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Ana Flaksman
ASPECTOS DA RECEPO
DE HERCLITO POR PLATO
TESE DE DOUTORADO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Puc-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutora em Filosofia.
Orientadora: Profa. Maura Iglsias
Rio de Janeiro
Maio de 2009
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2
Ana Flaksman
Aspectos da recepo de Herclito por Plato
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Doutora pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Cincias Humanas da Puc-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.
Profa. Maura Iglsias Orientadora
Departamento de Filosofia da Puc-Rio
Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho Departamento de Filosofia da Puc-Rio
Profa. Irley Fernandes Franco Departamento de Filosofia da Puc-Rio
Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues Departamento de Filosofia da UFRJ
Prof. Marcelo Pimenta Marques Departamento de Filosofia da UFMG
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Cincias Humanas Puc-Rio
Rio de Janeiro, 8 de maio de 2009
3
Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem a autorizao da universidade, da autora e da orientadora. .
Ana Flaksman Graduou-se em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1997. Mestre em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (Puc-Rio) em 2001. Professora de Filosofia do Ciclo Bsico de Graduao da Fundao Getulio Vargas (FGV-RJ) desde 2006. Ficha Catalogrfica
CDD:100
Flaksman, Ana Aspectos da recepo de Herclito por Plato / Ana Flaksman ; orientadora: Maura Iglsias. 2009. 197 f. ; 30 cm Tese (Doutorado em Filosofia)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Inclui bibliografia 1. Filosofia Teses. 2. Recepo de Herclito. 3. Plato. Teeteto. 4. Conhecimento. 5. Sensao. 6. Teoria do fluxo. I. Iglsias, Maura. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Ttulo.
4
Para o Caco e o Vicente, e aos meus pais tambm
5
Agradecimentos
A Maura Iglsias, pela orientao deste trabalho, por suas aulas sobre Plato e
pelo apoio, cuidado e incentivo fundamentais durante o curso de doutorado.
A Fernando Rodrigues, Marcelo Pimenta Marques e Danilo Marcondes, pela
participao na banca examinadora desta tese.
A Irley Franco, pelo nimo e generosidade com que discutiu os temas deste
trabalho, pelas sugestes valiosas, e pela participao na banca examinadora.
Ao CNPq e Puc-Rio, pelas bolsas de estudo que me concederam.
A Edna e Din, pelos auxlios no Departamento de Filosofia.
A Maria Ins Anachoretta, pela cesso de muitos artigos sobre o Teeteto, pelo
estmulo e pelas conversas que muito enriqueceram esta tese.
A Marcus Reis, pela amizade e interlocuo preciosas desde minhas primeiras
investigaes filosficas, e pelos livros que emprestou para a tese.
A Marieta Dantas, pelo afeto e a companhia durante o curso, e pela
disponibilidade, sempre, para conversar e ajudar.
Aos professores e colegas da Puc-Rio, em especial aos amigos e colegas do
Ncleo de Filosofia Antiga, pelo timo convvio e pela troca de idias e textos.
6
A Anas Flchet e Luciana Garbayo, pelos vrios textos que me enviaram de
bibliotecas estrangeiras.
A Gilberto Velho, pela leitura e as conversas sobre a tese, pela grande amizade, e
por estar sempre pronto a me ouvir e encorajar.
s amigas Gabriela Gastal e Soraya Simonelli pela escuta, o carinho e a torcida a
favor, sempre.
A Margareth, pela ajuda essencial para lidar com as dificuldades da tese.
Ao meu pai e Myriam, ao Carroberto, Lili e ao Daniel, ao Antonio e Maria,
ao Marcus e Alice, por todo apoio e afeto.
minha me, pela proximidade e as conversas freqentes, pelas muitas, grandes e
variadas ajudas, pela reviso do texto.
Ao Caco, pelo amor, cumplicidade, suporte e ajuda sem tamanho.
E ao Vicente, pelas minhas maiores alegrias e pela pacincia ao ver a me ficar
muito sumida para terminar esta tese.
7
Resumo Flaksman, Ana; Iglsias, Maura (orientadora). Aspectos da recepo de Herclito por Plato. Rio de Janeiro, 2009. 197p. Tese de Doutorado - Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
Uma interpretao muito comum da leitura platnica de Herclito aquela
segundo a qual Herclito aparece nos dilogos de Plato, especialmente no
Teeteto, como o principal defensor do fluxo extremo e o pensador que trouxe
tona uma interdio incontornvel ao conhecimento e linguagem. Entretanto, se
lemos os fragmentos de Herclito, vemos que a questo do conhecimento foi
tematizada expressamente por ele, que a possibilidade do conhecimento e da
linguagem foi por ele afirmada, e que o mobilismo por ele defendido no era
extremado. Por esta razo, essa interpretao freqente do Teeteto produz um
estranhamento que pode e deve ser convertido num desafio para a leitura de Plato
e de Herclito. Esta tese busca mostrar, a partir principalmente da leitura da
primeira parte do Teeteto, como Plato compreendeu e transps o pensamento de
Herclito. Algumas concluses da tese so que Plato, no Teeteto, no transmitiu
de Herclito a imagem exagerada de um mobilista radical, e sim distinguiu as
teses mais moderadas de Herclito das opinies mais extremadas de seus adeptos.
E, se tudo indica que Herclito nunca dissociou a tese do fluxo universal de outras
teses suas, como por exemplo a tese da unidade dos opostos, Plato por sua vez
no isolou a tese do fluxo, de modo que no se deve considerar que ele atribuiu a
Herclito uma verso unilateral e empobrecida de sua filosofia. Por fim, ao
contrrio do que pode parecer primeira vista, no Teeteto, Plato critica somente
o heraclitismo exagerado, dando a entender que est aceitando e considerando
respeitvel a verso moderada da teoria do fluxo universal, tal como defendida por
Herclito.
Palavras-chave Recepo de Herclito; Plato; Teeteto; conhecimento; sensao; teoria do fluxo.
8
Abstract Flaksman, Ana; Iglsias, Maura (advisor). Aspects of Platos reception of Heraclitus. Rio de Janeiro, 2009. 197p. Doctoral Thesis - Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
A current interpretation of Platos reading of Heraclitus maintains that
Heraclitus appears in Platos dialogues, mostly in Theaetetus, as the main
defender of the extreme flux and as the philosopher who asserted an irrevocable
interdiction of knowledge and language. However, when we read Heraclitus
fragments, we can see that he expressly considered the theme of knowledge, that
he recognized the possibility of knowledge and language, and that the flux he
defended was not extreme. For this reason, this frequent interpretation of
Theaetetus produces a kind of uneasiness that could and should be turned into a
challenge to the reading of Plato and Heraclitus. Basing its arguments mainly of
the first part of Theaetetus, this thesis intends to show how Plato understood and
translated Heraclitus thought. One of its conclusions is that in Theaetetus Plato
did not transmit an exaggerated image of Heraclitus as a radical flux defender, but
rather distinguished Heraclitus more moderate theories from his followers more
radical opinions. If most likely Heraclitus never dissociated the universal flux
doctrine from other of his theories, as the doctrine of the unity of opposites, and
neither Plato did isolate the theory of flux, we should not consider that Plato
imputed to Heraclitus an unilateral and impoverished version of heraclitean
philosophy. Finally, contrarily to what may seem at first sight, in Theaetetus Plato
condemns only exaggerated heraclitism, suggesting that he accepts and respects
the moderate version of the theory of universal flux as proposed by Heraclitus
himself.
Keywords Reception of Heraclitus; Plato; Theaetetus; knowledge; sensation; flux doctrine.
9
Sumrio 1. Introduo 11
1.1 O conhecimento de Plato sobre Herclito e os heraclticos 11
1.2 A histria da conservao dos escritos de Herclito 16
1.3 Plato lendo seus predecessores 19
1.4 O que buscar na leitura platnica de Herclito 22
1.5 Tomando o Teeteto como fio condutor 25
1.6 Roteiro da tese 27
2. Herclito e o conhecimento: o conflito aparente
entre os fragmentos e o testemunho de Plato 30
2.1 A questo do conhecimento em Herclito 30
2.2 O lgos heracltico 32
2.3 A psych em Herclito 45
2.4 Herclito e a escuta da phsis 61
2.5 Plato e Herclito poderiam ser aliados no Teeteto? 68
3. Consideraes iniciais sobre o Teeteto 71
3.1 O Teeteto na cronologia da obra platnica 71
3.2 O prlogo e o dilogo introdutrio 75
3.3 Comea a discusso sobre o conhecimento 78
3.4 A primeira definio de Teeteto 80
3.5 A associao com Protgoras 94
3.6 O problema do Protgoras histrico 101
10
4. Plato lendo Herclito no Teeteto 113
4.1 As referncias a Herclito e a outros filsofos 113
4.2 A primeira meno a Herclito 114
4.3 A relao entre as trs teses em diversas leituras 119
4.4 A exposio da doutrina secreta e da teoria da sensao 131
4.5 Comea a crtica s trs teses 148
4.6 A crtica ao heraclitismo extremo 151
5. Plato, os fragmentos do rio e a tese heracltica do fluxo 156
5.1 O Teeteto e as teses atribudas a Herclito 156
5.2 O suposto erro de Plato 158
5.3 O debate sobre a origem e o significado dos fragmentos do rio 162
5.4 A hiptese da autenticidade e suas implicaes 172
6. Consideraes finais 179
6.1 O percurso da pesquisa 179
6.2 A riqueza da leitura platnica de Herclito 184
7. Referncias bibliogrficas 187
7.1 Fontes primrias 187
7.2 Fontes secundrias 189
11
1.
Introduo
1.1
O conhecimento de Plato sobre Herclito e os heraclticos
H fortes evidncias de que Plato teve acesso ao livro de Herclito em
sua forma original, e no apenas possuiu um conhecimento indireto de sua
filosofia.1 Plato tambm uma fonte importante de citaes e de doxografia a
respeito de Herclito, assim como uma das pouqussimas fontes para nosso
conhecimento do heracltico Crtilo.2 E no uma fonte qualquer: a mais antiga
e a primeira cujo texto se conservou integralmente at os dias de hoje.
H muito pouca informao confivel sobre a vida e a atuao filosfica
de Herclito. Em contraste, existe uma abundante biografia lendria, composta de
anedotas, de descries de seu carter, e de verses sobre a sua morte. Os dados
seguros sobre a vida de Herclito so que ele nasceu em feso, colnia grega na
sia Menor e territrio hoje pertencente Turquia , em data estimada em cerca
de 544 a.C.3 Digenes Larcio, cuja obra Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres
1 Ver um pouco mais adiante, ainda nesta Introduo, alguns dos indcios de que muito implausvel que Plato tenha tido somente um conhecimento indireto do texto de Herclito. 2 Possumos somente duas fontes independentes de doxografia sobre Crtilo, das quais todas as outras fontes parecem ser tributrias: o Crtilo de Plato e trs passagens da Metafsica de Aristteles. Cf. Serge Mouraviev, Cratylos DAthenes, in R. Goulet (dir.), Dictionnaire des Philosophes Antiques (Paris: CNRS, 1994), vol. II, p. 506. 3 Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres (Braslia: EdUnB, 1988), IX, 1. A correo desta data, considerada a data aproximada do nascimento de Herclito, indicada pelo
12
a fonte mais rica para seus dados biogrficos, apresenta as diversas variantes que
j perpassavam sua fama no sc. III d.C. Em sua obra, ele diz que Herclito era
filho de Blson e membro de uma famlia aristocrtica de feso. Depois de se
recusar a elaborar as leis e a participar do governo de sua cidade, e de renunciar,
em favor do irmo, ao direito de reinar, teria acentuado o desprezo que j
manifestava pelos efsios por terem banido seu amigo Hermodoro , afastando-
se do convvio com seus concidados, primeiro retirando-se para o templo de
rtemis, onde foi jogar ossinhos com as crianas, e depois indo viver nas
montanhas. L teria escrito seu livro e em seguida t-lo-ia depositado no templo
da deusa rtemis. Teria depois adoecido e retornado cidade. Sua morte, ocorrida
em torno de 474 a.C., ora atribuda hidropisia, ora ao ataque de ces, ora a
outra doena.4
Que o livro de Herclito tenha de fato existido no foi sempre consenso
entre os estudiosos. Kirk, por exemplo, afirmou que o livro poderia ser o resultado
da compilao dos ditos de Herclito por outrem. Entretanto, muitos foram os
intrpretes de Herclito que sustentaram, seguindo diversos testemunhos e com
base na desenvoltura com que muitos autores o citaram, que o livro de fato
existiu.5 Hoje no se encontra mais quem duvide da real existncia do livro do
Efsio.
O livro de Herclito circulou por um perodo e, ao longo do tempo, se
perdeu, assim como as obras de todos os pr-socrticos. O que se conhece da obra
do Efsio, os seus fragmentos, deve-se a citaes de suas palavras feitas por
outros autores. Essas citaes, nas obras em que aparecem, so trechos
contextualizados, e no fragmentrios. Os autores que citam os clebres
fragmentos so, portanto e isso se revela no contexto das citaes , tambm
seus intrpretes.
fragmento 40, em que Pitgoras, Xenfanes e Hecateu homens que morreram entre 510 e 480 a.C. so citados. 4 Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres (op. cit.), IX, 1-6. 5 Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (Londres: Cambridge University Press, [1954] 1978), p. 7. Para a posio favorvel existncia do livro de Herclito, ver, por exemplo, W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (Cambridge: Cambridge University Press, [1962] 1977), vol. 1, p. 407-408; Charles H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (Londres: Cambridge University Press, [1979] 1999), p. 3.; e Marcel Conche, Hraclite. Fragments (Paris: Puf, [1986]
13
A circulao de cpias do livro de Herclito que teria ocorrido durante
a Antiguidade at os primeiros sculos da era crist e a disseminao oral de
suas idias fizeram com que a sua filosofia logo ultrapassasse as fronteiras das
cidades gregas da sia Menor. Vale notar que a transmisso oral, que era o
principal meio de difuso de idias e obras dos filsofos pr-socrticos, no foi
to intensa no caso do Efsio, pois ele no teve discpulos diretos. Mas isso no
impediu que sua obra fosse disseminada e ganhasse fama rapidamente, a ponto de
logo aparecerem partidrios reais ou presumidos de suas teorias que se
autoproclamavam heraclticos.6 A rapidez e a amplitude da propagao da obra de
Herclito se evidenciam quando notamos, por exemplo, que Empdocles e
Demcrito quase seus contemporneos estavam muito familiarizados com sua
obra e sua filosofia.
No sculo V a.C., a obra do Efsio chegaria a Atenas. Digenes Larcio,
alm de contar que em meados do sc. V Eurpides apresentou o livro de Herclito
a Scrates, fala tambm de Crtilo, um ateniense que se dizia um heracltico e, de
fato, passou a ser considerado o discpulo de Herclito por excelncia.7 Tudo o
que hoje sabemos sobre Crtilo e sobre suas idias depende de fontes indiretas e
est de um modo ou de outro ligado ao heraclitismo que os prprios antigos lhe
atriburam. Estima-se que Crtilo tenha nascido aproximadamente em 450 a.C., e
que ele tivesse cerca de 20 anos menos que Scrates e 20 anos mais que Plato.8
Plato, que viveu entre os fins do sc. V e a primeira metade do sc. IV
a.C., o autor mais antigo a citar Herclito. Apenas duas so as suas citaes de
Herclito, mas muitas so as referncias a ele, sejam elas explcitas o que ocorre
em pelo menos seis de seus dilogos , sejam implcitas o que parece poder ser
encontrado ao longo de toda a sua obra. Plato tambm se referiu diversas vezes
aos heraclticos, e sobretudo a Crtilo, que o personagem central do dilogo que
leva seu nome no ttulo.
1991), p. 7. 6 Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres (op. cit.), IX, 6. 7 Cf. Diogenes Laertios, Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres (op. cit.), II, 22 e III, 6. 8 Cf. Serge Mouraviev, Cratylos DAthenes (op. cit.), p. 503.
14
Em muitos relatos a respeito da vida de Plato consta que, quando ele
ainda era jovem, teve contato no apenas com a filosofia de Scrates, mas tambm
com a filosofia de Crtilo, o auto-intitulado heracltico. Aristteles diz o seguinte
sobre a relao entre Plato e Crtilo:
Pois, tendo se familiarizado ainda jovem com Crtilo e com as opinies de Herclito, segundo as quais todas as coisas sensveis
fluem sempre e no h cincia acerca delas, [Plato] sustentou esta
doutrina tambm mais tarde. Por outro lado, ocupando-se Scrates dos
problemas morais e no da natureza em seu conjunto, mas buscando
neles o universal, e tendo sido o primeiro que aplicou o pensamento s
definies, [Plato] aceitou seus ensinamentos, mas por aquele motivo
[por estar familiarizado com as opinies de Herclito] pensou que isto
[o universal] se produzia em outras coisas, e no nas sensveis.9
O heraclitismo de Crtilo afirmado por quase todas as nossas fontes, a
comear por Plato (Crtilo, 440e; 401d-422c) e Aristteles (Metafsica 987a 32;
1010a 7), e depois por diversos bigrafos de Plato e por comentadores de
Aristteles. Das doutrinas de Herclito, consta que Crtilo professava tanto a tese
do fluxo universal quanto a tese da retido natural dos nomes. Em sua obra,
Plato mostra ter conhecido e discutido essas duas doutrinas, o que fica claro
quando observamos que ambas constituem os temas centrais do dilogo Crtilo e
que a primeira delas (a doutrina heracltica do fluxo universal) uma das teses
mais discutidas no dilogo Teeteto.
9 , , , , (Aristteles, Metafsica A, 987 a32-b5). Digenes Larcio tambm afirma que Plato freqentou Crtilo, mas, ao contrrio de Aristteles, diz que seu contato com o heracltico ocorreu aps a morte de Scrates: Dizem que a partir de ento, aos 20 anos, tornou-se discpulo de Scrates. Quando este morreu ele passou a seguir Crtilo, adepto da filosofia de Herclito. , ,
15
No se sabe se Crtilo escreveu alguma obra, nem se ele ensinou
sistematicamente, e nossas fontes para o conhecimento de suas doutrinas so
pouqussimas. As principais fontes, o Crtilo de Plato e a Metafsica de
Aristteles, atribuem a Crtilo as seguintes teses: todas as coisas possuem nomes
justos conformes sua natureza (Crtilo, 383a-384a, 390d-e, 427d); todas as
leis so igualmente justas (Crtilo, 429b); impossvel dizer o falso (Crtilo,
429d); todas as coisas esto sempre em fluxo (Crtilo, 401d-422c, 436e-437a;
Metafsica, 987a 32, 1078b 12, 1010a 7); e das coisas que mudam no possvel
dizer verdade, e no se deve dizer nada (Metafsica, 1010a 7-13).
Todos os antigos sustentam que a tese do fluxo universal defendida por
Crtilo tem sua origem em Herclito. Mas alguns testemunhos sobre Crtilo
mostram que ele foi freqentemente considerado mais heracltico que o prprio
Herclito no que toca teoria do fluxo. Aristteles, por exemplo, diz o seguinte
sobre a relao e sobre as diferenas entre Crtilo e Herclito a respeito dessa
teoria:
Alm disso, estes filsofos, vendo que toda esta natureza
sensvel se move, e que nada se diz com verdade do que muda,
acreditaram que, ao menos acerca do que muda sempre totalmente,
no possvel dizer a verdade. Desta concepo surgiu, com efeito, a
opinio mais extremada entre as mencionadas, a dos que afirmam que
heraclitizam, tal como Crtilo, que, finalmente, acreditava que no se
devia dizer nada, limitando-se a mover o dedo, e censurava Herclito
por haver dito que no possvel entrar duas vezes no mesmo rio, pois
ele acreditava que [no possvel entrar] nenhuma.10
: . (Diogenes Laertios, op. cit., III, 6). 10 , , . , , ,
16
Uma srie de estudiosos modernos, no entanto, nega que Herclito tenha
formulado uma tese do fluxo universal, e considera inautnticos os fragmentos do
rio (mais freqentemente os fragmentos B 91 e B 49a), que so os que melhor
expressam esta tese.11 Eles entendem que Plato e Aristteles propagaram uma
verso cratiliana (isto , deformada) de Herclito, pois o Efsio na verdade estaria
ressaltando o tempo todo a estabilidade na mudana e no fluxo, e no o fluxo
universal. Alguns estudiosos tambm acreditaram que Plato teve um
conhecimento muito limitado de Herclito e pode mesmo no ter conhecido as
suas sentenas autnticas mais do que ns as conhecemos.12 Mas essa idia no
parece ser muito razovel, e isso por vrias razes: os ecos das sentenas
heraclticas em uma multiplicidade de escritos pr-platnicos mostram a grande
difuso que o livro de Herclito deve ter tido na Jnia, Grcia e Magna Grcia at
o tempo de Plato.13 Nessa poca, uma multiplicidade de cpias devia circular; e
que elas circulavam em Atenas indicado no s por Digenes (quando conta que
Eurpedes deu uma cpia a Scrates), mas ainda pelo fato de ter-se formado em
Atenas, em torno de Crtilo, uma corrente de heraclticos. Alm disso,
indubitvel o interesse de Plato pelas doutrinas do filsofo de feso, que
mencionado e discutido explcita ou implicitamente ao longo de toda a sua obra.
Tudo isso leva a crer que Plato, um pensador vido de saber que teve uma
relao com Crtilo, certamente buscaria ter um conhecimento direto da fonte das
doutrinas deste, que era acessvel na Atenas de seu tempo.
1.2
A histria da conservao dos escritos heraclticos
. (Aristteles, Metafsica, IV, 5, 1010a 7-15). 11 Este tema ser tratado com mais detalhe no captulo 4, no qual sero discutidos os argumentos dos defensores da inexistncia de uma tese do fluxo em Herclito. 12 Este o caso de G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 15. 13 Cf. Rodolfo Mondolfo e Leonardo Tarn. Eraclito: Testimonianze e Imitazioni (Florena: La Nuova Italia, 1972), p. CXIX.
17
Depois de Plato, Aristteles foi o primeiro a conservar citaes de
Herclito. Ele fez sete citaes e, assim como Plato, realizou discusses bastante
detalhadas do pensamento do Efsio. Teofrasto, discpulo direto de Aristteles, foi
o primeiro autor a tentar sistematizar a filosofia e a reunir os dados biogrficos
mais importantes de Herclito e de outros filsofos pr-socrticos. Sua obra se
perdeu, mas provvel que tenha constitudo uma das bases para os relatos
registrados por Digenes Larcio.14
O interesse por Herclito no parou de crescer e foi de fato muito intenso
durante o perodo helenstico. Muitos foram os autores e as obras, pertencentes a
diferentes escolas e movimentos, que dele se ocuparam. O pice da influncia
filosfica de Herclito foi alcanado na obra dos esticos, que, em conjunto com
os neoplatnicos e os primeiros doutrinadores cristos, citaram a maior parte dos
fragmentos heraclticos. As mais abundantes citaes foram feitas pelos autores
cristos Clemente de Alexandria, Hiplito de Roma e Orgenes de Alexandria,
responsveis pela preservao de 47 fragmentos.
Outra fonte importante para os fragmentos originais de Herclito foi
produzida pelo antologista Estobeu, no sc. V d.C. Kahn lembra que a antologia
de Estobeu foi compilada quase um milnio depois da composio original do
livro do Efsio e afirma que, embora seja provvel que muitas de suas citaes
fossem de segunda mo (feitas com base em antologias ou autores mais antigos),
no h por que duvidar de que o livro ainda estivesse disponvel em sua forma
original nesse perodo.15 A partir do sculo VI d.C., a importncia e a memria do
pensamento de Herclito quase se extinguiram. Afora a difuso abundante,
durante a Idade Mdia, da imagem pictrica do Herclito melanclico e choroso
em oposio ao Demcrito alegre e risonho, pode-se dizer que nesse perodo
Herclito permaneceu praticamente esquecido. Entretanto, seis fragmentos foram
conservados durante o Medievo, principalmente por autores e dicionrios
bizantinos. curioso observar, ainda assim, que ao longo de quatro sculos no se
fez nenhuma citao da obra de Herclito perodo este situado entre as citaes
14 Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought os Heraclitus (op. cit.), p. 4. 15 Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought os Heraclitus (op. cit.), p. 5-6.
18
do antologista Estobeu (sc.V d.C.) e do dicionrio Etymologicum Magnum (sc.
IX d. C.). O ltimo autor a citar Herclito foi Alberto Magno (1193-1280).
Na Idade Moderna, comea-se a reunir, compilar e editar as citaes de
Herclito espalhadas em muitas obras. O primeiro a faz-lo foi o compilador e
editor francs Henri Estienne, tambm conhecido por seu nome latino Henricus
Stephanus, em seu Poesis Philosophica, publicado em 1573. Diversas outras
edies se lhe seguiram, entre elas a do filsofo e telogo alemo Friedrich
Schleiermacher (sc. XVIII) e a do fillogo ingls Ingram Bywater (sc. XIX).
Em 1901, o fillogo alemo Hermann Diels publicou seu volume dedicado a
Herclito, Herakleitos von Ephesos, no qual reuniu os fragmentos que valem at
hoje como padro do corpo heracltico. Em 1903, Diels inseriu o conjunto de
fragmentos heraclticos na obra Die Fragmente der Vorsokratiker, que apresenta
os fragmentos de Herclito e dos demais pr-socrticos. Essa obra foi revista e
expandida trs vezes por Diels, e foi finalmente revisada e editada duas vezes por
Walther Kranz.16 Diels considerou 131 fragmentos de Herclito autnticos (sem
contar o fragmento 109, que igual ao fragmento 95) e adotou um critrio
extrnseco ao orden-los, a saber, a ordem alfabtica dos nomes dos autores que os
citaram. A nica exceo a citao que engloba os dois primeiros fragmentos,
considerados, desde Sexto Emprico, componentes da introduo do livro de
Herclito. Os fragmentos catalogados por Diels, bem como sua numerao, so
at hoje padro e referncia para as edies dos textos remanescentes de
Herclito. Entretanto, desde Diels at hoje, vrios so os autores que se ocupam
com o estabelecimento do texto heracltico, propondo-lhes tambm diferentes
ordenaes e numeraes.
Nos sculos XIX e XX, o pensamento de Herclito despertou enorme
interesse e teve bastante influncia sobre a obra de grandes filsofos, como Hegel,
Nietzsche e Heidegger, que no apenas buscaram mostrar o papel de Herclito na
histria da filosofia grega, como tambm procuraram deixar clara a atualidade de
seu pensamento. Alm disso, a filosofia de Herclito tem sido objeto de inmeros
16 Nesta obra, so apresentadas, para cada pr-socrtico, tanto as citaes de seus livros transmitidas por escritores posteriores, quanto material de fonte secundria, conhecido como testimonia (comentrios sobre as obras, relatos sobre as vidas e descrio das idias filosficas dos pr-socrticos).
19
estudos realizados por fillogos, pesquisadores de filosofia antiga e de histria da
filosofia mundo afora.
O Herclito que aparece nas pginas de seus diversos intrpretes, dos
mais antigos aos mais contemporneos, carrega as mltiplas e controversas
imagens que dele se construram nas sucessivas leituras, citaes, parfrases,
imitaes, reconstituies e interpretaes de seus escritos. De todos os seus
leitores, Plato foi o primeiro a estabelecer a oposio entre Herclito e
Parmnides, e a evocar a imagem dos mobilistas e imobilistas, que desde ento
muito clebre e constitui um lugar comum quase onipresente na histria da
filosofia.17 Alm disso, foi atravs dos dilogos de Plato tenham eles sido bem
compreendidos ou no que se constituiu a clebre interpretao de Herclito,
predominante at os dias de hoje, como a do pensador cuja tese mais importante,
definidora e decisiva a que diz pnta re, tudo flui.18
1.3
Plato lendo seus predecessores
Quando buscamos chegar a uma compreenso apropriada do ponto de
vista histrico, e expressiva do ponto de vista filosfico, dos enunciados de
Herclito e dos demais pr-socrticos, cujas obras se perderam, podemos dar de
antemo uma certa prioridade nossa testemunha mais antiga, que Plato. Mas
tanto Plato quanto os outros autores tardios que nos transmitiram as citaes dos
pr-socrticos, embora tivessem acesso ou familiaridade com os escritos que
citavam, ao mesmo tempo deles se apropriavam para seus prprios propsitos.
Esses autores, Plato inclusive, transmitiram seu prprio pensamento atravs de
sua referncia a Herclito e aos demais predecessores.
17 No que concerne gnese da oposio entre mobilistas e imobilistas, l-se com proveito o artigo de Francesco Fronterotta, Rontes ka Stasiotai: Hraclite et Parmnide chez Platon, Les Cahiers Philosophiques de Strasbourg. Les Anciens Savants (Tome 12, Automne 2001), p. 131-156. 18 Cf. Teeteto, 181c; Crtilo, 401d-e, 402a-c.
20
O primeiro problema que se apresenta quando buscamos ver Plato como
uma fonte para o conhecimento de Herclito, e dos pr-socrticos em geral, que
Plato no um historiador da filosofia. Muitos argumentos foram oferecidos para
sustentar a idia de que Plato nem fez nem poderia fazer histria ou
historiografia filosfica. Um dos argumentos usados se baseia em declaraes,
encontradas na prpria obra platnica, de que tudo o que foi produzido antes de
Plato seria ou investigao sobre a natureza, ou mito, ou sofstica. Este
argumento no no entanto o nico utilizado, nem aceito por todos, pois pode-
se considerar problemtica uma leitura que, por levar to a srio as passagens do
texto platnico em que os seus antecessores so tratados de forma severa, chega
ao ponto de concluir que Plato no os considerou filsofos.19
Mas outra razo pode ser apresentada: trata-se do argumento que ressalta
que a dimenso cronolgica linear a dimenso em que a filosofia pode ser
concebida historicamente no uma preocupao de Plato e algo que ele
subverte freqentemente.20 Alm disso, pode-se alegar, como faz Monique
Dixsaut, que, quando um filsofo aborda historicamente o passado da filosofia,
ele delimita o campo da filosofia, constri sua continuidade e concebe a si mesmo
como cume ou ponto de ruptura dessa histria. Concordo com esta autora, quando
ela diz:
Essa histria no existe seno por um movimento de uma
verdade que ele, filsofo, detm mais completamente; ele portanto o
nico capaz de elevar sua verdade os filsofos que o precederam e
de revelar os erros ou insuficincias deles. Todas as outras filosofias
so assim convertidas em momentos de um devir que conduz a uma
filosofia determinada, seja de maneira contingente o que nos faz
lembrar dos soldados no adestrados de Aristteles (Metafsica A,
985a) ou necessria, como em Hegel. Se na constituio desse
19 Cf. Monique Dixsaut e Aldo Brancacci, Introduction, in Platon: Source des Prsocratiques (Paris: Vrin, 2002). 20 Um exemplo clebre o encontro do jovem Scrates com o velho Parmnides, no dilogo Parmnides.
21
tempo orientado que reside a possibilidade de uma histria filosfica
da filosofia, tudo mostra que Plato a recusa.21
Plato, de fato, no parece abordar seus predecessores a partir da
suposio de um tempo orientado. para Aristteles (Metafsica, I, 6, 987a32-
b10) que Plato um resultado ou uma culminao. Para ele, Plato teria
primeiro se familiarizado com Crtilo, o heracltico, e com as opinies de
Herclito, e deles teria conservado a concepo de uma realidade sensvel em
fluxo perptuo, sobre a qual no haveria cincia; teria em seguida retido de
Scrates seu interesse pelos problemas ticos e pelas definies; e teria tambm se
inspirado na teoria pitagrica dos nmeros. Assim, finalmente, pensando que o
universal no se produzia nas coisas sensveis, teria separado as idias das coisas
sensveis e teria trocado para o nome de participao aquilo que os pitagricos
chamavam de imitao.
Segundo Dixsaut, no se pode atribuir a Plato uma abordagem histrica
de seus antecessores tambm em virtude de seu anonimato obstinado. Como
observa a autora, a palavra de Plato polifnica, habitada por outras palavras, e
seu uso do discurso impuro, hbrido: ele integra ao seu discurso, ao discuti-
los, os discursos dos outros, e assim os torna presentes.22 Plato nem
personagem, nem fala em primeira pessoa em seus dilogos.23 Alm disso,
aqueles que para Plato seriam antecessores, como por exemplo Protgoras e
Grgias, muitas vezes aparecem como contemporneos, pois so contemporneos
de Scrates, que na maioria dos dilogos o protagonista.
Essa ausncia de uma histria da filosofia na filosofia de Plato tambm
parece se relacionar com a concepo platnica do pensamento como dilogo.
Isso significa que para ele no haveria pensamentos passados ou ultrapassados:
cada um mereceria ser examinado agora, nesse presente que o do dilogo. Seus
21 Cf. M. Dixsaut e A. Brancacci, Introduction (op. cit.), p. 13. 22 Cf. M. Dixsaut e A. Brancacci, Introduction (op. cit.), p. 14. 23 A Carta Stima o nico texto platnico ostensivamente autobiogrfico. Mas ela tem a autenticidade contestada por muitos, que a consideram provavelmente espria. Cf., por exemplo, Terence Irwin, Plato: The Intellectual Background, in The Cambridge Companion to Plato (Cambridge: Cambridge University Press, 1992), p. 51-89.
22
encontros com outros pensadores seriam ento precisamente encontros, e
engendrariam um exame filosfico e no uma exposio histrica. Nesse sentido,
o que Plato v nos discursos dos que o precederam so, no doutrinas antigas, e
sim questes e solues que devem ser retomadas e postas prova. Talvez, para
Plato, conhecer bem textos e doutrinas de outros autores signifique sobretudo
lhes emprestar algo que, mesmo sem desenvolver explicitamente, esses textos e
doutrinas permitem pensar. Talvez signifique reconduzir cada tese aos seus
pressupostos e mostrar suas conseqncias, mesmo sabendo que seu autor no as
enxergou forosamente. Plato no busca simplesmente encontrar e transmitir a
sabedoria dos antigos, e sim procura extrair, daquilo que eles dizem, sua
inteligncia de aspectos da realidade. Nesse sentido, pode-se dizer at que Plato
no tem predecessores; ele s tem interlocutores. Mas, ainda que Plato utilize,
distora, recrie, desdobre e se aproprie do pensamento de outros autores, ele ao
mesmo tempo fonte indispensvel e no apenas secundria para o nosso
conhecimento desses mesmos autores.
1.4
O que buscar na leitura platnica de Herclito
Por mais que divirjam em suas interpretaes, todos os estudiosos de
Plato reconhecem que Herclito teve uma influncia decisiva na formulao da
filosofia platnica, principalmente em sua concepo de mundo fsico. Alguns
intrpretes consideram que Herclito e Parmnides foram lidos por Plato como
elaboradores de doutrinas muito radicais e inteiramente opostas, e crem que
desses dois antecessores e antagonistas Plato herdou elementos fundamentais
para sua prpria filosofia. Uma corrente de interpretao da teoria das idias de
Plato enxerga, tanto na separao entre as idias e as coisas sensveis quanto na
caracterizao desses dois tipos de entidade, uma fuso do imobilismo e do
monismo de Parmnides com o mobilismo e o pluralismo de Herclito. As idias
ou formas inteligveis, para Plato, seriam simplesmente uma pluralidade de seres
possuidores dos mesmos atributos do ser de Parmnides, enquanto o mundo
23
fsico seria tal como Herclito e os heraclticos descrevem a realidade em sua
teoria do fluxo.
Segundo essa leitura, a distino platnica entre ser e devir tambm seria
fruto de uma adoo e fuso das filosofias de Parmnides e Herclito: o domnio
do ser consistiria em coisas que, similares ao ser de Parmnides, nunca mudam em
nenhum sentido, e o domnio do devir seria constitudo pelas coisas sensveis,
que, tal como teria dito Herclito, no so estveis de nenhum modo.24 Essa
interpretao da influncia do pensamento de Herclito na filosofia de Plato pode
ser considerada correta ou incorreta, razovel ou exagerada, rica ou restritiva;
independentemente disso, porm, ela nos mostra que a importncia da leitura
platnica de Herclito no est somente no que essa leitura tem a contribuir para o
conhecimento da filosofia de Herclito, mas tambm no que ela pode revelar
acerca da prpria filosofia de Plato.
Mais de um objetivo, portanto, pode dirigir uma investigao sobre a
leitura platnica das idias heraclticas. Um desses objetivos pode ser verificar se
Plato concordou com as teses de Herclito, ou com parte delas, tal como as
entendeu. H, na literatura acadmica sobre o tema da recepo platnica de
Herclito, um enorme interesse e muita controvrsia a esse respeito.
Particularmente no dilogo Teeteto, h duas leituras antagnicas muito comuns:
enquanto uma sugere que Plato concorda com a doutrina heracltica do fluxo no
que concerne s coisas e qualidades sensveis, a outra sugere que Plato
absolutamente no concorda com Herclito, e que o jovem Teeteto quem precisa
se comprometer com a doutrina heracltica na primeira parte do dilogo, por s
assim conseguir sustentar sua definio de conhecimento. Mas, embora o tema da
aprovao ou reprovao, da adoo ou rejeio das teses de Herclito por parte
de Plato seja um assunto muito relevante e seja inevitvel abord-lo, no o
principal objetivo da tese discuti-lo. Menos ainda objetivo da tese tomar como
ponto de partida uma posio definida sobre o modo como Plato julgou
Herclito. Uma das razes disto que me parece questionvel a crena de que se
24 Esta a leitura defendida, por exemplo, por Francis M. Cornford, em Platos Theory of Knowledge: The Theaetetus and the Sophist of Plato (Nova York: Dover, 2003 [1957]).
24
deve tomar posio sobre se Plato concordou ou discordou de Herclito de
antemo, fazendo essa deciso funcionar como uma estratgia prvia de leitura
que d unidade e coeso aos argumentos apresentados em um ou mais de um
dilogo, antes de percorr-los um a um. Creio, ao contrrio, que toda tomada de
posio a respeito do modo como Plato julgou Herclito deve ser fruto de uma
leitura passo a passo de qualquer texto platnico em que as teses heraclticas so
discutidas.
Outro objetivo de um exame da recepo de Herclito por Plato pode
ser a verificao de quais teses imputadas a Herclito num ou noutro dilogo
platnico podem ser atribudas a Herclito historicamente. Mesmo considerando
que Plato no foi um historiador da filosofia, me parece ser inevitvel buscar
pensar se e em que medida a transmisso que ele fez do pensamento de
Herclito historicamente verdica ou sobretudo filosoficamente relevante; se, do
ponto de vista histrico, sua transmisso abrangente, multifacetada e rica ou
excessivamente seletiva, parcial, unidimensional. O problema de uma abordagem
dirigida por esse propsito que ela pode pretender partir de um conhecimento
prvio e impecvel do Herclito histrico, para julgar se Plato chegou a
compreender Herclito ou no. E pretender ter mais acesso ou competncia para
compreender bem Herclito do que Plato seria evidentemente uma atitude
equivocada e infrutfera. Todavia, o recurso a fontes e leituras de Herclito
distintas das de Plato no precisa ser feito com o intuito de julgar se Plato
entendeu Herclito corretamente ou no, se foi fiel historicamente ou no.
Alm disso, esse recurso pode ser muito proveitoso quando o objetivo for ver o
que Plato enfatizou e o que ele deixou de lado ou tratou mais brevemente no
pensamento de Herclito, enfim, que imagem de Herclito ele desenhou e
transmitiu, e com que propsito. neste sentido que procurarei ver se h uma
correspondncia substancial entre o testemunho platnico e aquilo que podemos
saber a partir dos fragmentos de Herclito e de outros testemunhos. Mas, se este
um dos objetivos desta tese, no ser tambm por esta questo que ela se guiar
inicialmente.
Nesta investigao sobre o modo como Plato compreendeu e transmitiu
o pensamento de Herclito, o que mais importa inicialmente que Plato atribuiu
25
determinadas teses a Herclito e a seus adeptos, examinou e criticou essas teses tal
como elas apareceram a seus olhos, e julgou fundamental fazer essa exposio e
essa crtica para construir sua prpria filosofia. Alm disso, importa que
freqentemente se disseminou uma viso caricatural da leitura platnica de
Herclito, viso esta que formou uma das imagens mais correntes do Efsio: a do
mobilista radical cuja ontologia implicaria a impossibilidade do conhecimento e
da linguagem. Portanto, meu primeiro e tambm principal objetivo nesta tese
examinar a interpretao que Plato constri dos discursos e idias heraclticas de
que ele fala. ver os diferentes modos e contextos em que Herclito trazido
tona, compreendido, criticado. investigar como Plato interpretou, transps e
transmitiu suas idias.
1.5
Tomando o Teeteto como fio condutor
Plato, quando se refere a seus antecessores, raramente os cita e nem
sempre os nomeia. No caso de Herclito, as citaes textuais ou quase textuais so
pouqussimas25 e as referncias explcitas no so muitas,26 mas as aluses
indiretas, os reflexos e os ecos de expresses heraclticas so numerosos.27 Para
trabalhar o tema da leitura platnica de Herclito, pode-se partir da idia ainda
25 Plato conservou dois dos fragmentos de Herclito listados na edio mais usada dos fragmentos, a de Diels e Kranz: os fragmentos 82 e 83, que se encontram em Hpias Maior (289a-b). Mas h tambm verses platnicas quase idnticas a verses dos fragmentos conservadas por outros autores e listadas por Diels e Kranz. Este o caso, por exemplo, dos fragmentos 91 que aparece como tendo sido citado por Plutarco, mas tambm o foi por Plato, no Crtilo (402a) e 10 que aparece como tendo sido citado por Pseudo-Aristteles, mas tambm o foi por Plato, no Sofista (242d). Cf. H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (7 ed., Zrich, Weidmann, 1954). 26 As menes diretas a Herclito aparecem em quatro dilogos: Teeteto (152e, 160d, 179d, 179e), Crtilo (401d, 402a, 402b, 402c, 440c, 440e), Banquete (187a), Hpias Maior (289a, 289b), Repblica VI (498b). 27 Mondolfo e Tarn, por exemplo, ao fornecer uma espcie de catlogo dos fragmentos de Herclito que encontraram aluso ou eco, mais ou menos significativo, em Plato, listam mais de cinqenta passagens de 15 dilogos platnicos. Cf. R. Mondolfo e L. Tarn. Eraclito: Testimonianze e Imitazioni (op. cit.), p. CL-CLVI.
26
mais abrangente de que o pensamento de Herclito impregna o todo do
pensamento de Plato. De fato, num certo sentido, Herclito est em todo lugar,
assim como Parmnides, Scrates, os sofistas e outros tambm esto. Plato
parece t-los incorporado, e com eles nutrido todo o seu pensamento. Essa uma
das razes pelas quais praticamente impossvel determinar precisa ou
exaustivamente a relao que sua filosofia tem com Herclito e outros
antecessores e contemporneos.
Ao planejar e realizar este exame da presena do pensamento heracltico
nos dilogos de Plato, busquei resistir heraclitizao sistemtica de Plato,
evitando a generalizao e a indistino dessa presena. Por essa razo e por
outras razes que sero apresentadas adiante , nesta tese, em lugar de partir do
exame da totalidade das referncias diretas e indiretas a Herclito nos muitos
dilogos platnicos, decidi que o ponto de partida e o fio da meada de toda a
discusso seria o exame de um nico dilogo, o Teeteto, em que Herclito
discutido explcita e extensamente. No deixo de utilizar, em alguns momentos,
dados de outros dilogos que se referem aos mesmo assuntos, que se assemelham
ou produzem contraste, que complementam ou articulam os passos do Teeteto.
Todavia, sempre que outros dilogos so introduzidos na discusso, isso feito a
partir do percurso de leitura do Teeteto.
Mas qual a outra razo para eleger o Teeteto como centro da
investigao da leitura platnica de Herclito? Para quem faz uma primeira leitura
do Teeteto com interesse em observar o que l dito sobre o pensamento de
Herclito, o que chama logo a ateno que, ali, Herclito apresentado como
defensor do fluxo universal e, ao menos aparentemente, como smbolo de uma
viso de mundo que nada sabe sobre a unidade e a identidade das coisas, em
contraste com Parmnides, defensor de uma realidade estvel e fixa. Mas se, por
um lado, de Herclito o Teeteto costuma formar principalmente a imagem do
pensador do fluxo, e em grande medida a imagem do filsofo que, em virtude das
conseqncias de sua ontologia e de seu mobilismo radical, teria trazido tona
uma interdio incontornvel ao conhecimento e linguagem, por outro, se lemos
os fragmentos de Herclito, vemos que vrios elementos mostram que a questo
27
do conhecimento foi tematizada expressamente por ele, e que a possibilidade e a
importncia do conhecimento e da linguagem foram por ele afirmadas.
J que uma primeira leitura do Teeteto pode facilmente produzir a
estranha impresso de que a imagem de Herclito ali desenhada no corresponde
imagem que se forma a partir do que restou de seu prprio texto, esse
estranhamento pode e deve se converter num desafio para a leitura de Plato e de
Herclito: afinal, Plato estaria de fato atribuindo um mobilismo extremo a
Herclito, no Teeteto? Ou ser que sua exposio da tese heracltica do fluxo, no
Teeteto, ao ser realizada em etapas que progressivamente vo apresentando
verses mais e mais radicais desse mobilismo, se refere apenas inicialmente a
Herclito, para depois referir-se exclusivamente a seus seguidores extremados? E,
alm disso, ser que o Teeteto est atribuindo a Herclito somente a tese do fluxo
universal, isolando assim um aspecto de sua filosofia at o ponto de produzir uma
imagem muito parcial de seu pensamento? Ou ser que ali Plato est
apresentando uma imagem multidimensional de Herclito, considerando outras
teses de peso, como por exemplo a doutrina da unidade dos opostos, como teses
de autoria do Efsio? Enfim, estas questes suscitadas pelo Teeteto s fizeram
reiterar minha idia de que esse um dilogo extremamente frtil para quem
busca um ponto de partida para examinar a leitura platnica de Herclito.
1.6
Roteiro da tese
No primeiro captulo desta tese, apresento de maneira sinttica a
trajetria de estudos que me levou a estranhar a leitura platnica de Herclito no
Teeteto e a enxergar, neste dilogo, um desafio e um campo frtil para a reflexo
sobre a recepo de Herclito por Plato. Parto do exame dos fragmentos em que
Herclito tematiza explicitamente a questo do conhecimento e, com base nas
concluses desse exame, mostro como o Herclito pretensamente apresentado no
Teeteto como um mobilista radical pode parecer estar sendo extremamente
28
distorcido, de modo a instigar uma releitura, mais minuciosa, da primeira parte do
dilogo, na qual as opinies heraclticas so extensamente discutidas.
No segundo captulo, inicio o exame do Teeteto, tratando primeiro da
cronologia da composio, dos personagens, da diviso e do tema central do
dilogo. Em segundo lugar, passo a acompanhar os passos do dilogo que
antecedem as menes a Herclito e aos heraclticos. Seguindo o curso da
primeira parte do Teeteto, apresento e examino a definio de conhecimento
formulada por Teeteto, bem como a doutrina protagrica do homem-medida
citada e interpretada por Scrates, preparando o terreno para a associao, feita
em seguida, dessa definio e dessa doutrina com as teses heraclticas.
No terceiro captulo, apresento e interpreto as sees do dilogo em que
as teses heraclticas so primeiramente expostas e em seguida criticadas e
refutadas. Busco refletir sobre a associao das teses de Herclito e dos
heraclticos com a questo do conhecimento, com a identificao feita por Teeteto
entre conhecimento e sensao, e com a tese do homem-medida de Protgoras.
Examino o modo como Plato interpretou e transmitiu o pensamento de Herclito
na primeira parte do Teeteto, e busco distinguir as passagens do dilogo em que
Plato est claramente discutindo um mobilismo que ele atribui a Herclito das
passagens em que ele est expondo e criticando um mobilismo estendido ou
radicalizado que no mais imputado a Herclito, e sim a seus adeptos.
Finalmente, mostro que, no Teeteto, Plato no atribui a Herclito apenas a tese
do fluxo universal, mas tambm outras trs teses, articulando-as e apresentando,
portanto, uma imagem multifacetada da filosofia de Herclito.
No quarto captulo, apresento e discuto a tese, sustentada por alguns
estudiosos, de que Plato interpretou mal e atribuiu um peso exagerado
concepo de fluxo de Herclito. Para tanto, investigo se ou no provvel que a
doutrina do fluxo universal, que Plato discute na primeira parte do Teeteto e
considera ser de autoria de Herclito, tenha efetivamente origem nos fragmentos
autnticos do Efsio. Esse exame feito com base na literatura acadmica que
discute a autenticidade e o significado dos mais clebres fragmentos do fluxo,
os trs fragmentos do rio. Busco mostrar que a hiptese que parece ser a mais
correta a de que Herclito formulou de fato uma doutrina do fluxo universal, e
29
de que sua defesa no foi a de um fluxo extremado, e sim a de um fluxo
moderado, com medida, ordem e padro.
Finalmente, nas consideraes finais, busco articular as principais
questes e concluses expostas ao longo da tese, para mostrar que razovel
sustentar trs afirmaes a respeito da recepo de Herclito por Plato. A
primeira que Plato, no Teeteto, no transmitiu de Herclito a imagem
exagerada de um mobilista radical, e sim distinguiu as teses mais moderadas do
Efsio das opinies mais extremadas de seus adeptos. A segunda que, se tudo
indica que Herclito nunca dissociou a tese do fluxo universal de outras teses
suas, como por exemplo a da unidade dos opostos, Plato por sua vez nem
enfatizou em excesso, nem isolou a tese do fluxo universal, de modo que no se
deve considerar que ele atribuiu a Herclito uma verso excessivamente reduzida
ou distorcida do heraclitismo. A terceira que, tenham ou no razo os estudiosos
que afirmam que Plato concordou com verses mais ou menos extremadas do
mobilismo heracltico em perodos mais ou menos longos de sua vida, o fato
que, no Teeteto, Plato critica somente o heraclitismo exagerado, dando a
entender que est aceitando e considerando respeitvel a verso moderada da
teoria do fluxo universal, tal como defendida por Herclito.
30
2.
Herclito e o conhecimento: o conflito aparente
entre os fragmentos e o testemunho de Plato
2.1
A questo do conhecimento em Herclito
A leitura de Herclito feita por Plato em seus dilogos pode provocar,
num primeiro momento, uma enorme admirao e muito estranhamento. No
Teeteto, por exemplo, a interpretao dada teoria do fluxo leva a filosofia
heracltica a fornecer fundamentos ao relativismo de Protgoras e a implicar, no
fim das contas, a impossibilidade do conhecimento e da linguagem. O
estranhamento produzido quando vemos que aquilo que Herclito, em seus
fragmentos, exige de comum ao contedo de nossos conhecimentos, aquilo que
ele afirma ser o nico objeto possvel de conhecimento, mostra que, ao contrrio,
ele mais provavelmente se aliaria a Plato contra o relativismo de Protgoras e o
radicalismo dos auto-intitulados heraclticos, e a favor da idia de que o
conhecimento e a linguagem so possveis.
Em minha dissertao de mestrado, estudei os fragmentos de Herclito
com o objetivo de compreender a viso heracltica acerca da possibilidade, do
objeto e do processo de aquisio do conhecimento.28 Vrios fragmentos mostram
que a questo do conhecimento foi tematizada explicitamente por Herclito e que
28 Ver Ana Flaksman, A Questo do Conhecimento em Herclito (Rio de Janeiro, Puc-Rio, Dissertao de Mestrado, 2001).
31
a possibilidade e a importncia do conhecimento foram por ele afirmadas. Se, por
um lado, o exame da questo do conhecimento em Herclito diz respeito
formulao de sua ontologia, ao mobilismo nela presente, e aos efeitos desse
mobilismo para o conhecimento, por outro, ele tambm diz respeito aos
fragmentos em que o problema do conhecimento expressamente chamado
baila. E foi principalmente nesses fragmentos que me concentrei.
De fato, um grande nmero dos fragmentos de Herclito se refere
diretamente sabedoria e ignorncia, compreenso e reconhecimento do lgos,
funo cognitiva da alma, importncia mas tambm insuficincia dos
sentidos e da sensao para o conhecimento. E os fragmentos mostram que
Herclito afirmou a possibilidade do saber, criticou veementemente a ignorncia
dos homens e formulou enunciados para sustentar sua pretenso e reivindicao
de conhecimento.
Reconheci em minha dissertao e penso ser bom lembrar aqui que
Herclito no formulou as questes relativas cognio isolando-as ou separando-
as das questes ticas ou ontolgicas, por exemplo. Portanto, quando trato da
questo do conhecimento em Herclito, esse recorte temtico feito com a
considerao de que diversas noes epistemolgicas tm tambm significado
tico e ontolgico, como, por exemplo, as noes heraclticas fundamentais de
sopha e lgos.
Neste captulo, retomarei e apresentarei alguns elementos do exame dos
fragmentos de Herclito que realizei em minha dissertao, para deles procurar
extrair a viso heracltica a respeito da possibilidade, do objeto e do processo de
aquisio do conhecimento. Feito isto, buscarei mostrar de que modo essa viso
de Herclito contrasta com o relativismo e o ceticismo29 que so vinculados s
teses heraclticas apresentadas no Teeteto. Esse contraste tornar patente a
29 claro que Plato no se refere (pois sequer poderia faz-lo) ao ceticismo e tradio ctica propriamente ditos. Entretanto, numa primeira leitura do Teeteto, pode-se muito bem pensar que ele aponta para aspectos da filosofia heracltica que, mais tarde, seriam considerados parte da temtica ctica. Vale lembrar que, mesmo que Sexto Emprico tenha buscado, em suas obras, distinguir o ceticismo autntico (pirrnico ou suspensivo) de ceticismos impropriamente denominados, houve outras concepes e verses de ceticismo no prprio seio da tradio ctica: mesmo a afirmao ou concluso de que o conhecimento impossvel (que seria tomada como uma forma de dogmatismo negativo pelos pirrnicos) poderia ser considerada parte da via ctica por outros.
32
necessidade de uma anlise mais detalhada deste dilogo, bem como de uma
distino entre as teses expressamente formuladas por Herclito ou a ele
atribudas, as teses sustentadas pelos seguidores que distorceram e estenderam
muito suas idias, e as teses que podem ser ou deduzidas a partir das doutrinas
heraclticas ou a elas filiadas, por encontrarem nessas doutrinas ao menos uma de
suas condies e um de seus fundamentos.
2.2
O lgos heracltico
Quando nos defrontamos com os fragmentos de Herclito, percebemos
logo a necessidade de investigar a natureza, os significados e as dificuldades
encontradas na interpretao e traduo do termo lgos. Muitos intrpretes
oferecem em seus estudos pequenos sumrios dos significados de lgos, desde sua
origem etimolgica at seus usos correntes na poca de Herclito. Essas
observaes no so suficientes para esgotar os significados de lgos em
Herclito, mas so importantes para a sua compreenso, pois, por mais que
Herclito o torne um conceito peculiar de sua filosofia, ele no o dissocia de seu
uso ordinrio.
A raiz da palavra lgos, leg-, implica basicamente os sentidos de
colher e selecionar. Da viria o significado de lgos como clculo, e ento
os sentidos de medida e proporo. Esse grupo de significados seria ao
menos to primrio quanto as acepes de enunciado ou discurso. Outro
desenvolvimento levaria aos sentidos de frmula, plano ou lei.30 E haveria
ainda mais sentidos correntes do termo lgos no tempo de Herclito, tais como
valor, reputao, fama, causa, motivo, argumento e a verdade sobre
uma questo.31
30 Cf. o sumrio de significados apresentado por G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 38. 31 Cf. W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 420-424.
33
De fato, parece haver consenso entre os estudiosos que no fragmento 39
de Herclito32 Em Priene nasceu Bias, filho de Teutames; seu lgos maior
que o dos demais.33 lgos est evidentemente ligado aos sentidos de valor,
fama e reputao. A grande maioria dos autores traduz e/ou interpreta lgos
neste fragmento recorrendo a um desses termos, ou a um sinnimo qualquer. No
h tambm muita polmica ou dificuldade em torno da traduo e interpretao de
lgos no fragmento 31, que diz: Transformaes do fogo: primeiro, mar; do mar,
metade terra, metade ardncia. O mar distende-se e mede-se no mesmo lgos, tal
como era antes de se tornar terra.34 O lgos, aqui, em geral traduzido e
interpretado como medida e proporo.
Os intrpretes de Herclito em geral tanto aqueles que consideraram a
ordenao do discurso heracltico um elemento fundamental para a apreenso de
seu significado total, dividindo-o e organizando-o com o fim de favorecer sua
concepo como um todo orgnico, quanto aqueles que, como Diels, acreditaram
no estilo aforstico da obra heracltica e na ausncia de uma ordem deliberada que
ligasse os aforismos uns aos outros concordam que o fragmento numerado por
Diels35 como fragmento 1, por sua composio e contedo, constitua a abertura
ou promio do livro de Herclito. O livro de Herclito, portanto, comearia assim:
Deste lgos, sendo sempre, so os homens ignorantes tanto
antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas vm a ser
segundo este lgos, e ainda assim parecem inexperientes, embora se
experimentem nestas palavras e aes, tais quais eu exponho,
distinguindo cada coisa segundo a natureza e enunciando como se
32 Nesta tese, utilizarei a numerao e a edio dos fragmentos de Herclito estabelecidas por Hermann Diels e Walther Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), bem como utilizarei a traduo dos fragmentos realizada e publicada por Alexandre Costa, Herclito: Fragmentos Contextualizados (Rio de Janeiro, Difel, 2002). Toda alterao por mim realizada nesta traduo dos fragmentos ser indicada em nota. 33 Fragmento 39: e)n Prih/nv Biaj e)ge/neto o( Teuta/mew, ou ple/iwn lo/goj h twn allwn. 34 Fragmento 31: puro\j tropai: prwton qa/lassa, qala/sshj de\ to\ me\n hmisu gh=, to\ de\ hmisu prhsth/r. qa/lassa diaxe/etai kai metre/etai eij to\n au)to\n lo/gon o(koioj pro/sqen hn h gene/sqai gh=. 35 H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker (op. cit.), p. 150.
34
comporta. Aos outros homens, encobre-se tanto o que fazem
acordados, como esquecem o que fazem dormindo.36
Uma das primeiras dificuldades que se apresentam na interpretao deste
fragmento est relacionada sua construo sinttica. J Aristteles notou a
ambigidade ali presente, sem porm resolv-la.37 A dificuldade a que Aristteles
se refere est presente na possibilidade de ligarmos o advrbio sempre (ae) tanto
ao particpio sendo (entos) quanto ao adjetivo ignorantes (axnetoi). Ou seja, no
fcil definir se Herclito teria afirmado que o lgos sempre ou que os homens
so sempre ignorantes. Na traduo apresentada, o advrbio ae est sendo ligado
ao particpio entos, o que me parece se justificar se relacionarmos o fragmento 1
a outros fragmentos.
Antes de estabelecer essa relao, porm, partamos para a interpretao
da traduo do fragmento apresentada. Atentando para as primeiras palavras do
fragmento, Deste lgos (to d lgou), vemos que a expresso uma auto-
referncia, uma introduo da prpria obra.38 O lgos, portanto, ao designar as
palavras, ou a obra cuja exposio se iniciava, teria primeiramente o sentido de
36 Fragmento 1: tou= de\ lo/gou tou=d e)o/ntoj a)ei\ a)cu/netoi ginontai anqrwpoi kai pro/sqen h a)kou=sai kai a)kou/santej to\ prwton: ginome/nwn ga\r pa/ntwn kata\ to\n lo/gon to/nde a)peiroisin e)oikasi, peirwmenoi kai\ e)pe/wn kai ergwn toioute/wn, o(koiwn e)gw dihgeu=mai kata\ fu/sin diaire/wn ekaston kai fra/zwn okwj exei. tou\j de\ allouj a)nqrwpouj lanqa/nei o(ko/sa e)gerqe/ntej poiou=sin, okwsper o(ko/sa eudontej e)pilanqa/nontai. 37 Aristteles diz o seguinte: uma regra geral que uma composio escrita deva ser fcil de ler e portanto fcil de transmitir. Isso no pode ocorrer onde h muitas palavras ou expresses conectivas, ou onde a pontuao difcil, como nos escritos de Herclito. Pontuar Herclito no tarefa fcil, pois freqentemente no podemos dizer se uma palavra determinada est ligada que a precede ou que a segue. Assim na abertura de seu livro ele diz [segue o fragmento 1]. , , . , , , , (Aristteles, Retrica, 1407 b11). 38 Muitos comentadores concordam que o fato de Herclito iniciar seu discurso falando desse lgos indica que ele est se referindo a seu prprio lgos, sua prpria obra, a seu prprio discurso. A expresso poderia ser interpretada como Este discurso que estou agora iniciando.... Vale sublinhar que a tradio literria da historie jnica costumava fazer referncia ao prprio discurso na apresentao das obras. Cf. C. H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 66-67).
35
discurso, expresso verbal, palavra. Esse discurso, por sua vez, seria a
expresso peculiar do pensamento de um homem particular, a saber, Herclito.
No fragmento 108, De quantos ouvi os lgous nenhum chega a ponto de
conhecer o que, de todas as coisas apartado, sbio,39 tambm podemos
observar o uso do termo lgos com o sentido claro e consensual de discurso ou
expresso verbal. Portanto, at este ponto podemos afirmar que o termo lgos
usado por Herclito reiteradamente com o sentido de discurso.
Entretanto, quando seguimos analisando o fragmento 1, nos deparamos
com as palavras entos ae, que vo apresentar aquele mesmo lgou que foi
antecedido pelo pronome demonstrativo este como aquilo que sempre. Se
observvamos h pouco que o lgos a palavra contingente expressa por um
homem particular, agora nos deparamos com a afirmao de que ele eterno.
Alm disso, o fragmento tambm afirma que todas as coisas vm a ser segundo
este lgos. Muito embora observemos novamente a ocorrncia do pronome
demonstrativo este, o fato de a passagem afirmar que todas as coisas vm a ser
segundo este lgos retira-lhe todo o carter contingente e particular. Um lgos
que determina o vir a ser de todas as coisas no pode ser seno comum e, como o
fragmento explicita, eterno.40
Outro ponto importante a ser observado no fragmento 1 a afirmao de
que os homens so ignorantes tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem.
Se tomarmos o lgos neste trecho simplesmente como o discurso de Herclito,
no poderemos responder seguinte questo: como os homens poderiam t-lo
compreendido antes de o terem ouvido? O lgos, para poder ter sido
compreendido pelos homens antes de o discurso de Herclito ser proferido, teria
39 Fragmento 108: o(ko/swn lo/gouj hkousa, ou)deij a)fiknei=tai e)j tou=to, wste ginwskein oti sofo/n e)sti pa/ntwn kexwrisme/non. Em nota referente sua traduo deste fragmento, na qual, em vez de lgous , se l discurso, Alexandre Costa (Herclito. Fragmentos Contextualizados, op. cit.) declara ter aberto uma exceo sua resoluo de no traduzir o termo lgos, afirmando que o contexto torna evidente o sentido de discurso. Concordo com Costa, mas prefiro manter lgos sempre na forma original, apresentando seu sentido no em tradues, mas em comentrios. 40 Nesta abordagem do fragmento 1 e da tenso entre dois lgoi distintos, um particular e um comum, devo muito a uma srie de textos, especialmente a Alexandre Costa, Thnatos: Da Possibilidade de um Conceito de Morte a partir do Lgos Heracltico (Porto Alegre, EdPUCRS, 1999), cap. 1.
36
de ter estado disponvel e acessvel a eles, independentemente de um discurso
particular. Portanto, o lgos no pode ser somente o discurso de Herclito.
Vemos, ento, que h um contraste e uma tenso entre os dois lgoi que
se mostram presentes no fragmento 1, isto , entre o lgos particular (de
Herclito) e o lgos comum e eterno. Ser possvel concili-los? Parece que sim,
pois o contraste entre a natureza de ambos os lgoi no implica uma discordncia
ou incompatibilidade. Se considerarmos que o lgos de Herclito fruto e
portador de sua compreenso efetiva do lgos comum, segundo o qual todas as
coisas vm a ser, concordaremos que seu discurso particular estar de acordo
com o lgos comum; no estar simplesmente com ele contrastado, mas antes,
estar unido a ele, e at certo ponto com ele fundido e identificado. Portanto, j
vemos a insinuao de que os lgoi comum e particular podem concordar em seu
contedo e que, se so distintos em sua natureza, no so por isso simplesmente
opostos e excludentes. Quando Herclito critica os homens por no
compreenderem o lgos, parece estar fazendo uma dupla advertncia: em
primeiro lugar, mesmo sendo o lgos aquilo segundo o que todas as coisas vm a
ser, os homens falham em compreend-lo; em segundo lugar, mesmo com
Herclito expressando o lgos comum em palavras, ainda assim os homens
falham em sua compreenso.
Voltando questo da ambigidade apontada por Aristteles, se
atribuirmos ae a entos, veremos que a implicao desta afirmao, a saber, de
que o lgos sempre, ser confirmada pelo fragmento 1 em conjunto com os
fragmentos 75 e 30. Diz o fragmento 75: Os que dormem so operrios e
cooperadores nas coisas que vm a ser no cosmo.41 O fragmento 1 diz que as
coisas vm a ser segundo o lgos, e o fragmento 75 afirma que as coisas vm a
ser no cosmo. Se for possvel afirmar que o cosmo sempre, isto , que as coisas
vm a ser sempre, tornar-se- evidente que o lgos ter de ser sempre, pois como
todas as coisas poderiam sempre vir a ser, se aquilo sob cuja medida elas vm a
ser no fosse tambm sempre? E, como veremos, a afirmao de que o cosmo
sempre feita no fragmento 30: O cosmo, o mesmo para todos, no o fez
41 Fragmento 75: tou\j kaqeu/dontaj (oimai o( Hra/kleitoj) e)rga/taj einai le/gei kai sunergou\j twn e)n t% ko/sm% ginome/nwn.
37
nenhum dos deuses nem nenhum dos homens, mas sempre (ae) foi, e ser fogo
sempre vivo, acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.42
Por outro lado, creio no ser prefervel associar ae a axnetoi, pois,
embora entenda que se pode compreender esse sempre ignorantes em um
sentido no literal, fatalista ou universal, h fragmentos suficientes que destacam e
criticam a ignorncia humana, sem dar margem, como essa expresso daria,
idia de uma impossibilidade de compreenso prpria da natureza humana.
Vejamos dois fragmentos, 116 e 113, em que Herclito afirma a possibilidade
cognitiva comum aos homens. Diz o fragmento 116: Em todos os homens est o
conhecer (ginskein) a si mesmo e bem-pensar (sophronein).43 O conhecer a si
mesmo e o bem-pensar pertencem a todo homem, mas isso no impede que
poucos se interessem em efetivar tais capacidades e que raros sejam os que
realmente atingem o resultado de tais atividades, a saber, o autoconhecimento e o
pensamento sensato. As capacidades de pensar sensatamente e de se autoconhecer
podem permanecer irrealizadas, adormecidas, esquecidas. O fragmento 113, ao
afirmar que O pensar (phronein) comum a todos,44 tambm indica que o
pensar de todo homem por direito, o que no garante que os homens o
exercitem de modo adequado, do nico modo que pode caracterizar a
compreenso do lgos. Mais adiante sero analisados outros fragmentos em que o
termo pensar tambm aparece, e nos quais veremos ainda mais indcios de que,
se uma tal capacidade dada ao homem, impedindo qualquer viso determinista
sobre sua ignorncia, a realizao dessa capacidade requer um empenho
especfico, do qual o homem pode ou no se esquivar e do qual sua compreenso
do lgos depender.
Podemos observar, na anlise do fragmento 1 e nas palavras de alguns
comentadores, a dificuldade implicada na traduo da palavra lgos, pois ela
parece designar duas coisas distintas em sua natureza.45 Se o lgos for traduzido
42 Fragmento 30: ko/smon, to\n au)to\n a(pa/ntwn, oute tij qewn oute a)nqrwpwn e)poihsen, a)ll' hn a)ei kai estin kai estai pu=r a)eizwon, a(pto/menon me/tra kai a)posbennu/menon me/tra. 43 Fragmento 116: a)nqrwpoisi pa=si me/testi ginwskein e(wutou\j kai swfronein. 44 Fragmento 113: cuno/n e)sti pa=si to\ frone/ein. 45 Kirk, Gurthrie e Berge mantm a palavra lgos, no fragmento 1, sem traduo, enquanto Kahn a
38
simplesmente por discurso, como fazem alguns, corre-se o risco de dar a
entender que o lgos apenas o discurso verbal, particular, contingente de
Herclito. Entretanto, h quem o faa com esse propsito deliberado. Conche,46
por exemplo, alm de afirmar que em todos os fragmentos possvel entender o
termo lgos como discurso, diz que na maior parte dos fragmentos possvel
entend-lo como discurso verdadeiro. Esse autor no atribui ao lgos nenhum
sentido prximo dos de lei, frmula, estrutura ou princpio regulador das
coisas que vm a ser como fazem muitos outros autores, na tentativa de resumir
e expressar o significado do lgos comum do fragmento 1. O contedo objetivo
do discurso verdadeiro no seria o lgos, e sim a lei da unidade dos opostos,
tema diversas vezes mencionado por Herclito. Para Conche, no h problema em
afirmar que Herclito declarou que todas as coisas vm a ser segundo este
discurso, pois a no estaria dito que todas as coisas vm a ser em funo ou sob
a medida de um discurso contingente, mas que vm a ser exatamente do mesmo
modo como o discurso contingente descreve ou expressa. Essa concepo do
lgos a que, podemos assim dizer, lhe atribui uma natureza lingstica. Ou
seja, o lgos no teria realidade independente, nem se distinguiria dos discursos
contingentes e verbais. Seria sempre um discurso verbal e descreveria, se
verdadeiro, a lei da unidade dos contrrios, que seria, esta sim, o princpio
regulador de todas as coisas.
H, entretanto, quem veja a questo com outros olhos. Muitos intrpretes
vo afirmar a tenso e diferena entre o lgos que discurso verbal e o lgos que
no se pode restringir a ele, que dele independente, que regula, dirige e governa
o vir a ser das coisas e que, ao ser compreendido, revela a lgica, a
racionalidade, a estrutura, o princpio ordenador em funo dos quais todas
as coisas vm a ser. Nesse sentido, o lgos pode ser concebido como uma lei,
traduz por account. Cf. G. S. Kirk, Heraclitus. The Cosmic Fragments (op. cit.), p. 35; W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philosophy (op. cit.), vol. 1, p. 424; Damio Berge, O Logos Heracltico (Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1969), p. 62-89; e Charles H. Kahn, The Art and Thought of Heraclitus (op. cit.), p. 93-100. Bollack e Wissmann traduziro lgos, no fragmento 1, por discurso, mas diro que o termo grego guarda, neste fragmento, dois aspectos em tenso: o discurso ou a palavra contingente, e o contedo objetivo e eterno desse discurso. Cf. Jean Bollack e Heinz Wismann, Hraclite ou la Sparation (Paris, Minuit, [1972] 1995), p. 59-64. 46 Cf. Marcel Conche, Hraclite: Fragments (op. cit.), p. 23-28.
39
que pode ser descoberta, nomeada e descrita pelos homens (assim como, grosso
modo, a lei da gravidade ganha compreenso, nome e descrio em um discurso
cientfico contingente), mas que existe e sempre existiu independentemente deles
e que, alis, os engloba. Esta seria, como Conche prope chamar, a interpretao
ontolgica do lgos.47
Com base nas anlises precedentes do fragmento 1, creio que o lgos,
nesse fragmento, no apresenta uma natureza nem puramente lingstica, nem
puramente ontolgica. E essa complexidade de sua natureza aparecer
novamente no fragmento 2: Embora sendo o lgos comum, a massa vive como se
tivesse um pensamento (phrnesin) particular.48 Neste fragmento, vemos que a
palavra lgos vem seguida pelo adjetivo comum (xyno), que a qualifica de
acordo com a universalidade ou comunidade tambm observada no fragmento
1. Novamente parece que Herclito afirma que o lgos no pode se restringir
particularidade ou contingncia de uma natureza puramente lingstica. Vale
notar, entretanto, que, se Herclito determina a natureza desse lgos fazendo-o ser
acompanhado por um adjetivo, deve supor a existncia de uma espcie distinta de
lgos, a saber, de um lgos de tipo contingente, particular.
Se Herclito alude aqui existncia de um lgos particular, vemos que
ele faz, ainda neste fragmento, um jogo de oposio explcita, usando os adjetivos
comum e particular. Mas j no o lgos que qualificado como particular, e sim
a phrnesis, o pensamento. O que est em jogo nesse contraste entre o lgos
comum e o pensamento particular novamente a crtica ignorncia, pois
Herclito sustenta mais uma vez que os homens podem compreender o lgos
comum, isto , podem pensar de acordo com esse lgos, mas no se interessam em
compreend-lo, no filiam suas idias comunidade representada pelo lgos, e
consideram que seus pensamentos so privados, independentes e no-referidos ao
lgos comum. Se este fragmento trata explicitamente do lgos comum objeto
por excelncia do conhecimento e da ignorncia o pensamento equivocado ,
trata tambm, implicitamente, do lgos particular que pode concordar ou
47 Cf. M. Conche, Hraclite: Fragments (op. cit.), p. 23. 48 Fragmento 2: tou= lo/gou d' e)o/ntoj cunou= zwousin oi polloi wj idian exontej fro/nhsin.
40
discordar do lgos comum e do pensamento consoante com o lgos
pensamento particular na medida em que humano, mas que no se toma por
privado (idan), posto que no ignora o lgos comum. Vemos ento mais uma vez
que, se por um lado os pensamentos e discursos dos homens so por natureza
particulares e contingentes, no esto fadados ao equvoco, nem ao relativismo,
perspectivismo ou parcialidade, mas podem carregar e expressar, em sua
particularidade, a universalidade do lgos comum.
Todavia, se o entendimento e as palavras dos homens no so
equivocados por uma fatalidade, ainda assim a possibilidade do conhecimento no
fornece uma garantia de sua efetivao. Essa impossibilidade de implicao do
comportamento compreensivo na capacidade de pensamento de todo homem
confirmada pelo fragmento 17: No pensam (phronousi) tais coisas aqueles que
as encontram (enkyrseousin), nem mesmo quando aprendidas (mathntes) as
reconhecem (ginskousin), mas a si mesmos lhes parece (dokousi).49 Embora o
pensar seja comum a todos, os homens no pensam as coisas que encontram.
Este fragmento confirma a idia de que a capacidade de pensar no
garante sua efetivao, e vai ainda alm. O que so as coisas que os homens
encontram? So as coisas que vm a ser segundo o lgos (fragmento 1) e que
podem assim ser reconhecidas se, alm de simplesmente encontradas ou
aprendidas, forem tambm pensadas. O verbo encontram, como indicam muitos
autores, sugere o contato fsico e, portanto, a apreenso sensvel resultante desse
tipo de contato. J o termo aprendidas, que tambm aparece nos fragmentos 55
e 40, sugere no apenas uma apreenso sensvel, mas um entendimento dela
derivado. Esse entendimento, no entanto, no significa necessariamente uma
compreenso efetiva do lgos. Portanto, por mais que os homens sintam e
aprendam coisas, no conseguem reconhec-las. Eles no pensam adequadamente
as coisas que encontram, mas formam uma opinio sobre elas, produzindo um
entendimento que no consoante com a compreenso do lgos.
Em uma de suas crticas ignorncia dos homens, Herclito torna a
afirmar que o aprendizado no garante que dele resulte saber, inteligncia,
49 Fragmento 17: ou) frone/ousi toiau=ta polloi, o(ko/soi e)gkurseu/ousin, ou)de\ maqo/ntej ginwskousin, e(wutoisi de\ doke/ousi.
41
conhecimento. Nessa crtica, entretanto, Herclito no fala da massa dos homens
annimos, e sim de algumas das maiores autoridades entre os gregos, de homens
reconhecidos por sua sabedoria em toda a Grcia. Diz o fragmento 40: Muito
aprendizado no ensina saber, pois teria ensinado a Hesodo e a Pitgoras,
tambm a Xenfanes e a Hecateu.50 O fragmento se inicia justamente afirmando
que o aprendizado, mesmo que realizado ininterruptamente, em grande quantidade
e variedade, no ensina o tipo de entendimento que caracteriza a inteligncia, o
saber. Alm de afirmar que a compreenso do lgos, o nico tipo de cognio que
pode levar ao efetivo saber, ao efetivo conhecimento, no pode ser conquistada
pelo mero acmulo de experincias, nem por um tipo desarrazoado de idias delas
extradas, o fragmento indica que o homem no se deve fiar nas autoridades por si
mesmas ou por terem elas legado aquilo que tido pela coletividade como o mais
alto conhecimento. Herclito no parece temer ou hesitar em recusar e criticar os
saberes, os tesouros, os discursos dos grandes mestres da tradio.
No fragmento 50, Herclito anuncia o que deve ser feito para alcanar a
sabedoria. O fragmento diz: Ouvindo no a mim, mas ao lgos, sbio
concordar ser tudo um.51 Aqueles que entendem que o lgos o discurso de
Herclito, e nada mais, consideram que a advertncia ouvindo no a mim mas ao
lgos significa que ele est mostrando que a verdade de seu discurso no deve
ser atribuda sua autoridade, sua pessoa. Os homens devem desconsiderar tal
autoridade e, a sim, dar ouvidos ao seu discurso, que, por revelar a verdade
objetiva e comum, vale por si mesmo. Por outro lado, h interpretes e nesse
grupo que me incluo que enxergam nesse lgos novamente a tenso e fuso do
discurso de Herclito com o lgos comum, afirmando que a orao ouvindo no
a mim mas ao lgos indica tanto que Herclito exorta os homens a ouvir um
discurso independentemente da autoridade de quem o enuncia, quanto que ele os
conclama a ouvir o lgos segundo o qual todas as coisas vm a ser (fragmento
1), que, por ser comum, a nica coisa a que os homens devem dar ouvidos.
50 Fragmento 40: polumaqih no/on ou) dida/skei: Hsiodon ga\r an e)didace kai Puqago/rhn, autij te Cenofa/nea/ te kai Ekataion. 51 Fragmento 50: ou)k e)mou= a)lla\V tou= lo/gou a)kou/santaj o(mologei=n sofo/n e)stin e(\n pa/nta ei=)nai. Alexandre Costa traduz hn pnta por tudo-um e explica, em nota, o uso do hfen entre os dois termos. Preferi, todavia, manter as duas palavras separadas, lado a lado, sem
42
O homem ou no sbio em funo de sua escuta e de sua disposio
aps a escuta. Ouvir o lgos o que leva o homem a concordar, a fazer a coisa
sbia, a tornar-se sbio, a alcanar a sabedoria. Portanto, a sabedoria se d e se
revela na concordncia com o lgos. Ao falar da concordncia (homologa),
Herclito explicita uma possibilidade de conformao do pensamento e do
discurso humanos ao lgos comum. A palavra homologa e a ao de homologar
expressam a capacidade prpria do homem de dizer o mesmo que o lgos
comum.
Atentemos agora para o uso heracltico do verbo ouvir, que aparece em
diversos fragmentos, entre eles o fragmento 1 tanto antes de ouvir como depois
de o ouvirem e o fragmento 50 ouvindo no a mim mas ao lgos. No caso
dos intrpretes que sustentam que o lgos apenas o discurso de Herclito, no
parece haver nenhum problema em considerar que o lgos deve ser ouvido.
Entretanto, se entendemos que o lgos em jogo nesses fragmentos tambm o
lgos que no pode se restringir a um discurso verbal, torna-se evidente que o
verbo ouvir est sendo usado em outro sentido que no o de perceber
sensivelmente os sons ou a voz em que so enunciadas determinadas palavras.
Esse impasse resolvido, por alguns, com o recurso polissemia do
verbo akoo, que tambm pode significar obedecer e acolher, o que levaria
idia de que os homens devem atentar para o lgos comum, acat-lo e acolh-lo.
De todo modo, mesmo quando se interpreta o lgos como um discurso verbal, o
ouvir a que Herclito se refere no pode designar somente o exerccio da
audio, entendida como a faculdade sensvel de perceber sons. Herclito, tanto
no fragmento 1 quanto no fragmento 50, no s indica o que deve ser ouvido, a
saber, o lgos comum e o discurso que o expressa, como tambm mostra que h
modos de ouvir, a saber, h um tipo de audio que leva compreenso,
sabedoria, e um outro tipo de audio que no leva a conhecimento algum. Essa
argumentao se confirmar se observarmos o fragmento 34: Ignorantes:
ouvindo, parecem surdos; o dito lhes atesta: presentes, esto ausentes.52 A
conectivos ou sinais entre elas, como no original grego. 52 Fragmento 34: a)cu/netoi: a)kou/santej kwfoijin e)oikasi: fa/tij au)toisin marturei: pareo/ntaj a)peinai.
43
ignorncia definida aqui como a audio que, no levando a compreenso
alguma, vale to pouco quanto a ausncia de audio dos surdos. Portanto,
podemos concluir que Herclito afirma que a superao da ignorncia, isto , a
escalada em direo sabedoria e ao conhecimento envolve mais do que o
simples ouvir: envolve saber a que se deve dar ouvidos ou seja, distinguir o
objeto ou fonte preeminente de conhecimento e saber ouvir um ouvir
inteligente, que v alm da mera afirmao da sensao momentnea e que
conduza compreenso do que se ouve.
O fragmento 72 enuncia: Do lgos com que constantemente lidam,
divergem, e as coisas que a cada dia encontram revelam-se-lhes estranhas.53
Podemos ver aqui a confirmao de que o convvio e a lida dos homens com o
lgos constante e inevitvel. Portanto, inadequado no s afirmar que os
homens so ignorantes por uma fatalidade, destino ou Moira, como supor ou
sustentar que alguns homens tm, por natureza, independentemente de seu
empenho, acesso privilegiado ao lgos, que o lgos se aproxima apenas de alguns
para contar em seus ouvidos, ou revelar de outro modo, algum segredo.
O contato com o lgos irrevogvel, pois os homens vivem assim
como todas as coisas no cosmo (fragmento 30), e ambos, homens e coisas, vm
a ser segundo o lgos (fragmento 1). Portanto, em tudo o que o homem encontra e
em tudo aqu