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Tellus, ano 10, n. 18, p. 39-63, jan./jun. 2010 Campo Grande - MS * Médica e Antropóloga. Centro de Pesquisas Leônidas & Maria Deane- Fiocruz e Universidade Federal do Amazonas. [email protected] ** Educadora. Mestranda do Programa de Pós-Gradua- ção de Antropologia Social. PPGAS/Universidade Federal do Amazonas. *** Cientista Social. Mestrando do Programa de Pós-Graduação Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônica/PPGSSEA. Universidade Federal do Amazonas/Centro de Pesquisas Leônidas & Maria Deane-Fiocruz/Universidade Federal do Pará. **** Ecólogo/Instituto Socioambiental, Programa Rio Negro. Ambiente, saúde e estratégias de territorialização entre os índios Baniwa do Alto Rio Negro Environment, health and strategies for territorialization among the Baniwa indians on the Alto Rio Negro Luiza Garnelo * Laise Diniz ** Sully Sampaio *** Adeilson Silva **** Resumo: O artigo analisa estratégias de territorialização empreendidas pelo grupo indígena Baniwa marcadas pela produção de fronteiras mate- riais e simbólicas entre as fratrias e sibs, segundo a perspectiva mítico- cosmológica, da política do parentesco e das relações contato interétnico. O território nativo, entendido como espaço delimitado, produzido pela ação política de grupos sociais em disputa, oferece base física e simbólica à exacerbação das diferenças internas do grupo demarcadas pelo uso dos diacríticos contrastantes que também operam como resposta aos confli- tos sociocósmicos expressos nas agressões xamânicas. A geografia mítica Baniwa expressa relações espacializadas com a alteridade cósmica e dis- tinções hierarquizadas entre os consanguíneos que modulam a apropri- ação de recursos ambientais necessários à subsistência. Produziu tam- bém um conjunto de práticas tradicionais de cura e cuidados com a saú- de, em que o território, a filiação étnica e a comensalidade têm papel primordial na manutenção da saúde. Palavras-chave : Índios Sul-Americanos; Noroeste Amazônico; Etnologia Indígena. Abstract : The article analyzes territorial strategies implemented by the indigenous group Baniwa, marked by the production of material and symbolic boundaries between the sibs and brotherhood, from mythic- cosmological perspectives, the policies of kinship and interethnic contact relationships. The native territory, understood as a limited area, produced by the political action of social groups in dispute, provides a physical and symbolic basis for the exacerbation of differences within the group, marked by the use of contrasting diacritics which also work as a response to the social-cosmic conflicts expressed in the shamanic aggressions. The

Ambiente, saúde e estratégias de Baniwa do Alto …...Rio Negro. Ambiente, saúde e estratégias de territorialização entre os índios Baniwa do Alto Rio Negro Environment, health

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Tellus, ano 10, n. 18, p. 39-63, jan./jun. 2010Campo Grande - MS

* Médica e Antropóloga.Centro de Pesquisas

Leônidas & Maria Deane-Fiocruz e UniversidadeFederal do Amazonas.

[email protected]** Educadora. Mestranda do

Programa de Pós-Gradua-ção de Antropologia Social.

PPGAS/UniversidadeFederal do Amazonas.

*** Cientista Social.Mestrando do Programa de

Pós-Graduação Saúde,Sociedade e Endemias na

Amazônica/PPGSSEA.Universidade Federal do

Amazonas/Centro dePesquisas Leônidas & Maria

Deane-Fiocruz/UniversidadeFederal do Pará.

**** Ecólogo/InstitutoSocioambiental, Programa

Rio Negro.

Ambiente, saúde e estratégias deterritorialização entre os índios

Baniwa do Alto Rio NegroEnvironment, health and strategies for

territorialization among the Baniwaindians on the Alto Rio Negro

Luiza Garnelo*

Laise Diniz**

Sully Sampaio***

Adeilson Silva****

Resumo: O artigo analisa estratégias de territorialização empreendidaspelo grupo indígena Baniwa marcadas pela produção de fronteiras mate-riais e simbólicas entre as fratrias e sibs, segundo a perspectiva mítico-cosmológica, da política do parentesco e das relações contato interétnico.O território nativo, entendido como espaço delimitado, produzido pelaação política de grupos sociais em disputa, oferece base física e simbólicaà exacerbação das diferenças internas do grupo demarcadas pelo uso dosdiacríticos contrastantes que também operam como resposta aos confli-tos sociocósmicos expressos nas agressões xamânicas. A geografia míticaBaniwa expressa relações espacializadas com a alteridade cósmica e dis-tinções hierarquizadas entre os consanguíneos que modulam a apropri-ação de recursos ambientais necessários à subsistência. Produziu tam-bém um conjunto de práticas tradicionais de cura e cuidados com a saú-de, em que o território, a filiação étnica e a comensalidade têm papelprimordial na manutenção da saúde.Palavras-chave : Índios Sul-Americanos; Noroeste Amazônico; EtnologiaIndígena.

Abstract: The article analyzes territorial strategies implemented by theindigenous group Baniwa, marked by the production of material andsymbolic boundaries between the sibs and brotherhood, from mythic-cosmological perspectives, the policies of kinship and interethnic contactrelationships. The native territory, understood as a limited area, producedby the political action of social groups in dispute, provides a physicaland symbolic basis for the exacerbation of differences within the group,marked by the use of contrasting diacritics which also work as a responseto the social-cosmic conflicts expressed in the shamanic aggressions. The

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mythical Baniwa geography expresses spatial relations with cosmic otherness/alternates and hierarchical distinctions among the brotherhood, which modulatethe appropriation of environmental resources needed for subsistence. Also producedwas a set of traditional healing practices and health care in which territory, ethnicaffiliation and fellowship play a major role in health maintenance.Key-words: South American Indians; Amazon Northwest; Indigenous Ethnology.

Introdução

No Brasil, os estudos sobre os territórios indígenas têm se dedicado,com frequência, a analisar a ação do Estado e de outras agências decontato interétnico que produzem a política fundiária e efetuam a demar-cação das terras indígenas. Nesse âmbito são marcantes os trabalhos deOliveira (1978), Oliveira (1998a; 1988b; 1999), Oliveira e Almeida (1998)Lima (1992; 1998), Lima e Hoffman-Barroso (2002). Esses autores discutema construção histórica da legislação e das práticas indigenistas, preocu-pando-se com as circunstâncias sociopolíticas que criaram estas institui-ções, produziram a figura jurídica da terra indígena e os processos demar-catórios realizados no país.

De acordo com Oliveira, a Constituição brasileira reconhece a terraindígena como o “... habitat de grupos que se reconhecem (e são reconhe-cidos pela sociedade) por manter um vínculo de continuidade com osprimitivos moradores do nosso país” (1998a, p. 44). O autor critica aidéia de habitat que perpassa o dispositivo legal marcado pelo reducionis-mo, por uma visão instrumental de cultura e pela naturalização das com-plexas relações sociais da vida indígena. São pressupostos que restringemas culturas indígenas a um conjunto de instituições e costumes a seremperdidos – ou incorporados – ao longo da história. Neste processo, ocorre-riam mudanças culturais indesejáveis que, na visão do legislador, pode-riam ser evitadas mediante a garantia dada pela demarcação de umterritório.

Os ordenamentos jurídicos da política fundiária indigenista insti-tuem um tipo de territorialização definido pelo Estado brasileiro e impostoaos povos indígenas. Eles também tentam moldar a atuação do antropó-logo no processo demarcatório – remetendo-a a um conjunto de institui-ções e costumes nativos que supostamente atestariam a ancestralidadeda posse indígena sobre o território a ser demarcado – direcionando suasações para tentar torná-las congruentes com a concepção de territórioadotada pelas autoridades (Oliveira, 1998b).

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Analisando a política fundiária indígena no Brasil, Oliveira (1998a)nos informa que, do ponto de vista indígena, a territorialização propostapelos procedimentos demarcatórios é pouco congruente com o modo comoas sociedades indígenas concebem sua relação com o meio em que vivem.Para o autor, a noção indígena de territorialidade é produto de umasíntese entre geografia e cosmologia que tanto expressa seu sistema derelações internas quanto interações com sociedades periféricas ao seumodo de vida. Ressalta também que o estudo desta faceta das sociedadesindígenas pouco se faz presente nos procedimentos legais adotados nosprocessos de demarcação.

Convém lembrar que a política indigenista brasileira não se restringeà demarcação de terras, mas também produz estratégias semelhantesem outros campos das políticas públicas, como as de educação e de saúde.É o que ocorreu, por exemplo, na implantação do Subsistema de SaúdeIndígena, no final da década de 1990, que foi operacionalizado atravésdos Distritos Sanitários Especiais Indígenas1 assentados em territóriossanitários que guardam coerência com as terras indígenas demarcadas(Garnelo et al, 2003a). É uma iniciativa marcada pelos modos de gestãoterritorial da política indigenista brasileira, cujas características e limita-ções já foram devidamente analisados e criticados por Lima (1998),Oliveira (1998a; 1999;) e Oliveira e Almeida (1998), de modo que nãovamos nos deter sobre esta questão.

Geógrafos como Raffestin (1988; 1993) efetuam uma crítica sistemá-tica aos cientistas sociais que, segundo ele, não caracterizaram a territo-rialidade humana com a necessária precisão. Ainda que gerado em cenárioteórico distinto daquele que pauta o estudo da política fundiária indígena,o enfoque da geografia política de Raffestin também explora as limitaçõesdo conceito de habitat desenvolvido pelos biólogos para descrever o modode vida animal. Para o autor, o uso acrítico desta noção produz umaindevida identificação entre seres capazes de simbolizar seu território(os humanos) com outros incapazes de fazê-lo (os animais).

Influenciada por uma geografia política convencional, a políticafundiária do indigenismo estatal molda o conceito de território à estruturae pressupostos do estado-nação. Trata-se de um viés criticado por autorescomo Raffestin (1988) e Cox (1991), que concebem o território como pro-duto de relações de poder imbricadas em interações de gênero, de etnici-dade e de classe. Ambos valorizam o exercício de um tipo de poder polí-tico distinto daquele praticado pelas instituições que monopolizam o poderde Estado.

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Na geografia política de Raffestin, a territorialidade humana é en-tendida como “um conjunto de relações estabelecidas pelos membros deuma sociedade com a exterioridade e a alteridade, com a ajuda de instru-mentos ou de mediadores” (1988, p. 265). Isto implica conceber o territó-rio não como sinônimo de terras ocupadas, mas como produto de umarelação dos agentes sociais com o espaço, e com outros grupamentossociais em disputa pelo controle e pelo usufruto desse espaço. Este usodo espaço gera subdivisões que configuram os diversos territórios neleproduzidos. Em suma, Raffestin remete o estudo da territorialidade aoplano das interações sociais inscritas no quadro da produção, da troca edo consumo material e simbólico em sociedades específicas, assentadasem espaços delimitados, sob condições históricas determinadas. Muitomais do que uma simples ligação com o espaço geográfico, a territoriali-zação se produz na permanente interação com a alteridade.

Em consequência, o mesmo autor aponta um conceito derivado: anoção de limite (territorial) ou fronteira, lembrando que sua produçãoigualmente é fruto de relações sociais pautadas por um senso de exclusi-vidade e de compartimentalização no uso do espaço (1988, p. 162). Nessaótica, tanto o território quanto sua delimitação exprimem a relação quedeterminado grupo social mantém com uma porção do espaço sobre aqual tenta exercer o monopólio de uso, em detrimento de tentativas simi-lares de outros grupamentos sociais voltadas para a mesma finalidade(Raffestin, 1988, p. 153).

Para Raffestin, a territorialização das redes sociais2 promove tam-bém a hierarquização do território, que pode ser ordenado segundo ograu de importância atribuída aos diferentes espaços nele contidos, quesão delineados de acordo com prioridades materiais e simbólicas dos gru-pos sociais que o ocupam (1988, p. 150-151). Assim, os territórios nãosão homogêneos, comportando, pelo contrário, diferenciações internasque são gerenciadas pelas redes de poder que nele operam. É umaconcepção dinâmica da territorialidade que permite mapear a posiçãorelativa dos sujeitos sociais em seus embates com a alteridade.

Raffestin também nos lembra que na análise da dinâmica territorialfeita através das redes de poder que o constituem, “o que importa saber éonde se situa o Outro, aquele que pode nos prejudicar ou nos ajudar, aqueleque possui ou não tal coisa, aquele que tem acesso ou não a tal recurso” (1988,p. 156). Trata-se de entender as redes sociais de gestão do território comoestratégias de asseguramento, influência, controle, interdição ou permis-são de acesso e usufruto dos benefícios obtidos na territorialização em-preendida pelo grupo.

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Partindo de um ponto de vista antropológico, Rios (2006) chega aconclusões semelhantes, por entender que o território não deve ser vistoapenas como espaço de relações binomiais do tipo natureza-cultura. Parao autor, o território deve ser entendido como o tempo espacializado dasatividades humanas inseridas em contextos específicos. Em consequência,o estudo do território e o entendimento de suas transformações históricasdemandam a investigação das formas locais de interação social – tomandoo cotidiano dos sujeitos como centro da investigação – e o entendimentoda interação entre os âmbitos local e o global, em mútua retro alimentação(2006, p. 109-110).

O texto é tributário também dos estudos de Eduardo Viveiros deCastro (2002a; 2002b; 2002c) sobre as características da alteridade e daafinidade na Amazônia indígena. A análise do autor sobre a questão dodravidianato na Amazônia situa a afinidade num plano privilegiado deanálise, mas sem que se perca de vista as interfaces com a consanguini-dade, uma categoria analítica de alta relevância no contexto rionegrino.

Ao revisitar o tema do parentesco amazônico, Viveiros de Castroenfatiza seu caráter ambíguo e dinâmico, caracterizando-o como umconjunto de interseções, com predominância da consanguinidade emseu interior e uma crescente influência da afinidade nos planos maisexternos dessa rede de relações dominada por um gradiente que congre-ga também afins potenciais e inimigos irredutíveis. O autor chama atençãopara algumas especificidades dessas relações na Amazônia, pois entendeque, num plano político, ritual e cosmológico, a afinidade predomina eengloba a consanguinidade. Num plano local e cotidiano da vida, eledemonstra a preponderância da consanguinidade, facilitando a expressãodas hierarquias de parentesco, como ocorre no noroeste amazônico.

O conjunto dessas premissas teóricas orienta a elaboração do presen-te artigo interessado na síntese nativa entre geografia e cosmologia, queoferece suporte ao processo de territorialização efetuado pelo grupo indí-gena Baniwa em seus locais ancestrais de moradia e outras formas deocupação. No estudo, buscaremos aprender a geografia mítica Baniwa, aqual, além da rica fusão entre a espacialização e a cosmologia, tambémexpressa formas de incorporação de espaços diversificados em seu sistemade relações, instituindo redes de poder de base territorial. Tais redes tam-bém operam, segundo o ponto de vista nativo, através dos ritos de passa-gem, das trocas matrimoniais, bem como das relações de contato interétnico.

Explorando a produção mítica, os ritos de passagem e de cura,tentaremos demonstrar modos como os Baniwa efetuam a territorializa-ção das terras que ancestralmente ocupam e como as relações etnopolíticas

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travadas entre as fratrias que formam seu tecido social intervêm na cons-trução do espaço-território. Igualmente analisaremos como a noção nativade território configura sua interação com as diversas agências de contatocom as quais o grupo vem interagindo, ao longo de sua história. Trata-se,portanto, da exploração analítica de três planos da territorialização: omítico-cosmológico, o da política do parentesco e aquele instituído segun-do a dinâmica das relações interétnicas.

Espacialização e demarcação da diferença no mundo Baniwa

O grupo indígena que é conhecido no Brasil como Baniwa3 vive nonoroeste amazônico e ocupa um conjunto de terras demarcadas no muni-cípio de S. Gabriel da Cachoeira, Alto Rio Negro. Ainda que numerosasfamílias tenham migrado nas últimas décadas para as áreas urbanas demunicípios distribuídos ao longo do curso do Rio Negro, a maior parteda população permanece residindo em terras tradicionais do grupo.

A cosmologia Baniwa descreve um conjunto de relações hostis tra-vadas entre uma família ancestral – formada por Ñapirikoli e seus irmãos– e animais-espírito como os macacos-trovões (Eenonai), ou as grandesserpentes (Omawali) que deram origem aos peixes, uma das principaisfontes de alimentação do grupo. Ñapirikoli busca esposas entre afins hostise canibais como os peixes-piranha, em tentativas, frequentemente malsucedidas, de domesticação de uma alteridade agressiva. Uma das mulhe-res de Ñapirikoli foi sua tia Amaro, que representa a mulher humanaprimordial, com quem o herói concebeu um filho (Kowai), de cujo corpovenenoso se originou grande parte dos males que acometem os Baniwa.A morte de Kowai, assassinado pelo próprio pai, deu origem aos ritos depassagem e de cura. De suas cinzas nasceu uma grande árvore que setransmutou no conjunto de flautas que propiciaram a expansão do mundoe a produção de homens adultos a partir do rito pubertário masculinomarcado pela música das flautas kowai (Wright, 1993-1994; Garnelo,2003).

No mundo primordial, Ñiapirikoli empreende diversas estratégiassimultâneas que visam o controle da alteridade hostil: casa-se com mu-lheres oriundas de sociedades não humanas hostis, empreende guerrascom as serpentes/peixes canibais buscando eliminá-las, caça os macacosEenonai, donos dos venenos, e assim por diante. Por sua vez é caçadopelo avô Timbó, seu irmão é morto por afins agressivos numa festa detroca de alimentos (pudali) realizada no território inimigo, a qual termina

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em violência e morte. Nesse âmbito, a relação primordial com a alteridadeé a de violência incontornável que periodicamente ressurge, apesar dasmedidas tomadas para evitá-la. Se pensarmos nos termos sugeridos porViveiros de Castro (2002a), o tempo-espaço mítico é aqui, expressão privi-legiada da alteridade e da afinidade. Nele, mesmo consanguíneos comoKowai, filho de Ñiapirikoli, se mostram de tal modo estranhos e perigososque precisam ser exilados para o céu distante; sua condição de descendên-cia é provisoriamente neutralizada pela distância espacial entre a terra eo céu.

A distribuição atual das aldeias Baniwa obedece a uma espacia-lização regida pela estrutura de parentesco, de modo que cada uma dastrês fratrias4 do grupo (Hohodene, Walipere e Dzawinai) controla territóriosespecíficos distribuídos ao longo do rio Içana e seus afluentes, entre osquais se destaca o rio Aiari, com elevada densidade de aldeias. Este padrãode assentamento resulta na ocupação de microecossistemas distintos entresi. As terras ocupadas pelas fratrias têm características ecológicas diversas,havendo regiões de caatinga (hamáliani), terra-firme (éedzawa), igapó(álape), capoeira (heñame) e outras. Algumas dessas microrregiões contêmlagos e igapós que facilitam o acesso aos recursos pesqueiros por aquelesque exercem controle político sobre elas. Já as terras-firmes e capoeirassuportam um sistema de agricultura de corte e queima capaz de sustentara produção de farinhas e outros produtos agrícolas. Das caatingas sãoextraídas madeiras e fibras de relevante importância para a construçãode habitações e utensílios para a navegação (ISA, 2008).

A diversidade ambiental dos territórios ocupados pelos membrosdas fratrias gera inúmeras possibilidades de apropriação de recursosnecessários à subsistência, tais como terras cultiváveis, lagos piscosos,recursos de caça e coleta, disponibilidade de plantas medicinais e outros.A desigualdade de oferta de recursos necessários à reprodução materiale simbólica da sociedade contribuiu para o estabelecimento de uma com-plexa rede de trocas, entre os grupos de parentesco, mediadas pelas obri-gações de reciprocidade entre consanguíneos e trocas matrimoniais entreafins. Produziu também uma complexa interdependência entre os diver-sos assentamentos humanos que vivem na região. Tais relações têm sidoancestralmente sustentadas por relações de parentesco e de afinidadeque instituíram normas que regulam a punção dos recursos de subsistên-cia, entre os quais os mananciais de pesca têm lugar preponderante.

A história oral Baniwa nos informa que a distribuição de seus as-sentamentos pouco mudou ao longo dos mais de trezentos anos de con-tato interétnico, comportando movimentações de maior ou menor

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interiorização nas regiões de terra firme, de acordo com a intensidadedas pressões colonizatórias. Os deslocamentos dos grupos de parentescotêm registro sistemático na tradição oral, havendo diversas narrativasque tratam da dinâmica de ocupação dos territórios frátricos (Wright,1990; 1998; 1992a). É possível encontrar membros da fratria Walipereresidindo em terras reconhecidas como Hohodene, e vice-versa, mas talsituação costuma ser atribuída a acordos firmados entre cunhados5, de-monstrando a existência de um firme controle frátrico sobre as terrasconsideradas como parte do domínio de cada uma delas.

As narrativas igualmente nos informam sobre a existência de anti-gas batalhas travadas entre as fratrias, ou com outros povos rionegrinos.Estudiosos como Wright (1990; 1992b), Hill (1984), Hill e Wright (1988)e Journet (1980-1981) analisaram a dinâmica de incorporação de fraçõesde uma fratria por outra, e mesmo a de membros de outras sociedadesindígenas. Tal movimentação demográfica tinha seu equivalente ter-ritorial expresso na disputa por espaços obtidos pela força das ações guer-reiras. Tendo cessado completamente há mais de um século, a guerraperdeu sua importância como impulsionadora da dinâmica territorialBaniwa, havendo hoje uma relativa estabilidade na delimitação de frontei-ras do território de cada fratria.

Ainda que reconhecidos por todos, os limites territoriais de cadagrupo podem ser relativizados de acordo com a posição frátrica de quemfala sobre o tema. Assim, um membro de determinado grupo de paren-tesco pode reivindicar para si e para seus consanguíneos o controle sobreum lago mais piscoso, ou uma mancha de terra favorável para a aberturade roças, tentando – em geral sem muito sucesso – legitimar suas preten-sões junto a outros demandantes.

Tais características expressam o caráter dinâmico dessas interações,na medida em que as relações de descendência não são as únicas deter-minantes do controle do território. Elas também são influenciadas pelasredes multicomunitárias que congregam afins em maior proximidadegeográfica, com os quais partilham relações político-rituais. Trata-se,portanto, mais de uma relação de coexistência entre esses dois polos doque de exclusão mútua (Viveiros de Castro, op.cit).

Diferentemente de outros povos rionegrinos, os Baniwa não prati-cam a exogamia linguística. O falar de cada grupo de consanguíneoscomporta pequenas variações que não obstaculizam a inteligibilidademútua. A não-adoção da exogamia linguística em nada prejudica a ativaconstrução de estratégias de demarcação das diferenças e da produção

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de distinções materiais e simbólicas que delimitem com precisão as linhasidentitárias internas do grupo.

Em termos cosmológicos, a territorialização que viabilizou a existên-cia da futura humanidade se dá em prejuízo da alteridade. Alguns mitosque tratam das interações entre os seres-espíritos Yóopinai e os humanosestão intimamente conectados aos processos de territorialização empreen-didos pelos ancestrais míticos. Os Yóopinai são entes que habitam os maisdiversos ambientes, pois existem Yóopinai do ar, da água e das pedras.As narrativas transmitem a ideia de que todo o espaço ocupado pelosBaniwa é obrigatoriamente partilhado com aqueles seres, outrora hu-manos, que foram transformados em animais-espíritos por desobedece-rem às restrições alimentares adequadas à condição liminar de seu apren-dizado xamânico. Segundo os narradores, aos nossos olhos, os Yóopinaisurgem como insetos, peixes e algumas classes de mamíferos como a ari-ranha. Eles transitam entre a condição de animal comum e a de Yóopinai,cujo ataque pode causar doença e morte às pessoas. Sua relação com oshumanos é de permanente hostilidade, desde o início do mundo, quandoo herói criador, Ñapirikoli, roubou diversos bens dos Yóopinai – como,por exemplo, a capacidade de amadurecer os frutos das árvores – a fimde beneficiar a futura humanidade que partilha seus espaços de moradiacom esses seres.

Como se observa num trecho de uma narrativa mítica transcritaabaixo, o território Baniwa é objeto de um minucioso mapeamento, noqual os acidentes geográficos são reconhecidos, nomeados e simbolizados,sendo correlacionados com eventos míticos que explicam a origem e formasde organização da sociedade, tanto da sociedade Yoópinai quanto da socie-dade Baniwa, e com a produção de doenças tradicionais. Essa geografiamítica também expressa a espacialização das malocas dos Yóopinai quegozam de uma estrutura hierárquica de parentesco similar à dos Baniwa.A narrativa em pauta trata de uma viagem de Ñapirikoli e seus irmãos aoigarapé Pamáali, antiga região de moradia da fratria Walipere.

Entrando no lago que tem na foz do igarapé Pamáali, Ñapirikoli deter-minou que o lugar fosse chamado de Híipamiyawa (os Baniwa tradu-zem para o português o vocábulo hiipamida como leishmaniose) edisse que para os netos seria proibido comer alimentos dali; caso ofizessem ficariam com a doença que tem o nome do lago. Subindo umpouco mais ele encontrou um poço que chamamos dedzokopawadawaro (curvado) e um igarapé que também é curvado(dzokopawa). Nesse lugar mora uma família de Yóopinai que atiramflechas nas pessoas; essas flechas causam uma dor que faz uma curvano corpo da gente, é por isso que essa região tem o nome de Dzokopakoa

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(lugar dos curvados). Subindo mais o igarapé Ñapirikoli chegou numalto de terra que se chama de Koomalhianaa (poço do líquido dotucumã), porque aqui, quando os Yóopinai acertam os homens com asflechas de poder deles, elas são feitas com espinhos de tucumã; doferimento sai um pus que parece vinho de tucumã. Subindo o igarapéencontramos Eewawikami (lugar amarelo pálido) é o lugar ondeÑapirikoli morava. Nesse lugar ninguém deve pisar nas pedras; elastêm desenhos que ele mesmo desenhou, com o dedo dele... Continuan-do a subir encontramos um estirão comprido e uma correnteza quechamamos de estirão do tucumã-poço; aqui também tem Yóopinaimorando na correnteza. Continuando a remar logo adiante encontra-mos outra correnteza que se chama ñewiapi (lontra); ali moram umaslontras, mas elas são Yóopinai... passando três estirões encontramosum lugar chamado Ttewipiana; ali tem uma pedra grande onde nin-guém deve pisar porque é a morada do pai dos peixes que pode atacara gente. Passando esta temos outra pedra chamada Ñepoli (libélula)que fica na foz de um igarapé que deságua bem na pedra de libélula.Também ninguém deve tocar nesta pedra, porque se ela for tocadalogo vem chuva e muita tempestade. Quando os Yóopinai que moramneste lugar acertam uma pessoa ela fica doida, fica voando pra lá e pracá como se fosse uma libélula mesmo.

O trecho selecionado ilustra uma ativa apropriação material e sim-bólica do espaço ocupado não apenas pelos Baniwa, mas também poroutras sociedades não-humanas com quem competem, disputando recur-sos de subsistência e bens simbólicos, na dinâmica da territorialização. Oconhecimento minucioso do território visa não apenas a apropriação dosmeios de subsistência, mas também a defesa contra seres hostis quediuturnamente ameaçam a saúde humana.

A gestão territorial do grupo também pode ser apreendida nos cân-ticos tradicionais (malikai) recitados em rituais de passagem no pós-nasci-mento, na puberdade e na cura de doenças. Wright (1993) e Hill (1984)analisaram ritos de nascimento (kalidzamai) entre os Hohodene, no Brasil,e entre os Wakuenai, na Venezuela, respectivamente. Um dos componen-tes mais importantes desses ritos é a recitação de cânticos pelo especialistanativo. Boa parte da litania consiste na nomeação de locais sagrados –palco de eventos primordiais que viabilizaram a existência da humani-dade – e dos espíritos agressivos que habitam o espaço cósmico, visandoneutralizar sua periculosidade. A eficácia do rito exige a recitação dosnomes dos espíritos e dos locais sagrados em uma sequência precisa,ordenada segundo a hierarquia de poder e de periculosidade dos primeirose a disposição geográfica dos segundos. A ordem de nomeação dos locaissagrados também segue a trajetória das viagens empreendidas pelosmembros da família primordial, no processo de criação do mundo.

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Segundo Wright (1993) a versão Hohodene dos cânticos kalidzamaicontém um conjunto de citações que visam neutralizar a ameaça potencialdos seres-espíritos ao bem-estar do recém nascido de sua família. O autorconclui que se trata de um tipo de xamanismo de agressão; um tipo deguerra simbólica em que o especialista nativo busca “decapitar” e “matar”o inimigo antes que ele possa causar dano aos humanos. Em outros cânti-cos deste mesmo ritual, Wright descreve um circuito de viagens feitaspelas mulheres primordiais (Amaro), perseguidas por Ñapirikoli, apósterem se apropriado indevidamente das flautas kowai. Em sua fuga, elastocam as flautas sagradas, expandindo o mundo até que ele adquira suaforma atual. A narrativa nomeia diversos locais que demarcam os territó-rios ocupados por consanguíneos e afins e por aliados e inimigos. Elaprovê um mapeamento dos locais perigosos contra os quais o cânticodeve proteger o recém-nascido; viabiliza também um reconhecimentodos espaços cujo usufruto será garantido pela condição de nascimentoda criança. Em outros trechos, os cânticos Hohodene descrevem percursosque atestam a vivência colonizatória dos Baniwa, já que os personagenstambém se deslocam para locais remotos como Caracas, Manaus e Portu-gal. Wright (op. cit) considera que essas produções culturais operam comomarcos delimitadores da identidade grupal e demonstram um conheci-mento sistemático não apenas dos tradicionais locais de moradia do gru-po, mas também daqueles ocupados por aliados e inimigos (outros índi-os rionegrinos e colonizadores) oriundos de regiões distantes do mundoBaniwa.

Informações coletadas por Garnelo (2007) entre a fratria Waliperetrazem narrativas de guerras travadas por Ñapirikoli e seus irmãos comas serpentes e outros predadores primordiais, cujo controle sobre os riose lagos inviabilizava o acesso da futura humanidade (walimanai) aos re-cursos pesqueiros. Nessas narrativas, o desenrolar dos eventos é marcadopela passagem dos personagens por locais estratégicos, tais como serras,cachoeiras e outros acidentes geográficos onde foram travadas as lutasem que Ñapirikoli e seus aliados mataram ou expulsaram os grandes pre-dadores, abrindo caminho para os assentamentos humanos.

Os mitos Walipere que tratam da origem dos rios, lagos, dos peixese das artes de pesca são pródigos em mostrar que a expansão dos limitesda territorialidade humana se fez a expensas da alteridade. O processode apropriação de novos espaços garantiu a dominância dos sujeitossociais humanos sobre os “pais” dos peixes (as grandes serpentes) que,segundo as crenças Baniwa, controlavam as paisagens aquáticas e asprincipais fontes alimentares disponíveis no mundo.

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No plano humano da política de parentesco e da aliança, as estra-tégias de territorialização se fazem vivamente presentes nas relaçõesestabelecidas entre os sibs e as fratrias, como pode ser exemplificado peladistribuição espacial das aldeias Baniwa. Segundo este padrão, os assen-tamentos se distribuem ao longo dos maiores cursos d’água, obedecendoa uma lógica de proximidade espacial entre aldeias de sibs consanguíneos,o que permite delinear com bastante precisão o território pleiteado pelasfratrias, bem como a delimitação das áreas sob controle de cada aldeia.A relação diretamente proporcional entre proximidade geográfica econsanguinidade obriga os homens a buscarem esposas em aldeias maisdistantes, onde costumam residir os afins potenciais, já que a norma socialproíbe o matrimônio entre consanguíneos. Uma das consequências dessadinâmica é a formação de redes de relacionamento constituídas a partirdas trocas matrimoniais que cruzam o território do grupo em diversasdireções, promovendo a interação política entre as chefias locais eviabilizando a apropriação de recursos naturais necessários à subsistên-cia, dada sua distribuição desigual no território.

As redes de interações territoriais ordenadas segundo os acordosmatrimoniais expressam-se igualmente nos ritos instituídos em torno daalimentação. Em seu estudo sobre as trocas rituais de alimentos (pudali)praticadas pelos membros da fratria Dzawinai, Jonathan Hill (1987) de-monstra não apenas a associação entre territórios frátricos específicos ealianças matrimoniais2 como também interdependência entre as fratrias,materializada nas trocas recíprocas de recursos de subsistência e de es-posas entre os afins. Para Hill, as etapas de realização do pudali sãocaracterizadas pela demarcação das diferenças – já que em seus momen-tos iniciais o rito enfatiza a delimitação de fronteiras entre visitantes eanfitriões – que são gradativamente abolidas nos momentos subsequentes.Trata-se de uma domesticação do estranho vindo de longe que, por meioda comensalidade é transformado em alguém próximo e familiar quandoo afim potencial pode se transformar em cunhado de fato. O desenvolvi-mento da festa é marcado pela segregação espacial dos convidados aosquais somente nos momentos finais, é permitido misturarem-seindiscriminadamente com seus anfitriões.

Os dados de Wright (1992a; 1993-1994; 1998; 2004), Hill (1984,1987), Garnelo (2003; 2006; 2007) confluem para a ideia de que a relaçãoBaniwa com a alteridade, humana ou cósmica, é marcada por uma reni-tente hostilidade, ora latente, ora manifesta, que hoje não mais se expressana atividade guerreira, mas sim na produção da doença e da feitiçaria. Éuma situação que exige uma ativa e permanente reafirmação de fronteiras

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– e é assim que interpretamos os ritos de cura e de passagem – que visamreduzir o persistente risco de perda da condição humana, seja pela meta-morfose num “outro” perigoso e selvagem, seja pela morte como produtofinal da agressão dos inimigos. A interação com as diversas formas dealteridade demanda a produção de estratégias múltiplas de gerencia-mento da diferença. São relações de poder que asseguram ou impedem oacesso e usufruto de espaços por grupos sociais em permanente disputa.

A chamada “política da doença” (Albert, 1998) é outra forma degerenciamento das diferenças. Ela tanto pode incidir no interior das rela-ções políticas travadas entre consanguíneos, quanto na regulação dasdiferenças advindas da alteridade. Do ponto de vista do membro de umafratria específica, a alteridade tanto pode ser representada por pessoasde outras fratrias Baniwa quanto por outros grupos étnicos, pelos não-indígenas e também pelas sociedades não-humanas com a quais acreditampartilhar seus locais de moradia.

Entre os Baniwa, as teorias causais de doença frequentemente estãorelacionadas à espacialização das relações sociais. As doenças atribuídasa agressões perpetradas por agentes humanos costumam ser priorita-riamente remetidas aos afins. Em consequência, o deslocamento de umapessoa para regiões de moradia de não-consanguíneos demanda umasérie de medidas especiais de proteção que visam evitar – ou minimizar –os efeitos de doenças como os venenos mánhene e dos sopros hiwiathi, jáque, na concepção Baniwa, “quem mais mata a gente é cunhado”. Oprocesso saúde e doença remete, portanto, às estratégias de socializaraqueles que estão fora do jogo de interações entre consanguíneos, trazen-do-os para o espaço relacional da familiarização do afim potencial oureal, na busca de reduzir a periculosidade intrínseca a sua condição.

Estudos de Garnelo e Wright (2001) e Garnelo (2003) mostram que,neste grupo, a causalidade última de doença está essencialmente ligadaaos conflitos sociocósmicos e à predação. Garnelo (op. cit) identificouentre os Baniwa quatro grandes categorias de doença: 1) doenças oriun-das de relações conflituosas travadas entre os humanos, tais como o vene-no (mánhene), os sopros (hiwiathi); 2) doenças causadas pela agressão deseres-espíritos como os Yóopinai, guardiões das plantas, dos animais edas águas ou como os Awakaroona, espíritos da floresta; habitualmenteesse tipo de agravo está ligado à predação excessiva e ao descumprimentodas restrições alimentares e sexuais em situações de liminaridade; 3) doen-ças causadas pela agressão direta de animais, como os peixes e as serpen-tes; 4) doenças derivadas da agressão dos seres-estrela, que flecham osjovens que desrespeitem as regras de reclusão pubertária, ou dos macacos-

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trovões (Eenonai) mobilizados por xamãs agressores (Garnelo, 2003). Aeclosão e a perpetuação da doença estão intimamente ligadas à gestãopolítica das relações com a alteridade, humana ou não humana, a qualguarda forte expressão espacial, dado o domínio territorial específico decada grupo em disputa.

Os conflitos que eclodem no plano humano atual guardam certassimetrias com os sucessivos revezes nas relações travadas entre Ñiapirikolie seus sogros, cunhados e desafetos diversos, oriundos de sociedades nãohumanas, como os peixes, os pássaros, as onças e outros animais, osquais, do ponto de vista do herói civilizador, representavam a alteridademítica ancestral.

Seja no plano cosmológico ou no da sociologia do parentesco, otema que aqui surge de modo recorrente é a alteridade, ou seja, os modoscomo a exterioridade conforma as condições internas do viver indígena.Em tais circunstâncias, a afinidade assume o caráter estratégico de umfenômeno político e ritual que media as relações entre o plano local e ocontexto global em que se desenrola a vida social (Viveiros de Castro,2002a).

Vivências colonizatórias e etnodesenvolvimento

Nesta seção, vamos analisar como instituições e modos de vidanativos influenciam nas estratégias de organização de projetos de desen-volvimento sustentável e de gestão das terras demarcadas, efetuandouma territorialização calcada, por um lado, na reafirmação das fronteirasidentitárias intragrupais6 e, por outro, na aliança com não-indígenas,tais como membros do movimento ambientalista.

A noção de limite e de finitude de seu território já era conhecidapelo grupo bem antes da demarcação de suas terras na década de 1990.A demarcação não parece ter gerado repercussões práticas na gestãoterritorial, no que se refere aos limites externos das terras dessa etnia.Entretanto, no plano interno, nos limites dos territórios frátricos, um con-junto significativo de tensões vem se processando, menos em consequên-cia da demarcação e mais como decorrência de disputas no chamadomercado de projetos, cujo acesso está intimamente ligado à disponibili-dade de certos recursos ambientais a serem explorados sob o selo dadiferenciação étnica, mediante atividades gerenciadas pelas organizaçõesindígenas Baniwa (Garnelo, 2003).

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A história oral Baniwa é pródiga em assinalar os deslocamentos ereocupações territoriais, seja por mudanças de aldeamentos no interiorde um território frátrico, seja pela ocupação de terras de uma fratria pormembros de outra (Wright, 1992b). Entretanto, as formas tradicionaisde regulação dessa movimentação - a guerra ou os acordos matrimoniais- têm se mostrado pouco capazes de resolver disputas contemporâneas,como as estruturadas em torno da exploração de recursos pesqueiros eda comercialização de cestos de fibras de arumã (Ischnosiphon spp.) desti-nados à exportação.

Como anteriormente dito, o padrão de assentamento regulado peloparentesco gera uma apropriação desigual de recursos naturais a seremutilizados pelos produtores indígenas. A existência de um controle frátricosobre determinadas frações do território inviabiliza, ou pelo menos difi-culta, o acesso irrestrito dos membros de uma determinada fratria a recur-sos disponíveis em territórios gerenciados por outra. No caso dos recursospesqueiros existe uma concentração de lagos piscosos nas áreas controla-das pela fratria Dzawinai. De acordo com os costumes tradicionais, osmembros de outras fratrias podem ter o direito de pesca para consumodoméstico, desde que obtenham permissão dos chamados “donos doslagos” 7.

Na visão de informantes Dzawinai do médio Içana, além de usarabusivamente o timbó8, os pescadores de outras fratrias também nãoatenderiam à regra que institui um pedido de permissão para pescar emterritório Dzawinai. Segundo os informantes da pesquisa, os pescadorestampouco exercitariam a reciprocidade, não recompensando a generosi-dade dos “donos de lagos” com a oferta de parte do produto da pescaem troca da permissão concedida para desenvolver tal atividade. Já aversão Walipere dos mesmos eventos tende a negar os direitos de regulaçãoda pesca pelos Dzawinai.

A idéia de que haja uma redução progressiva da população depeixes é objeto de preocupação recorrente entre as chefias de aldeias.Sob os auspícios da Organização Indígena da Bacia Içana (OIBI), foidesenvolvido, entre os anos de 2006 a 2008, um diagnóstico sobre a situa-ção de pesca na região do médio Içana, uma área que conta com várioslagos piscosos. Ao longo de um ano, efetuou-se um registro diário daprodutividade pesqueira de 17 aldeias. Resultados preliminares dessainiciativa confirmam que existem significativas diferenças em termos deprodutividade pesqueira entre essas comunidades, o que por sua vezgera grandes, e cada vez mais frequentes, movimentações em busca dopescado, quase sempre direcionadas para a região dos lagos Dzawinai.

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Na interpretação indígena sobre a situação da pesca está em cursouma significativa redução da quantidade dos peixes disponíveis para oconsumo nas comunidades. A origem atribuída a este problema remete,num plano mais imediato, a razões objetivas, como o incremento da po-pulação humana e o consequente aumento da punção dos lagos e igapós;o abandono das artes tradicionais de pesca e a adoção de técnicas moder-nas, mais eficazes e predatórias; os efeitos cumulativos do costume depescar em grandes quantidades nas épocas de piracema, antes da desovados peixes; ao uso indiscriminado do timbó; e à falência de processostradicionais de gestão política do uso dos mananciais de pesca. De acordocom os informantes, o processo teria se exacerbado após a emigração degrande parte das famílias Dzawinai que, em território brasileiro, exerciampapel crucial na regulação das práticas de pesca e detinham importantesconhecimentos sobre cuidados necessários à preservação das condiçõesambientais adequadas à reprodução dos peixes nos lagos.

Num plano mais profundo de atribuição causal, as explicações na-tivas remetem ao “estrago” (isto é, ao xamanismo de agressão) dos lagospor xamãs inimigos dos moradores do médio Içana; e ao roubo, por mora-dores de regiões com escassez de peixes (ou seja, os afins residentes rioacima), de pedras-espírito que garantem a reprodução dos animais aquá-ticos. Em suma, são explicações que remetem a origem do problema aosconflitos com a alteridade. Negadas pelos imputados, tais acusações seincorporam ao rol de conflitos gerenciáveis, mas não solucionáveis, dapolítica do parentesco Baniwa.

Essas contradições têm crescido paulatinamente e, no período de2004 a 2007, observou-se um número expressivo de mortes atribuídas aoenvenenamento, como saldo da disputa pelos direitos de pesca. À medidaque as tensões se acumulam, os que se atribuem o papel de guardiõesdos lagos vêm contestando o direito de moradia (e de exploração doslagos) dos Walipere da vizinhança, instando-os a retornarem ao curso doigarapé Pamáali , onde viveram por quase cem anos, fugindo daarregimentação forçada promovida pelos colonizadores.

Outra dimensão da territorialização entre os Baniwa está ligada àconversão religiosa. Na década de 1940, um intrincado processo deevangelização empreendido pela missionária americana Sophie Miller,cuja atuação sacudiu a modorrenta rotina dos missionários salesianos,previamente instalados no baixo Içana, dividiu os membros dessa etniaem católicos e protestantes (Wright, 1999).

A conversão cristã, que dividiu os Baniwa em evangélicos e católicos,também tem expressão espacial. Por razões que ainda não apreendemos

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completamente, os Dzawinai que residem ao longo de ambas as margensdo Içana e foz do Aiari são católicos. Porém, a maioria dos Walipere, quegraças a antigos acordos matrimoniais vivem em território Hohodene norio Aiari, bem como aqueles que ocupam as margens do Içana, é pratican-te da religião evangélica, tal como seus afins (Curripaco) que vivem nostrechos mais altos do rio, em terras controladas por suas próprias fratrias.Já os Hohodene que vivem no rio Aiari também são afins dos Walipere,ainda que majoritariamente católicos.

À medida que a influência externa decaiu nas décadas seguintes àconversão evangélica, os indígenas ampliaram seu controle sobre o exer-cício da religiosidade. Em consequência, diversas famílias retomaram afé católica, ao passo que outras persistiram na religião protestante. Nessamovimentação, a filiação religiosa resultou em mais uma das muitas for-mas de demarcação de diferenças no interior do mundo Baniwa, instituin-do territórios simbólicos que podem unir – pela força da fé – grupos resi-dentes em áreas contíguas, pertencentes, ou não, ao mesmo grupo deparentesco.

A conversão também gerou formas singulares de socialização en-tre seus adeptos. Os evangélicos têm hoje como rito principal as chamadasconferências evangélicas, grandes reuniões religiosas que congregam a par-ticipação de moradores de várias aldeias. As conferências não são organi-zadas de modo aleatório; ao contrário, cada rito é ordenado segundo oschamados grupos de conferência, que aglutinam aldeias geograficamentepróximas, mesmo quando pertencentes a fratrias diferentes. Um grupode conferência pode congregar majoritariamente os membros de umaúnica fratria (como ocorre, por exemplo, no médio Içana), ou unir famíliasWalipere e famílias Hohodene com a mesma finalidade (como no médioAiari) (Wright, 1999).

Ainda que as tensões entre afins (reais ou potenciais) possam serrelativizadas durante a realização periódica desses ritos religiosos, osdados evidenciam maiores níveis de conflitos nas reuniões que congregamgrande número de afins. Porém, essa modalidade de territorialização,sem paralelo nos aldeamentos católicos, também resulta numa mobili-zação política que favorece alianças estabelecidas através do associati-vismo indígena.

O sucesso na realização das conferências é fonte inestimável deprestígio, que cresce proporcionalmente à oferta de alimentos pelos anfi-triões. Isso exige um grande esforço de pesca, numa região onde é habituala escassez de peixes e de animais de caça. Informantes católicos atribuemaos organizadores de conferência um uso exacerbado de timbó para

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incrementar sua produtividade na pesca. Com pressa, e necessitados deuma grande quantidade de alimento para recepcionar seus convidados,os últimos são acusados de colocar timbó nos lagos, produzindo umagrande mortandade de peixes.

A definição dos limites (liokakawa) entre os territórios frátricos éuma ação política e, portanto, ambígua, podendo ser reinterpretada ealterada de acordo com o ponto de vista de quem os define. Assim, parao membro de uma fratria, a fronteira de seu território pode se estenderpara abranger uma região que contenha um lago piscoso ou um trechode terreno mais fértil. Tal pretensão pode ser contestada por seus vizinhosque situariam as fronteiras de seus próprios domínios um pouco maisacima ou abaixo do local pleiteado pelos primeiros. Na condição atualde vida Baniwa se observa uma “luta para se apropriar do passado”através da recriação ativa das diferenças frátricas e internas entre osconsanguíneos, produzindo a aparência de descontinuidades identitáriase delimitando fronteiras que incidem sobre os “outros” adjacentes. Nessecaso, o território oferece uma base física e simbólica à exacerbação dasdiferenças, sempre referidas a espaços específicos – a serem mantidos ouobtidos – que alicerçam as disputas políticas ali estabelecidas.

A intensificação no uso dos diacríticos contrastantes é perceptívelno empenho de algumas famílias em valorizar seus conhecimentos tra-dicionais, em motivar as novas gerações para o aprendizado das narra-tivas míticas e outros signos da identidade frátrica. Elas almejam ser re-conhecidas como as mais capazes, e com mais direitos, de efetuar a ges-tão territorial e participar dos projetos de desenvolvimento sustentávelpromovidos pelo associativismo Baniwa.

O clima competitivo é terreno fértil para a eclosão da doença e daagressão xamânica, o que de fato vem ocorrendo. Além das já citadasmortes por envenenamento, diretamente ligadas ao uso dos recursospesqueiros, a intranquilidade entre as chefias de aldeia também podeinfluenciar negativamente a gestão das iniciativas associativistas efragilizar a base de apoio político dessas entidades cindidas entre facçõesque se opõem cotidianamente. Neste cenário conflitivo, as lideranças in-dígenas também competem pela atenção e pela preferência dos assesso-res técnicos vinculados a instituições que atuam na região. Desejosas deestabelecer parcerias capazes de canalizar apoio político às suas iniciati-vas e de acessar recursos a serem redistribuídos entre seus liderados, aschefias locais empreendem vigorosa política de aliança e de sedução dosagentes de contato interétnico. O processo resulta igualmente na territo-rialização dos profissionais não-indígenas, os quais, ainda que idealmente

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vinculados às suas atribuições institucionais, tendem a ser progressiva-mente incorporados a área de influência de certos grupos nativos, inde-pendentemente de sua vontade.

A lógica das interações que articulam território/local de moradia egrupo de parentesco também tende a ser relativizada pelas novas formasde exercício político, como é o caso das associações indígenas. Na últimadécada, alguns dirigentes de associações indígenas Baniwa lograramestabelecer alianças produtivas com entidades ambientalistas, viabilizan-do uma série de eficientes projetos de desenvolvimento sustentável, entreos quais se destaca a comercialização de cestos de fibra de arumã. Aindaque haja uma boa distribuição desta Marantaceae nos diversos territóriosfrátricos, os residentes em terras controladas pela fratria Walipere no rioIçana têm gozado de maior apoio de sua organização indígena. Tal in-fluência tanto se concretiza no âmbito político, para viabilizar uma açãoarticulada entre os artesãos, quanto na provisão de um apoio logísticocapaz de reduzir os custos de transporte e elevar os ganhos dos produto-res. Já os residentes de outras regiões (membros de outras fratrias e filiadosa outras entidades) têm tido menor participação nessa iniciativa, produzin-do-se um campo fértil para disputas de prestígio entre as diversas aldeias.

Cientes do risco de cisão política advindo das disputas de parentes,algumas lideranças indígenas têm fomentado ações articuladas com enti-dades controladas por seus afins, buscado firmar alianças políticas inter-frátricas que visam minimizar as tensões internas e congregar iniciativasconjuntas, unindo os diversos grupos de parentesco. Trata-se de um cálcu-lo estratégico que busca fortalecer o papel dos Baniwa no cenário mul-tiétnico do Alto Rio Negro, mas que também potencializa o desenvolvi-mento de novas formas de gestão das relações frátricas no interior doterritório dominado por essa etnia. Apesar desse potencial inovador, ogerenciamento de uma base política heterogênea (formada por não con-sanguíneos e/ou por afiliados a religiões distintas) tem representado umformidável desafio às formas contemporâneas de exercício da etnopolíticaBaniwa e gerado alguns revezes na trajetória de sucesso do associativismopraticado naquele grupo.

Considerações Finais

A análise das estratégias de territorialização permite observar comose processam entre os Baniwa as relações de poder mediante a criaçãode limites, monopólios, restrições de acesso e controle do uso dos recursos

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entre diferentes grupos. Até o momento atual o poder de delimitar, inter-ditar ou permitir o acesso a porções do espaço (e seus respectivos recursos)aos residentes no território é monopolizado pelo parentesco.

Sendo o território um local preferencial para o exercício das relaçõesde poder, pudemos observar como elas se expressam e como viabilizamos efeitos desejados pelos grupos familiares Baniwa. O quadro se tornamais complexo no contexto de busca de bens e serviços não-inscritos natradição, cuja aquisição exige habilidades distintas daquelas acessíveis atodos na vida comunal. Neste caso, as fratrias também operam comoredes sociais, promovendo a regulação de direitos e obrigações de seusmembros, acionando e redimensionando os antigos circuitos de trocafundados na reciprocidade, com vistas a atender às novas circunstâncias.Também neste plano de existência a delimitação de fronteiras internas ea delimitação de diferenças que incidem sobre os ‘outros’ adjacentes efamiliares implicam cultivar e tornar visíveis os sinais contrastantes quedistinguem consanguíneos entre si e esses últimos com seus afins.

A análise da dinâmica do território permitiu apreendê-lo como pro-duto da posição relativa de sujeitos na sociedade, e dos embates travadoscom a alteridade. As relações de poder aqui analisadas estão ligadas àregulação de direitos e deveres forjada nas demandas da vida cotidiana,em acordo com o princípio da dádiva e da mútua dependência entre asfamílias. Por outro lado, elas também têm íntima relação com o modusoperandi das associações indígenas regidas pela lógica dos projetos, dosdocumentos escritos e das metas pré-estabelecidas. A confluência deambas promove um tipo de regulação de direitos que é simultaneamenteexercida por agentes internos, como o grupo frátrico, e os externos, comoos financiadores de projetos, os comerciantes que adquirem mercadoriascom selo étnico e as instituições públicas dos mais diversos matizes efinalidades.

As estratégias deliberadas de demarcação das diferenças e da pro-dução de fronteiras materiais e simbólicas operaram como eixo condutordo entendimento das relações políticas travadas entre as fratrias e comos agentes de contato. Igualmente permitiram analisar como são geradasas redes de poder dirigidas à gestão territorial, cujas malhas são rastreá-veis no estudo da geografia mítica expressa nas narrativas e nos cânticosde iniciação e de cura, sendo acionadas para atender às necessidadescotidianas das pessoas. Nesse contexto, os locais sagrados surgem comopontos focais de tensão e de disputas de grupos sociais que exercem umaprodução ativa da territorialidade.

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As estratégias de territorialização estudadas estão intimamente li-gadas à reprodução de instituições culturalmente valorizadas no mundoBaniwa, à exacerbação de identidades frátricas – sempre relativas e referi-das à posição do “outro” - que envolvem sistemas multicomunitários decorresidentes, vizinhos próximos e moradores distantes, todos presentesno universo de significados do grupo e a serviço da manutenção de suasfronteiras internas e externas. Não se deve perder de vista a complemen-taridade entre o componente genealógico e o socioespacial, dado que asinterações de consanguíneos entre si e desses com afins não se constituemcomo polos de exclusão mútua e sim como polos relacionais, em um cená-rio dinâmico de interações sempre relativas à posição de cada sujeito.

A análise da tessitura das relações cotidianas descortinou um con-junto de agentes sociais comprometidos com a busca de estratégias, quepodem diferir entre si, mas que guardam em comum o desejo de aprimoraro controle de espaços considerados estratégicos para a preservação davida social. É um cenário que não se restringe à vida social humana, masque se reproduz também no plano sociocósmico, através da contraditóriainteração que os Baniwa mantêm com seres-espíritos como os Yóopinai.A partilha inevitável de seu território gera uma necessidade de defesaperpétua, seja através do minucioso esquadrinhamento das característi-cas do espaço dividido, ou por meio de um elaborado sistema de cura ecuidados que visa promover a saúde, evitar a doença e gerenciar os perma-nentes conflitos que conferem sentido à própria existência humana.

Notas1 No Brasil, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI – são os módulosoperacionais que desenvolvem as ações de saúde destinadas aos povos indígenas.A concepção do modelo de assistência praticado nos DSEI e a efetivação dos cuidadosde saúde ali praticados são pautados pela premissa de um território delimitado,contendo um número pré-determinado de moradias e de pessoas sob a responsabi-lidade de uma autoridade sanitária específica. Trata-se, portanto, de uma variantesetorial da já conhecida territorialização promovida pela ação indigenista (Garneloet al, 2003a).2 Segundo Goudbout (1992), redes sociais devem ser consideradas como conjuntosde relações solidárias de interdependência mútua pautadas pela camaradagem epelas obrigações recíprocas, fundadas na dádiva e na confiança entre seus membros.É característica das redes a personificação dos contatos sociais, a prioridade daspessoas sobre os indivíduos e a reafirmação de laços sociais que influenciam ocomportamento de seus membros. As redes também proveem oportunidades e ins-tituem limites ao trânsito dos indivíduos a recursos disponíveis na sociedade (Fontes,2004). Nas ações corriqueiras do cotidiano, os membros das redes firmam suas

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alianças e partilham objetivos comuns em busca de satisfação de suas necessida-des e de acesso aos aparatos sociais capazes de propiciar a melhoria das suascondições de vida (Melluci, 1996). Para a análise do caso Baniwa, estamos conside-rando as relações de parentesco e de afinidade como redes sociais instituídas noterritório.3 Embora não tenha sido originalmente uma autodesignação, o termo foi adotadopelos membros dessa etnia, residentes no Brasil, ao longo de sua história de contatointerétnico. Na Colômbia, o mesmo grupo é conhecido como Curripaco e, naVenezuela, recebe a designação de Wakuenai.4 O termo fratria designa aqui um grupo ampliado de descendentes de um ancestralcomum. Entre os Baniwa cada fratria congrega um conjunto de sibs nomeados ehierarquizados que constituem um núcleo mais interno da consanginidade e, nãoraro, de corresidentes.5 Cabe lembrar que os Baniwa são adeptos da regra de patrilocalidade predominan-te no noroeste amazônico, segundo a qual o casamento propicia a circulação dasmulheres que passam a residir na aldeia de seu marido; embora existam exceções, amaioria dos homens tende a permanecer em seu local de nascimento. Em consonân-cia com esta norma social, os Baniwa identificam uma aldeia segundo a filiaçãofrátrica dos homens que controlam politicamente a localidade, já que em qualqueraldeia podemos encontrar mulheres de diversas fratrias.6 É importante informar que o uso da identidade genérica “Baniwa” é um recursoque costuma ser usado, principalmente nas interações com membros de outrosgrupos étnicos e com representantes de instituições do estado nacional brasileiro.Nas relações cotidianas travadas no âmbito da política interna do grupo, as identi-dades frátricas são aquelas acionadas com maior frequência.7 Ver a análise feita por Chernela (1986) sobre o tema, para outros grupos indígenasrionegrinos.8 Designação genérica que agrupa várias espécies de leguminosas e sapindáceascom efeito ictiotóxico.

Referências

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Recebido em 20 de outubro de 2009.Aprovado para publicação em 23 de fevereiro de 2010.