e verdadeiro inventor. In. FROTA, Maria Stela Pompeu Brasil. Proteção de patentes e produtos farmacêuticos. O caso brasileiro. Brasília: FUNAG/IPRI, 1993, p. 18.

162 BASSO, Maristela. O Direito Internacional da Propriedade Intelectual. Posto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 67. 163 MORENO, P. C. Breuner. Tratado de patentes de invencion. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1957, v. I, p. 10.

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após a independência, em 1776. Nesse sistema de patentes, o inventor deveria garantir que era realmente o inventor, fornecendo declaração “clara e precisa da invenção para permitir a um homem de arte reproduzir e utilizar”164 sua criação. No século XIX, consolida-se a trajetória do sistema de concessão de privilégios em um sistema de patentes. A França destacava-se no tratamento da matéria e, por essa razão, exerceu influência fundamental na elaboração das legislações dos demais países. A Convenção União de Paris, em 1883, representou um avanço no sentido de procurar harmonizar as legislações internacionais sobre a matéria das invenções, concedendo ao autor o direito à propriedade imaterial.

O conjunto de direitos dos criadores/inventores denomina-se propriedade intelectual”165. Pode ser dividida em dois grandes grupos: os direitos autorais e a propriedade industrial. O direito de autor contempla as obras de arte, a propriedade literária (literatura), científica e artística. São as criações do espírito; seu objeto resulta do trabalho intelectual, é fruto de “um esforço pessoal (trabalho) realizado pela inteligência e inspiração de uma pessoa (ou de um grupo de pessoas), com o apoio no seu patrimônio de conhecimentos e de experiência”166. No campo da propriedade industrial167, estão as patentes, as marcas, os desenhos e modelos in-dustriais e a concorrência desleal. 168 e novos ramos como a topografia de circuitos integrados e a proteção de dados.

As patentes são entendidas como “um privilégio temporário que o Estado con-cede a uma pessoa física ou jurídica pela criação industrial, suscetível de beneficiar a sociedade”169. O titular possui o direito exclusivo de exploração do objeto da patente. Por essa definição, percebe-se que a patente pode ser entendida como um ‘acordo’ entre o inventor e a sociedade/Estado. O Estado concede a capacidade condicional, “caracterizada pelo uso exclusivo de um novo processo produtivo ou a fabricação de um produto novo vigente por um determinado prazo temporal e, em troca, o inventor divulga a sua invenção permitindo à sociedade o livre acesso ao conhecimento da matéria objeto da patente”170. Portanto, a proteção é privilégio

164 PLASSERAUD, Yves e SAVIGNON, Françóis. L’etat et l’invention-historie des brevets. Paris: Documentation française, Institut National de la Propriete Industrielle, 1986.PLASSERAUD, op. cit., p. 46. Do original: “[...] il claire et precise pour permetre a um homme de línvention suffisamment et de l’utiliser.”

165 SHERWOOD, Robert M. Propriedade intelectual e desenvolvimento econômico. Trad. Heloísa de Arruda Villela. São Paulo: EDUSP, 1992, p. 22.

166 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A propriedade intelectual e o desenvolvimento tecnológico sob o prisma da Constituição brasileira. In. Anais do XXII Seminário Nacional da Propriedade Intelectual, 2002, p. 27. Na legislação brasileira, a matéria sobre os direitos autorais atualmente está disciplinada na lei 9.610, de 19.02.1998.

167 A Lei 9.279, de 14.05.1996, disciplina essas matérias.168 Segundo Maristela Basso, os direitos resultantes das criações intelectuais “têm caráter imaterial e são essencialmente

internacionais cosmopolitas”. Isso quer dizer que o produto das criações/invenções localiza-se onde estiver a civilização. In: BASSO, Maristela. O Direito Internacional da Propriedade Intelectual. Posto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. P. 19.

169 FURTADO, op. cit., p. 43.170 Idem, ibidem. Ainda pode-se acrescentar no mesmo sentido MACEDO, Maria Fernanda Gonçalves e BARBOSA,

A L. Figueira. Patentes, Pesquisa & Desenvolvimento: um manual de propriedade intelectual. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2000, p. 20.

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do inventor e também fonte de informação ofertada à sociedade. Para garantir o direito de exclusividade, o poder público estabelece mecanismo de registro no órgão oficial, com o fim de distinguir uma invenção de outra.

Se houver utilização por terceiros, caberá indenização ao inventor (pagamento de royalties), como forma de compensar os custos de tempo, dinheiro e esforço empreendidos para o desenvolvimento da invenção171. Porém, o direito exclusivo do inventor tem como limite o interesse público. A concessão de licenças com-pulsórias é uma forma para utilizar a invenção, correspondendo ao atendimento da necessidade pública, sem romper o direito do inventor.

A atual Constituição Federal incluiu a matéria sobre a proteção da propriedade industrial na parte relativa aos direitos e as garantias fundamentais, no Título II, artigo 5º inciso XXIX (direito do inventor). A par disso, a Constituição salienta a necessidade de a propriedade exercer a função social, transcendendo a concepção privatista estrita, abarcando outros valores extensivos à propriedade intelectual172. A lei n.º 9279, de 14 de maio de 1996, regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.

Fica claro, que a Constituição brasileira ressalva os propósitos nacionais em um campo considerado crucial para o desenvolvimento, quando dedica um capítulo à ciência e tecnologia, no título relativo à Ordem Social. Nesses preceitos, constam como incumbência do Estado à promoção e o incentivo do desenvolvimento cien-tífico, a pesquisa e a capacitação tecnológica, com vistas ao desenvolvimento e ao apoio à formação de recursos humanos nas áreas da ciência e tecnologia. Prevê, ainda, o texto constitucional, o estímulo às empresas que invistam em pesquisa e criação de tecnologia adequada ao País, com a faculdade de vincular receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino, à pesquisa científica e tecnológica173.

Nessa linha, Bruno Jorge Hammes174 considera que a concessão de patente assegura o progresso, pois,

[...] a proteção do inventor não objetiva apenas permitir e estimular os inventores, o que também se objetiva com o direito de autor, mas levar ao conhecimento de todos o que se conhece de técnicas e isto o mais cedo possível. E é por isso que não se protege o inventor só pelo fato de haver

171 Os países industrializados fornecem tecnologia que quiserem importá-la.”Esse contrato pode ser de venda ou de arrendamento. Venda é cessão definitiva, enquanto arrendamento é a licença por prazo determinado, renovável mediante remuneração chamada royaltye In. CHINEN, Akira. Know-how e propriedade industrial. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 6.

172 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998. p. 148-156. O artigo 5º, inciso XXIX, da Constituição brasileira não se limita à declaração do direito dos inventores e titulares de marcas, mas dirige-se ao legislador, determinando a este tanto o conteúdo da propriedade industrial quanto a finalidade do mecanismo jurídico a ser criado. Por conseguinte, a legislação referente à matéria visará ao interesse social do país e favorecerá ao desenvolvimento tecnológico e econômico.

173 Conforme artigo 218 e parágrafos da CF 88.174 HAMMES, Bruno Jorge. O direito de propriedade intelectual. 3.ed. São Leopoldo: UNISINOS, 2002, 285.

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inventado, até por primeiro. Protege-se o inventor que, por primeiro, tornou público, diga-se o que primeiro registrou o invento.Poder-se-á acrescentar que o sistema de patentes registradas oferece a mais completa e mais barata base de informação atualizada sobre o estado da técnica.[...] É a melhor forma até hoje conhecida, para estimular o progresso in-dustrial. Os países que melhor asseguram esse direito exclusivo aos seus inventores são os que mais conseguiram desenvolver-se. Os que hesitaram em fazê-lo ficaram marcando passo ou muito lentamente progrediram, para não dizer que perderam as suas melhores inteligências em favor dos primeiros. Até hoje tem sido uma constante: o progresso está na razão direta do grau de exclusividade conferida aos inventores.

Pode-se acrescentar à função da patente, a proteção do interesse público, ao possibilitar a rápida comercialização dos inventos, além de incrementar a troca de informações, o que evita o dispêndio de esforços com a duplicação de investi-gação sobre a mesma matéria. Como observa Bruno Jorge Hammes, a sociedade tem interesse de conhecer as novas técnicas, pois de nada adiantaria o avanço das invenções se elas não fossem divulgadas175.

Atualmente, o avanço da tecnologia apresenta uma nova visão da natureza e do homem, com reflexos nas relações sociais e no estabelecimento de novos valores, em substituição aos enraizados na tradição, como ocorreu no final do século XIX, em relação à física e à química. E, os últimos vinte anos, registram o desenvolvimento acelerado da biotecnologia176. Esses avanços estão produzindo alterações em conceitos tradicionais como em relação à reprodução, à sexualida-de e ao parentesco, assim, também, nas formas de alimentação, de trabalho, de relação com os filhos, de política, de expressar a fé e a própria ‘visão de mundo’ são afetadas pela biotecnologia.

Esses avanços tecnológicos podem consistir em ‘produtos’ ou ‘processos’. Costumeiramente, a tendência das legislações sempre foi não conceder patente aos produtos ou processos naturais. Com a emergência da moderna biotecnolo-gia, tal interpretação das disposições legais dos sistemas patenteários começa a ser questionada e, até, ampliada. As especificidades da biotecnologia dificultam a comprovação dos requisitos para concessão da patente ou impõem à necessidade de certas adaptações da lei ou em sua interpretação, para caracterizar a novidade de inventos biotecnológicos, uma vez que a biotecnologia sempre opera sobre materiais vivos, existentes na natureza.

175 Idem, ibidem.176 Apesar do desenvolvimento acelerado nos últimos anos, desde os primórdios, o ho-

mem detinha conhecimentos nessa área, como a utilização de agentes biológicos para produzir alimentos e bebidas.

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Além dessas dificuldades, o debate gira em torno da questão do que se há de proteger e como177. E, nesse contexto, apresentam-se os Tratados e Convenções internacionais, como basilares, traçando diretrizes para a elaboração das legisla-ções internas de cada país em matéria de propriedade industrial, estabelecendo as condições para concessão de patentes.

3 Tratados e convenções internacionais em matéria de patentes: CuP e TRIPs

O caráter eminentemente internacional do Direito da Propriedade Intelectual deu origem a Acordos e Convenções sobre a matéria. No século XIX, surgem as CUP - Convenções União de Paris (1883) e de Berna (1886), as quais estabele-ceram normas gerais de observância internacional para proteção da propriedade intelectual. Essas Convenções prevêem a regulamentação dos conflitos de leis e de jurisdição; da condição dos estrangeiros e o gozo dos seus direitos; o princípio do tratamento nacional; a harmonização do direito privado material e o princípio do tratamento unionista. De igual forma, traduz-se em limite a faculdade de os Estados regularem, de maneira independente, uma matéria de extrema importância e de caráter internacional.

Com a Convenção União de Paris, cria-se um novo organismo para o Direito internacional: a OMPI - Organização Mundial de Propriedade Intelectual, em 1967, a qual passa a administrar a Convenção e vários tratados relativos à propriedade industrial e aos direitos de autor e conexos. Tem por objetivo estimular a proteção da propriedade intelectual por todas as Nações, mediante a cooperação entre os Estados; assegurar a cooperação administrativa entre as Uniões de propriedade intelectual, como a Convenção União de Paris; estabelecer e estimular medidas apropriadas para promover a atividade intelectual criadora e facilitar a transmissão de tecnologia para os países em desenvolvimento178.

Baseado nos demais Tratados Internacionais sobre a matéria, o TRIPs - Acordo sobre aspectos do Direito de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio – surge no âmbito da Rodada do Uruguai de Negociações Multilaterais do GATT, sob a influência dos Estados Unidos, da União Européia e do Japão. A proteção dos direitos intelectuais exigia soluções multilaterais, que proporcionassem soluções globais. A partir dessa interferência, o GATT passa a ter competência para tratar de aspectos dos direitos intelectuais, uma vez que estão ligados à atividade comercial.

A função do TRIPs foi reduzir as distorções e empecilhos ao comércio inter-nacional e estabelecer parâmetros mínimos para promover uma proteção efetiva

177 HOBBELINK, Henk. Biotecnologia - muito além da revolução verde. Trad. Sebastião Pinheiro, Gert Roland Fischer e Jacques Saldanha. Porto Alegre: [s.n], 1990, p. 146.

178 Disponível em www.inpi.gov.br/patente/conteúdo, acessado em 11.02.03.

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e adequada aos direitos da propriedade intelectual. Essa tarefa se concretiza na proibição do comércio de mercadorias falsificadas; na regulamentação da matéria patenteável; na indicação dos direitos conferidos aos inventores; na regulamentação do tratamento dado ao uso sem autorização do titular do direito; na determinação do tempo de vigência, assim como das condições gerais para encaminhamento do pedido de patente. O artigo 7º do Acordo contempla os objetivos do TRIPs, baseados nos valores sociais relevantes, equilibrando o conhecimento tecnológico e sua utilização pelos usuários.

Segundo o TRIPs, enquadram-se, como não patenteáveis, os métodos de diagnósticos terapêuticos ou cirúrgicos para o tratamento humano ou de animais, as plantas e animais (menos os microorganismos) e os processos essencialmente biológicos para a obtenção de plantas ou animais.179 O Tratado deixou a cargo dos Estados a exclusão ou não da proteção de plantas ou animais, dos procedimentos biológicos para a obtenção, por meio de suas legislações, expressando em seu artigo 27.3 ‘b’, que a matéria referente à biotecnologia e variedades vegetais está sujeita à revisão após quatro anos da vigência do Acordo.

4 A legislação brasileira e a propriedade intelectual na biotecnologia

Os Estados Unidos exerceram influência direta na criação e atualização da legislação brasileira em matéria de propriedade intelectual, por impor sanções comerciais aos países que não observassem as normas de propriedade intelectual, ou que dispusessem de legislação insuficiente na área180. A Rodada do Uruguai do GATT, em 1986, deixou clara a influência dos EUA no mercado mundial, ao ditar as diretrizes básicas do Acordo TRIPs, por meio do qual se passa a adotar critérios genéricos e princípios mundialmente reconhecidos para a proteção da propriedade intelectual181. Diante disso, em meados de 1990, o Poder Executivo brasileiro encaminha ao Congresso Nacional Projeto de Lei, com o fim de adequar a legislação às exigências internacionais. O Projeto destacava a importância da propriedade intelectual, em razão das novas tecnologias e por ser condição para atrair investimentos internacionais. Os destaques mais polêmicos referiam-se à área de fármacos e da biotecnologia.

179 O Brasil faz parte do acordo TRIPs desde 1994. O ordenamento brasileiro recepcionou o Acordo pelo Decreto

n. 1.355/94.180 Lei de Propriedade Industrial, 9.279/96, Lei de Direito de Autor, n. 9.610/98.181 DEL NERO, Patrícia Aurélia. Propriedade intelectual. A tutela jurídica da biotecnologia. São Paulo: RT, 1998, p. 107 e ss.

A autora destaca que: “O foro competente para discussão e inserção da temática deveria ter sido a OMPI (Orga-nização Mundial de Propriedade Intelectual), que é uma organização intergovernamental com sede em Genebra, Suíça, estabelecida em 1967, por intermédio da convenção firmada em Estocolmo e denominada “Convenção que Estabelece a Organização Mundial de Propriedade Intelectual”.

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Atualmente, a Lei 9.279/96 regula os direitos incluídos na propriedade indus-trial. Segundo essa norma, pode ser patenteada a matéria que atenda aos requisi-tos previstos nos artigos 8º e 9º182.As matérias enquadradas no artigo 10 não são consideradas invenções, nem modelo de utilidade. São exemplos: as descobertas; as teorias científicas, métodos matemáticos, as criações puramente abstratas; os esquemas, planos, princípios ou métodos comerciais, contábeis, financeiros, pu-blicitários, de sorteio e de fiscalização; obras literárias, arquitetônicas, artísticas, científicas ou qualquer criação estética183; programas de computador (o sistema operacional do computador é patenteável); apresentação de informações; regras de jogo; técnica e métodos operatórios ou cirúrgicos bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para aplicação no corpo humano e animal; o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.

A aplicação desse dispositivo pelo INPI – Instituto Nacional de Propriedade Intelectual desconsidera se o isolamento do material deu-se com atividade inven-tiva, novidade ou aplicação industrial, requisitos da patenteabilidade. Na análise sobre os inventos biotecnológicos, Alice Rayol184 comenta o artigo 10, inciso IX, “podemos dizer que não seria matéria patenteável qualquer substância isolada da natureza, seja ela um extrato natural de plantas ou animais, ou mesmo uma enzima, ou uma seqüência de DNA ou gene, pois, segundo a interpretação dada ao mencionado artigo, constituiria uma parte de ser vivo”.

Destacam-se como passíveis de proteção: as substâncias isoladas desde que sofram alguma modificação; as alterações pela manipulação humana; o isolamento de substâncias de planta quando presente em uma composição para o tratamento de alguma patologia; os métodos para isolamento dos produtos naturais185. São consideradas como parte de um ser vivo, as linhagens de células isoladas, as quais não seriam passíveis de proteção pela patente. O INPI entende que somente as bactérias, leveduras e fungos podem ser enquadrados nessa definição. Portanto, os pedidos de patente que reivindicam organismos geneticamente modificados “que não sejam microrganismos transgênicos, por exemplo, linhagens de células animais e vegetais geneticamente modificadas, têm sua patenteabilidade vedada segundo o artigo 18, inciso III, mesmo que atendam aos requisitos da patenteabilidade”186.

182 É patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade (inventar o que não existia), de atividade inventiva (criação do intelecto humano) e de aplicação industrial (pode ser utilizada ou produzida em qualquer tipo de indús-tria). Essas condições são “distintas, cumulativas e ordenadas”. In: LOUREIRO, Luiz Guilherme de A. V. A lei de propriedade industrial comentada. São Paulo: Lejus, 1999, p. 44.

183 Essas criações são protegidas pelo Direito Autoral.184 RAYOL, Alice. Tendências de exame dos pedidos de patente na área da biotecnologia. Revista da ABPI, n. 63.

mar/abr, 2003, p. 55.185 RAYOL, 2003, p. 55.186 RAYOL, 2003, p. 55.

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Há muita polêmica sobre a questão da patenteabilidade de seres vivos, uma vez que extrapola os direitos individuais do inventor, envolvendo aspectos éticos e morais e, por outro lado, questões de ordem científica e econômica, não menos complexas para o Direito187. O artigo 18 enumera como não-patenteáveis toda invenção contrária à moral, aos bons costumes e à segurança, à ordem e à saúde públicas; as matérias relativas à transformação do núcleo atômico; o todo ou par-te dos seres vivos, exceto os microrganismos transgênicos que atendam aos três requisitos de concessão de patente e que não sejam meras descobertas188.

De igual forma, a lei veda a proteção por patentes a novas formas derivadas de raça animal, “através de caracteres genéticos novos como, por exemplo, um animal obtido por cruzamento ou um animal nascido de genitores que apresentavam características determinadas”189., assim como se proíbe a concessão de patente à invenção que tenha como objeto o todo ou parte de seres vivos (produto). A lei, entretanto, não se refere aos processos de obtenção, deixando margem para que sobre estes seja pleiteada a proteção por patente. Assim, quanto aos microrga-nismos, a legislação brasileira não proíbe a concessão de patentes aos processos microbiológicos e aos produtos obtidos por esses processos, mas a norma exclui da proteção os microrganismos tais como se encontram na natureza (descoberta).

Pelo exposto, verifica-se a existência de duas posições em relação às patentes de microrganismos: a que nega a concessão de patente aos microrganismos naturais, considerados ‘descobertas’, e a que atribui patente aos processos microbiológi-cos, para obtenção de produtos que tenham aplicação industrial, considerados ‘invenções’.

Além da análise da Lei 9.279/96, é primordial considerar os preceitos da Lei Maior. A Constituição assegura direito à pesquisa, mas estabelece o direito à vida (art. 5º caput), a proteção à dignidade da pessoa humana como limite ao uso do conhecimento (art. 1º, III) e o direito à saúde (art. 196). Ocupou-se o texto constitucional também de impor limites à manipulação do patrimônio genético, vedando a clonagem humana. A matéria sobre a pesquisa genética está presente no artigo 225, que compreende o complexo de relações entre o mundo natural e os seres vivos, destacando, no inciso II, a necessidade de “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e a manipulação do material genético”.190

187 O desenvolvimento da presente tese tem como questão central à análise desse assunto com mais profundidade.188 Conforme Art. 18 – Parágrafo único: Para fins da Lei n. 9.279/96, os microrganismos transgênicos são organismos, exceto o todo ou parte de plantas ou

de animais, que expressem, mediante intervenção humana direta em sua composição genética, uma característica normalmente não alcançável pela espécie em condições naturais.

189 LOUREIRO, op. cit., p. 73.190 CHINEN, Akira. Know-how e propriedade industrial. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 19.

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Apresenta-se nesse viés, a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB) firmada no Rio de Janeiro, em 1992, cujo objetivo principal destina-se à proteção da biodiversidade, promoção do uso sustentável e a partilha justa e equilibrada dos benefícios do uso dos recursos genéticos191.

Da mesma forma, a Lei de Cultivares, nº. 9. 456/97, artigo 3º, IV estabelece que a proteção se dá à variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, “por sua determinação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo com-plexo agroflorestal [...], bem como a linhagem de híbridos”. Ainda o artigo 8º prevê que será protegido o material de reprodução ou de multiplicação da planta inteira.

Como novidade, saliente-se a Lei de Biossegurança, nº. 11.105, de 24 de março de 2005, que objetivou estabelecer normas sobre o uso das técnicas de engenharia genética (utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia); a pesquisa e a fiscalização dos organismos geneticamente modificados; o papel, a estrutura, as competências e o poder da CTNBio e a formação e organização do Conselho Nacional de Biossegurança. Na verdade, a lei foi aprovada sem critérios claros, pois agrupou matérias diversas e complexas, sem ponderar a pertinência desse tratamento. E, sob pressão, procurou-se editar um texto legal que conviesse a todos, porém com linguagem aberta e deficiente.

Ao referir-se aos organismos geneticamente modificados, a norma os define como “aqueles resultantes de técnicas que impliquem a introdução direta, num organismo, de material hereditário, desde que não envolvam a utilização de mo-léculas de ADN/ARN recombinante ou OGM, tais como: fecundação in vitro, conjugação, transdução, transformação, indução poliplóide e qualquer outro processo natural”192. No tocante à utilização de células-tronco embrionárias, a lei passa a permitir a sua utilização para fins de pesquisa e terapia, desde que essas células sejam obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento e, ainda, sejam inviáveis ou congelados há mais de três anos193.

Verifica-se, em síntese, que a legislação nacional relativa à propriedade intelectual de matéria viva concede proteção para microrganismos geneticamente modificados e para cultivares de plantas. Excluem-se do privilégio as seqüências de DNA de qualquer espécie de ser vivo, plantas e animais (todo ou parte).

191 SCHOLZE, Simone H. Os direitos de propriedade intelectual e a biotecnologia. Cadernos de Ciência & Tecnologia. Brasília: Embrapa, v. 15, 1998. Para a autora: “acesso a recursos naturais dos países em desenvolvimento com acesso à tecnologia dos países desenvolvidos, bem como equilibrar os benefícios provenientes de produtos e processos resultantes da exploração de recursos naturais” e a recompensa aos inventores.

A CDB está ratificada por mais de 170 países. Os EUA não assinaram a Convenção.192 Conforme parágrafo único do artigo 3º da Lei 11.105/05.193 Conforme artigo 5º da Lei 11.105/05.

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5 Considerações e encaminhamentos Ao longo deste trabalho, considerou-se o notável papel da propriedade in-

telectual no processo de desenvolvimento de um país, no sentido de promover a disseminação de informações, no estímulo e diversificação da produção e no surgimento de novas tecnologias. Como se percebe, a Propriedade Intelectual garante aos criadores os direitos sobre suas inovações, fortalecendo o surgimento de novas invenções. Um sistema de propriedade intelectual permite incentivar a geração de novas tecnologias, produtos, processo e oportunidades comerciais. Assim é ferramenta para o desenvolvimento.

Tratados, Convenções e Diretivas procuram traçar pontos mínimos como basilares para as legislações internas dos países e, mais recentemente, acentua-se o debate sobre a questão do patenteamento de material vivo. Há controvérsias quanto à sua proteção, porque a matéria viva não caracteriza a invenção por faltar-lhe o requisito da novidade, uma vez que já existe na natureza (descoberta). Entretanto, esse posicionamento flexibilizou-se nos últimos anos, sendo admitida, por alguns Estados, a proteção por patentes, se não para o produto, mas para os processos de isolamento ou para a técnica utilizada.

Assim, é imperioso considerar que a técnica alia o progresso e novos desafios. Embora os ordenamentos jurídicos ainda se apresentem frágeis para dar conta das novas relações jurídicas, urge estabelecer indicadores que permitam repensar o tema, reconhecendo-se, desde logo, a precaução na aplicação e na interpretação das normas jurídicas conciliadas aos princípios éticos e morais (bioética), já que a biotecnologia ocupa-se de matéria viva, inclusive de material humano.

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