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Ana Isabel Queiroz, [email protected] Comunidade de Leitores de Paisagens Literárias de Lisboa Memórias de textos e imagens. Apontamentos de 15 sessões, realizadas entre Maio de 2010 e Novembro de 2011.

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Memórias de textos e imagens. Apontamentos de 15 sessões, realizadas entre Maio de 2010 e Novembro de 2011.

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22 de Maio de 2010: Eça de Queiroz, A Capital!

[Artur Curvelo] Nunca imaginara Lisboa tão vasta, tão aparatosa, e parecia-lhe que as ideias deviam ter decerto a amplidão das ruas, e os sentimentos a elegância dos vestuários [106]

-Aí tem você, S. Carlos, chic, hein?Levou-o logo ao bilheteiro a comprar duas cadeiras do lado do Rei -o diabo do Savedra não largava a cadeira do Século. Em baixo, pediu ao «porteiro amigo», a quem bateu familiarmente no ombro, o binóculo do sô Mesquita; apagou o charuto meio fumado, que guardou a um canto -porque «os tempos não estavam para desperdícios», e tendo cofiado os bigodes -empurrou o batente verde. Como Artur escreveu, no dia seguinte, ao Rabecaz, «ficou deslumbrado com S. Carlos, com a majestosa arquitectura dos camarotes, avastidão do palco, com a soberba tribuna, e aquela sociedade elegante, silenciosa, escutando uma divina música, era realmente, amigo Rabecaz, verdadeiramente imponente!». [130-1]

Estava escuro, havia um friozinho cortante, e as luzes dos mastros tremeluziam na noite. Veio-lhe, sem razão, uma melancolia, um sentimento de solidão. Aquela hora, todos estavam nas suas casas bem mobiladas, no brilho das soirées, no conforto das convivências íntimas; as mulheres recebiam os seus amantes, amigos discutiam, fumando, em volta do punch... Como conseguiria fazer conhecimentos, relacionar-se, viver, furar, naquela grande cidade fumorosa? Agora tudo lhe parecia mais difícil, e as grandes fachadas sombrias das casas espalhavam em tomo dele uma sensação de isolamento, de inacessibilidade... [171]

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Na noite muito quente, a multidão escarranchada em S. Pedro, o de Alcântara. Aguarda-se o espectáculo possível, variado, que justamente se iniciará com uma barragem de fogo, artifício a ser cuspido aos ares no Castelo de São Jorge. Depois quarenta bandas de música vindas de quarenta terras desfilarão baixamente até sé concentrarem frente aos Paços do Poder.O grupo que me arrastou a tais celebrações começou-as atacando rabos. (…)Os rabos visados eram femininos. Porém, neles se dava, não por razões de libido corrente, mas sim de estraga-jogo. Ideia contornável ajustadamente em frase do Gaspar, quando lançara a sugestão: semear o rodopio. Descrevo já.Escolhido um alvo, o grupo rodeava-o. Um de nós dava o silencioso tiro de partida: um belisca-apara-lápis, Dona, da nádega, virando-se espontânea, logo apanhava dois beliscões suplementares no bochechão oposto. Porque o instinto leva o animal a se virar para donde sobre ele chove azar, a beliscada tinha sempre uma primeira fase de pião. Ora nós todos acordávamos num fingimento, o de não nos conhecermos uns aos outros. Assim surgia a Fase II, o vácuo sentido pela ofendida fêmea e respectivo acompanhamento familiar ou amoroso. Essa gente arremelgava-se, tal e qual um Patronato tromba dando em movimento sindical de clandestina sede: os beliscos vinham como os deuses arremetem: súbitos, devastadores e totalmente transparentes. De uma só vez um tipo recebeu acusação directa, apanhado que fora com a mão nas massas. Mas enquanto ele resistia «O quê, eu?»), uma saraivada de apalpões vindos dos companheiros obrigavam a atingida e seus acólitos a desviar o fogo acusatório, apontando-o ao Grande Invisível -enquanto o acusado inicial, de mãos no ar, sorria seu triunfo «Senhores, nada nesta mão, nada na outra»). [129-30]

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19 de Junho de 2010: Nuno Bragança, A Noite e o Riso

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Por fins de Janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou casa no bairro de Alfama, por lhe terem dito que, naquela porção da Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento à espera de arqueólogo competente. Ao cabo de três dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, supondo que os lamaçais de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçais em que ele desastradamente escorregara, e donde saíra mal-limpo, e assoviado por marujos e colarejas, seus vizinhos mais chegados. Mau agouro! A primeira quimera de Calisto, seu tanto ou quanto científica, atascara-se na lama daquela parte de Lisboa, que devia ser a ínclita Ulissea de Luís de Camões!O deputado, sem embargo de ir habitar o quarto andar de uma casa lavada de ares e muito desafogada na rua da Procissão, quis-lhe parecer que a atmosfera da capital não cheirava bem. [22]

Hospedaram-se no Cais do Sodré. D. Teodora, não obstante a ansiedade em que ia de avistar-se com o marido, cuidou em reparar as forças com um dormir daqueles que a Providência concede às consciências puras e às pessoas que desembarcam enjoadas.Paulo de Figueiroa saiu para a rua, no intento de informar-se da residência de Calisto. Porém, como encontrasse na rua do Alecrim um macaco encavalgado num cão, que trotava a compasso de realejo, deixou-se ficar pasmado no espectáculo; depois, foi subindo até ao largo das Duas Igrejas, e quedou-se ouvir um cego de óculos verdes que pregoava e referia o sucesso negro de um homem que matara seu avô. [192]

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17 de Julho de 2010: Camilo Castelo-Branco, A Queda dum Anjo

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18 de Setembro de 2010: José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis

Sai Ricardo Reis para a rua, esta do Alecrim, invariável, depois qualquer outra, para cima, para baixo, para os lados, Ferragial, Remolares, Arsenal, Vinte e Quatro de Julho, são as primeiras dobações do novelo, da teia, Boavista, Crucifixo, às tantas cansam-se as pernas, um homem não pode andar por aí à toa, nem só os cegos precisam de bengala que vá tenteando um palmo adiante ou de cão que fareje os perigos, um homem mesmo com os seus dois olhos intactos precisa duma luz que o preceda, aquilo em que acredita ou a que aspira, as próprias dúvidas servem, à falta de melhor. Ora, Ricardo Reis é um espectador do espectáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trémulo porque uma simples nuvem passou, afinal é tão fácil compreender os antigos gregos e romanos quando acreditavam que se moviam entre deuses, que eles os assistiam em todos os momentos e lugares, à sombra duma árvore, ao pé duma fonte, no interior denso e rumoroso duma floresta, na beira do mar ou sobre as vagas, na cama com quem se queria, mulher humana, ou deusa, se o queria ela.[90-1].Um eléctrico aproxima-se, tem escrito Estrela na bandeira iluminada, e a paragem é aqui mesmo, calhou assim, o guarda-freio viu aquele senhor na berma do passeio, é certo que não fez nenhum gesto a mandar parar, mas, para um guarda-freio com experiência, é evidente que estava à espera. Ricardo Reis subiu, sentou-se, a esta hora vai o eléctrico quase vazio, dlim-dlim, tocou o condutor, a viagem é comprida por este itinerário, sobe-se a Avenida da Liberdade, depois a Rua de Alexandre Herculano, atravessa-se a Praça do Brasil, Rua das Amoreiras acima, lá no alto a Rua de Silva Carvalho, o bairro de Campo de Ourique, a Rua de Ferreira Borges, ali na encruzilhada, mesmo no enfiamento da Rua de Domingos Sequeira, (...) [271]

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16 de Outubro de 2010: Fernando Pessoa, Quaresma decifrador. As novelas policiárias

(...) o Borges voltou para casa, segundo disse, para se lavar e sair para a Baixa, para saber se teria acontecido qualquer cousa ao Vargas. Quando, durante a conversa, o guarda, sabendo que o Vargas tinha ido a Benfica, disse que ele podia ter vindo a direito, pelas terras, e que era um sítio perigoso, o desgraçado do Borges ficou apavorado, pois não lhe tinha ocorrido esse caminho, que realmente não lembra nem de dia: a gente tem o costume de vir da Estrela á Baixa e depois seguir para Benfica pelas Avenidas Novas e Estrada de Benfica. [59]

Quais são, à luz dos testemunhos que temos, os dados sobre o que precedeu de perto a tragédia da Azinhaga da Bruxa? São que o Vargas vinha de jantar em casa do comandante Pavia Mendes (o que é certo), que nesse jantar nada se passou de anormal (o que é simplesmente o depoimento de Pavia Mendes e vale o que este valha), e que, depois de sair de casa deste, esteve falando uns minutos, à entrada da azinhaga onde morreu, com um indivíduo que se não sabe quem é, que apareceu com uma precisão suspeita, e que não seguiu com ele pela azinhaga acima. [86-7]

[com a presença de Ana Maria Freitas]

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Por extraordinário que pareça, o Paraíso existe e está ao nosso alcance: ao cimo da Calçada, quase no encontro das três ruas, mas recolhido e ausente. Desde a Sé lá em baixo, o labirinto das ruas, a meia-laranja, a íngreme ladeira com os gradeamentos polidos como bronze! os telhados sobrepostos, a capela sempre fechada -tudo isto forma um presépio erguido sobre muros e socalcos de jardins donde se debruçam velhas pimenteiras, trepadeiras e flores mal cuidadas, e se enxergam painéis de antigos azulejos.O quadro é exactamente o mais próprio para nele se edificar um mundo à parte, duradoiro como o sonho, e como ele vago se quiserem, mas tangível, com vida e personalidade,. É Lisboa, uma realidade em si e será preciso tê-la conhecido e vivido nela para bem a compreender e amar, Reluzente e aguado de fresco, o Tejo em frente banha os pés do anfiteatro, sob o docel do azul brunido e sem nuvens, enquanto o sol traça com minúcias de buril os perfis do Castelo, cimalhas de palácios, chaminés (Pode ser que a perspectiva do tempo transforme as coisas ou as reduza a proporções mais comezinhas: o que importa é que tudo continua a ser assim, na fábrica do sonho que perdura, e de certo modo cresce connosco.) [34-5]

A mãe deu em mandá-lo com o saco de rede a uma horta da vizinhança, numa rua encostada cá em baixo ao Monte. Não é que ele goste de fazer compras: embirra por exemplo de ir ao talho, onde as fêmeas agressivas gritam que estão primeiro que toda a gente, ou com muita pressa. Tem que esperar que o sr. José se incline lá de cima: «Que é que quer hoje o menino Gabrielzinho?» [242]

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20 de Novembro de 2010: José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso

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Eram nove horas, já passava mesmo um pouco das nove. Naquela ladeira calcorriada por toda a casta de gente, por automóveis, carroças, camiões e carros o dia havia muito que se fazia sentir. A hora dos operários já lá ia também. Com as suas lancheiras, os seus embrulhinhos ou ainda os sacos, a passo furtivo saíam de todas a vielas e pátios de Alcântara e espalhavam-se pelos quatro cantos da cidade. Os que trabalhavam no sítio sumiam-se nas docas próximas. Pois tudo isto já debandara mansamente dos seus buracos! A calçada, sem a bulha irregular das rodas pesadas e dos freios dos eléctricos seria tranquila como qualquer outra. Os rapazitos pequenos lá soltavam às vezes os seus gritos e as mulheres da bica, que nem chafariz era, também falazavam com interrupções. [“No Cabeleireiro”89]

(…) numa das belas tardes do Chiado, que meia Lisboa não sei porquê considera elegantes, se encontraram os dois de combinação numa livraria. As livrarias, como os cafés, têm o seu público particular. Quem entra nelas de novo sente-se sempre um pouco vexado, coacto. A educação do alfacinha dá-lhe uma ligeireza, um disfarce e até uma qualidade de olhar que de começo embaraçam os desprevenidos. Não se sabe bem porquê...Sara conhecia pouco estes meios fúteis e corridos, mas característicos numa cidade. [“Um dito” 221]

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15 de Janeiro de 2011: Irene Lisboa, Esta Cidade

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19 de Fevereiro de 2011: Rui Cardoso Martins, Deixem passar o Homem Invisível

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(...) a chuva na capital nesse dia começou sem brutalidade. Só uma persistência pouco comum, não caíram primeiras gotas, caíram hectolitros de gotas no mesmo segundo, vaga de água doce, cascata vertical espremida das nuvens pretas nos telhados. Depressa cresceu para uma parede líquida sobre Lisboa como só uma vez ou duas em cada século.E logo a seguir, baralhada por súbitos ventos cruzados, quentes e frios, atiçados por relâmpagos metálicos, a chuva começou a escorrer com força pela cidade, mas sem saber por onde, e muito mais água chegava pelos veios que desciam das outras colinas, por arroios adormecidos e pelas calhas do eléctrico, numa competição de rios sem nome, acabados de nascer no meio das avenidas e praças. [17-8]

Cuspidos do cano, recém-nascidos de lama, pessoas de barro. João abriu os olhos e viu tainhas aos pulos no fundo do Tejo vazio, os peixes tentavam respirar, epilépticos, e ao lado um cacilheiro, entornado para a direita, a tossir o motor, entre duas colunas brancas com bolas de calcário, ainda de pé, calhaus verdes de limos, e as gaivotas, loucas de medo, não tinham coragem de capturar as tainhas da praia do Cais das Colunas.Um profundo vale de lodo abrira-se no meio do rio.-Estamos cá fora, António. Vejo o Sol. O Tejo não tem água. [222]

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19 de Março de 2011: Filomena Marona Beja, A Cova do Lagarto

Madrugada tornando-se manhã.O largo do Rato ainda escuro. O primeiro eléctrico a descer a avenida da Liberdade. O Buick aos solavancos, sem evitar as poças, levantando água.E Joaquim Mangas, a meia voz:-Ruas desgraçadas!... piso desgraçado...Deram a volta ao Terreiro do Paço. O Tejo em turbilhão. Quando foi do ciclone, o Tejo galgou ali pelo Cais das Colunas e veio até ao Arco da Rua Augusta. [184]

(…) a urbanística em redor do Técnico era-lhe conveniente. Alamedas, praças, a arte e o desafogo.Tudo o que se previa, de Arroios a Alvalade, valorizava o Instituto. Muito, nem se duvide.Intrigas.E muitos protestos. Talvez fosse necessário demolir alguma coisa. «Mas não o casario da nossa rua», dizia quem lá morava.Não o Teatro Apolo. Nem os bordéis da rua da Palma. Não. E não!Até Humberto Pacheco:-Cuidado, Duarte... estás a arrasar às cegas.E ainda mais que o terramoto de 1755.-o Terramoto? ...Quem lhe dera. Fora um mal que viera por bem. [197]

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16 de Abril de 2011: Batista-Bastos, Cão Velho entre Flores

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Quando vinham as chuvas, as águas barrentas gorgolejavam pelas valetas, pequenos rios acidentados em cujas ondas se desfaziam os grumos fuliginosos, formando na boca das sarjetas espumosa massa negra. Com frequência, os esgotos entupiam-se, as ruas transformavam-se em mares, os mares inundavam as caves,as pessoas bramavam, eu corria, feliz, encharcado; era a favor das cheias. [19-20]

Todos me haviam prometido passeios ou grandes festas, pensava eu, sem ira e sem agitação; todos me haviam prometido doces prazeres e aventuras suaves, pensava eu, agora, neste sítio do mundo que me parecia aprazível e sereno. Mas sentia-me feliz porque desta parte do mundo viam-se a muralha do castelo e as casas coloridas; a muralha do castelo ficava castanho-doirada sob o sol, e as casas espalhavam-se pela vertente da colina. As pessoas percorriam os seus caminhos, apressadas e misteriosas, e eu observava-as, rodeado de metros e metros de vazio, todavia possuído por emoção discreta. [113]

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21 de Maio de 2011: Mário de Carvalho, Era bom se trocássemos umas ideias sobre o assunto?

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Sempre que em Lisboa se constrói um prédio de estilo, com prosápia inovadora, cai Tróia, caem o Carmo e a Trindade, caem dirigentes políticos, caem reputações, as ondas sonoras dos desmoronamentos imaginários ressoam, vibram, enervam, insistem, maçam e só o que não cai é o edifício - em causa, como não caiu este. [14]

Estamos situados? Pois é neste enquadramento que os convido para um certo restaurante da Graça, aproximado à Rua das Beatas, não longe da Vila Bertha, onde, pelas dez da noite, já se fabrica uma musicalidade, por ora de vozearias, arrastar de cadeiras e tilintim de copos, que faz desconfiar os vizinhos, quase todos reformados e madrugadores de velhos. Isto merece a sua pincelada, arrenegando daquele célebre teórico que mandava galgar as descrições.Descia-se da Graça para a Senhora da Glória e encontrava-se uma reentrância, de empedrado mais largo, não menos escorregadio, onde, habitualmente, nas sombras côncavas, estacionavam uns vultos que era bom não encarar. Passava-se uma porta de madeira, outra e, não raro, voltava-se atrás porque o restaurante não era facilmente discernível. Aposto que se o leitor o procurar não o encontrará sem a minha ajuda. [119]

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21 de Junho de 2011: José Cardoso Pires, Alexandra Alpha

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Beto conheceu o faquir pela mão de Sophia Bonifrates, num cenário de barraquinhas de tiro ao alvo e de flippers em estardalhaço. Uma manhã ele e dona cavalona desceram a Avenida da Liberdade e foram até ao Parque Mayer que era onde os esperava o artista. De caminho pararam, numa montra da Cervejaria Ribadouro que estava preenchida de alto a baixo por santolas empilhadas, um autêntico muro de carapaças peludas com olhinhos em botão e patinhas a acenar para as pessoas que passavam. Beto achou aquilo estúpido, sem interesse, mas Sophia explicava-lhe, apontando para as mandíbulas que mexiam, que eram fortíssimas, a serrilha daquelas presas não só fixava corno comprimia o que pudesse agarrar; eram bichos obscenos, lá isso eram, mas ela apreciava imenso. Comidas a martelinho de pau e regadas a branco gelado, as santolas tinham montes de assunto para descobrir. [75]

O carro seguiu a velocidade moderada pela Rua dos Fanqueiros no sentido descendente, Praça do Comércio, Cais do Sodré, indo estacionar nas proximidades do Mercado Municipal. Percorrendo seguidamente a pé as ruas ribeirinhas, o arquitecto atravessou o clarear da madrugada por entre carregadores de peixe e perfis de embarcações acostadas ao cais e dirigiu-se à cantina do mercado, denotando conhecimento do terreno pelo à-vontade com que se movimentava. [286]

[com a presença de Rui Zink]

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17 de Setembro de 2011: Manuel Halpern, Fora de Mim

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Deu por si a andar pela Rua da Palma até à Almirante Reis.O dia pela noite, os rostos pelas sombras. Nas grandes cidades anoitece antes do crepúsculo, quando o sol, em vez de se pôr, se esconde atrás dos prédios. As suas pernas mexiam-se ininterruptamente acompanhando a taquicardia. Toda a escória ali se junta, dos drogados sem carros para arrumar, às prostitutas refugiadas do superpovoamento do Intendente, aos vagabundos na fila para a sopa dos pobres. Ali sentia-se em casa. Na merda sentia-se em casa. Porque em sua casa uma mulher dormia morta na sua cama. Fora desalojado por uma mulher morta. Patrícia.Estaria também ele morto? [28-29]

Em Lisboa, ninguém vê ninguém. Em Lisboa, uma mulher pode andar seminua no metro, apenas com uma camisa por cima, que ninguém dá por ela.Em Lisboa, as pessoas estão demasiado preocupadas consigo próprias para olhar para os outros. Ainda bem que estás em Lisboa. [75]

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29 de Outubro de 2011: Rui Tavares, O Pequeno Livro do Grande Terramoto

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(...) o que todas as outras calamidades têm de comum entre si, e de distinto do terramoto, é serem prolongadas no tempo, ou melhor: é terem um contexto. Num contexto é possível fazer escolhas. Mas o sismo chega de repente; não se sabe que vai começar nem quando vai acabará (...) É essa a diferença, e por isso o terramoto é tão verdadeiro: revela os humanos despidos de cultura, que é o seu contexto. (78-9)

Cinco dias depois do navio de Thomas Chase ter partido, o General Manuel da Maia entregou a Sebastião José de Carvalho e Melo um memorando sobre a reconstrução da cidade. O documento, datado de 4 de Dezembro de 1755, contém um texto sucinto e enxuto, criando a impressão de ter resultado de uma reflexão invulgarmente lúcida e precisa. Não teve depois dificuldade em encontrar o seu caminho para o papel com os traços gerais, já pontuados aqui e ali por soluções de pormenor quanto à salubridade das novas habitações ou por sugestões práticas sobre as indemnizações e a distribuição de terrenos. (...) Não é exagero dizer que a cidade fumegava ainda; réplicas e novos sismos ocorriam várias vezes ao dia. Acresce que, pessoalmente, Manuel da Maia tinha sido tão vítima do sismo como qualquer outro lisboeta. (121-2)

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19 de Novembro de 2011: Hélia Correia, Lillias Fraser

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O bairro de São Paulo não tinha ardido. Os contrafortes com que o demarcavam impediram o incêndio de avançar.Porém, tudo o que o rio arremessara das suas profundezas, lodo, barcos, cadáveres de afogados, recobrira as ruínas das casas. Foi, portanto, um dos primeiros sítios que o ministro mandou que se regasse com cal viva. Se alguém ouviu gemer os soterrados e se benzeu ao despejar os caldeirões, isso não sei. Calculo que o momento não se compadecia com minúcias.Tinha de se queimar a infecção e de evitar que os cães desenterrassem os mortos, cujo lento agonizar deitara um cheiro de acidez que os atraía.(...) Atravessaram o Terreiro do Paço. Apesar da moldura de desastre, dos grandes edifícios abatidos onde, por pura sorte, não se achava a família real nessa manhã, o lugar estava estranhamente álacre, cheio de gente que assentava nos carvões cestas nas quais de tudo havia à venda. Ameaçados pelo pôr do Sol, os vendedores gritavam, salivando, como a intimidar os interessados. E iam atando às costas ou alçavam para a cabeça os bens remanescentes. [109]

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Referências bibliográficas

Armando Baptista-Bastos, Cão Velho entre Flores. Lisboa, Futura, 1974.

Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo. Lisboa, Círculo de Leitores, 1981.

Eça de Queirós, A Capital!. Barcarena, Presença, 2003.

Fernando Pessoa, Quaresma Decifrador. As Novelas Policiárias. Ed. de Ana Maria Freitas. Lisboa, Assírio e Alvim, 2008.

Filomena Marona Beja, A Cova do Lagarto. Lisboa, Sextante, 2007.

Hélia Correia, Lillias Fraser. Mem-Martins, Círculo de Leitores, 2005.

Irene Lisboa, Esta Cidade!. Lisboa, Presença, 1995.

José Cardoso Pires, Alexandra Alpha. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999.

José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso. Lisboa, Estúdios Cor, 1961.

José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis. Lisboa, Caminho, 1984.

Nuno Bragança, A Noite e o Riso. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995.

Manuel Halpern, Fora de Mim. Alfragide, Caderno, 2008.

Mário de Carvalho, Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto. Lisboa, Caminho, 2003.

Rui Cardoso Martins, Deixem passar o Homem Invisível. Lisboa, Dom Quixote, 2009.

Rui Tavares, O Pequeno Livro do Grande Terramoto. Lisboa, Tinta da China, 2005.

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