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1 O Programa Estadual de Preservação do Patrimônio Arqueológico e a proteção do passado no Amapá (2005/2012) 1 Ana Cristina Rocha Silva* Introdução Dentre os estados que compõem a Amazônia, o Amapá se destaca quando o assunto é patrimônio cultural arqueológico. As famosas urnas Maracá e Cunani, os túmulos em poços com câmara lateral, de ocorrência exclusiva no Amapá, até então,além dos intrigantes blocos megalíticos de Calçoene/AP são uma amostra do potencial arqueológico do estado. Apesar da potencialidade, o referido bem cultural nem sempre contou com estratégias de gestão condizentes com sua condição de bem de proteção qualificada. No início do século XXI essa fragilidade foi aclarada. Como resposta à essa problemática, uma parceria entre o IPHAN e o Governo do Estado do Amapá (GEA) criou, no ano de 2005, o Programa Estadual de Preservação do Patrimônio Arqueológico do Estado do Amapá (PEPPARQEAP). Esse artigo objetiva analisar a eficácia do PEPPARQEAP como política pública de preservação dos bens arqueológicos no Amapá. O texto apresenta uma avaliação dos reflexos do PEPPARQEAP na preservação, fruição e usufruto do patrimônio arqueológico amapaense, no período de 2005 a 2012. A metodologia constou em pesquisa teórica, com tratamento quali-quantitativo dos dados. Para isso,realizou-seestudo bibliográfico, documental e de campo. O potencial arqueológico do Amapá 1 Artigo produzido a partir da dissertação intitulada “Programa de Preservação do Patrimônio Arqueológico do Amapá (2005/2013): um modelo de gestão de política pública de preservação cultural”, defendida em abril de 2014. *Mestre em Direito Ambiental e Políticas Públicas (UNIFAP/2014); Professora Auxiliar Nível I do colegiado de História da Universidade Federal do Amapá - Campus Binacional. Graduada em História e Especialista em História da Amazônia.

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O Programa Estadual de Preservação do Patrimônio Arqueológico e a proteção do

passado no Amapá (2005/2012)1

Ana Cristina Rocha Silva*

Introdução

Dentre os estados que compõem a Amazônia, o Amapá se destaca quando o assunto é

patrimônio cultural arqueológico. As famosas urnas Maracá e Cunani, os túmulos em poços

com câmara lateral, de ocorrência exclusiva no Amapá, até então,além dos intrigantes blocos

megalíticos de Calçoene/AP são uma amostra do potencial arqueológico do estado.

Apesar da potencialidade, o referido bem cultural nem sempre contou com estratégias

de gestão condizentes com sua condição de bem de proteção qualificada. No início do século

XXI essa fragilidade foi aclarada. Como resposta à essa problemática, uma parceria entre o

IPHAN e o Governo do Estado do Amapá (GEA) criou, no ano de 2005, o Programa Estadual

de Preservação do Patrimônio Arqueológico do Estado do Amapá (PEPPARQEAP).

Esse artigo objetiva analisar a eficácia do PEPPARQEAP como política pública de

preservação dos bens arqueológicos no Amapá. O texto apresenta uma avaliação dos reflexos

do PEPPARQEAP na preservação, fruição e usufruto do patrimônio arqueológico amapaense,

no período de 2005 a 2012. A metodologia constou em pesquisa teórica, com tratamento

quali-quantitativo dos dados. Para isso,realizou-seestudo bibliográfico, documental e de

campo.

O potencial arqueológico do Amapá

1Artigo produzido a partir da dissertação intitulada “Programa de Preservação do Patrimônio Arqueológico do Amapá (2005/2013): um modelo de gestão de política pública de preservação cultural”, defendida em abril de 2014. *Mestre em Direito Ambiental e Políticas Públicas (UNIFAP/2014); Professora Auxiliar Nível I do colegiado de História da Universidade Federal do Amapá - Campus Binacional. Graduada em História e Especialista em História da Amazônia.

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A Amazônia, por longo período, foi apresentada ao mundo “como uma das últimas

fronteiras inexploradas do planeta, um exemplo de natureza primordial, intocada pela ação

humana desde o início dos tempos” (NEVES, 2006, p. 7). A perpetuação de tal mito

direcionou para a humanidade da região o rótulo de “intrusa impertinente”(AMARAL, 2011,

p. 9). As pesquisas arqueológicas realizadas na região vêm revelando informações que, no

mínimo, exigem um repensar sobre os rótulos impregnados no imaginário social de muitas

gerações.

Embora no século XX tenha sido considerada por Betty Meggers como um ambiente

pobre e inibidor ao desenvolvimento cultural (MEGGERS, 1977, apud NUNES FILHO,

2005. p.32), os estudos históricos e arqueológicos revelam que a Amazônia é ocupada há

cerca de 15.000 anos, com casos de populações que chegaram a atingir o quantitativo de

milhares de pessoas (NUNES FILHO, 2010). Dessa forma, contrariando teorias que

subestimavam o potencial cultural da região, a arqueologia indica o cenário de umaAmazônia

que “não foi hostil à presença do ser humano. A vida na floresta nunca foi fácil, mas há

milhares de anos o homem aprendeu a se estabelecer na mata e nela desenvolveu sociedades

complexas” (NUNES FILHO, 2011, p. 102).

No estado do Amapá, a herança cultural deixada por esses povos é extremamente

vasta. De acordo com Cabral e Saldanha (2011, p.53), ainda em 1895, o zoólogo Emílio

Goeldi, em expedição no Rio Cunani (norte do Amapá), ficou maravilhado com a delicadeza

das pinturas e dos motivos modelados nas cerâmicas encontradas. Tamanha beleza e

originalidade o fizeram afirmar que aqueles objetos eram: os “melhores produtos cerâmicos

conhecidos dos indígenas da região Amazônica”.

Embora o meio especializado indique certa unanimidade acerca do potencial

arqueológico do Amapá, por longo período, esse bem permaneceu esquecidonas estratégias de

gestão dos recursos culturais a nível estadual. Segundo Pardi e Silveira (2005, p.1), nos anos

iniciais da primeira década do século XXI, após expedições in loco no interior estado, o

IPHANobservou cinco aspectos importantes na gestão do patrimônio arqueológico do Amapá.

Tais aspectos eram:1º) opatrimônio arqueológico encontrado no Amapá “é

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extraordinariamente rico e expressivo, do ponto de vista quantitativo e qualitativo”;2º) a

abundância de vestígios e a beleza plástica desses fomentava a escavação irregular, a

circulação de peças, o comércio formal e informal, provocando, assim, a destruição rápida dos

sítios; 3º) a realização de pesquisa acadêmica era rara, feita em áreas concentradas e de forma

esporádica; 4º) inexistia qualquer tipo de gestão por parte dos Municípios ou do Estado;

5º)todos os tipos de impactos possíveis estavam sendo “implantados livremente, sem

fiscalização das obras ou qualquer exigência dos órgãos ambientais nos termos de referência”.

A situação descrita revela que, naquele contexto, era clara a ausência de qualquer

política pública direcionada ao patrimônio arqueológico existente em território amapaense.

Para Pardi e Silveira (2005, p. 13), era latente o desconhecimento a respeito da importância

internacional dos bens, dos instrumentos legais que regem a matéria “e do recurso da política

cultural nacional pública e privada, que auxiliam e otimizam a gestão desse patrimônio”.

Criação, objetivo e estratégias do Programa Estadual de Preservação

Opatrimônio cultural é tratado pela legislação brasileira como um bem transindividual

difuso. Isso o configura como um bem que pertence à coletividade. Considerando essa

condição, a vulnerabilidade em que se encontrava o patrimônio arqueológico do Amapá

colocava o estado diante de uma problemática pública. Na tentativa de enfrentar essa

problemática, uma parceria entre IPHAN eGEAcriou o Programa Estadual de Preservação

do Patrimônio Arqueológico do Estado do Amapá– PEPPARQEAP.

Normatizado pelo Decreto nº 1508, de 08 de março de 2005, o

PEPPARQEAPobjetivou “implementar as atividades de pesquisa, identificação,

documentação, proteção e difusão do patrimônio arqueológico que está situado no território

do Estado do Amapá”.Dentreas estratégias do programa, foram pensadas gestões efetuadas em

cooperação com responsáveis regionais (PARDI e SILVEIRA, 2005). Ao estarem fundadas

nas realidades e recursos regionais, as propostas teriam maior probabilidade de êxito. No

planejamento do programa, a frase A comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio,

cunhada por Aloísio Magalhães, foi destacada como a diretriz central do programa.

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As décadas posteriores à Constituição de 1988 apresentam um renascimento das

políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Desafiadas a solidificar os

princípios modernizadores da Constituição que garantem o acesso e usufruto dos bens

culturais a todos, tais políticas dedicam-se a formular diretrizes e criar instrumentos que

possibilitem a inclusão dos bens culturais na pauta das políticas voltadas ao desenvolvimento

do país (PORTA, 2012). Seu maior desafio é a facilitação da participação da sociedade na

gestão dos recursos culturais, buscando a efetividade da função social do patrimônio e de seu

potencial como gerador de desenvolvimento qualificado.

Ao considerar a participação da sociedade na gestão dos bens arqueológicos, o

PEPPARQEAP se mostrou como uma política pública diferenciada, com potencial para

executar a preservação e fruição do patrimônio arqueológico amapaense dentro das quatro

diretrizes centrais da atualpolítica nacional do patrimônio cultural:

1. Participação social; 2. Reinserção dos bens protegidos na dinâmica social; 3. Qualificação do ambiente em que estão inseridos os bens culturais; 4. Promoção do desenvolvimento local a partir das potencialidades do patrimônio cultural. (PORTA, 2012, p. 15)

Os resultados do estudo indicaram que, apesar da potencialidade,o PEPPARQEAP não

conseguiu obter reflexo na realidade das comunidades locais que estão no entorno dos

principais (ou mais famosos) sítios arqueológicos do Amapá. Impossibilitadas de participar na

gestão dos bens arqueológicos, essas comunidades permanecem alheias a um processo que,

por lei, deveria considerá-las. Assim, para a autora, a proteção dos sítios aliada ao

desenvolvimento qualitativo da sociedade permanece sendo um desafio no Amapá.

O PEPPARQEAP, a proteção dos sítios e o desenvolvimento das comunidades

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Como pontuado anteriormente, a frase A comunidade é a melhor guardiã de seu

patrimôniofoi a diretriz maior do PEPPARQEAP. Essa diretriz visualizava a compatibilização

da preservação do patrimônio arqueológico com o desenvolvimento sócio-econômico-cultural

de comunidades locais (PARDI e SILVEIRA, 2005, p. 17). A criação de uma comissão

regional ou estadual que unisse técnicos do executivo, com a sociedade civil organizada e o

setor privado foi a estratégia planejada noPEPPARQEAPpara a inclusão das comunidades no

processo de gestão.

Não foram encontrados dados que confirmassem a criação dessa comissão. Apesar

disso, em meio às pesquisas, se constatou, no IPHAN/AP, a existência de dois projetos

alicerçados na diretriz indicada pela frase de Aluísio de Magalhães, são eles: o Parque

Arqueológico de Maracá (município de Mazagão/AP) e o Parque Arqueológico de Calçoene

(município de Calçoene/AP).

Segundo Figueiredo (2009), o projeto de criação dos dois parques objetiva a criação de

uma infraestrutura adequada nos sítios e seu entorno. Visa também um conjunto de ações

capaz de estimular a comunidade e os visitantes a conhecer, valorizar e preservar os sítios

arqueológicos do lugar. O projeto do Parque Arqueológico de Maracá abrange três sítios

localizados na comunidade de Laranjal do Maracá. Os dois primeiros sítios se chamam

Abrigo do Tracuá e Buracão do Laranjal e possuem pinturas rupestres. O terceiro é um sítio

cemitério pertencente à cultura Maracá denominado Gruta do Veado.

O projeto prevê a construção de estruturas nos três sítios e um Centro Cultural a ser

chamado Maracá. Planejado para estar localizado na Vila de Maracá (município de

Mazagão/AP), o Centro Cultural Maracá (Figura 1) será um espaço cultural para o

desenvolvimento de atividades de educação patrimonial.

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Tratando-se do Parque Arqueológico de Calçoene

inspirou a criação de um projeto

de Calçoene/AP, e uma estrutura moderna c

visitantes terão acesso às rochas megalíticas sem tocá

sítio.

A criação dos dois parques elencados indica

2005, no PEPPARQEAP. Contudo, embora os projetos

profundamente alicerçados nessas diretrizes, hoje, eles encontram

Desenvolvimento do Amapá (ADAP). Parafraseando as palavras de Fonseca (2005, p. 74), ao

2O sítio de Calçoene selocaliza a dezesseis quilômetros da sede do município de Calçoene/AP. Contém

rocha que medem mais de três metros de comprimento

de uma elevação. Por conta disso, o

CABRAL eSALDANHA (2011).

Figura 1: Aspecto do Centro Cultural Maracá.Fonte: Figueiredo (2009)

Parque Arqueológico de Calçoene2,o potencial turístico da região

projeto que agrega a construção de um museu, na

, e uma estrutura moderna composta por passarelas (Figura

visitantes terão acesso às rochas megalíticas sem tocá-las, evitando, assim

os dois parques elencados indica a solidificação das diretrizes lançadas, em

PEPPARQEAP. Contudo, embora os projetos planejados para ambos estejam

profundamente alicerçados nessas diretrizes, hoje, eles encontram-se parados na Agência de

Desenvolvimento do Amapá (ADAP). Parafraseando as palavras de Fonseca (2005, p. 74), ao

a dezesseis quilômetros da sede do município de Calçoene/AP. Contém

mais de três metros de comprimentoque estão fincados no solo formando um círculo no topo

Por conta disso, o local vem sendo comparado ao Stonehenge, na Inglaterra. Ver mais em:

ABRAL eSALDANHA (2011).

pecto do Centro Cultural Maracá. Fonte: Figueiredo (2009).

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potencial turístico da região

useu, na sede do município

omposta por passarelas (Figura 2), nas quais os

assim, impactos sobre o

a solidificação das diretrizes lançadas, em

planejados para ambos estejam

se parados na Agência de

Desenvolvimento do Amapá (ADAP). Parafraseando as palavras de Fonseca (2005, p. 74), ao

a dezesseis quilômetros da sede do município de Calçoene/AP. Contém blocos de

fincados no solo formando um círculo no topo

local vem sendo comparado ao Stonehenge, na Inglaterra. Ver mais em:

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estarem presos em alguma pilha de processos, p

planejamento dos projetos não passam de “meras declarações de boas intenções”.

Enquanto os ganhos sociais, culturais e econômicos decorrentes da solidificação de

tais projetos não ocorrem, a realidade observada nas comunidades envoltas aos principais

sítios arqueológicos do estado

direito de acesso e usufruto dos bens culturais

Se tratando da localidade de Maracá (Mazagão

relação entre a política de gestão do patrimônio arqueológico com as comunidades locais

daquela região, Campos (2010, p.36) aponta a ausência de uma política de gestão. O único

instrumento identificado pelo autor para gerir os

autorizações de pesquisa dadas pelo IPHAN. Em sua maioria, essas autorizações se

restringem a realizar prospecções.

Figura 2: Aspecto das estruturas planejadas para o Parque Arqueológico de CalçoeneFonte: IPHAN/AP

estarem presos em alguma pilha de processos, por enquanto, os esforços empreendidos no

planejamento dos projetos não passam de “meras declarações de boas intenções”.

nquanto os ganhos sociais, culturais e econômicos decorrentes da solidificação de

, a realidade observada nas comunidades envoltas aos principais

stado do Amapá imprime contextos de abandono e negligência d

o e usufruto dos bens culturais previsto pelo art. 215 da CF de 1988.

Se tratando da localidade de Maracá (Mazagão/AP), ao investigar como se dá a

relação entre a política de gestão do patrimônio arqueológico com as comunidades locais

daquela região, Campos (2010, p.36) aponta a ausência de uma política de gestão. O único

instrumento identificado pelo autor para gerir os bens arqueológicos na região são as

autorizações de pesquisa dadas pelo IPHAN. Em sua maioria, essas autorizações se

restringem a realizar prospecções.

2: Aspecto das estruturas planejadas para o Parque Arqueológico de Calçoene

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or enquanto, os esforços empreendidos no

planejamento dos projetos não passam de “meras declarações de boas intenções”.

nquanto os ganhos sociais, culturais e econômicos decorrentes da solidificação de

, a realidade observada nas comunidades envoltas aos principais

imprime contextos de abandono e negligência do

previsto pelo art. 215 da CF de 1988.

), ao investigar como se dá a

relação entre a política de gestão do patrimônio arqueológico com as comunidades locais

daquela região, Campos (2010, p.36) aponta a ausência de uma política de gestão. O único

bens arqueológicos na região são as

autorizações de pesquisa dadas pelo IPHAN. Em sua maioria, essas autorizações se

2: Aspecto das estruturas planejadas para o Parque Arqueológico de Calçoene

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Campos (2010) revela ainda ser inexistente a interação das comunidades no processo

de gestão dos recursos arqueológicos. Ele explica que, apesar de a maioria das famílias

consideradas em seu estudo estarem assentadas sobre sítios, 60% delas desconhecem as

pesquisas realizadas no lugar. Para agravar o quadro descrito, o estudo do autor indica que

52,78% das famílias entrevistadas não sabem da existência de sítios arqueológicos e 68, 52%

nunca tiveram acesso a eles.

Os problemas relacionados à gestão dos recursos arqueológicos não são exclusivos da

região pesquisada por Campos (2010). No decorrer dessa pesquisa, por duas vezes, se tentou

chegar ao sítio megalítico de Calçoene/AP. Por conta das condições da via que dá acesso ao

lugar, as duas tentativas foram fracassadas. No período chuvoso, o atoleiro e a falta de

manutenção da estrada impedem o acesso de carros que não possuem tração. Após a segunda

tentativa frustrada, o guarda-parque do sítio chamadoLailson Camelo da Silva (popularmente

conhecido como Garrafinha), de 62 anos, foi procurado.

O diálogo estabelecido com ele, inevitavelmente, trouxe à lembrança as palavras de

Bastos (2002, p. 131), para quem “o Estado não transfere o poder a comunidades locais ou

grupos de interesses, os quais são burocraticamente desencorajados a atuar no campo da

arqueologia”. Perguntado sobre a criação e andamento do projeto que visa transformar o sítio

de Calçoene em um Parque Arqueológico, o entrevistado ratifica a fala do autor supracitadoe

revela que:

Isso eles me falaram no início do ano e, logo eu adoeci e eles só me dizem que o

projeto está andando, mas até hoje, não tem nada feito [...]o que eu tinha de ajudar

o Estado eu já ajudei, que foi: achar sítio, achar vasos, eu achei vasos, achar um

peixe, um peixe de pedra fui eu que achei [...] eu fui lá depois de doente e quando eu

fui no sítio que eu vi um metro de cerrado rente à casa, eu fiquei triste. Aí eu fui lá

bater em Macapá e disse: –ou nós vamo fazer alguma coisa, ou vamo cuidar do que

tá lá! Eu vim atrás de combustível ou dinheiro que eu vou limpar o sítio! –Não tem

dinheiro! –Tá, então eu quero combustível. Aí me deram 50 litros de gasolina, eu

vim pra cá, paguei carro, não me deram carro porque não tinha óleo, eu fui pro

sítio limpei tudinho e agora o cerrado já tá vindo de novo [...] e chegou o ponto que

eu não aguento mais [...] a minha luta era ficar no sítio [...] aí eu fui lá agora pedir

da Secretária: – Secretária eu quero combustível pra roçar o sítio [...]! Ela disse:–

Se o senhor me pedir uma caixa de fósforo, eu vou lhe dar um palito, em 20 de

janeiro, eu lhe dou outro palito e , em fevereiro, eu lhe dou a caixa3.

3Em entrevista concedida à autora no município de Calçoene/AP, na casa do entrevistado, no dia 05.01.2014.

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A fala deixou claro que o casamento entre a proteção de sítios arqueológicos com o

desenvolvimento qualitativo de comunidades locais é uma realidade distante de ser

concretizada no Amapá. Os exemploselencados ratificam a fragilidade da gestão dos recursos

arqueológicos no estado e indicam que a frase A comunidade é a melhor guardiã de seu

patrimônio não conseguiu se solidificar em práticas reais, mesmo sendo a principal diretriz

doPEPPARQEAP.

A ausência de efetividade de estratégias importantes desse programa resultou na

permanência de problemas observados ainda na fase de criação do mesmo. O distanciamento

da sociedade no processo de gestão dos recursos arqueológicos é uma dessas permanências.

Inspirada nas palavras de Regina CoeliSilva (2007, p.71), esse distanciamento, na avaliação

da autora, centraliza a gestão no Estado e impede que a sociedade possa “conhecer, assimilar

e usufruir” o seu patrimônio arqueológico.

Considerações finais

A CF de 1988 inovou ao garantir a todos o acesso e usufruto dos bens culturais

(art.215). Essa inovação repercutiu nas políticas de preservação do patrimônio cultural

nascidas nas duas últimas décadas. Desafiadas a pôr em prática o texto Constitucional, as

estratégias de ação do Estado em matéria dos bens culturaisse propõem a inserir o patrimônio

cultural brasileiro na pauta das políticas de desenvolvimento qualificado do país. Para isso,

primam pela inserção da sociedade no processo de gerenciamento dos recursos culturais.

O PEPPARQEAP se configurou como uma estratégia para instaurar no Amapá as

diretrizes lançadas pela atual política de preservação do patrimônio cultural.Os resultados da

pesquisa indicaram que o PEPPARQEAP não conseguiu se consolidar como uma política

cultural forte e eficiente. O insucesso do programa se atribui ao abando dos sítios

arqueológicos no Amapá, ao desaproveitamento desses como gerador de desenvolvimento

para as comunidades locais e ao distanciamento dessas para com o patrimônio arqueológico.

Ao estarem alijadas do processo de gestão dos recursos arqueológicos, as comunidades

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são postas em posição externa, quando muito, recebem informações sobre o seu próprio

patrimônio. Essa situação fortalece a lógica da velha política patrimonial conduzida e

protagonizada pelo Estado. Política essa que afasta da sociedade a possibilidade de viver a

vinculação entre cultura e cidadania e perpetua estratégias de gestão incompatíveis com a

pluralidade e diversidade cultural brasileira.

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