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ESMAFE E SCOLA DE MAGISTRATURA F EDERAL DA 5ª R EGIÃO 105 AMPLA DEFESA X DESVIRTUAMENTOS (LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ E SEU ÔNUS FINANCEIRO) Francisco Glauber Pessoa Alves Juiz de Direito no Estado de São Paulo SUMÁRIO: I – Prelúdio; II – A ampla defesa e sua importân- cia; III – O abuso da ampla defesa; IV – A litigância de má-fé e os instrumentos que visam elidi-la impondo sanções financeiras; V – Abuso do direito de defesa: a importância de uma coibição mais ostensiva pelo judiciário; VI – Ônus patrimonial da litigância de má-fé e aspectos procedimentais; VII – Responsabilidade solidária da parte e do advogado pela multa e indenização? VIII – Conclu- sões; Bibliografia. I PRELÚDIO Objetiva este trabalho uma abordagem acerca do abuso ao direito de defesa, da litigância de má-fé e da responsabilidade pela ocorrência fática da situação jurídica de abuso do dever processual de boa-fé pelo litigante. Sob pena de linhas despidas de substrato dogmático bastante, para tanto foi traçada a importância do princípio da ampla defesa, aquilatando sua raiz normativa de cunho nobre. Diante disso, levantou-se a primeira importante questão-problema do ensaio, a respeito do limite ao exercício de ampla defesa – para quando ela deixa de ser defesa e se constitui abuso. Após ingressa-se no regramento da litigância de má-fé – que em ver- dade é umbilicalmente atado ao abuso da ampla defesa. Já aí são levantadas proposições acerca do conceito de litigante, a efetividade do processo e, Revista Esmafe : Escola de Magistratura Federal da 5ª Região, n. 4, dez. 2002

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AMPLA DEFESA X DESVIRTUAMENTOS(LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ E SEU ÔNUS FINANCEIRO)

Francisco Glauber Pessoa AlvesJuiz de Direito no Estado de São Paulo

SUMÁRIO: I – Prelúdio; II – A ampla defesa e sua importân-cia; III – O abuso da ampla defesa; IV – A litigância de má-fé e osinstrumentos que visam elidi-la impondo sanções financeiras; V –Abuso do direito de defesa: a importância de uma coibição maisostensiva pelo judiciário; VI – Ônus patrimonial da litigância demá-fé e aspectos procedimentais; VII – Responsabilidade solidáriada parte e do advogado pela multa e indenização? VIII – Conclu-sões; Bibliografia.

I PRELÚDIO

Objetiva este trabalho uma abordagem acerca do abuso ao direito dedefesa, da litigância de má-fé e da responsabilidade pela ocorrência fática dasituação jurídica de abuso do dever processual de boa-fé pelo litigante.

Sob pena de linhas despidas de substrato dogmático bastante, paratanto foi traçada a importância do princípio da ampla defesa, aquilatandosua raiz normativa de cunho nobre.

Diante disso, levantou-se a primeira importante questão-problema doensaio, a respeito do limite ao exercício de ampla defesa – para quando eladeixa de ser defesa e se constitui abuso.

Após ingressa-se no regramento da litigância de má-fé – que em ver-dade é umbilicalmente atado ao abuso da ampla defesa. Já aí são levantadasproposições acerca do conceito de litigante, a efetividade do processo e,

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ainda, sob os instrumentos de sanção pecuniária postos à disposição peloordenamento para sua repressão.

Não se poderia deixar de enfrentar a imputabilidade do advogado porlitigância de má-fé, porque afinal de contas é o mote deste ensaio.

Ao cabo são alinhavadas as nossas conclusões.Marcos limitativos espaciais impedem uma abordagem mais exausti-

va, inclusive acerca de outros meios de prevenção/repressão do abuso dedireito processual.

II A AMPLA DEFESA E SUA IMPORTÂNCIA

O princípio da ampla defesa está insculpido no inciso LV1 do art. 5°.da Constituição Federal (CF) e sem necessidade de maior inteligência per-cebe-se a importância que lhe foi conferida pelo legislador originário de1988. Isso porque o preceituamento passou a estar dentre os primeirosdispositivos da Carta, contrariamente à ordem constitucional anterior.

Bom talhar que os princípios são “verdades ou juízos fundamentais,que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos,ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realida-de. Às vezes também se denominam princípios certas proposições que,apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidascomo fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, comoseus pressupostos necessários” (Miguel Reale, Filosofia do Direito, p. 59)2 .

Por seu governo, a magnitude da ampla defesa é provavelmente origi-nada da cláusula do due process of law, com primeira referência histórica naMagna Carta de João Sem Terra de 1215, onde se mencionou a law of theland. Ela visava evitar o abuso da coroa inglesa contra os nobres (NelsonNery Junior, Princípios do processo civil na constituição federal, p. 29).

Então, busca a ampla defesa, enquanto consectário do devido proces-so legal (Nelson Nery Junior, ob. cit., p. 28), assegurar que o litigante tenhatodas as oportunidades para demonstrar seu direito e seus fatos.

1 Ipsis litteris: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados ocontraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

2 Tivemos ocasião de estudar mais aprofundadamente os princípios jurídicos, notadamente o da igualdade, em nossotrabalho de defesa de dissertação de mestrado ( O princípio jurídico da igualdade e o direito processual civil), cujapublicação encontra-se no prelo.

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Inoportuno seria deixar de dizer que a sublimação do princípio daampla defesa é resultado direto da sua reiterada inobservância sob a égidede ordens constitucionais anteriores, marcadamente a última, nascida deuma ditadura sumamente inspirada pela defesa de direitos de cunhos patri-monialistas ou morais de duvidosa aceitação. Tudo isso em detrimento degarantias processuais mínimas que acabaram por refletir na padronizaçãodo abandono às referidas cláusulas por instrumentos odiosos de exceção(atos institucionais – com iniciais minúsculas mesmo).

Feitas essas considerações preliminares, chegamos à tríade que sus-tenta a imponência da ampla defesa (buscando achegas na tridimensionali-dade do direito – Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, p. 11):enquanto norma (art. 5°., LV, da CF), fato (expressividade concreta a partirde abusos de longa data) e valor (raiz axiológica nobre, representativa deuma inegável opção pelo direito pátrio, com o fito de assegurar abusos emdetrimento dos litigantes).

Importa ainda ressaltar que não há limitação de seu teor exclusiva-mente ao réu, sendo uma garantia multivalente. A ampla defesa de que sefala não se restringe apenas ao pólo passivo, mas engloba a própria possi-bilidade de qualquer das partes (autor inclusive) ou outro sujeito processualdefender seu direito e a verdade processual (= formal) que melhor lhe apro-venha. Tanto o autor como o réu, litigantes e mesmo interessados em geraltêm o direito de amplamente se valer da ampla defesa (e.g.: o direito doperito, do síndico da falência ou do comissário da massa serem ouvidosantes que o juiz tome uma medida punitiva ou fiscalizatória enérgica).

III O ABUSO DA AMPLA DEFESA

Bem plantada e já regada a importância da ampla defesa na ordemconstitucional vigente, extensiva positivamente inclusive aos processos ad-ministrativos, o que antes era reconhecido apenas doutrinariamente, agorajá se mostra aceitável a revisitação de sua amplitude, à luz do reconheci-mento pragmático de que inúmeros abusos são cometidos sob a bandeirasimpática do princípio em tela.

Dois fatores informativos preponderam no processo civil: segurançae efetividade. Durante muito tempo, ousamos dizer que durante quase todoo século 20, o primeiro foi seguido à exaustão. O evolver do direito brasi-leiro e da própria sociedade, entretanto, pendeu pelo privilégio ao segundo.

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Cresceu a busca por decisões mais ágeis, em uma sociedade com aresde globalização. Por força do art. 5°., XXXV, da Magna Carta, erigiu-secomo direito fundamental a defesa da lesão ou da ameaça de lesão ao direi-to. É o chamado princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional.Sem um maior esforço, constata-se que o legislador originário atentou paraum fator informativo da tutela jurisdicional para o qual antes não se davamaior vista: o tempo.

Efetivamente, a proteção que o ordenamento quer assegurar é não sóàquela já ocorrida (a lesão propriamente dita) como também a que em viasou sob risco de acontecer (a ameaça de lesão).

O elemento cronológico está aí contido bem forte. Reconheceu-seque a tutela jurisdicional há de alcançar não só a remediação, como tam-bém, em igual linha de importância, a prevenção3 . Por isso se registrou queo “processo, para cumprir o princípio da isonomia, não pode deixar de dis-tribuir de forma isonômica o ônus do tempo entre os litigantes” (Luiz Gui-lherme Marinoni, Garantia da tempestividade da tutela jurisdicional e du-plo grau de jurisdição, p. 224).

Dessas constatações surgiu o princípio da garantia do processo semdilações indevidas ou da sua razoável duração, ou, ainda, da tempestividadeda tutela, expressões que a nosso entender têm idênticos significativos. Éinegavelmente um consectário da cláusula isonômica, na medida em queprocura sopesar e corretamente distribuir o ônus do processo entre as par-tes.

A paridade dos elementos segurança e efetividade é recalibrada, paraque a segunda não seja mais tão sacrificada como ao longo do século XX.Por isso é que se diz que não se pode “olvidar, nesse particular, a existênciade dois postulados que, em princípio, são opostos: o da segurança jurídica,exigindo, como já salientado, um lapso temporal razoável para a tramitaçãodo processo (‘tempo fisiológico’), e o da efetividade deste, reclamando queo momento da decisão final não se procrastine mais do que o necessário(‘tempo patológico’). Obtendo-se um equilíbrio desses dois regramentos –segurança/celeridade —, emergirão as melhores condições para garantir ajustiça no caso concreto, sem que, assim, haja diminuição no grau de efeti-

3 Por isso que bastante força ganharam recentemente as tutelas de urgência satisfativas (como a antecipada, previstano art. 273, do Código de Processo Civil).

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vidade da tutela jurisdicional” (José Rogério Cruz e Tucci, Garantia doprocesso sem dilações indevidas, p. 237).

Tais pensamentos são endossados pelo ideário de uma justiça maissensível ao problema temporal, porque injusto que aquele que tenha razãose veja privado de seu direito.

Assim, cresceu e criou raízes legislativas a idéia já antiga em sededoutrinária de que o processo há de chegar a algum resultado útil em umtempo o mais breve possível. Tanto é assim que no projeto em trâmite noCongresso Nacional (existente já na Constituição espanhola de 1978, emseu art. 24.2, consoante José Rogério Cruz e Tucci, ob. cit., p. 247), visan-do a Reforma do Judiciário, pretende-se a inserção do inciso LXXVIII noart. 5°, assim vazado: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, sãoassegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam aceleridade de sua tramitação”.

Ainda que eventualmente não vingue a inclusão do princípio no textoconstitucional, já se pode dizer com certeza da sua existência no direitobrasileiro. Isso porque é reconhecida a existência de princípios gerais nãoexpressos, extraídos por abstração de normas específicas ou pelo menosnão muito gerais, consoante giza Norberto Bobbio:

“são princípios, ou normas generalíssimas, formuladas pelo intérpre-te, que busca colher, comparando normas aparentemente diversas entresi, aquilo a que se comumente se chama o espírito do sistema” (Teoriado ordenamento jurídico, p. 159).

Mas, não sem frustração a atividade forense vem dando mostras se-guras de que abusos vêm reiteradamente sendo cometidos. Inegável que separcela dos litigantes querem uma justiça ágil (como regra: autores e seusdefensores), outras não a querem (como padrão: réus e seus defensores).

Menos inverdade ainda é que os interesses são conflitantes quando ascoisas se invertem (autores que viram réus e vice-versa). Por isso é quecom sua habitual percuciência escreveu José Carlos Barbosa Moreira quenão “convém esquecer, por outro lado, que há uma demora fisiológica, con-seqüente à necessidade de salvaguardar na atividade judicial certos interes-ses e valores que uma sociedade democrática não ousaria prescindir. Insis-te-se na escrupulosa observância de tais ou quais garantias das partes – aomenos, diga-se de passagem, quando se trata de pessoas simpáticas à opi-

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nião pública (ou melhor, à opinião publicada, que com aquela ingenuamentesomos levados a confundir). Ora, um processo de empenho garantístico épor força um processo menos célere. Dois proveitos não cabem num saco,diz a sabedoria popular. É pretensão desmedida querer desfrutar ao mes-mo tempo o melhor dos dois mundos” (O futuro da justiça: alguns mitos,p. 75 e grifos que não estão no original).

Daí porque é um excelente negócio a aposta do réu no abuso dasfaculdades processuais englobadas sob o título de ampla defesa (provas,recursos etc). Ele dura muito no nosso país, por problemas estruturais epela opção do ordenamento que, como já dito, prestigia de muito tempo asegurança. Se isso ocorre, nada melhor que postergar a efetividade.

E não é só o réu quem foi acometido de tal patologia jurídica (o ex-cesso de lucidez). Autores que promovem demandas manifestamente in-fundadas ou temerárias (os litigantes de má-fé de uma maneira geral), avo-lumando de serviço desnecessário o judiciário, que se vê com menor tempopara as atividades realmente úteis, contribuindo para a lentidão da tutelajurisdicional em outras causas, pela limitação da estrutura.

Também não deixa de ser um grande investimento para os causídicos.As grandes bancas de advocacia, que como regra representam as maiores emais importantes causas, cobram muitas vezes por tempo despendido nadefesa dos seus clientes. Quanto mais tempo durar o processo, mais dinhei-ro entra.

Não são só nos grandes escritórios onde essa política é razão de so-brevivência. O ajuizamento de causas não deixa de ser o ganha-pão dosadvogados de uma maneira geral. Quanto mais causas e quanto mais elasdemorarem, melhor receita está assegurada.

E não se conceba isso como um ataque à relevante função asseguradapelo art. 133 da CF, até porque boa parte dos que a exercem são homens debem como em qualquer outra profissão. Isso se faz às vezes intuitivamente.É o ser humano buscando a sobrevivência e o progresso pessoal e profissi-onal.

Só que se de um lado são legítimos e até compreensíveis esses papéis,igualmente bem acompanhada valorativamente a necessidade sociológicado país por uma maior efetividade da tutela jurisdicional e um desassober-bamento do judiciário, já muito prejudicado pela carência humana e materi-al para ainda ter de lidar com causas ou condutas processuais longe da boa-fé.

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Disso tudo nasceram condutas censuráveis: a) ajuizamento de açõesmanifestamente descabidas; b) protelação indefinida de feitos, com abu-so de incidentes em geral (exceções de suspeição ou incompetência,objeções de pré-executividade); c) a utilização desregrada do direito derecorrer (com o fim de postergar a concretude da tutela jurisdicional)4 ;d) insistência por provas desnecessárias (perícias ou provas orais queem nada acrescentam a lides); e) ajuizamento de ações fulcradas emfatos inexistentes ou sob cuja real extensão do conhecimento impededesde logo o pleito5 .

Aliás, a idéia de abuso nasce essencialmente daquela originada dodireito civil e supedaneada no art. 160 do Código Civil (Humberto The-odoro Júnior, Abuso de direito processual no ordenamento jurídico bra-sileiro, p. 43).

Evidencie-se que sua configuração demanda o exercício préviode um direito regularmente constituído, de onde não haveria excessopossível sem o antecedente lógico (direito, enquanto não abusado).

4 Especificamente em sede recursal já se asseverou que poucos “foram aqueles que ousaram dizer, em defesa destePoder, que uma das razões do acúmulo de causas que geram as conseqüências da morosidade, além de outrosdefeitos ou omissões estruturais, está na interposição de recursos, abusivos, protelatórios e/ou injustificados poragentes de toda qualificação, nos vários campos do direito, principalmente os Estatais, quando visam exclusivamen-te a retardar pagamentos de sua obrigação ou negando-se a reconhecer direitos constitucionais, e dos quais os exem-plos são abundantes: previdência social, planos econômicos, desrespeito às obrigações legais e constitucionais tantoda União quanto dos Estados Federados e Municípios” (Honildo Amaral de Mello Castro, O abuso do direito e alitigância de má-fé no novo agravo , p. 109).

5 “PREVIDÊNCIA SOCIAL. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. LIDE TEMERÁRIA. AUTOR QUE LABOROUDURANTE O PERÍODO VINDICADO DE APOSENTADORIA. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. LITIGANTE DEMÁ-FÉ. ART. 17, I DO CPC.I. Ação proposta para recebimento de parcelas atrasadas, ao argumento de que trinta e cinco anos atrás o IAPCconcedera ao autor aposentadoria por invalidez jamais recebida pelo segurado.II. Comprovação, nos autos, por documentos novos na fase recursal, que o autor, logo apos a cessação doauxílio-doença, em 16.05.52, voltou a trabalhar ate 1984, quando se aposentou por tempo de serviço no regimeestatutário, dado ardilosamente omitido pelo segurado.III. É litigante de má-fé aquele que deduz pretensão temerária contra fato incontroverso (art. 17, I do CPC), oqual se admite para exame e apreciação em 2 grau de jurisdição, nos termos do art. 514 do CPC, porquanto éde se considerar como fato novo a inusitada descoberta, pelo INPS, na ocasião da apelação, que o autor, que sediz inválido desde 1952, houvesse trabalhado por mais trinta e dois anos ate inativar-se, por tempo de serviço,em 1984.IV. Apelação provida, dispensada as cominações legais de sucumbência e má-fé por se tratar de parte assistidapela justiça gratuita ” (TRF 1ª. R., 1ª. T., Ap. Cível n°. 01.086.640-MG, rel. Aldir Passarinho Júnior, DJ 3.6.1991,p. 12.445).

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IV A LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ E O S INSTRUMENTO S

QUE VISAM ELIDI-LA IMPONDO SANÇÕES FINANCEIRAS

Os deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma par-ticipam do processo estão previstos no art. 14 do Código de Processo Civil(CPC). A redação anterior somente falava nas partes e nos seus procurado-res, limitação hoje inexistente por força da Lei n°. 10.358, de 28.12.2001.

Pelos incisos do mesmo dispositivo obriga-se a exposição de fatos emjuízo conforme a verdade, a observância da lealdade e boa-fé, a não formu-lação de pretensões ou defesas destituídas de fundamento, a não produçãode provas ou atos inúteis/desnecessários à declaração ou defesa do direito,bem como cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criarembaraços à efetivação de provimentos judiciais de natureza antecipatóriaou final (também esta uma inovação da Lei n°. 10.358/01).

É bem completa a fattispecie normativa. Difícil vislumbrar uma situ-ação contrária à ética que não possa ser enquadrada no artigo destacado. Eele existe desde a vinda a lume do CPC, como também desde quando existea responsabilização pela má-fé, abrigadora tanto de autores e réus, como demeros intervenientes (art. 16). Aliás, essa tendência foi realçada pela novaredação dada ao caput do art. 14, ao mencionar como sujeitos a deveresprocessuais as partes e todos aqueles que de uma ou outra forma participemdo processo (Lei n°. 10.358/01).

Mais incisivamente, prevê o art. 17 do mesmo Estatuto que é litigantede má-fé (improbus litigator) aquele que: (I) deduz pretensão contra textoexpresso de lei ou fato incontroverso6 , (II) altera a verdade dos fatos7 , (III)

6 “LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - Apelante que insiste na existência de excesso de execução - Alegação anterior-mente desmentida pelo Contador - Pretensão deduzida contra fato incontroverso nos autos com o nítido propó-sito de protelar a satisfação do crédito dos exeqüentes - Artigos 17 e 18 do Código de Processo Civil - Conde-nação imposta à Fazenda do Estado” (TJSP, 8ª. Câmara de Direito Público, Apelação Cível n°. 3.498-5-SãoPaulo, rel. Antonio Villen, d.j. 17.09.97).

7 “PROCESSUAL CIVIL. OFERTA À PENHORA DE TÍTULOS DA DÍVIDA AGRÁRIA REFERENTES À DESA-PROPRIAÇÃO EM CUJOS AUTOS A HABILITAÇÃO DE CRÉDITO FORA INDEFERIDA. FALSIDADE IDEO-LÓGICA DA ESCRITURA DE CESSÃO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO. CONDENAÇÃO DO AGRAVANTE COMOLITIGANTE DE MÁ FÉ. RECURSO IMPROVIDO” (TRF 5ª. Região, 2ª. T., Ag. Inst. n°. 19.336/PB, rel. FranciscoCavalcanti, DJ 18.12.1998, p. 2297) ou ainda “ LITIGANTE DE MÁ-FÉ - CONDUTA TEMERÁRIA - CITAÇÃODE JULGADO COM FALSA INDICAÇÃO DA FONTE – CARACTERIZAÇÃO. Comete litigância de má-fé, einfringe dever funcional, por conduta temerária, o advogado que cita precedente jurisprudencial como se forado Supremo Tribunal Federal, assim pretendendo induzir em erro o julgador” (2°. TAC-SP, 6ª. Câmara, Ap. s/Rev. n°. 508.120, rel. Euclides de Oliveira, d.j. 30.4.98).

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usa do processo para conseguir objetivo ilegal8 , (IV) opõe resistência injus-tificada ao andamento do processo9 , (V) procede de modo temerário emqualquer incidente ou ato do processo10 , (VI) provoca incidentes manifes-tamente infundados11 ou (VII) interpõe recurso com intuito manifestamenteprotelatório12 .

É provável que uma situação concreta encontre abrigo em mais de umdos incisos citados (e.g.: interpor recurso protelatório não deixa de serresistência injustificada ao andamento do processo). Difícil no entanto éque uma situação ensejadora de má-fé não esteja prevista ou seja enqua-drável no rol legal.

Dá-se que já se aventou como genérica a descrição (João Batista Lo-pes, O juiz e a litigância de má-fé, p. 129). O mesmo autor, aliás, ao disser-tar sobre cada uma das hipóteses parece externar a opinião que resulta noproblema central deste ensaio (mero exercício da ampla defesa e seu abuso)optou por linha branda referentemente à tipificação (ob. cit., pp. 129-130).

Discordamos do insigne lente em dois contextos: a) entendemos quenão há generalidade nos incisos do art. 17, posto que descrevem dentro doque se espera de um texto legal, que não pode e nem deve descer a todas as

8 “LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - Ocorrência - Omissão de quitação de duplicata pela devedora - Ato de deslealda-de processual - Artigo 14, I e II; 17, I e II do Código de Processo Civil - Sanção consistente no pagamento dejuros e correção monetária desde o vencimento dos títulos em cobrança - Recurso adesivo provido” (TJSP,Apelação Cível n°. 207.436-1-Campinas, rel. Ernani de Paiva, d.j. 25.08.94).

9 “LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - Ocorrência - Réus que passando por cima de decisões judiciais invocaram umasérie de remédios evidentemente impertinentes - Recurso parcialmente provido” (TJSP, Apelação Cível n°. 212.746-1-Jundiaí, rel. Fonseca Tavares, d.j. 19.10.94).

10 “LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - Embargos do devedor - Execução fiscal - Conceito de ampla defesa - Ditames dereprovação a lanços de esperteza processual - Artigos 15, 17 e 600 do Código de Processo Civil - Pena mantida- Recurso não provido” (TJSP, 7ª. Câmara de Direito Público, Ap. Cível n°. 31.350-5-São Roque, rel. WalterMoraes, d.j. 06.10.97)

11 “LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - Caracterização - Alegada anuência na renovação contratual - Inocorrência -Ausência de instrumento, configurada alteração nos fatos - Recurso provido para julgar improcedentes asações principal e cautelar, com isenção do ônus da sucumbência” (TJSP, Apelação Cível n°. 220.925-2-SãoPaulo, rel. Carlos de Carvalho, d.j. 01.03.94).

12 No que a Corte Superior, depois de muito tempo de política protelatória da Fazenda Pública, trata agora dereprimir, v.g.: “ EMENTA: Embargos de declaração que apenas reiteram argumentos rejeitados na decisãoembargada, revelando intuito manifestamente protelatório: rejeição, com imposição da multa de 1% sobre ovalor corrigido da causa, além da multa no mesmo percentual por litigância de má fé atribuída na decisãoembargada” (STF, 1ª. T., AGAEDE n°. 285.825-SP, re. Sepúlveda Pertence, DJ 6.9.01, p. 17).

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minúcias da vida em sociedade13 ; b) na economia do rigor no tratamentoda má-fé, cuja repreensão, como já dito e redito antes, clama por urgência.

Insta ressaltar que a expressão litigante não tem conteúdo semânticoidêntico ao de parte. Pode com ele se confundir ou não, a depender do casoconcreto. Toda e qualquer pessoa que atue como mencionado no art. 17 doCPC é um litigante de má-fé, sendo ou não parte. O art. 16 do CPC indicaisso ao afirmar que responderá por perdas e danos tanto o autor, como oréu, o mero interveniente e qualquer outra pessoa que participe da relaçãoprocessual, e a nova redação do art. 14 do CPC sepulta qualquer opiniãocontrária.

A acepção de interveniente é ampla, não se confundindo apenas coma figura de terceiros juridicamente interessados – perceba-se que o art. 16menciona apenas intervenientes e não terceiros intervenientes. E interveni-ente é toda a pessoa que, de algum modo, atua e intervém no processomovido por algum interesse próprio ou de terceiro. É só ter em mente aatuação de terceiro no processo (aquele que alega essa qualidade, mas naapreciação concreta é absolutamente despido de fundamento), as testemu-nhas, o perito, o próprio defensor da parte (excedendo os limites de suaatuação – art. 14 do CPC) e o juiz14 .

Prevê no art. 18 as sanções pecuniárias em que poderá incorrer olitigante de má-fé: indenização ou multa15 . O artigo foi alterado pela Lein°. 8.952/94 para introduzir o cabimento da cominação ex officio e posteri-ormente novamente modificado pela Lei n°. 9.668/98.

A indenização busca suas raízes na responsabilidade civil subjetiva(art. 159 do CC), que tem por elementos etiológicos a ação ou omissão, odano, o nexo de causalidade e a culpa.

De mister esclarecer que a culpa exigida para o reconhecimento dodever indenizatório não é só a grave, como têm ilustrado alguns julgados e

13 “As leis, porém, são hoje, em todos os domínios jurídicos, elaboradas por tal forma que os juízes e os funcionáriosda administração não descobrem e fundamentam as suas decisões tão-somente através da subsunção a conceitosjurídicos fixos, a conceitos cujo conteúdo seja explicitado com segurança através da interpretação, mas antes sãochamados a valorar autonomamente e, por vezes, a decidir e a agir de um modo semelhante ao do legislador” (KarlEngisch, Introdução ao pensamento jurídico , p. 207).

14 Humberto Theodoro Júnior, ob. cit., pp. 63-64.

15 Como adiantamos introdutoriamente, existem outros mecanismos de prevenção/repressão do abuso do direitoprocessual como a nulidade do ato, a responsabilização criminal, o julgamento antecipado do mérito, o prazo deter-minado para cumprimento de diligências fora do juízo onde elas deveriam se realizar (Humberto Theodoro Júnior,ob. cit., pp. 57-58).

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prestigiosa doutrina16 , mas mesmo a levíssima, porque preceito legal algumdemanda aquela e também porquanto assim assevera a melhor doutrina civi-lista ao esclarecer que no direito brasileiro não existe gradação de culpa emmatéria de responsabilidade civil17 , de quem o instituto processual em co-mento busca suas raízes18 .

Já a multa é calcada, à semelhança do instituto em todos os demaisramos do direito, na falta de cumprimento de uma obrigação (que no caso élegal: o dever de lealdade processual – art. 14 do CPC) sobre cuja parte elaserá imposta.

Similares dispositivos existem no que concerne ao processo executi-vo. É o caso dos atos atentatórios à dignidade da justiça (no que tambémcontidas as condutas previstas e reprimidas nos arts. 16 e 17), por onde (art.60119 ) se ojerizam (I) fraudes à execução, (II) a oposição maliciosa a elacom emprego de ardis e meios artificiosos, (III) a resistência injustificada àsordens judiciais e (IV) a não indicação ao juiz dos bens sujeitos à execução.

Ocorrendo isso, será o caso de imposição de multa não superior a20% do valor atualizado do débito em execução, sem prejuízo de outrassanções de natureza processual ou material, que reverterá em proveito docredor (art. 601).

Disso tudo se extrai que: a) há o reconhecimento do direito positivoquanto ao abuso do direito de defesa; b) existem os necessários instrumen-tos legais para coibi-lo; c) há definição de quem é o litigante de má-fé – quepode ser a própria parte ou qualquer outro interveniente no processo.

16 Humberto Theodoro Júnior, ob. cit., p. 56, para a maioria dos casos elencados no art. 17 do CPC.

17 Caio Mário da Silva Pereira, Responsabilidade Civil, p. 71; Rui Stoco, Responsabilidade civil e sua interpre-tação jurisprudencial, p. 70.

18 Não se pode esquecer, como já disse José Roberto dos Santos Bedaque, que o “próprio conceito de direito proces-sual está vinculado de forma inseparável ao fenômeno verificado no plano do direito material, consistente na sua nãorealização espontânea” (Direito e processo , p. 11). Com efeito, o instrumento (processo) só existe em decorrên-cia daquilo que viabiliza sua existência (direito material) .

19 Tal preceito foi alvo de mudança pela Lei n°. 8.952/94, sendo que antes previa a impossibilidade do litigante demá-fé falar nos autos, enquanto não relevada a pena, o que evidentemente não se coadunava com a importância daampla defesa em sua feição atual. Por mais grave que seja a conduta processual há sempre que se assegurar o direitodo mau litigante de falar nos autos, ainda que muitas vezes seja uma tentação querer o contrário, dada a evidentefalta de caráter de alguns.

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V ABUSO DO DIREITO DE DEFESA: IMPORTÂNCIA DE

UMA COIBIÇÃO MAIS OSTENSIVA PELO JUDICIÁRIO

O legislador não impôs somente aos litigantes a obrigação de ob-servar a boa-fé. Fê-lo também com relação ao próprio julgador, impu-tando-lhe perdas e danos (art. 133 do CPC) quando proceder com (art.133, I) dolo ou má-fé, ou ainda (art. 133, II) quando recusar, omitir ouretardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou arequerimento da parte.

Mais ainda o art. 198 do CPC permite às partes e ao órgão doMinistério Público representar ao Presidente do Tribunal de Justiça cujojuiz excedeu os prazos previstos em lei.

Demonstrada a necessidade de repressão – o que exigido pelo pró-prio ordenamento –, que falta para atuação jurisdicional firme nesse sen-tido, sabedor quem lida com a atividade forense dos inúmeros abusosque se cometem, firmados equivocadamente na bonita expressão ampladefesa?

Em primeiro lugar, é de se reconhecer que o pensamento instituci-onalizado não mudará pelas próprias partes. Como já se falou, há quemganha (e muito) com a sistemática atual. Entrementes, na calibração devalores, parece que a efetividade é muito mais forte. Já se sabe bem àexaustão que justiça tardia é tudo menos justiça.

É, pois, precipuamente do judiciário a função de coibir as con-dutas perpetuadoras e agasalhadoras de má-fé. Há que se dar firmerepressão a isso, sem medo de crises de consciência. Isso porque asociedade, o direito (como valor) e a ética assim o exigem. Há, de mui-to antes, obrigação legal (direito positivo), posto que cabe ao juiz velarpela rápida solução do litígio e prevenir ou reprimir qualquer ato atenta-tório à dignidade da justiça (art. 125, II e III, do CPC).

E o julgador deve reconhecer e prestigiar as necessidades da soci-edade, referendadas na lei, e não as próprias, posto que à lei é que deveobediência. A dúvida entre a consciência e o direito positivado há sem-pre que pender para este, porquanto mais grave do que aplicar mal umalei é deixar de aplicá-la.

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Não sem um certo desconforto percebe-se que muito mais os tribu-nais20 são claudicantes em condenar por má-fé do que os juízes de primeirograu, talvez certamente pela distância das partes e dos casos concretos,ainda que em sacrifício patente da boa-fé processual. Também costumainformar esta decisão justamente a conflitância habitual ampla defesa x abu-so, sempre pendendo para encaixe jurídico na primeira.

Daí a freqüência de decisões que afastam o improbus litigator pelosimples fato do litigante ter-se utilizado do recurso ou do meio processualabstratamente previsto em lei. O raciocínio é temível pela simples razão dadificuldade em se conceber que haja litigância de má-fé sem o exercíciodo recurso ou do meio processual. Muito mais ainda como se por haverprevisão legal para o instrumento processual utilizado o mau litigante seveja revestido de um manto para toda a sorte de condutas processuais cen-suráveis.

Singelamente: há previsão de expedientes processuais e abusa-semuitas vezes deles patrocinando a má-fé. Mas, aventa-se que não poderáhaver coibição aos excessos por conta da previsão!!!

O raciocínio é deveras equivocado. É a própria idéia de abuso de umdireito processual que acarreta o reconhecimento do litigante de má-fé.Abusa-se porque o direito foi exercido, só que em maus ventos. Em lapidar

20 “PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO - LITIGÂNCIADE MÁ-FÉ - EXERCÍCIO DO DIREITO DE DEFESA DO MUNICÍPIO - INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO DAPARTE ADVERSA - EXCLUSÃO DA MULTA.Descabe conhecer do recurso especial se o tribunal de origem não apreciou os dispositivos de lei federal indi-cados pelo recorrente como violados, incidindo, na hipótese, o veto das Súmulas nºs. 282 e 356 do STF.Ao usar o direito de recorrer e cumprir o seu dever, não pode a municipalidade ser qualificada de litigante demá-fé, sendo infundada a aplicação de multa prevista no artigo 18 do Código de Processo Civil, caso nãocomprovado o abuso e o efetivo prejuízo da parte adversa.Recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, provido” (STJ, 1ª. Turma, REsp n°. 331.594/SP, rel. GarciaVieira, DOU 29.10.2001, p. 188) ou ainda “ ADMINISTRATIVO - RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA– SERVIDORES PÚBLICOS FEDERAIS - REAJUSTE REMUNERATÓRIO PREVISTO A LEI Nº 8.390/91 -CUMULAÇÃO DOS PERCENTUAIS MENSAIS - IMPOSSIBILIDADE - LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ -INOCORRÊNCIA.1 - Esta Corte tem entendido que a incidência dos reajustes de 40%, 75% e 100% sobre os vencimentos dosservidores públicos, de acordo com a interpretação do disposto no art. 2º, da Lei nº 8.390/91, não deve ser feitade forma cumulativa.2 - Precedentes (MS 2.539/DF e RMS 3.840/DF).3 - Contudo, improcedente a multa fixada por litigância de má-fé , tendo em vista que não foi oferecida à parteoportunidade de defesa acerca deste tema, nem tampouco sua conduta resultou em prejuízo à parte adversa (cf.REsp 271.484/PR e 76.234/RS).4 - Recurso conhecido e parcialmente provido apenas para excluir do v. acórdão de origem a condenação porlitigância de má-fé, mantendo-o nos demais aspectos” (STJ, 5ª. Turma, ROMS n°. 3656/DF, rel. Jorge Scartezzini,DJ 29.10.2001, p. 216).

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aresto, averbou o então juiz relator Antônio Carlos Marcato lição que deve-ria se fazer bem mais freqüente:

“LITIGANTE DE MÁ-FÉ - INFRINGÊNCIA DO DEVER DE LE-ALDADE PROCESSUAL - DIREITO À DEFESA COMO ESCU-SA DE CONDUTA MALICIOSA - AFIRMAÇÕES INVERÍDICASNO PROCESSO – CARACTERIZAÇÃO. O direito de defesa, asse-gurado constitucionalmente, de modo algum poderá servir como es-cusa para acobertar malícia ou desvio de conduta profissional de quemquer que seja” (2°. TAC-SP, Ap. c/ Rev. 354.807, 7ª Câmara, d.j.1.12.92).

Tal constatação (cuja percepção não demanda maior grau de sensibi-lidade) fez com que Humberto Theodoro Júnior asseverasse que a “práticaforense tem ensinado que nem as medidas preventivas nem as repressivas damá-fé processual são aplicadas com a freqüência que seria de desejar-se.Há uma tolerância muito grande por parte de juízes e tribunais, que, se nãoanula o propósito ético que inspirou as sérias medidas traçadas pelo legisla-dor, pelo menos minimiza muito o seu desejado efeito moralizador sobre aconduta processual” (ob. cit., p. 57).

A boa fé e a própria justiça, em sua acepção axiológica, impõem umaconduta mais ativa do judiciário, sob risco de grande descrédito da ativida-de forense.

VI ÔNUS PATRIMONIAL DA LITIGÂNCIA DE

MÁ-FÉ E ASPECTO S PROCEDIMENTAIS

Quadra enfrentar agora os aspectos processuais da sanção patrimoni-al ao litigante de má-fé21 . A redação pura e simples do art. 18 do CPC dáconta que tanto a multa como a indenização podem ser impostas de ofício.

Extreme de dúvidas que são de direito quando a parte prejudicada orequeira, há exegese jurisprudencial negadora da subsistência da imposiçãoà míngua de pedido de quem se entenda de direito22 .

21 O que não afasta a apuração pelo órgão de classe competente, muito menos na esfera criminal, conforme o casoconcreto.

22 STJ, 3ª. T., REsp n°. 22.027-4-RS, rel. Min. Nilson Naves, DJU 114.9.92, p. 14.970 (anterior à Lei n°. 8.952/94)e Enunciado 32 do Centro de Estudos e Debates do 2°. Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (apud TheotônioNegrão, CPC e legislação processual em vigor, p. 121).

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A interpretação gramatical pura e simples não dá margem a entendi-mento diverso que ela cabe tanto por requerimento como ex officio. Po-rém, mostra-se pouco provável a condenação pura e simples do julgador emtal sentido, sem pedido de quem interessa, mesmo porque existe a possibili-dade da parte não ter sido prejudicada, embora o ato tenha sido atentatórioà dignidade da justiça.

Ingressamos aqui em ponto importante do ensaio, por onde entende-mos diversamente de autores de nomeada como Cândido Rangel Dinamar-co, para quem o valor arcado com a multa reverte para a parte, à semelhan-ça da indenização (A reforma do código de processo civil, p. 67).

Perceba-se que há atecnia na redação do art. 601 constatada à luz do18. Neste a multa é coisa diversa da indenização; naquele ambas são sinô-nimas, dando a entender que em verdade se trata de indenização pura esimples, não multa. E só nisso é que poderíamos concordar com o autor(multa = indenização), posto que estaria adequado seu entendimento à luzdo art. 601, mas não do art. 18.

Parece-nos que mais acerto está no dispositivo do art. 18, não sóporque mais atual (reformado que foi pela Lei n°. 9.668/98), como tambémporque dá um tratamento mais detido às duas coisas, diferenciando-as niti-damente quanto aos valores e a quem reverterão (indenização de 20% dovalor da causa ou a ser liquidada por arbitramento e para a parte; multa de1% sem esclarecer a quem reverte).

Ora, em verdade a repressão ao contempt of court visa preservar aidoneidade e dignidade da justiça enquanto função estatal, e não o que even-tualmente tenha sido acarretado de dano patrimonial à parte adversa. Issoporque essa já tem à sua disposição a indenização.

Temos mesmo que há bis in idem na imposição concomitante ao liti-gante de má-fé de multa e de indenização (nos casos dos arts. 18 e 601 doCPC), quando se entenda deverem ser revertidas à parte prejudicada, postoque ambos derivam do mesmo fato. A segunda é fruto do prejuízo acarre-tado pelo atraso e assegura à parte a reparação por tanto; a primeira inde-pende de prejuízo, ex lege presumido ao aparelho judiciário e à sua própriadecência.

Outrossim, a multa é imposição legalmente imposta e não contratual-mente – o que tornaria aceitável a tese de benefício da parte adversa.

Mais forte ainda é o argumento de que a conduta temerária demandouinjustificadamente trabalho, tempo e dinheiro do Estado que suporta a má-

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quina estatal. Nada mais justo que a multa a ele (Estado) reverta, comomaneira de compensar (um pouco que seja) o desnecessário empenho.

A redação dada pela Lei n°. 10.358/01 ao parágrafo único do art. 14do CPC preceitua claramente que o valor arrecadado com a multa reverteráà União ou ao Estado, na conformidade da esfera jurisdicional respectiva(federal ou estadual).

Ademais, o quantum máximo para a multa é muito pouco. E isso éfácil de constatar porque o valor fica vinculado ao da causa e se esse forínfimo, igualmente o será a multa. Premente uma alteração legislativa emtal sentido23 .

O já citado parágrafo único acrescentado ao art. 14 eleva o limite damulta para 20% do valor da causa atualizado, o que efetivamente já repre-senta um avanço. Contudo, da sua exegese percebe-se que tal multa sóseria aplicável à hipótese de descumprimento do inciso V (descumprimen-to/embaraço aos provimentos mandamentais e judiciais).

Importante frisar que a limitação para imposição do valor da indeni-zação independente de liquidação é de 20% sobre o valor da causa ou daexecução. Aparenta-se que a mens legislativa quis garantir aqui uma ampli-tude de defesa ao sancionado, de molde a que se veja no direito de discutirmais largamente a imposição quando ela possa atingir um percentual maisacentuado do débito em discussão.

Em tais casos o preceito legal parece impor ao prejudicado uma novacausa. A dúvida é se seria necessário um prévio processo de conhecimentoou a simples liquidação, reconhecida a má-fé desde logo.

Nada leva a crer no acerto da primeira premissa. Reconhecer quehaverá a necessidade de um novo processo para constatar a má-fé é dizerigualmente que o juiz do processo onde ela ocorreu não poderia reconhe-cê-la.

Exegese comezinha, há de se ter em conta que a interpretação nãopode levar ao absurdo (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação dodireito, passim), de onde a conclusão que se tem é de que necessária apenasuma liquidação quando o valor da indenização puder ultrapassar 20% dovalor da causa.

23 Propõe-se em acréscimo ao art. 18 do CPC: “§ 3°. Na hipótese do valor da multa, considerado o da causa,representar quantia ínfima, fica elevado o limite à razoabilidade do necessário a servir-se eficazmente como meiohábil a sancionar e coibir a litigância de má-fé, podendo valer-se o juiz da eqüidade e do regramento contido no § 4°.do art. 20”.

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Não é também vedado relegar à liquidação somente a parte que exce-da o percentual indicado. Muito do revés, em medida de evidente prestígioà celeridade de feitos seria avizinhar-se de nobres sentimentos que buscamcoibir litigantes e seus procuradores imbuídos de má-fé.

Por fim, deve ser registrado que pouco importa tenha a causa nature-za patrimonial ou não, porque o dano oriundo da conduta atinge não só àparte como também a dignidade da justiça, impondo-se as sanções pecuniá-rias sempre que o caso.

VII RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA PARTE E DO

ADVOGADO PELA MULTA E INDENIZAÇÃO?

Dos mais difíceis vem sendo a discussão sobre o tema, afigura-se-nosmelhor divisar as situações onde o profissional seja constituído e aquelou-tras onde ele seja indicado como representante da parte ou que não se encai-xe no perfil exato de constituído (detentores de funções referentes à defesajudicial da Fazenda Pública).

Cumpre evidenciar que o advogado é um mandatário (Orlando Go-mes, Contratos, p. 349) e, como tal, responde pelo excesso (art. 1.300 e ss.,do Código Civil – CC), tanto a título doloso como culposo (parágrafo únicodo art. 32 da Lei n°. 8.906/94, e ainda § 4°. do art. 14 da Lei n°. 8.078/90).

Contudo, pelo exercício do mandato para com terceiros será respon-sável o mandante. Assim é que constituído o advogado, ainda que esteopere na mais evidente má-fé, responderá o constituinte (= a parte) peloabuso no que tange ao processo em si. Isso porque o mandante expressa-mente assumiu o ônus da atuação processual (a cláusula é ad juditia). Ób-vio que caberá ao segundo buscar a reparação de quem de direito (art. 32 daLei n°. 8.906/94 c.c. 159 do CC), sem prejuízo da apuração ética pelo órgãode classe competente (art. 34, VI, da Lei n°. 8.906/94, bem como o respec-tivo Código de Ética, arts. 2°., 6°. e 20). Entrementes, para fins processu-ais e perante a parte ou judiciário prejudicados é do mandante a responsa-bilidade processual da má-fé24 .

24 Embora contrariamente se tenha decidido, em julgado onde parece se ter divisado bem o nível de responsabilizaçãodo advogado: “ CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO - PETIÇÃO INICIAL - LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ - ADVOGA-DO - COISA JULGADA. Consignação em pagamento. Pedido inicial. Formulação em caráter condicional.Pedido estranho à natureza da ação, envolvendo coisa julgada. Fato não imputável ao autor, mas ao seuadvogado. Inadmissibilidade. Litigância de má-fé afastada” (1°. TAC-SP, 3ª. Câmara, Ap. Cível n°. 374085-3/00-Presidente Prudente, rel. Alexandre Germano).

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E isso é válido, pelas razões propugnadas, mesmo para hipóteses-limite onde abandonada qualquer mínima boa-fé, ajuizando-se sucessiva-mente demandas idênticas buscando obter decisão favorável25 .

De outro lado não se afigura certo que o beneficiário da gratuidade dajustiça (conceito englobado dentro do mais amplo assistência judiciária) estejalivre das sanções pela litigância de má-fé (multa e indenização da parte con-trária), posto que tais débitos não se englobam nem genericamente na largainterpretação de custas ou despesas processuais que vem sendo emprestadaao art. 3°. da Lei n°. 1.060/50. Ou seja: não fazem parte do custo parabuscar em juízo um direito. São, ao revés, justamente a punição pela buscade um direito inexistente ou tentado por vias tortuosas. Antes derivam daconstatação de uma repudiável atitude pela parte, eivada da responsabilida-de civil, de onde haverá de responder normalmente pelas sanções financei-ras as quais sua conduta maculada houver dado causa.

Uma única hipótese justifica excluir a parte constituinte de responderpelo ônus da má-fé do profissional da advocacia: quando ele desde logonão apresente instrumento de mandato, invocando perigo de perecimentode direito (art. 37 do CPC). Efetivamente não seria justo imputar à parte,inexistente sequer constituição e instrumento de mandato, responder peloprejuízo que lhe adveio com o qual previamente não se demonstrou aquies-cer (ao menos expressamente).

Ocorre, porém, que em determinadas situações (indicação para finsde assistência judiciária ou representante judicial da Fazenda Pública), nãoage o advogado como simples mandatário. Antes exerce uma função públi-ca, na perfeita esteira da relevante nomenclatura constitucional a si reserva-da (art. 133 da CF).

Nessas hipóteses ou é titular de cargo/emprego público ou simples-mente exerce, por toda e qualquer natureza, um múnus que lhe retira a

25 “PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. DUPLA IMPETRAÇÃO COM O MESMO OBJETO.LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ.- Caso em que a parte impetrante, ante a denegação da liminar pretendida, ingressou com um segundo manda-do de segurança em tudo idêntico ao primeiro, distribuído a uma outra vara cujo juiz deferiu a medida liminar.- Tendo o juiz da primeira impetração homologado o pedido de desistência da mesma, por resultar inócuo nodizer da impetrante, reconheceu em detrimento desta a condição de litigante de má-fé, pornão haver procedido com lealdade e boa-fé (CPC, art. 14, II), no que está correto o julgador, de vez que aimpetrante tentou ocultar-lhe a existência de um segundo mandado de segurança com o mesmo objetodo primeiro.- Apelação desprovida. Sentença confirmada” (TRF 5ª. Região, 1ª. T., Ap. em M.S. n°. 4275/PE, rel. OrlandoRebouças, DJ 25.10.1991, p. 26749).

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esfera de disponibilidade de interesses (indicação para assistência judiciária,inclusive nos moldes da Lei n°. 1.060/50). Em tais situações são indisponí-veis os direitos em litígio. Deve, pois, o advogado, como aliás deveria sem-pre, atuar dentro da mais estrita ética. E, principalmente: responde solida-riamente pela falta no zelo profissional para a qual haja contribuído, poisnão é justo que se impute semelhante ônus a quem não dispõe de bastanteconhecimento ou de direitos para fazê-lo.

E a solidariedade in casu não é presumida, o que de resto é vedado(art. 896 do CC), mas prevista normativamente (parágrafo único do art. 32da Lei n°. 8.906/94 c.c. o art. 14 do CPC). A respeito bom enaltecer eacompanhar Agnaldo Rodrigues Pereira:

“Poder-se-ia, em defesa, alegar que a responsabilidade deve ser apu-rada em ação própria (cf. parte final do referido parágrafo (parágrafoúnico do art. 32 da Lei n°. 8.906/94), tornando defeso, então, ao juiz,de plano, impor a multa de forma solidária, ou seja, entre autor/advo-gado, réu/advogado ou interveniente/advogado). Entretanto, afigu-ra-se-nos equivocada esta tese, se observado que o Estatuto da Ad-vocacia, por ter sido promulgado anteriormente à Lei n. 8.952/94,que deu nova redação ao art. 18 do CPC deve ser interpretado à luzdas modificações feitas, pois antes delas a apuração dos danos erafeita em procedimento específico (ação própria). Porém, com a alte-ração do § 2°. do art. 18 do CPC, o juiz poderá, desde logo, conhecerde ofício da litigância de má-fé e aplicar de imediato, nos própriosautos, independentemente de procedimento específico ou ação pró-pria, o valor da indenização” (A responsabilidade solidária do advo-gado na litigância de má-fé, p. 32).

Realmente, houve uma evolução legislativa que possui regime jurídi-co diversificado do contido no dispositivo citado da Lei n°. 8.906/94. An-tes demandava-se ação própria; hoje não. Repise-se que a expressão liti-gante do art. 17 do CPC engloba não só a parte como também outros inter-venientes processuais (art. 16 do CPC).

Com efeito, os “deveres que o CPC traça para as partes estendem-se,por disposição expressa de lei, também aos seus advogados (art. 14), desorte que todas os deveres de lealdade e probidade já analisados, no tocanteaos litigantes, aplicam-se aos advogados”26 .

26 Humberto Theodoro Júnior, ob. cit., p. 63.

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De se frisar que a atuação temerária da Fazenda enseja inclusive aresponsabilidade objetiva, nos precisos moldes do art. 37, § 6°., da CF, deonde por força da ordem constitucional impõe-se ao Estado arcar com cus-to de maus defensores desde logo, sabido que ações de regresso são deve-ras incomuns, quando tudo impõe que o mau profissional da advocacia équem responda por sua censurável conduta.

No patamar emoldurado não há mandato no sentido estrito, porquefalta justamente o que caracteriza tal contrato: a disponibilidade de interes-ses do mandante delegada ao mandatário. Nem os representantes judiciaisda Fazenda e nem os que indicados para defesa de hipossuficientes desfru-tam do poder de disponibilizar os interesses que defendem, senão excepcio-nalmente – por autorizativos legais próprios no primeiro caso ou medianteparticipação direta do próprio interessado, demonstrando-se sua perfeitacompreensão de que parcela de direito abrirá mão, inclusive se for total, nosegundo.

Como já adiantamos, litigância não se exaure na parte. É conceitomais amplo, que abrange outras pessoas direta ou indiretamente envolvidasno feito, inclusive o advogado dativo e o representante judicial da FazendaPública.

Exegese anterior à atual redação do art. 18 do CPC nega tal possibi-lidade27 , embora haja julgados recentes que abrem azo para interpretaçãodiversa28 .

Patente que o sancionamento há de ser precedido do devido contradi-tório, posto que em tese poderá o litigante se justificar. E se inviável a

27 “LITIGANTE DE MÁ-FÉ - LEALDADE PROCESSUAL - ADVOGADO - SIMPLES TRADUTOR DA POSIÇÃODE SEUS CONSTITUINTES, SEM CONFUNDIR-SE OU SOLIDARIZAR-SE COM ELES - CONDENAÇÃOAFASTADA. Não há falar em litigância de má-fé de profissional do direito, uma vez que a este incumbe traduzirem juízo ou fora dele a posição de seus constituintes com os quais ou com cujas posições, porém, em momentoalgum se confunde e/ou solidariza” (2°. TAC-SP, 4ª. Câmara, Ap. Cível n°. 166.843, rel. Cunha de Abreu, d.j.28.2.84, in JTA 90/281).

28 Visando afastar má-fé já se admitiu inclusive a rejeição pelo próprio julgador da exceção de suspeição: “SUSPEIÇÃO- EXCEÇÃO - MAGISTRADO - INDEFERIMENTO LIMINAR PELO PRÓPRIO JUIZ - POSSIBILIDADE EX-CEPCIONAL EM CASOS DE EVIDENTE ABUSO DE DIREITO E MÁ-FÉ DA PARTE E SEU ADVOGADO –RECONHECIMENTO. Se é verdade que não pode o magistrado indeferir, em princípio, a exceção da própriasuspeição, não é menos certo que não pode ficar inerte diante de comportamentos abusivos e de má-fé doadvogado da parte que deixa claro o objetivo de obter retardamento de ato ou fim contrário às decisões judici-ais. Assim, visando o juiz não apenas fazer-se justiça, mas também impor rapidez ao término do processo, épossível, excepcionalmente, indeferir de plano exceção de suspeição proposta contra ele” (2°. TAC-SP, 9ª.Câmara, MS n°. 439.555, rel. Eros Piceli, d.j. 13.9.95).

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perfeita apuração (necessidade de provas), outro caminho não restará senãoo apuração por meio de outra ação, movida em face do mau profissional.

Não se descura da hipótese de advogados contratados nos termos doart. 25, II, c.c. 13, V, ambos da Lei n°. 8.666/93 (inexigibilidade de licitaçãona contratação de profissionais do direito com notória especialização).Embora sejam espécie dos chamados particulares em colaboração com aadministração, em boa verdade tanto quanto qualquer outro são considera-dos agentes públicos (cfr. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Di-reito Administrativo, pp. 135-138), aplicando-se-lhes o que dissemos antes.

Por fim, de se frisar que o novel parágrafo único do art. 14 do CPCexclui diretamente a possibilidade do causídico arcar pelo ônus financeirono caso de afronta ao inciso V do mesmo dispositivo legal. O texto norma-tivo, embora inegavelmente proteja o causídico em situações que antes de-via repudiar, remetendo ao órgão de classe competente a apuração da even-tual má-fé (a situação concreta pode dar azo a raciocínios iníquos, comonos citados casos dos representantes judiciais da Fazenda Pública ou dosdefensores que atuem sob a égide da Lei n°. 1060/50 ou assemelhados), emverdade ratifica o ensaio de tese a que nos propusemos, na medida em querobora a teoria geral de que cabe ao mandante responder pelos atos domandatário, salvo em casos de excesso.

VIII CONCLUSÕES

Em arremate, temos a dizer que:1) tem especial importância no ordenamento constitucional brasileiro

vigente a ampla defesa (art. 5°., LV), que possui conceito multivalente, pos-to que se presta tanto para autores como para réus, litigantes, terceiros edemais intervenientes do processo de uma maneira geral;

2) o direito processual civil hoje clama por uma aceleração dos feitos,à luz mesmo de princípios já postos (inafastabilidade da prestação jurisdici-onal) ou com previsão implícita (tempestividade da tutela jurisdicional);

3) o atraso na tutela jurisdicional só existe porque há quem com issoganhe (v.g.: réus contumazes), de onde mudanças deverão levar em contatais contextos;

4) a expressão litigante não tem conteúdo semântico idêntico ao departe. Pode com ele se confundir ou não, a depender do caso concreto.

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Toda e qualquer pessoa que atue como mencionado no art. 17 do CPC é umlitigante de má-fé, sendo ou não parte;

5) é precipuamente do judiciário a função de coibir as condutasperpetuadoras e agasalhadoras de má-fé. Há que se dar firme repressão aisso, sem medo de crises de consciência. Isso porque a sociedade, o direito(como valor) e a ética assim o exigem;

6) há viabilidade para a imposição de multa ou indenização ex officio(arts. 18 e 601 do CPC), embora o pedido da parte interessada seja umantecedente desejável e até lógico;

7) as duas sanções impostas são de causa diferentes e revertem apessoas diversas: a indenização, pelo prejuízo à parte adversa a quem cabeos valores, a multa, pelo atentado à dignidade da justiça e revertendo aoente político (Estado ou União) que sustenta o Judiciário em acionado;

8) o percentual máximo da multa hoje previsto é iníquo (1% do valorda causa) em pretensões de conteúdo econômico inexpressivo, fazendo-seimperiosa a alteração ou complementação do texto legal, ressalvada a hipó-tese nova incluída pela Lei n°. 1.0358/01, onde o limite é alçado a 20%;

9) a solução mais consentânea com o direito é de que o excesso aos20% do valor da causa como teto para indenização implica que o excedentehá de ser previamente liquidado, sem necessidade de um outro processo deconhecimento de reconhecimento de má-fé e sua apuração pecuniária;

10) quando se tratar de advogado constituído o ônus pela má-fé fren-te à parte prejudicada via de regra será do constituinte, por se tratar deespécie contratual de mandato, puro e simples, ressalvado o direito de re-gresso contra o mandatário-constituído;

11) diferente é a situação onde o advogado não age como simplesmandatário (indicação para fins de assistência judiciária ou representantejudicial da Fazenda Pública), ao exercer uma função pública. Nessas hipó-teses ou é titular de cargo/emprego público ou simplesmente exerce, portoda e qualquer natureza, um múnus que lhe retira a esfera de disponibilida-de de interesses (indicação para assistência judiciária, inclusive nos moldesda Lei n°. 1.060/50);

12) em tais situações são indisponíveis os direitos em litígio. Deve,pois, o advogado, como aliás deveria sempre, atuar dentro da mais estritaética. E, principalmente, responde solidariamente pela falta no zelo profis-sional para a qual haja contribuído, pois não é justo que se impute semelhan-te ônus a quem não dispõe de bastante conhecimento ou de direitos para

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fazê-lo, havendo azo para tanto pela interpretação consonante do art. 32,parágrafo único, da Lei n°. 8.906/94 com a atual redação do art. 18 e aindado art. 14, ambos do CPC;

13) o beneficiário da gratuidade da justiça não está livre das sançõespela litigância de má-fé (multa e indenização da parte contrária) a que tenhadado causa, posto que tais créditos não se englobam nem genericamente nalarga interpretação de custas ou despesas processuais que vem sendo em-prestada ao art. 3°. da Lei n°. 1.060/50. Ou seja: não fazem parte do custopara buscar em juízo um direito. São, ao revés, justamente a punição pelabusca de um direito inexistente ou tentado por vias tortuosas.

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