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amiga, sentando‑se ao fundo da cama. — Mas sabesmultimedia.fnac.pt/multimedia/PT/pdf/9789722346153.pdf · que a comida estava do agrado do marido. ... A mãe acha que eu não

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— Trouxe os CD que me pediste, Rita — disse a melhor amiga, sentando ‑se ao fundo da cama. — Mas sabes como eu sou... Vai ser barulheira a sério! Tens a certeza de que não vai haver cena por causa dos teus pais?

— Espero bem que não, é o meu dia de anos!— Olha que este tipo de música só dá para ouvir alto,

senão é uma seca...— Está bem, já ouvi, Cristina. Os meus pais são como

são, paciência. A verdade é que nunca me estragaram uma festa de anos.

— Paciência, dizes tu... — continuou a Cristina, pondo para um lado os discos que não lhe interessavam.

— A minha mãe tem cinquenta e o meu pai cinquenta e cinco. Estavas à espera de quê? Milagres? Os teus pais são muito mais novos do que os meus, aliás, todos os outros pais são mais novos do que os meus, que é que eu posso fazer?

— Sempre arranjaste coragem para lhes pedires para irmos a uma discoteca?

— Pedi, mas foi o mesmo que falar para uma parede...— Já calculava. E então?

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— Então? Fazemos a festa lá em baixo, na garagem e, se não chover, podemos sair para o jardim.

A amiga torceu o nariz:— O ano passado, choveu...— Fogo! Obrigadinha pelo otimismo! Com amigos

como tu quem precisa de inimigos?— Pronto, não digo mais nada. Se for preciso, até faço

uma dança, como os índios. Estás contente?— És uma ignorante! Os índios fazem é a dança da

chuva, parva.— Então e o que foi que eu disse?!A Rita encolheu os ombros:— Esquece, que os teus neurónios não estão em grande

forma. Olha, por falar em índios, quero que digas ao teu irmão que também está convidado.

— ‘Tás ‑te a passar ou quê?! — insurgiu ‑se a Cristina, atirando ao ar tudo quanto tinha no colo.

— Que é que foi? O Nuno já não é um bebé! Tem treze anos. Quero que ele venha e pronto, aliás, sempre gostei muito dele.

— Tu está s‑me a ver de óculos, miúda?! Por acaso, sabes o que estás a dizer?! Eu trazer o meu irmão?! Nem morta!

— Vá lá, Cristina, deixa ‑te de dramas. Vou fazer quinze anos: tenho ou não direito a pedir ‑te uma coisa tão simples como trazeres o teu irmão?

— Bom, já que insistes... Tu é que sabes. Depois, não me venhas dizer que ele deu barracadas, que se armou em palhaço e mais não sei o quê, ouviste? Estou a avisar ‑te.

A Rita sorriu:

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— Se ele meter água, tu nem vais reparar, agarrada como estás sempre ao Rui... Por isso, descontrai ‑te, que não vai haver problema. Olha, pena tenho eu de não ter irmãos... Se tivesse, aposto que a minha vida seria muito mais inte‑ressante.

A Cristina voltou a olhá ‑la como se estivesse perante um ser de outro planeta:

— Os quinze anos estão a subir ‑te à cabeça à velocidade da luz... Só dizes bácoras... Mas eu perdoo ‑te, deixa lá... Para que servem os amigos?...

A Rita atirou ‑lhe uma almofada à cabeça e comunicou:— Esqueci ‑me de te dizer que, como é costume, o jantar

é cá dentro, na sala... Tentei fazer ver à minha mãe que podíamos perfeitamente comer lá em baixo, mas ela nem ligou, acho mesmo que julgou que eu estivesse a falar de outro assunto qualquer. Coitada da minha mãe, há coisas que não lhe entram na cabeça. Para a minha mãe só há um lugar decente para se comer (o que quer que seja): a sala de jantar e com a mesa bem posta, ou melhor, impecável; se a toalha tiver uma nódoa que só se vê à lupa, já não serve... Ela é assim. Para além da idade que já tem, foi educada com uns rigores e umas manias que, se eu te contasse, jul‑gavas que eu estava a gozar ou a exagerar.

— Se a tua mãe fosse viver para minha casa durante dois dias, saía de lá com colete de forças, direitinha para um manicómio — brincou a Cristina. — Desde que os meus pais se separaram, nunca mais se comeu na sala; janta‑mos na cozinha ou onde calha e ninguém refila. Quanto a toalhas de mesa... só de plástico, que não dão chatices a lavar. E eu acho ótimo, que é da maneira que sobra menos

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trabalho para mim. Sabes uma coisa, Rita? Às vezes, penso que tu vives numa espécie de palácio, sei lá... num museu... Palavra que há dias em que até tenho medo de me encostar a um móvel e partir uma antiguidade qualquer do século dezassete ou coisa do género. Estou a imaginar a cara da tua mãe: «A menina acaba de partir uma relíquia chinesa. Passe um cheque de 15 mil euros.» É por isso que eu evito encostar ‑me aos vossos móveis, só começo a respirar nor‑malmente quando entro no teu quarto, que não é propria‑mente nada que se pareça com o meu, mas talvez seja já da segunda metade do século dezassete.

A amiga deu uma gargalhada:— Que exagero! Não somos assim tão ricos, parvalhona!

Século dezassete! Piraste...— Para mim, tudo quanto está nesta casa é do século

dezassete, tudinho, até os teus discos...— Nessa altura, ainda não havia discos... Riram ‑se.— Bom, Rita, tenho de ir andando. Combinei ir ter com

o Rui à musculação e ele detesta que eu me atrase.— Está bem. Eu também tenho de ver se estudo para o

teste de história... — disse a Rita, levantando ‑se para acom‑panhar a amiga até à saída.

A Cristina, porém, fê ‑la parar com um gesto:— Deixa ‑te estar, que eu sei o caminho. — E abanou a

cabeça em jeito de reprovação. — Há mais de três anos que venho a tua casa e tu continuas a achar que eu não sei onde fica a porta... Sou despistada, mas nem tanto! Realmente, és uma espécie extinta, uma perfeita dinossáuria...

— Não é isso, é que...

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— Eu sei, parva, estava a brincar contigo. Já percebi que, em tua casa, é costume acompanharem ‑se sempre as visitas à porta. Acontece que eu não sou exatamente uma visita de cerimónia; sou tua colega, sou tua amiga, tenho a tua idade, não percebo pevas de etiqueta ou boas maneiras ou lá como isso se chama e, além do mais, a tua mãe nem sequer está em casa!

— É o hábito — desculpou ‑se a Rita.A amiga olhou ‑a então com ternura, despediu ‑se e saiu,

deixando a Rita à nora com o calhamaço de história, mal ‑dizendo a hora em que escolhera o 4.º agrupamento.

O jantar decorreu quase em silêncio, pois Henrique tivera um dia cansativo no escritório e, quando isso aconte‑cia, chegava a casa e punha ‑se logo a ler o jornal. Pela cara dele, a mulher entendia que o melhor era não puxar conver‑sas que pudessem, de alguma forma, causar ‑lhe qualquer aborrecimento; assim, a dona da casa mandava a Gracinda servir o jantar às oito em ponto e apenas se trocavam alguns olhares, de quando em quando, para Irene se certificar de que a comida estava do agrado do marido.

Quando a empregada começou a levantar a mesa, Hen‑rique foi ligar a televisão para ouvir o noticiário. A certa altura, a Gracinda apareceu na sala, com olhos de choro, a pedir à patroa que chegasse à cozinha. A Rita inquietou ‑se: gostava muito da Gracinda, já que a conhecia desde bebé e sempre dela recebera muitos mimos. Por tudo isto, teve vontade de seguir a mãe até à cozinha para poder tranqui‑lizar a Gracinda, contudo, visto que a mãe se antecipou, ficou a aguardar notícias, sentada ao lado do pai, sem ligar importância ao que se passava na televisão.

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Quando a mãe regressou à sala, uns minutos mais tarde, trazia nas mãos a moldura com a fotografia da tia Paula.

— Que foi? — quis saber a Rita.— A Gracinda, desastrada como anda ultimamente, par‑

tiu o vidro desta moldura — respondeu Irene, visivelmente perturbada.

— Deixe lá, mãe. Com certeza que a Gracinda não fez isso de propósito.

— É óbvio que não fez de propósito! — continuou Irene, ainda enervada. — Escusas de fazer essa cara, que eu nem sequer lhe ralhei, está descansada!

— Se a mãe quiser, eu levo amanhã a moldura e mando ‑a arranjar — ofereceu ‑se a Rita. — Não me importo nada.

— Não, não é preciso. Eu trato disso. Além do mais, tu nem saberias aonde ir...

— Era só a mãe dizer ‑me...— Não vale a pena, já disse — volveu a mãe, mais irritada

ainda. — Não quero que andes por aí a perder tempo na rua.— Pronto, já percebi. É pena é que a mãe nunca me

deixe fazer nada para ajudar. Não percebo porque é que tudo há de ser sempre tão complicado para si. A mãe acha que eu não sou capaz de fazer nada! Se eu não sei onde ficam certas lojas é porque nunca lá fui! Não me custava nada perguntar, tenho boca, não tenho?

Irene tentou então apaziguar os ânimos da filha:— Eu sei que querias ajudar, Rita, mas não é preciso.

Amanhã, tenho tempo de sobra para tratar deste assunto. Quando eu não puder, peço ‑te, combinado?

A Rita encolheu os ombros. Depois, pediu à mãe que lhe passasse a fotografia que ela tinha nas mãos e comentou:

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— A tia Paula era mesmo muito bonita! É tão diferente da tia Rute e da tia Maria Júlia! O cabelo...

— Pois é — atalhou a mãe, tentando pôr cobro àquela conversa.

— Que idade é que ela tinha quando lhe tiraram esta fotografia? — tornou a Rita, impressionada com a bele za da tia mais nova, que morrera num acidente de automóvel.

— Não sei... Talvez uns vinte anos ou menos.— Então foi mesmo antes do acidente — concluiu a Rita.— Deve ter sido — respondeu a mãe, sem a fitar.— Gostava imenso de a ter conhecido... Onde é que

estão as outras fotografias da tia Paula, mãe?— Sei lá! Devem estar num álbum. Assim, de momento,

não sei exatamente onde estão.— Posso ir procurar? — entusiasmou ‑se a Rita.— Preferia que não me fosses desarrumar nada agora,

filha. Bem sabes que a Gracinda já não é nova e esta casa dá um trabalhão a arrumar e a limpar. Se eu encontrar alguma foto gra fia da minha irmã por aí, guardo ‑a para ta mostrar, pode ser?

A Rita suspirou e levantou ‑se do sofá para ir ao encontro da Gracinda.

— Então, já estás melhor?— Estou sim, Ritinha.— Não te preocupes. Toda a gente parte qualquer coisa,

de vez em quando. É normal. Eu, ainda na semana passada, parti aquele vaso pequeno que estava na varanda do meu quarto.

A Gracinda sorriu:— Estou velha, é o que é. O resto são cantigas.

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— Não estás nada! Não me digas que queres que eu me ponha para aqui a fazer ‑te elogios, a dizer que estás fresca como uma alface! — brincou a Rita.

— Fresca como uma alface?! Isso era dantes... Enfim, faço o que posso.

— E não fazes nada pouco! Olha, Gracinda, eu estive a pensar na minha festa de anos e acho que gostava de fazer qualquer coisa para se comer...

— Hum...— Talvez um bolo de chocolate.— Hum...— Se tu me ensinasses, é claro...— A Ritinha bem sabe que a sua mãe não gosta que

venha para a cozinha sujar ‑se toda. Depois, eu é que oiço...— Não ouves nada.— Hum...— Eu gostava de fazer um bolo especial, uma dessas

receitas que tu sabes. E, depois, enfeitá ‑lo com chantilly ou qualquer coisa assim.

A Gracinda acabou por se rir e lá acedeu ao pedido. A Rita deu ‑lhe um beijo ruidoso na cara enrugada e foi para o quarto.

Descalçou ‑se, sentou ‑se na cama com as pernas cruzadas e pôs ‑se a imaginar a festa de anos. Quinze anos! Como gostaria que o Filipe viesse! O pior era se os pais o vissem... De brinco na orelha e rabo de cavalo, o vizinho não era propriamente o modelo de rapaz que a mãe aprovaria, e o pai ainda menos...