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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Organização: Prof. Renato Mendes Rocha
Anais da III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa
Cruz
Ficha técnica
Esta é uma publicação do
Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz
Grão-Chanceler
Dom Washington Cruz, CP
Diretor Geral
Mons. Luiz Gonzaga Lobo
Diretor Acadêmico
Pe. David Pereira de Jesus
Endereço Av. Anápolis, 2020 - Jardim das Aroeiras 74770495 Goiânia - GO
Tel: (62) 3567-9060 e-mail: [email protected]
Organização e diagramação
Renato Mendes Rocha
Distribuição digital
3
Sumário
Apresentação ..................................................................................................... 4
Palestras
A literatura e o ser da linguagem .................................................................... 8 Denis Borges Diniz
A metafísica como disposição natural do ser humano ................................ 13 Pe. Edmar José da Silva
A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional ................................. 30 Pe. Joaquim Cavalcante
Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel ..................................................... 36 Júlia Sebba Ramalho de Morais
Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl ..................................... 48 Martina Korelc
Comunicações
A compreensão de pessoa humana em Karol Wojtyla ................................ 65 Arpuim Aguiar de Araujo
Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade ................................. 72 Cláudio José De Carvalho
O homem: um ser composto de corpo e alma, segundo T. de Aquino ....... 78 Divino Eterno
A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI .......................................................................................................................... 86
Mário Correia A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e no ensaio “Do ente e da essência”, de Santo Tomás de Aquino .................. 95
Pedro Mendonça Curado Fleury Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios ......................................... 106
Ueslei Vaz Aredes
4
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Apresentação
Este trabalho que o leitor tem em mãos só foi possível graças ao esforço
conjunto de coordenadores, professores, funcionários e acadêmicos do Instituto de
Filosofia e Teologia Santa Cruz (IFTSC). Trata-se de um registro em texto de temas que
foram apresentados e discutidos no âmbito da terceira edição da Semana Acadêmica que
aconteceu de 12 a 16 de Setembro de 2011 nas dependências do Instituto de Filosofia e
Teologia Santa Cruz, local de formação que acolhe seminaristas em busca da sua
confirmação vocacional e formação sacerdotal.
Estes Anais foram compostos a partir de textos de alunos e professores que
apresentam o trabalho de suas pesquisas durante o nosso evento. Elegeu-se a metafísica
como tema para esta semana acadêmica. A metafísica é uma das área mais fundamentais
da Filosofia, pois seus temas permeiam todas às demais áreas da Filosofia. Ainda que
implicitamente, toda posição filosófica, seja ela em ética, epistemologia, lógica, ou
filosofia política estão assentadas em uma certa visão concepção da realidade. Este modo
de conceber a realidade é metafísica. Até mesmo as ditas posturas antimetafísica são, em
algum sentido, metafísica. De um modo mais amplo, podemos compreender a metafísica
como uma tentativa filosófica de revelar a realidade última das coisas. Em outras palavras,
sobre o quê está por trás da mera aparência das coisas. Partindo desse ponto de vista,
podemos formular três questões básicas, a partir das quais podemos compreender melhor a
natureza das questões metafísica: a) quais são as características gerais do mundo e que
tipo de coisas existem no mundo? Como o mundo é?; b) Por que o mundo existe, e mais
especificamente, por que o mundo existe com as características descritas na resposta à 1?;
c) Qual é o nosso lugar no mundo? Como nós, seres humanos, nos encaixamos no mundo?
De alguma forma, os textos reunidos nesse volume constituem tocam em
alguma destas questões, alguns mais diretamente e outros apenas de modo tangencial.
Portanto, a riqueza deste volume está em apresentar um mesmo tema, sendo abordado por
diferentes maneiras de se fazer filosofia. Os textos destes anais foram divididos em duas
partes, sendo que, em cada uma destas partes os textos foram dispostos a partir da ordem
alfabética do primeiro nome do autor. Na primeira parte dos anais publicamos texto das
palestras dos professores e na segunda parte estão os textos das comunicações dos alunos.
5 A parte relativa aos textos dos professores inicia-se com trabalho do prof. Denis Borges
Diniz em que ele apresenta uma abordagem do ser na literatura tal como interpretada pelos
filósofos franceses. Na sequência temos o texto da palestra Pe. Edmar José da Silva,
professor convidado da Faculdade Arquidiocesana de Mariana de Minas Gerais, em que
ele apresenta a metafísica como disposição natural do ser humano e defende essa posição a
partir dos escritos de Pe. Henrique Lima Vaz. No texto seguinte, o leitor poderá
acompanhar no texto do Pe. Joaquim Cavalcante uma apresentação da liturgia como
epifania do mistério trirrelacional e compreender cada um dos termos dessa definição. Os
dois derradeiros textos dessa edição são os mais extensos e densos desse volume. O
primeiro é da profª. Júlia Sebba Ramalho de Morais e ela apresenta aspectos da metafísica
de G. F. Hegel comparando-a com aspectos da metafísica de Immanuel Kant, ambos
filósofos alemães que viveram na passagem do século XVIII ao XIX. O segundo texto é da
profª. Martina Korelc que escreve sobre a metafísica por via da fenomenologia husserliana.
Esse é um texto muito importante pois resulta de pesquisa bibliográfica que a pesquisadora
realizou em seu estágio pós-doutoral onde pôde entrar em contato com manuscritos de
Edmund Husserl.
Na segunda parte desta publicação encontram-se textos escritos pelos
acadêmicos do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz. No primeiro texto, Arpuim
Aguiar de Araújo expõe sobre a fenomenologia personalista de Karol Wojtyla e a partir
desta perspectiva aborda o conceito de pessoa humana. No segundo texto, Cláudio José de
Carvalho defende uma visão conciliadora entre a prática religiosa e a prática científica,
argumentando que mesmo teorias controversas como o darwinismo não contradizem as
verdades reveladas do cristianismo. Em seguida, Divino Eterno apresenta a importante
teoria hilemórfica de Tomas de Aquino que consiste na fundamentação filosófica da
concepção de que o homem é um ser composto de corpo e alma. Mário Correia é o autor
do próximo texto que versa sobre a importância de valores estéticos como a beleza para
manifestação da verdade, a partir dos escritos do Papa Bento XVI. No texto seguinte,
Pedro Mendonça Curado Fleury faz uma aproximação entre os pensamentos de
Parmênides e Santo Tomás de Aquino procurando mostrar semelhanças entre a relação
entre o ser e o ente nesses dois autores pertencentes à duas épocas históricas distintas. Por
fim, no último texto desta segunda parte Ueslei Vaz Aredes aborda a realidade
transcendental do sacramento e o apresenta como símbolo do sinal da vida do homem em
comunhão com a Igreja.
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Não poderia deixar de lembrar e agradecer às pessoas e instituições que
tornaram a realização da III Semana Acadêmica do Instituto Santa Cruz. Em primeiro lugar
ao trabalho dos membros da comissão organizadora: Mons. Luiz Gonzaga Lobo, Pe. David
Pereira Jesus e aos acadêmicos Arpuim Araújo, Jefferson Tomaz, Mário Correia, Ronaldo
Rangel, Washington Uberaba. Em especial aos acadêmicos que verdadeiramente
“carregaram o piano” da organização, se ocupando de todos os detalhes para garantir o
sucesso do evento. Do lado institucional é importante lembrar e agradecer à Fundação
Aroeira, à Catedral Metropolitana de Goiânia e às Paróquias São Nicolau, Aux. Cristãos,
Imaculado Coração de Maria, São José, São Pio X, Rainha da Paz e Bom Jesus que
contribuíram financeiramente para a realização do evento.
Para concluir, este trabalho pode ser visto como uma pequena amostra do
pensamento das pessoas que estudam e trabalham no IFTSC. Faço votos de que este
continue sendo um espaço propício ao ensino, estudo, pesquisa e divulgação do
pensamento filosófico e teológico na cidade de Goiânia. Desse modo, espero que a leitura
destes textos aqui apresentados possa ser além de um registro material da atividades do
nosso Instituto, também um instrumento para o desenvolvimento intelectual e
aprendizado filosófico de seus leitores.
Renato Mendes Rocha,
Florianópolis, 08 Junho de 2012
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A literatura e o ser da linguagem
Denis Borges Diniz1
Em As palavras e as coisas, livro publicado em 1966, Foucault descreve a
ruptura epistemológica ocorrida na virada do século XVIII para o século XIX. Segundo
ele, naquele momento uma nova ordenação dos saberes estaria em curso na cultura
ocidental impondo a destruição da Representação como tarefa fundamental desses saberes.
A partir daí, novos objetos, conceitos e saberes iriam se configurar constituindo assim o
que ele denomina de modernidade. A linguagem surge neste momento de um modo
inteiramente novo. Surge como objeto bastante definido e no entanto bastante complexo
devido ao fato de ser irredutível à representação. Ao contrário do que era para os clássicos,
não se trata mais para os modernos de conduzir a palavra, o signo à ideia; ou dito de outro
modo, de conceber a linguagem nesta sua função puramente representativa. Isso porque
este novo objeto aparece aos novos saberes como que dotado de uma historicidade, de
regras e de leis que lhes são próprios e que, por isso mesmo não se deixam atualizar
plenamente pelas regras de um pensamento que se dá apenas como representação.
Entretanto, e em função mesma de sua irredutibilidade ao cogito, essa novidade ocorre
segundo uma dispersão que é assim anunciada por Foucault:
Destacada da representação, a linguagem doravante não mais existe, e até hoje ainda, senão de um modo disperso: para os filólogos, as palavras são como tantos objetos constituídos e depositados pela história; para os que querem formalizar, a linguagem deve despojar-se de seu conteúdo concreto e só deixar aparecer as formas universalmente válidas do discurso; se se quer interpretar, então as palavras tornam-se texto a ser fraturado para que se possa ver emergir, em plena luz, esse outro sentido que ocultam; ocorre enfim à linguagem surgir por si mesma num ato de escrever que não designa nada mais que ele próprio. (FOUCAULT, 1995, p. 320)
A literatura, porém, é onde a linguagem aparece como compensação a toda
objetividade que qualquer daquelas análises possa se configurar, onde, de modo
absolutamente autônomo, além - ou aquém - de todo significado prévio ou conteúdo
designativo a lhe emprestar alguma substância, a linguagem manifesta seu ser bruto.
1 Professor de Filosofia Contemporânea e Estética do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz.
A literatura e o ser na linguagem 9
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A princípio, a linguagem na sua modalidade literária se desenvolve num duplo
movimento que manifestaria assim a dinâmica de seu ser. Por um lado é de uma
incomunicabilidade absoluta com quaisquer valores exteriores a ela (FOUCAULT, 1995,
p. 316); estes nascem de seu próprio espaço e vem assinalar o sentido de sua pura
existência, posto que irredutível às formas exteriores: “[...] nessas condições, não lhe resta
senão recurvar-se num perpétuo retorno sobre si, como se seu discurso não pudesse ter por
conteúdo senão dizer sua própria forma [...]” (FOUCAULT, 1995, p. 317). De fato, vê-se
que a literatura aí é a manifestação de uma linguagem que não tem por lei outra coisa que
não a afirmação de si mesma. Nada mais distante portanto, da linguagem como
funcionamento representativo, posto que, na idade clássica o que o ser afirmava era a ideia.
Agora na literatura moderna a linguagem desenvolve-se sobre si mesma formando ela
própria seu espaço, seu tecido, onde a singularidade dos pontos de sua trama é constituída
a partir desse “[...] espaço que os contém e os separa ao mesmo tempo.” (FOUCAULT,
1990, p. 14). Muito semelhante, sem dúvida, à concepção que Foucault constrói acerca da
formação discursiva quando se refere à disposição manifesta dos elementos que a compõe:
estes são formados a partir de um agrupamento heterogêneo que ganha sentido pela sua
coexistência regrada definindo um espaço comum e que é irredutível a toda interioridade,
como que resistindo a ela.
A trama na qual a palavra se desenvolve mantém a partir de si mesma suas
relações de identidade e não-identidade. Não é o caso de vislumbrar nesse
desenvolvimento um contexto, do qual o sentido poderia então ser produzido2. Se assim
fosse, tal contexto designaria uma linguagem que se interioriza numa auto-identificação
consigo mantendo-se ao nível do significante. Ao contrário, e aí se manifesta a outra face
do ser da linguagem, na literatura, diz Foucault, ela se distancia “[...] o mais possível de si
mesma; e se este colocar-se “fora de si mesma” põe em evidência seu próprio ser, esta
claridade repentina revela uma distância mais do que um sinal, uma dispersão mais do que
um retorno dos signos sobre si mesmos.” (FOUCAULT, 1990, p. 14). O que nosso autor
coloca é uma contraposição à concepção, superficial segundo ele, de que a literatura
moderna designaria apenas a si mesma: auto-referência. Ao contrário, sua posição é de que
o “sujeito” da literatura (aquele que fala dela, ou aquele de quem ela fala) está na verdade
evidenciando um vazio, apenas uma função gramatical que se deixa enunciar no “falo”. É
2 Foucault também refuta o recurso ao contexto para explicar o modo de existência dos enunciados que comporiam o domínio discursivo distinguindo os enunciados das unidades linguísticas habituais. Cf. FOUCAULT, 1997, 111-114.
Denis Borges Diniz 10
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
esse vazio que seria, para nosso autor, o traço distintivo da moderna literatura ocidental.
Essa posição de Foucault é importante, pois a lacuna deixada pelo sujeito ausente nos
propõe a um certo abandono do exercício do “pensamento do pensamento” – herança
cartesiana do “Penso” – e nos conduz ao exercício da “palavra da palavra”: nessa
experiência nua da linguagem a evidência do “existo” pode ser posta em questão.
Essencial dissimulação portanto: nesse retorno sobre si, desenvolve-se, porém,
rumo a um exterior3 o mais longínquo possível. E tal movimento encontra-se somente
numa linguagem que não funciona mais como discurso representativo, que readquire sua
existência selvagem onde a significação do signo está ausente; onde o significante, face
neutra, é surdo às interrogações sobre sua existência enigmática. Essa existência reaparece
na experiência cultural do Ocidente quando no final do século XVIII, o sujeito deixa de
conduzir a linguagem à sua função primeira de desdobrar as séries de representações e de
erguer como sua morada a interiorização do pensamento.
O distanciamento que a literatura assume em relação à idade clássica a
reaproxima, por outro lado, da Renascença ainda que por uma diferença fundamental. Tal
como naquele período, as palavras como que se adensam e seu poder encerra-se naquilo
que permite o movimento de um discurso indefinido. Foucault aponta entretanto, que no
Renascimento aquilo que ao mesmo tempo fundava esse movimento e o limitava era
“aquela palavra primeira, absolutamente inicial” (FOUCAULT, 1995, p. 60) que fazia de
todo discurso, divinatio. Na modernidade esse movimento assume sua radicalidade pela
ausência absoluta de um fundamento, de uma anterioridade: “[...] doravante a linguagem
vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e
fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura.” (FOUCAULT, 1995, p. 60).
A literatura moderna está assim a marcar um triplo e radical afastamento
das experiências com a linguagem ao longo desses séculos: do Renascimento, como foi
visto, mas também do classicismo e da modernidade, como resume Roberto Machado:
Na modernidade, a literatura é um “contra-discurso”, no sentido do que compensa, e não do que confirma, a forma significante, o funcionamento significativo da linguagem. Ou de modo mais explícito: a literatura é o que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existia na época
3 Esse termo se refere àquele mesmo utilizado na tradução brasileira de La pensée du dehors (O
pensamento do exterior). Seu sentido parece ser melhor preservado pela tradução por “de fora” ficando então O pensamento do de-fora ou do lado de fora. De fato, essa expressão foi utilizada na tradução do livro de Deleuze, Foucault, onde ele faz a distinção entre exterior ou exterioridade e o lado-de-fora. Com essa ressalva, mantém-se aqui a opção por “exterior” em função de que aquela tradução é a referência para este trabalho.
A literatura e o ser na linguagem 11
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
clássica reduzida a discurso [...]; mas a literatura é também o que contesta o estatuto da linguagem tal como ela existe na modernidade com sua relação significante, em que a significação é considerada como determinada na consciência [...] que se torna, portanto, o fundamento, a condição, o ato constituinte da significação. (MACHADO, 2000, p. 18)
Daí, na ausência da anterioridade divina [Renascimento] e de um espaço
interior que a conduzam, a linguagem aparece como “trânsito ao exterior” onde o sujeito é
apenas um “vínculo gramatical” evanescente a ser requerido ao sabor de algo que não mais
lhe pertence. É nesse ponto, da destruição do sujeito como lugar de origem, que Foucault
identifica o perigo da literatura: “Sem dúvida é por esta razão pela qual a reflexão
ocidental não se decidiu durante tanto tempo em pensar o ser da linguagem: como se
pressentira o perigo que faria correr a evidência do ‘existo’ a experiência nua da
linguagem.” (FOUCAULT, 1990, p. 15).
Ora, nessa brusca autonomia com que o ser da linguagem se manifesta ele
rompe com uma dimensão fundamental da nossa experiência: a memória, que se forma a
partir de representações sedimentadas na consciência e, consequentemente, com a
linguagem instituída e com o tempo como ordenação dos fenômenos. Essa manifestação
num “não-tempo” não permite, pois, que se a imobilize em nenhuma forma. De fato, toda
formalização se dá conforme regras - lógicas ou gramaticais - e supõe pontos de origem e
término, axiomas, demonstrações e, enfim, uma verdade, ainda que imanente ao campo
semântico. Ao contrário, afirma Foucault, a linguagem não tem amparo na memória e suas
palavras não se dirigem a conteúdos que lhe precedem, (FOUCAULT, 1990, p. 72) no seu
ser ela é amparada pelo esquecimento atento da espera:
É no esquecimento que a espera se mantém como uma espera: atenção aguda àquilo que seria radicalmente novo, sem ponto de comparação nem de continuidade com nada (novidade da espera exterior a si e livre de todo o passado) e atenção àquele que seria o mais profundamente velho (posto que nas profundidades de si mesma a espera não deixou nunca de esperar). (FOUCAULT, 1990, p. 74)
Daí, a origem e a morte achatam-se no instante de um esquecimento, e é
nisso em que consiste a experiência nua da linguagem, que conserva sua força e sua ação
“no rumor informe e fluido”4. É uma situação paradoxal esta que Foucault assinala à
linguagem. Ao invés de ser a morada da verdade, e ter daí inferida a sua força, a linguagem
4 Idem, p. 71. Em outras ocasiões, como já observou Deleuze, Foucault vai desejar estabelecer-se nesse murmúrio da linguagem, como por exemplo, quando do discurso da aula inaugural no Collège de France. Cf. FOUCAULT, 1998, p. 5. Quanto a análise que Deleuze faz do “murmúrio anônimo” Cf. DELEUZE, op. cit., p. 19, 64, 65.
Denis Borges Diniz 12
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
tem sua existência na precariedade, na limitação, vale dizer, na ausência de um poder que
designa, que aponta, e é neste momento que reside sua força. Aquele exterior - aberto pelo
vazio da ausência do sujeito - que anuncia a brusca oscilação da linguagem na morte e na
origem, “não estabelece jamais o limite a partir do qual se delinearia finalmente a verdade.
[...] a origem tem a transparência que não tem fim, a morte dá acesso indefinidamente à
repetição do começo.” (FOUCAULT, 1990, p. 73). Surge aí a interessante ideia da verdade
como invenção da linguagem, ideia de inspiração nietzscheana e que permeia as análises
arqueológicas de Foucault.
Estes são alguns dos aspectos pelos quais a literatura como “palavra da
palavra” funciona ao revés do “pensamento do pensamento” (FOUCAULT, 1990, p. 15).
Decorre daí, do apagamento do sujeito, do discurso e da verdade a necessidade de se
pensar a ficção como lugar manifesto do impensado.
Referências Bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
_______. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
_______. Nietzsche, Freud e Marx. Trad. Jorge Lima Barreto. São Paulo: Princípio, 1997.
_______. O pensamento do exterior. Trad. Nurimar Falci. São Paulo: Princípio, 1990.
MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
TERNES, José. Michel Foucault e a idade do homem. Goiânia: Ed. UFG, 1998.
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A metafísica como disposição natural do ser humano
Pe. Edmar José da Silva1
Resumo: Podemos refletir sobre a metafísica a partir de duas óticas ou perspectivas: 1ª) Compreendendo-a como investigação sistemática e crítica do sentido último da realidade (sentido próprio da tradição filosófica ocidental); 2ª) Compreendendo-a como disposição natural do ser humano.
O objetivo da palestra é debruçar sobre a segunda perspectiva. Valendo-me do arcabouço teórico da antropologia do grande filósofo brasileiro, jesuíta, Henrique Cláudio de Lima Vaz, pretendo mostrar que o ser humano é essencialmente metafísico e que esta é uma exigência que nasce da sua complexa e nobre estrutura constitutiva.
Partindo da afirmação de que o ser humano é um animal metafísico (Schopenhauer), pretendo apresentar e aprofundar as categorias antropológicas estruturais de Lima Vaz que permitem tal afirmação, a saber: corpo próprio, psiquismo e espírito. No ápice do discurso antropológico, concluiremos que o homem é um ser espiritual (categoria do espírito) e que, portanto, possui um excesso ontológico que o abre para o relacionamento com as coisas, com os outros e com a transcendência (realidades metafísicas).
Introdução
A interrogação do homem sobre si mesmo sempre constituiu parte essencial do
discurso filosófico. A pergunta “quem é o homem?” sempre ocupou a centralidade das
buscas mais profundas do ser humano porque a resposta a esta interrogação não é
secundária e não se refere a um objeto que está fora de si, mas esclarece o seu próprio ser e
agir. Como afirma o filósofo jesuíta Lima Vaz:
Desde a aurora da cultura ocidental (cujos começos se situam convencionalmente em torno do século VIII a. C, na Grécia), a reflexão sobre o homem, aguilhoada pela interrogação fundamental “o que é o homem?” permanece no centro das mais variadas expressões da cultura: mito, ciência, filosofia, ethos e política. Nela emerge com fulgurante evidência essa singularidade própria do homem que é a de ser interrogador de si mesmo (LIMA VAZ, 1993, p. 09).
Agostinho afirma que mais cedo ou mais tarde, o ser humano acaba
descobrindo que é um problema para si mesmo: “Factus eram ipse mihi magna questio”
(AGOSTINHO, 1964, p. 113). O homem é o único ente existente no cosmos que interroga
sobre sua própria existência, busca a sua razão de ser, deseja entender o sentido do seu agir
no mundo e indaga sobre a real possibilidade de ser para além da realidade física.
1 Professor na FAM (Faculdade Arquidiocesana de Mariana), Mariana – MG.
Pe. Edmar José da Silva 14
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
No percurso da antropologia filosófica, encontramos diversas definições de ser
humano que não se excluem, mas colocam em relevo aspectos importantes e distintivos
deste ente especial, o ente humano: zoon logikón, zoon politikón, Imago Dei (Patrística),
homo faber, homo loquens, home ludens, etc. Schopenhauer o define como “animal
metafísico”. É baseado na afirmação deste renomado filósofo contemporâneo, que desejo
colocar em relevo a disposição natural e estrutural que existe em todo indivíduo humano
para a busca das realidades metafísicas. Meu objetivo não é aprofundar a afirmação a partir
da doutrina de Schopenhauer, mas da teoria antropológica do grande filósofo brasileiro,
Henrique Cláudio de Lima Vaz.
Aristóteles, no início da sua obra denominada Metafísica, afirma que “todos os
homens, por natureza, aspiram ao saber” (ARISTÓTELES, Met. I, 980 a 21). Para ele, há
uma hierarquização das ciências e o topo mais alto é reservado às ciências teoréticas,
dentre elas, a metafísica. Para ele, as ciências se dividem em poéticas, práticas e teoréticas.
As ciências poéticas estão ligadas ao conhecimento produtivo e visam a fabricação de
algum utensílio (Ex.: o homem que aprende a fazer uma mesa, roupas, vasos, etc.). As
ciências práticas estão ligadas ao uso do saber com finalidade moral (ética e política). As
ciências teoréticas, por sua vez, buscam o saber pelo saber, não têm finalidade prática ou
utilidade imediata. Segundo ele, a metafísica (física primeira) está no topo hierárquico de
qualquer conhecimento, por isso é a ciência mais elevada e mais nobre. O estudo da
metafísica faz com que os homens se assemelhem a deus, objeto da metafísica e o
metafísico por excelência. A metafísica (ciência primeira) à qual se refere Aristóteles é a
ciência mais elevada. Mas todo ser humano, ainda que não seja iniciado à ciência
metafísica, pelo simples fato de ser humano, tende a este conhecimento mais elevado,
porque possui racionalidade (Cf. ARISTÓTELES, Met. VI, 1025 b).
Ao elaborar a sua antropologia, Lima Vaz mostra que o homem não está
confinado nos limites e determinismos do material, biológico ou psíquico (apesar de
constituírem categorias essenciais do ser humano), mas ele é um ser espiritual e isso
significa que é um ser que possui uma abertura constitutiva que o torna um eterno fatigador
do infinito, um aspirador das realidades metafísicas, um possuidor de marcas da
eternidade, apesar de estar no tempo e no espaço. A abertura constitutiva do ser humano
nasce do seu excesso ontológico, da sua superabundância de ser, do “mais” que emerge da
sua estrutura constitutiva e que o impulsiona para o transcendente, seja ele real ou formal.
A metafísica como disposição natural do ser humano 15
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Afirmar que o homem possui uma exigência estrutural que conduz a buscas
metafísicas, não significa afirmar que todo homem precisa ter contato direto com esta área
do conhecimento filosófico. Assim, a exigência que nasce de sua estrutura humana é de
uma metafísica natural e não tanto acadêmica (como ciência).
Podemos entender o termo ‘metafísica’ de dois modos: como disposição
natural do ser humano ou como reflexão crítica e sistemática a respeito do fundamento
último das diversas realidades existentes. Valho-me de um precioso artigo do prof. Dr.
João Macdowell para clarear esta dupla possibilidade de compreensão do termo. Segundo
o professor Macdowell, pode-se afirmar que a metafísica, no sentido amplo e fundamental,
constitui uma disposição natural do ser humano, na medida “em que o ser humano,
enquanto dotado de razão, tende a buscar o sentido da existência e da realidade como um
todo” (MACDOWELL, 2002, p. 10). Ele afirma ainda que “a necessidade de motivar de
algum modo a própria compreensão da existência como um todo, é a expressão daquilo
que se pode chamar de constituição metafísica do espírito humano. Ser humano consiste
em abrir-se para a totalidade e entender-se a partir dela como horizonte da própria
existência” (MACDOWELL, 2002, pp. 10-11). A metafísica como foi entendida na
tradição ocidental, diferentemente da primeira perspectiva apresentada, é a interrogação
crítica sobre o sentido último da realidade, é a investigação sistemática e crítica do
movimento ascensional do espírito humano em busca do sentido global da realidade:
O mundo das coisas materiais, temporais e sujeitas à mudança e ao desaparecimento, é ultrapassado em direção ao seu fundamento, captado não pelos sentidos, mas pela inteligência, e concebido negativamente como imaterial, intemporal, imutável, por contraste com o que é percebido imediatamente (MACDOWEL, 2002, p.12).
Esta é a metafísica entendida como a ciência mais elevada, o conhecimento
filosófico por excelência. Esta metafísica é a busca acadêmica logicamente organizada dos
fundamentos, das causas ou dos princípios da realidade sensível. É uma importante área do
conhecimento da tradição filosófica ocidental, que ocupou a centralidade do pensamento
antigo e medieval, até perder espaço para o antropocentrismo (sujeito) moderno e sofrer
duras críticas da filosofia contemporânea. É esta compreensão de metafísica que vai
marcar decisivamente toda a história da civilização ocidental.
Clareados os dois sentidos do termo “metafísica”, resta afirmar que minha
reflexão não pretende discutir sobre os diversos problemas levantados pela metafísica
ocidental, na sua vertente sistemática e crítica, nem apresentar historicamente as diversas
Pe. Edmar José da Silva 16
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
afirmações ou negações do ser2, mas meu enfoque se direciona para o primeiro aspecto da
compreensão de metafísica, entendida como exigência natural e constitutiva da estrutura do
ser humano. Entendo que esta reflexão que ora apresentamos antecede a apresentação da
metafísica como área do conhecimento filosófico, visto que sem a disposição natural e
estrutural do ser humano, a metafísica enquanto ciência do ser não existiria. Neste discurso
que ora apresentamos, se entrelaçarão duas importantes áreas do saber filosófico: a
antropologia e a metafísica.
1. Categorias estruturais do ser humano
Filosoficamente, o termo categoria significa modos de ser3. Em Aristóteles, por
exemplo, a tábua das categorias quer revelar os diversos modos de ser que constituem o
ser. Nenhuma categoria isoladamente pode ser identificada com o ser. Assim também
acontece na antropologia filosófica de Lima Vaz. Ao tratar das categorias estruturais do ser
humano (corpo próprio, psiquismo e espírito), ele vai mostrar que cada uma delas é parte
constitutiva da estrutura humana, mas o ser humano na sua totalidade constitutiva não se
resume a nenhuma delas isoladamente. O ser humano é a totalização de todas as categorias.
A divisão da estrutura humana em categorias é apenas de ordem metodológica e
sistemática, para facilitar o discurso filosófico. No nível metafísico e existencial, o ser
humano é unidade estrutural e é compreendido como totalidade das categorias estruturais.
Portanto, o ser humano é uno no seu existir e todas as suas ações são praticadas com a
totalidade do seu ser. Neste sentido, podemos afirmar que é o ser humano todo que chora e
não somente o corpo humano, é o ser humano todo que sente e não somente o psiquismo
humano, é o ser humano todo que se abre à verdade e ao bem e não somente o espírito
humano. Baseado na dialética hegeliana, Lima Vaz retoma o conceito de Aufhebung
(suprassunção dialética: assumir elevando), para mostrar que cada categoria separadamente
não responde plenamente à pergunta “o que é o homem?”, mas depende das outras para
compreendê-lo. As categorias estão em íntima relação e uma suprassume a outra dada
imediatamente anterior a ela.
Ao tratar dos temas das categorias estruturais ou constitutivas do ser humano,
Lima Vaz vai mostrar que pelo corpo próprio o homem se abre para o contato imediato
2 Para quem desejar um aprofundamento maior da história da metafísica ocidental, conferir a obra:
MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. São Paulo: Paulus, 2002. Nesta obra, o autor apresenta a história da metafísica na perspectiva da sua construção, desconstrução e reconstrução.
3 Sobre o sentido do termo categoria, conferir: VAZ, 2003, nota de rodapé 21, p. 171.
A metafísica como disposição natural do ser humano 17
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com o mundo das coisas; pelo psiquismo, o homem se abre para o relacionamento
propriamente humano e pelo espírito, o homem se abre para a relação de transcendência. É
na abertura constitutiva para a transcendência que podemos constatar a vocação metafísica
de todo ser humano:
Em cada esfera das relações, observa-se a primazia de uma das estruturas que integram a totalidade do ser-homem: na relação de objetividade a primazia é dada ao corpo próprio, na relação de intersubjetividade é dada ao psiquismo, e na relação de transcendência a primazia é dada ao espírito. [...] A primazia à qual nos referimos significa que o corpo próprio é a condição primeira de possibilidade da nossa presença à realidade na forma de uma abertura constitutiva ao mundo, o psiquismo é a condição primeira de possibilidade da nossa presença à realidade na forma de abertura constitutiva ao outro (ou à história), o espírito é a condição primeira de possibilidade de nossa presença é realidade na forma de uma abertura constitutiva ao Absoluto. O homem é, pois, ser-em-relação, segundo a totalidade estrutural que o constitui como corpo, psiquismo e espírito. (VAZ, 1995, p. 14).
Esta abertura do ser humano possui níveis diferenciados, de acordo com as
categorias estruturais preponderantemente envolvidas: “Desta sorte, o ser humano pode
abrir-se ao mundo, num primeiro nível relacional [...] pode abrir-se ao outro e à história,
num segundo nível relacional [...] pode abrir-se ao Absoluto, num terceiro e mais elevado
nível relacional que se exprime pela categoria de transcendência” (VAZ, 2000, p. 24).
1.1 Corpo próprio
Para Lima Vaz, todo discurso antropológico-filosófico sério deve iniciar
analisando o tema do corpo, visto que o somático é o dado mais evidente no ser humano e
o situa de maneira imediata no mundo sensível. O corpo é o ponto de partida para se
compreender o homem e a sua presença no mundo:
O problema do corpo próprio ou, em termos filosóficos, o problema da categoria da corporalidade é não somente um problema fundamental para a Antropologia Filosófica, mas é o seu ponto de partida, pois a autocompreensão do homem encontra seu núcleo germinal na compreensão de sua condição corporal (VAZ, 1993, p.175).
Segundo o nosso filósofo brasileiro, o corpo humano pode ser pensado como
corpo físico, biológico ou corpo próprio.
Corpo físico é tudo aquilo que é constituído de matéria e ocupa espaço. Neste
sentido, o corpo humano possui esta dimensão material e, por isso, é também corpo físico e
está sujeito a todas as leis da física ou da química (Ex.: lei da gravidade). O corpo
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biológico é o corpo entendido como organismo vivo, com todas as suas funções e
organicidade. Como qualquer corpo biológico, está sujeito às leis da biologia (Ex.: comer,
beber, dormir, necessidades fisiológicas). Estes dois primeiros sentidos apresentam o corpo
humano na sua dimensão natural. Enquanto corpo físico, ele é semelhante ao corpo de
uma pedra ou de um artefato qualquer. Enquanto corpo biológico, ele se identifica com o
funcionamento dos corpos de qualquer ser vivo, qualquer animal. Mas o corpo humano é
mais do que isso! É corpo vivo (não no sentido biológico, mas intencional), é corpo
próprio (Cf. VAZ, 2003, p.176). O corpo próprio4 é o corpo que tem consciência da sua
própria corporalidade, é o corpo que não somente sente, mas se sente, não somente
percebe, mas se percebe, não somente toca, mas é tocado e se toca. Como afirma o filósofo
contemporâneo Merleau-Ponty: “O corpo é um visível que se vê, um tocado que se toca,
um sentido que se sente. O corpo é instrumento de percepção, e consciência perceptiva é
consciência existencial” (PONTY, 1999, p. 19).
O corpo é uma dimensão constitutiva do ser humano. Para ser humano é
necessário ter corpo. O homem não somente tem corpo, mas é corpo, ou seja, este faz parte
da sua constituição ontológica: “No discurso antropológico, a realidade do corpo enquanto
humano é afirmada como constitutiva da essência do homem, isto é, como afirmável do
seu ser” (VAZ, 1993, p.182). O homem é ser humano também por causa da corporalidade.
Como ser composto, a dimensão corpórea é essencial para a sua existência:
A importância capital de que a dimensão se reveste para o homem: a somaticidade é um componente essencial do ser do homem. Sem corporeidade o homem não é mais homem, porque não pode mais realizar muitas atividades que são tipicamente suas, como o sentir, o falar, o cantar, o jogar, o trabalhar, etc. (MONDIN, 1983, p. 38)
Dentre as diversas funções do corpo humano, podemos ressaltar a sua
importância para situar o homem no mundo, historicizar sua existência, individualizar a
sua presença no mundo, possibilitar um contato imediato e originário com o mundo:
Graças à minha somaticidade, eu estou situado em uma determinada posição, estou fechado dentro de certos confins, sou diferente dos outros seres: sou eu mesmo e não outras coisas; eu tenho a minha personalidade (MONDIN, 1983, p. 38)
4 O termo corpo próprio é específico da filosofia contemporânea e o autor o toma emprestado para
explicitar a categoria do corpo no seu aspecto propriamente humano (Cf. VAZ, 2033, nota de rodapé nº 2, p. 184)
A metafísica como disposição natural do ser humano 19
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Os alemães usam a expressão korper para falar do corpo físico-biológico e Leib
para retratar o corpo propriamente humano (VAZ, 1993, p. 176). O corpo humano
enquanto corpo natural (aspecto físico-biológico) está sujeito às determinações e limitações
próprias de sua realidade, mas por estar inserido numa realidade estrutural mais ampla, tem
capacidade de transcender os limites impostos pelo aspecto físico-biológico até certo
ponto. Por exemplo: um atleta pode conseguir, por causa da sua determinação e força de
vontade, superar os limites do próprio corpo. Neste sentido, até a dimensão corporal do ser
humano possui algo de metafísico. O ser humano é capaz de dar intencionalidade ao seu
corpo e transcender o nível físico. O corpo é para o homem um corpo vivido. Por meio do
corpo próprio, o estar-no-mundo se estrutura em níveis: nível físico-biológico (corpo
natural); nível psíquico (sexualidade), nível social (simbólica do corpo); nível cultural
(adestramento e cuidado estético do corpo). (Cf. VAZ, 1993, p. 177-178).
O corpo é também uma dimensão expressiva do ser humano. Pelo corpo o ser
humano pode revelar-se ou esconder-se:
Nós sabemos que o homem pode esconder-se atrás do próprio rosto, pode colocar uma máscara e representar um papel que não lhe é próprio: com as suas palavras ele pode não só manifestar, mas também ocultar as próprias ideias e intenções. A corporeidade do homem atesta-nos que ele pode distanciar-se de si mesmo, fechar-se, recusar-se ao outro. (W. KASPERS, 1975, p. 279)
A somaticidade humana é “epifania” de algo mais profundo, é expressão e
manifestação de alguma coisa que ultrapassa a própria dimensão corporal. Pode-se
conhecer muito do íntimo do ser humano através da sua corporalidade: “Assim o corpo é
condição de possibilidade da manifestação humana. A pessoa expressa e manifesta sua
intimidade precisamente através do corpo” (STORK et. Ali, 2005, p. 88). O rosto e o
conjunto de ações corporais revelam que há algo a mais no ser humano, além da própria
somaticidade:
A cara representa a pessoa externamente. Costuma-se dizer que ‘a cara é espelho da alma’: o homem não se limita a ter cara, mas tem rosto. O rosto humano, especialmente o olhar, é tremendamente interpelante e significativo. A intimidade é expressa também através de um conjunto de ações expressivas. Através delas, o homem fala a linguagem dos gestos: expressões faciais (desprezo, alegria), das mãos (cumprimento, ameaça, ternura), etc. Através dos gestos o homem expressa o seu interior. (STORK et ali, 2005, 88).
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A dimensão somática do ser humano, ao mesmo tempo em que está marcada
pelos limites próprios da matéria, está impregnada de elementos psíquicos e espirituais que
a fazem transcender os seus próprios limites. Por que não afirmar que já na corporeidade
há sinais visíveis da abertura constitutiva do ser humano para as realidades metafísicas?
A somaticidade em si mesma parece inexoravelmente bloqueada entre certos confins e exposta à corrupção. Mas, ao mesmo tempo, a somaticidade humana leva consigo alguns sinais que contrastam com estas misérias. É uma somaticidade cheia de consciência, aberta no ser, estendida para a felicidade mais completa. É uma somaticidade que transcende a própria natureza da somaticidade e se transforma em epifania do espírito (MONDIN, 1983, p. 41)
No final do discurso antropológico sobre o corpo próprio, Lima Vaz afirma que
o homem é e não é seu corpo. Este é não significa que ele se reduz á corporalidade, mas
que a dimensão somática é parte essencial da estrutura humana. Ou se tem corpo e é ser
humano, ou não se é ser humano. O corpo faz parte da sua essência composta. Não é seu
corpo porque a compreensão do ser humano na sua totalidade, impele o discurso
antropológico para outra categoria importante: o psiquismo (Cf. AF I, PP. 182-183). Aliás,
a própria compreensão do corpo humano como corpo próprio (pleno de intencionalidade e
autoexpressão do sujeito) já nos impele para o estudo de outra categoria antropológica
estrutural que coloque em evidência a dimensão da interioridade do ser humano no seu
aspecto psíquico.
A categoria do corpo próprio coloca o ser humano em contato imediato com as
realidades do mundo externo (realidade das coisas). Como o ser humano não é somente
corpo, ele dá um sentido propriamente humano ao mundo que o cerca.
1.2. Psiquismo
O psiquismo é definido por Lima Vaz como primeiro estágio de
interiorização do mundo, como captação do mundo exterior e tradução ou reconstrução no
mundo interior (VAZ, 1993, p. 188). Se a categoria do corpo próprio coloca o homem em
contato imediato com o mundo exterior, a categoria do psiquismo tem um aspecto
egocêntrico, porque está intimamente ligado ao modo como o sujeito internaliza todas as
experiências do mundo externo. Este caráter egocêntrico será superado somente no plano
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noético espiritual5. Há nesta categoria uma dialeticidade antropológica entre interioridade
e exterioridade. O mundo interior do sujeito é construído a partir de todas as suas
experiências vividas desde o seio materno e, ao mesmo tempo, estas experiências
internalizadas filtram o modo como ele lida com os acontecimentos do mundo exterior.
Esta categoria está situada numa posição mediadora entre a exterioridade do corpo próprio
e a absoluta interioridade do espírito. Está numa posição intermediária entre a experiência
corporal e a experiência espiritual.
Desde o ponto de vista filosófico, o eidos do psiquismo se define por esta posição mediadora entre a presença imediata no mundo pelo “corpo próprio” e a interioridade absoluta (ou a presença de si a si mesmo) pelo espírito. O psíquico se organiza segundo um espaço-tempo que não coincide com o espaço-tempo físico-biológico, ao qual está ligado o corpo, mas tem suas dimensões e seus ritmos próprios. Ele ordena o fluxo da vida psíquica em termos de percepção, representação, memória, emoções, pulsões. (VAZ, 1993, p. 193)
O estar-no-mundo através do psiquismo não denota mais presença imediata,
como acontecia com o corpo próprio, mas presença mediatizada pela percepção e pelo
desejo. Há uma passagem do estar-no-mundo para o ser-no-mundo via interiorização do
mundo ou construção do mundo interior. O psiquismo se dá em torno de dois eixos que são
a imaginação, que trabalha com as representações e o afetivo que está ligado às pulsões
psíquicas. “É o sujeito exprimindo-se fundamentalmente no “sentimento de si” e que se
consumará na unidade espiritual do eu inteligível” (VAZ, 1993, p.190).
O ser humano percebe o mundo exterior e se relaciona com ele a partir das
representações, imaginações, pulsões, desejos, memórias, emoções, etc. Nem sempre ele se
relaciona com as realidades externas (coisas ou pessoas) a partir do que elas realmente são,
mas a partir do que sente, imagina, representa, deseja, lembra ou projeta delas. É a
interferência do psiquismo no modo de internalizar as experiências do mundo externo:
A sensação só nos faz tomar consciência do próprio corpo. O sentimento, ao contrário, nos abre à apreciação do que nos rodeia. Além disso, os sentimentos geram uma conduta, enquanto que a sensação termina no senti-la. [...] Os sentimentos e as paixões são um mundo muito complexo, no qual intervém como em tudo, o psiquismo humano, a razão e a vontade. (STOCK, 2005, 61- 62)
5 Próxima categoria a ser estudada. A mais fundamental do discurso antropológico de Lima Vaz.
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O psiquismo abre o ser humano para o relacionamento propriamente humano,
chamado por Lima Vaz, de relacionamento entre duas totalidades intencionais. Apesar da
tendência egocêntrica do psiquismo, ele se abre ao relacionamento com o outro humano:
a reciprocidade constitutiva da relação com o outro mostra, assim, a impossibilidade do solipsismo. [...] Ora no termo da relação intersubjetiva, o sujeito tem diante de si um outro sujeito e deve assumi-lo no discurso de autoafirmação de si mesmo: vale dizer, tem diante de si uma outra infinidade intencional. (VAZ, 1995, 65)
Percebemos, portanto, que até na dimensão psíquica o ser humano manifesta
uma abertura para as realidades metafísicas. O psiquismo lida com realidades que não são
físicas: sentimentos, desejos, imaginação, aspirações (são todas realidades propriamente
metafísicas). Schopenhauer considera a vontade (realidade psíquica) como o aspecto mais
metafísico do ser humano. Isso nos leva a concluir que até no aspecto psíquico, o ser
humano é um animal metafísico. O seu psiquismo não está apenas ligado ao aspecto físico-
biológico, mas ao transcende.
No final do discurso sobre o psiquismo, Lima Vaz afirma que o homem é e não
é seu psiquismo. É seu psiquismo, porque este faz parte da sua essência. O homem não é
seu psiquismo porque a autoafirmação do sujeito na amplitude transcendental ultrapassa o
eidos do psiquismo, ou seja, é impossível esgotar no psiquismo o movimento dialético de
autoafirmação do sujeito. O discurso antropológico é impelido para além da fronteira do
somático e do psíquico e reclama outra categoria: o espírito (VAZ, 1993, p. 195).
1.3 Espírito (noético-pneumática)
A categoria do espírito constitui o ápice do discurso sobre a unidade estrutural
do ser humano6. Sem esta categoria, a compreensão do ser humano ficaria fragmentada e o
discurso antropológico ficaria incompleto: “Com a categoria do espírito ou com o nível
estrutural aqui designado como noético-pneumático, atingimos o ápice da unidade do ser
humano” (VAZ, 1993, 201).
O termo espírito é herdado da teologia e aplicado ao ser humano por analogia.
Não é um termo univocamente antropológico. Aplica-se ao ser humano por analogia de
atribuição: o análogo superior é o espírito infinito ou o absoluto. Neste sentido, pelo
6 Na nota de rodapé nº 1, p. 226, vasta bibliografia sobre o tema do espírito: cf. VAZ, 1993.
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espírito o ser humano tem marcas do infinito, supera as determinações e as contingências
da sua realidade física e psíquica.
Lima Vaz chama a categoria do espírito de dimensão noético-pneumática do
ser humano. O termo noético (noésis em grego) revela que o ser humano é pensamento,
inteligência ou razão. O termo pneumático (pneuma em grego) revela que o ser humano é
espírito, é sopro, é liberdade. Segundo o autor, pela razão o ser humano se abre à verdade e
pela liberdade se abre ao bem. Em poucas palavras: a categoria do espírito faz com que o
ser humano se abra ao ser, ao transcendente, aos transcendentais do ser que, em última
análise, se correlacionam perfeitamente com o ser. É esta dimensão que mostra que o ser
humano é realmente um ser metafísico. Nela fica evidente que há no ser humano uma
abertura constitutiva para a busca e o acolhimento do ser. Aqui se dá o encontro frutuoso,
mas rechaçado por alguns modernos, entre metafísica e antropologia.
Ao nos elevarmos, no homem, ao nível do espírito, vemos anunciar-se a noção de espírito como coextensiva à noção de ser entendida segundo as suas propriedades transcendentais de unidade, verdade e bondade. Ela constitui, portanto, o elo conceptual entre a Antropologia Filosófica e a metafísica. Com efeito, na sua estrutura espiritual ou noético-pneumática, o homem se abre, enquanto inteligência (nous), à amplitude transcendental da verdade, e enquanto liberdade (pneuma), à amplitude transcendental do bem: como espírito ele é, pois, o lugar do acolhimento e da manifestação do ser e do consentimento ao ser: capax entis (VAZ, 1993, p. 202)
Dentro da tradição histórica, o termo espírito foi entendido de vários modos.
Inicialmente foi entendido como pneuma, ou seja, como princípio interno ou forma
superior de vida. Isso revela que no ser humano, vida não é apenas bios (vida natural), mas
zoé (vida com qualidades humanas). Espírito foi compreendido também como nous, ou
seja, como forma mais alta de conhecimento. Neste sentido, o ser humano possui não
somente o conhecimento empírico, mas se abre também para a contemplação, considerada
pelos gregos o mais alto grau de conhecimento. Espírito foi entendido também como logos.
Somente no ser humano a palavra inteligível é manifestação do pensamento. A linguagem
humana revela a dimensão espiritual do ser humano. O espírito foi compreendido também
como synesis, capacidade que o ser humano tem não somente de conhecer, mas conhecer
que conhece ou conhecer a si mesmo. Estes cinco tipos de compreensão do espírito
unificam os traços fundamentais da experiência espiritual (Cf. VAZ, 1993, p. 203- 204).
Para Lima Vaz, o espírito suprassume o somático e o psíquico. Suprassumir
não é suprimir, mas assumir elevando a uma condição mais elevada. Existe no espírito
Pe. Edmar José da Silva 24
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humano um duplo movimento: movimento ascendente, em que o espírito suprassume
elevando o somático e o psíquico e o movimento descendente, em que o espírito se
rebaixa, indo ao encontro do psíquico e do somático. É este movimento dialético do
espírito que confere ao corpo e ao psiquismo um estatuto verdadeiramente humano. É ele
quem os eleva a uma condição superior (Cf. VAZ, 1993, p. 221- 22).
Não podemos conhecer o espírito humano, mas sabemos que o ser humano é
espiritual por causa das diversas atividades que revelam que há algo superior nele. Pelo
espírito o mundo é compreendido e significado pelo homem, tornando-se mundo humano.
É o mundo da linguagem e das formas simbólicas. A cultura, nas suas diversas facetas, é
manifestação da dimensão espiritual do ser humano: linguagem, religião, política, ética,
arte, vida social. São manifestações espirituais, por isso, a cultura é chamada de totalidade
espiritual. O homem possui uma vida segundo o espírito e isso se manifesta através dos
atos espirituais:
A vida segundo o espírito será, portanto, para o homem, o exercício dos atos que manifestam o espírito como o princípio mais profundo e essencial da vida humana. [...] O ato espiritual é o ato pelo qual se exerce e se manifesta no homem a vida do espírito. Como tal ele é, por excelência, o ato humano, e seu fundamento é a estrutura ontológica total do ser humano. (VAZ, 1993, pp. 240-241)
Se o corpo coloca o homem em contato imediato com o mundo e o psiquismo
está ligado às dimensões das sensações e do instinto no ser humano, o espírito o abre para
os transcendentais do ser: verdade, unidade, bondade e beleza. O espírito aponta para o que
existe de mais específico na estrutura humana, aponta para a sua dimensão de abertura
constitutiva para as diversas realidades: coisas, pessoas e o absoluto. Pelo espírito, o
homem se abre ao transcendente formal (verdade) ou real (Deus):
A vida segundo o espírito manifesta-se como vida propriamente humana. Ela o é justamente em virtude da correspondência transcendental entre o espírito e o ser. E como o homem existe na sua abertura transcendental para a universalidade do ser ou na sua adequação ativa com o ser, o homem existe verdadeiramente enquanto espírito, ou a vida propriamente humana é a vida segundo o espírito. (VAZ, 1993, p. 239)
Descobrir a estrutura espiritual do ser humano é descobrir as reais condições de
possibilidade do seu agir, é perceber que ele é um ser estruturalmente aberto. O espírito,
apesar de ser a interioridade absoluta do sujeito, ao invés de circunscrevê-lo
egoisticamente em si mesmo, o abre para o Outro absoluto:
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É nesse nível que o ser do homem abre-se necessariamente para a transcendência: trata-se de uma abertura propriamente transcendental, seja no sentido clássico, seja no sentido kantiano-moderno, que faz do homem nesse cimo do seu ser que é também, para usar outra metáfora, o âmago mais profundo da sua unidade, um ser estruturalmente aberto para o Outro. No horizonte do espírito, o Outro desenha necessariamente seu perfil como outro relativo na relação intersubjetiva, e se anuncia misteriosamente como Outro absoluto na relação que deverá ser dita propriamente relação de transcendência. (AF I, 201)
No final do discurso antropológico, podemos afirmar que o homem é
estruturalmente um ser espiritual, ou seja, um ser metafísico. Aqui não há a negação das
categorias do corpo e do psiquismo, visto que o espírito é aquela dimensão mais própria e
mais específica do ser humano e é ele quem salvaguarda a unidade das categorias
estruturais.
Podemos concluir afirmando que a vida propriamente humana é a vida segundo
o espírito. Todas as vezes que o homem age envolvendo a sua razão e liberdade, ele está
agindo de modo propriamente humano. Joseph de Finance (filósofo francês, neotomista)
distingue ações do homem e ações humanas. As ações do homem são todas as ações feitas
pelo ser humano, inclusive aquelas que são ditadas pelos instintos. As ações humanas, ao
contrário, são somente aquelas ações espirituais em que concorrem a razão e a liberdade.
Do ponto de vista ético, somente as ações humanas podem ser julgadas, porque o resto é
instintivo.
O espírito é interioridade absoluta que ao invés de fechar o ser humano em si
mesmo, pelo contrário, gera abertura não somente para as coisas e os demais seres
humanos, mas uma abertura radical para o ser, para o sentido. A categoria do espírito
permite a unidade do ser humano. Nela há a superação da pura exterioridade e
imediaticidade do corpo próprio e a interioridade egocêntrica do espírito. Pelo espírito o
homem se torna capax Dei, capax entis. O espírito revela o excesso ontológico que existe
na estrutura humana. E é por causa deste excesso ou superabundância de ser que o ser
humano se apresenta como sempre inquieto e sempre aberto a um “mais”. Ele nunca se
realiza somente nas coisas físicas ou nos relacionamentos meramente humanos, mas aspira
e busca o transcendente.
É justamente no encaminhar-se para a transcendência que o itinerário perfaz a reflexão total do espírito sobre si mesmo e o sujeito pode reencontrar-se no nível mais profundo do seu ser, onde, enquanto espírito, acolhe o Absoluto presente como verdade, como bem e como ser a todo ato de inteligência e liberdade. (VAZ, 1995, p. 96)
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A estrutura constitutiva do ser humano o abre para realidades metafísicas. Pelo
fato de ser um ser espiritual, o ser humano está sempre em busca do absoluto sentido de
valor do seu ser e agir, bem como do ser das outras realidades que o cercam:
É desse excesso ou dessa superabundância do espírito que procede, de resto, o dinamismo mais profundo da história e a inexaurível gestação de formas de busca ou expressão do absoluto que acompanha o curso história e que é a atestação mais evidente da presença da relação de transcendência na constituição ontológica do sujeito. (VAZ, 1995, p. 93)
O espírito é inteligência e amor. Como inteligência o ser humano acolhe o ser e
como amor ele vê o ser como dom.
Segundo Lima Vaz, nem a ideologia própria da razão técnico-cientifica pode
anular a dimensão metafísica do ser humano:
O ato de julgar algo ou alguma coisa (o juízo), ato banal e infinitamente grave, permite entrever na alma do homo technicus a subsistência do homo metaphysicus. Afinal o universo técnico-científico não consegue deixar de revelar uma dimensão inequivocamente metafísica, exatamente ao pretender substituir a própria metafísica, a qual por sua vez aponta para o problema da existência na verdade o mais metafísico dos problemas. (VAZ, 1997, p. 118)
Conclusão
Como se percebe, a metafísica é uma disposição natural do ser humano. Todo
ser humano, pelo simples fato de ser humano, já possui na sua própria estrutura
constitutiva uma abertura para um “mais”, possui um desejo metafísico, para usar a
linguagem de Lévinas:
O Outro metafisicamente desejado não é «outro» como o pão que como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo, como, por vezes, eu para mim próprio, este «eu», esse «outro». Dessas realidades, posso «alimentar-me» e, em grande medida, satisfazer-me, como se elas simplesmente me tivessem faltado. Por isso mesmo, a sua alteridade incorpora-se na minha identidade de pensante ou de possuidor. O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro. (LEVINAS, 1988, p. 21)
Ser metafísico não é luxo ou privilégio intelectual de um grupo que dispõe de
tempo e recurso financeiro para propor interrogações a respeito do fundamento último das
realidades diversas. No sentido mais amplo e fundamental, podemos afirmar com o prof.
A metafísica como disposição natural do ser humano 27
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Macdowell, que “o ser humano é essencialmente metafísico: a metafísica é consequência
necessária da sua racionalidade.” (MACDOWELL, 2002, p. 11). Ao descobrir o seu
próprio ser, o homem desvela sua ordenação essencial e natural ao absoluto ou às
realidades metafísicas: “no manifestar-se a si mesmo ou na reflexão sobre si mesmo, o ser
humano desvela sua ordenação essencial ao absoluto” (VAZ, 2000, p. 24).
Dentro desta perspectiva, podemos afirmar que o homem é um cidadão de dois
mundos, como afirmava o filósofo moderno Kant. Ele habita o mundo sensível do
conhecimento natural e o mundo suprassensível da liberdade (cuja lei é ditada pela razão).
Na perspectiva de Lima Vaz, o homem habita o mundo sensível da matéria, mas pelo fato
de ser espiritual, transcende os limites da própria materialidade. Está sujeito às limitações
impostas pelo mundo físico-material, mas tem condições de transcender este mundo pela
sua capacidade racional. Ele eleva a matéria a uma dignidade maior e reduz o espírito,
porque nele o metafísico toca o físico. Aproveitando ainda as palavras de Giordano Bruno,
o homem se situa no limite entre o tempo e a eternidade, participando de ambos. Ouso
acrescentar ainda mais: o homem se situa entre o as realidades contingentes, mas
procurando o necessário que dê sentido à sua existência e à suas ações; se situa entre o que
é relativo, procurando o absoluto; se situa entre o efêmero, procurando o estático. Há no
ser humano um desejo de permanência e de eternidade que nasce da sua própria estrutura
ontológica.
Para Lima Vaz, a experiência mística, compreendida no sentido mais amplo
como “forma superior de experiência de natureza religiosa, ou filosófico-religiosa” (VAZ,
2000, p. 9), seja ela especulativa (mística como prolongamento da experiência metafísica)
ou mistérica (mística como experiência do divino), se funda inconfundivelmente na
estrutura espiritual do ser humano: “A experiência mística deve ser reconhecida como fato
antropológico singular, cuja singularidade só pode ser reconhecida e interpretada nos
quadros de uma adequada filosofia do ser humano” (VAZ, 2000, 27). Isso quer dizer que
toda experiência mística, que por si mesma é de cunho metafísico, só é possível por causa
da estrutura constitutiva do ser humano que o habilita para tal. É na categoria espiritual do
ser humano que reside a abertura para qualquer tipo de experiência metafísica.
O discurso que ora apresentamos constitui a base e fundamento da realização
da metafísica ocidental. Nenhum outro ser no mundo faz metafísica, somente o ser
humano. Isso porque somente ele possui disposição estrutural e natural para tal. Portanto,
pode-se questionar a respeito da validade do discurso metafísico, mas não da disposição
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natural que o homem possui para fazê-la. Pode-se questionar a respeito do valor do
discurso metafísico, considerando-o um discurso violento e totalizante, mas não sobre a
capacidade natural que o ser humano tem de buscar o sentido das diversas realidades. Os
questionamentos dirigidos à metafísica enquanto ciência ou ao discurso sobre o ser, não
invalidam a reflexão feita, pelo contrário, somente atestam a capacidade que o ser humano
tem, pelo fato de ser um ente espiritual, de estar sempre revendo os seus conceitos e o seu
modo de interpretar as diversas realidades e a si mesmo.
Concluímos esta conferência afirmando:
a metafísica não somente é importante, como também é uma necessidade. Para o homem, a metafísica é uma exigência biológica, ou seja, é uma exigência conatural, primária e fundamental, como a necessidade do comer, do dormir e do vestir-se. O homem é naturalmente metafísico, um animal metaphysicum, como o chama Schopenhauer, porque é dotado além do corpo também de psiquismo e espírito. Ora, o espírito o direciona necessariamente para além do físico, da matéria, do natural, o faz superar as barreiras espaço-temporal e penetrar no transcendente (MONDIN, 1999, p. 12, tradução nossa).
Como afirma Cornélio Fabro, o homem que renuncia à metafísica recai na
animalidade (cf. FABRO, 1967, p. 130). Fazer metafísica, ainda que não de forma
acadêmica, é atividade própria, específica e primária do ser humano. O homem não é
somente um registrador dos eventos que o circundam ou um potentíssimo computador, ele
não é somente memória ou fantasia, ele é antes e sobretudo, razão e esta capacidade o leva
a levantar interrogativos, a por questões, a buscar o porque de sua existência e de tudo
aquilo que lhe acontece (Cf. MONDIN, 1999, p. 13).
O próprio Kant admitia que a metafísica não é uma invenção arbitrária de uma
época particular da humanidade, mas uma exigência fundamental da razão humana:
é uma disposição natural da nossa razão que tem gerado a metafísica como a sua filha predileta: geração que como qualquer outra geração do mundo, não é devida ao capricho do acaso, mas a um germe originário, que está pré-formado sabiamente para altíssimos fins. A metafísica é talvez, mais do que qualquer outra ciência, já predisposta em nós, nos seus traços principais (KANT, 1988, p. 130-131).
Portanto, “viva” a metafísica! Viva a metafísica porque ela merece louvor,
aplausos e aclamações e viva a metafísica porque é algo tão enraizado na estrutura humana
que é impossível o vivente humano abdicar-se dela.
A metafísica como disposição natural do ser humano 29
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Bibliografia
AGOSTINHO. Confissões. SP: Martin Claret, 2002.
ARISTÓTELES. Metafísica. SP: Editora Abril, 1973.
FABRO, Cornélio. L’uomo e Il rischio di Dio, Roma: ESD,1967.
FINANCE, Joseph de. Cittadino di due mondi. Vaticano: editrice vaticana, 1993.
KANT. Prolegômenos a toda metafísica futura: que queira apresentar-se como ciência. Lisboa: Edições 70, 1988.
KASPERS, K. Gesú Il Cristo, Queriniana: Brescia, 1975.
LEVINAS, E. Totalidade e infinito. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1988.
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MONDIN, Battista. O homem quem é ele? SP: Paulinas, 1983.
___________. Ontologia e metafísica. Bologna: ESD, 1999.
PONTY, Merleau. Fenomenologia da percepção. 2ª ed. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. SP: Martins Fontes, 1999.
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STORK, Ricardo e ECHEVARRÍA, Javier. Fundamentos de Antropologia. Um ideal de excelência humana. Trad. Patrícia Carol Dwyer. SP: Instituto brasileiro de Filosofia e ciência. Raimundo Lulio, 2005.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia Filosófica I, SP: Loyola, 3ª ed., 1993.
___________. Antropologia Filosófica II, 2ª ed.,1995.
____________. Escritos de Filosofia III: filosofia e cultura. SP: Loyola, 1997.
____________. Experiência mística e filosofia na tradição Ocidental. SP: Loyola, 2000.
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional
Pe. Joaquim Cavalcante1
Introdução
Gostaria de iniciar minha fala agradecendo a Equipe Organizadora desta
Semana Acadêmica, pela delicadeza do convite que me oferece a oportunidade deste
fidalgo e fraterno convívio. Promover eventos como este enobrece, fecunda e agiganta este
Instituto, cujo nome é uma perene proclamação da vitória de Cristo que por amor nos
salvou na cruz do Calvário. Os protagonistas não são os que sabem mais, são os que mais
se empenham por isso eles marcam a história por onde passam. Foi me pedido que falasse
algo sobre a Divina Liturgia. E, sem nenhuma pretensão, eu aceitei expor algo sobre “A
liturgia como epifania do mistério trirrelacional”. Falo sobre a liturgia em um lugar
privilegiado e em um momento especial, pois estamos celebrando os 50 anos da
Sacrosanctum Concilium, o maior documento da história sobre a liturgia. Falo em um
momento singular da minha vida, pois este ano, estou celebrando meus 25 anos de
ministério sacerdotal. Boa parte desse tempo foi dedicada ao estudo e ao ensino da liturgia.
Desenvolvimento
Para entrar no assunto, tomo a compreensão teológica arquetípica da liturgia
como mistério. Isto é, a liturgia, antes de tudo, é uma ação teândrica-eclesio-trinitária. Por
isso mesmo pode ser pensada como epifania do mistério trirrelacional. O mistério
trirrelacional é o mistério trinitário, é o mistério de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. É o
mistério da fé que professamos como mistério trinitário e celebramos como mistério
trirrelacional.
A Trindade é a íntima constituição de Deus em si mesmo. Deus é
absolutamente Uno e relacionalmente trino. Isto é em uma só natureza ou essência
subsistem três Pessoas distintas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O mistério trirrelacional
é o mistério da Trindade pensada na teologia como Trindade imanente e econômica e
celebrado, na liturgia, como Trindade litúrgica. A trirrelacionalidade se afirma na
1 Professor, Escritor e Doutor em Teologia pela PUG-Roma
A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional 31
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
indivisível consubstancialidade e a distinção de pessoas e se dá na mais absoluta e
indivisível comunhão.
Reportemo-nos para o Monte Tabor. Tomo o evento da transfiguração para
pensar a liturgia na perspectiva da fenomenologia do mistério. A celebração litúrgica é
locus fenomenológico da economia do mistério. Nesse sentido a liturgia é uma realidade
que pode ser pensada também na ótica da metafísica. Antes de tudo, a liturgia é uma ação
simbólica apontando para além de. E na economia liturtico-sacramental o simbólico fala,
comunica e remete para outra realidade sempre maior do o que vemos e tocamos.
O símbolo quer sempre unir o real ao que lhe transcende. A simbologia é a
gramática da celebração. É, também, a linguagem do amor. A linguagem do amor tem
necessidade da ritualidade simbólica para que o amante expresse à amada seu real
sentimento e vice e versa. Por meio da fenomenologia da linguagem dos signos o amado se
dá, se explica e se comunica com a sua amada e a amada com seu amado. Cada elemento e
gesto simbólico traz, em si, a força do fascínio que transcende o efêmero e enche o
transitório de sentido infinito. É nesse sentido que entendo a divina liturgia como evento
metafísico e mistagógico2.
Enquanto a semiótica “é ciência que investiga os mecanismos mentais que
conduzem ao entendimento dos signos e sua significação”, a liturgia é ciência que, por
meio da ritualidade, signos e linguagem introduz no mistério e expressa o mistério. Essa
ação é fenomenológica físico-real marcada pela ótica dos sinais e da significação da
linguagem da transcendência. Celebrar é transcender. É pregustar na terra o sabor do céu.
Celebrar é mergulhar no transcendente fascinante presente na imanência transitória.
Com essas premissas, pode-se entender melhor o ser humano na sua
multidimensionalidade. Pois, enquanto celebra, ele vai se afirmando, também, como ser
lúdico, religioso, pensante e transcendente.
O homem não nasceu para ser enquadrado em nenhum esquema porque, ele
transcende todas as estruturas. Custei compreender o significado do verbo transcender. Foi
o grande baluarte do martírio moral, Cardeal François van Tuan, em meio às atrocidades
do comunismo selvagem do Vietnã, a quem tive a graça de ouvi-lo algumas vezes na
cidade de Pedro, que me fez compreender melhor o que quer dizer transcender. Para mim,
ele foi o ícone do homem que soube transcender estruturas de confinamento. Pela força da
2 Mistagogia é uma palavra composta de duas partes: mist’ + agogia. Mist’ vem de mistério e agogia tem a ver com ‘conduzir’, ‘guiar’... Podemos traduzir mistagogia como a ação de guiar para dentro do mistério.
Pe. Joaquim Cavalcante 32
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
fé, ele transcendia as paredes gélidas daquela cela escura e, por mais de nove anos, com
um fragmento de pão e umas gotas de vinho, ele fazia da sua mão trêmula o altar, a patena
e o cálice da oblação. E aquele cárcere, palco de tortura, enchia-se daquela glória do Tabor.
Por isso transcender é ir além de todos os limites.
O homem, animado pelo fenômeno da fé, irrompe todas as grades e
experimenta na história e no mundo o que ele espera em definitivo. Tomemos outro
exemplo simples que emana da celebração eucarística. No diálogo inicial da proclamação
da Anáfora, o Hierarca (para ser fiel à linguagem de Dionísio Areopagita), nos convida a
elevar o nosso coração ao alto. Segundo Cirilo de Jerusalém, elevar o coração ao alto é ter
o coração em Deus3. Pergunto: pode haver experiência de transcendência maior e melhor
que essa, está na terra com o coração em Deus?
Também na celebração eucarística somos convidados a unir nossa voz à voz
dos anjos e dos santos e na intimidade de filhos e filhas entoamos com as cortes celestes,
sem diafonia, o triaghion dos anjos narrado por Isaias 6,3. Cantar a sinfonia dos anjos já é
uma grande coisa. Cantar com os anjos e santos, não é uma esplêndida experiência de
transcendência? Qual outra ciência possibilita tamanha experiência metafísica?
A liturgia como epifania do mistério de Deus nos faz sair do íntimo e secreto
invólucro útero da história e nos insere no sacrário do amor que é o coração de Deus. Ao
mesmo tempo, “o poder transformador do Espírito Santo na liturgia apressa a vinda do
reino e a consumação do mistério da salvação4”.
Liturgia, epifania do mistério de Deus. Deus, palavra que evoca adoração na
experiência da fé e negação frequente no palco dos ditadores do império relativista e
agnóstico. Com frequência, proclamam, sem escrúpulo, em muitas universidades e centros
acadêmicos que Deus não existe. Outros ridicularizam a Igreja numa orquestra de ruídos
estridentes com a intenção de torná-la refém de um silêncio obsequioso e covarde. Para
isso, alguns se referem à Igreja de Cristo como uma simples instituição responsável pelo
atraso histórico e as tragédias da humanidade. Tal discurso é falso e injusto.
Penso que, tais vozes usam essa orquestra dissonante, para afirmar duas coisas:
que o mundo criado por Deus não tem mais lugar para ele e que a Igreja de Deus não é
lugar para o homem. Tais afirmações parecem-me carentes de sentido histórico e espiritual.
Por isso celebrar é afirmar a primazia de Deus no mundo. A liturgia como epifania do
3 Cirilo de Jerusalém, quinta catequese mistagógica, 4. 4 Catecismo da Igreja Católica, n° 1107.
A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional 33
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
mistério, é o momento singular da afirmação da fé eclesial no Deus Uno e trirrelacional. É
nesse sentido que a Igreja opera com a Trindade, na liturgia, atualizando a mistério da
salvação.
Por esse razão, Andronikof, um grande teólogo oriental, fala da liturgia como
evento teofânico. Para ele “a vida litúrgica transfigura o mundo em reino de Deus por
antecipação profética” (ANDRONIKOF apud MALDONADO, 1997, p. 46). Sim, a
liturgia é epifania porque por meio dela “realiza-se a cooperação mais íntima entre o
Espírito Santo e a Igreja”. A celebração litúrgica revela e presentifica a vida eclesial e faz
nela aparecer a epifania do reino e o sabor de Deus. Até o pão singelo fala do inefável é
mistério. Como diz o poeta italiano Bruno Ferrero: “o pão é um mistério. Comer o pão é
degustar Deus, é saborear Deus, o pão não é só pão, ele tem o gosto de Deus”.
A liturgia é a hora tabórica da Igreja. Celebrar é subir ao Monte Tabor e, por
força da grave responsabilidade do oficio de pastor, devemos também, descer entre as
palafitas e subir os morros dos favelados. Quando entramos nos presídios, asilos e
assentamentos. Também quando celebramos nas casas de formação. Qualquer lugar onde
celebramos, seja um leprosário ou uma majestosa catedral, ali é a hora tabórica da Igreja,
porque ali se dá a teofania de Deus.
Assim, podemos dizer que o evento do Tabor é o paradigma da liturgia da
Igreja. Por isso nossas celebrações devem suscitar o desejo de prolongar o tempo na
presença do cordeiro ressuscitando e glorificado. Nossa liturgia deve levar à participação
ativa e frutuosa, não ao ruído dispersivo e irritante. A epifania do mistério é alteridade que
evoca continuidade, intimidade e intensidade na contemplação.
O Tabor e o paradigma da transfiguração devem ser refigurados nas nossas
celebrações. Pedro e seus companheiros nos ensinam que diante da epifania do mistério
devemos construir tendas. As tendas expressam o desejo de intensificar a experiência e
eternizar o tempo diante da epifania do mistério.
Compreendemos, assim, que o tempo não se conta, quando somos envolvidos
e tocados pelo esplendor da glória. A liturgia não é o Sinai da Torá, é o Tabor, onde o
Verbo que se fez homem fala pelo esplendor da sua glória. Da nuvem a voz retumbante do
Pai proclama na ação do Paráclito, o principio sem princípio daquela divina filiação. Em
meio às tendas que Pedro idealizava, o Filho, Shekinah de Deus, se manifestou como o
Senhor daquela glória da qual estão cheios o céu e a terra. Que estupendo convívio!
Pe. Joaquim Cavalcante 34
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
É nesse sentido que entendemos a liturgia como epifania do mistério, porque
compreendemos que a liturgia é o mistério em ação. Que mistério? O mistério trinitário, o
mistério pascal e eclesial, o mistério da fé.
A celebração litúrgica não pode não ser compreendida senão como iconografia
do mistério. Mistério que se dá na economia da ritualidade, na sinfonia das vozes e no
silêncio apofático da contemplação. O silêncio pode ser paradoxalmente compreendido,
como o estrondo do mistério.
Quando falo mistério eclesial, estou proclamando que a Igreja é mistério de fé.
Assim professamos na Regula Fidei: “creio na Igreja una, santa, católica e apostólica”.
Tudo isso constitui o arsenal basilar das verdades da nossa fé. Fé professada no rito
batismal, no testemunho dos santos e mártires, pensada pela teologia, sistematizada no
dogma e celebrada na liturgia. A fé vê além do que não se ver. Como diz Adélia Prado:
“ninguém vê o cordeiro degolado na mesa, o sangue sobre as toalhas, seu lancinante grito,
ninguém”.
Mas é ao redor da mesa do Cordeiro que a Igreja dança na liturgia. Também
Santo Atanásio, Patriarca de Alexandria, falava sobre o mistério da liturgia como a dança
da Igreja ao redor do seu Senhor.
Todo o mistério da fé aparece no mistério da transfiguração. O Pai proclama a
primazia do seu amor para com o seu unigênito Filho. A nuvem é configuração da presença
do próprio Deus. E sobre aquele monte, a Igreja, no Espírito, contempla por Cristo, a glória
escatológica. Pois, na pessoa dos discípulos estava toda a comunidade eclesial. O mistério
da transfiguração é o paradigma antecipado da liturgia compreendida como graça
concedida aos descendentes de Abraão (C. Andronikof, 47). O evento do Tabor congregou
os filhos do antigo pacto (Moises e Elias) e evidencia as testemunhas da nova e eterna
aliança, Pedro, Tiago e João.
A glória do Tabor é teofania da tríade divina. Glória manifestada aos discípulos
que espasmodicamente, ali queriam permanecer. “Eles experimentaram, assim, a parusia
antecipada; eles são, dessa forma, lentamente introduzidos em toda a profundidade do
mistério de Jesus” (BENTO XIV, 2007, p. 270). O mistério de Jesus é o mistério de Deus é
o mistério de amor. O amor pede aproximação e continuidade até chegar à plenitude da
comunhão. A comunhão é o êxtase da fé que nos faz cantar como os bizantinos cantam no
tropário das vésperas de Pentecostes e depois do rito da comunhão: “vimos a luz
A Liturgia como Epifania do Mistério Trirrelacional 35
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
verdadeira, recebemos o Espírito celeste, encontramos a verdadeira fé, adoramos a
Trindade indivisível, que nos salvou”.
Conclusão
Gostaria de concluir esta reflexão com três provocações:
1. Pensar a liturgia como epifania do mistério trirrelacional, impõe-se a
necessidade de aprofundar a semiótica litúrgica para favorecer o desvelamento reflexivo
da ontologia trinitária.
2. Nosso modo de celebrar o mistério da fé que é o mistério trirrelacional, ou
seja, o mistério de Deus em si mesmo, nos leva à contemplação ou à dispersão?
Certamente urge resgatar o verdadeiro sentido do mistério da liturgia para que nossas
missas não sejam nem ritos frios, nem diversão religiosa?
3. Que o primado do mistério trirrelacional, mistério indivisível e
consubstancial, que opera com a Igreja na divina liturgia possa ser adorado e glorificado
como Trindade que nos salvou. Tudo isso seja para glória do Pai que nos criou, para o
louvor do Filho que nos redimiu e a adoração do Santo Paráclito que nos santifica com o
Pai e o Filho na santa Igreja, tabernáculo e santuário de Deus.
Muito obrigado!
Referências Bibliográficas
BENTO XVI. Jesus de Nazaré. São Paulo: Planeta, 2007.
MALDONADO, L. Sacramentalità, sacramenti e azione litúrgica. Milano: San
Paolo, 1997, 46.
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Metafísica na Ciênc ia da Lógica de Hegel
Júlia Sebba Ramalho de Morais1
Resumo: O presente trabalho pretende apresentar a concepção de Hegel acerca do conceito de Metafísica como ciência de apreensão do verdadeiro e do conhecimento de Deus – tal como Hegel o expõe na Lógica da Enciclopédia. Para tanto, discutir-se-á, antes, as críticas de Hegel ao método trabalhado pela Metafísica anterior que, segundo o autor, segue a linha do que ele chama de “objetividade metafísica”. Conforme Hegel, tal método baseava-se, fundamentalmente, na compreensão do verdadeiro e das essências segundo um conhecimento apenas representativo e segundo simples atribuição de predicações aos objetos investigados. Na perspectiva hegeliana, tal metodologia é equivocada, pois não trata os sujeitos e os objetos em questão segundo a lógica interna ao conceito, que, para Hegel, abarca uma profunda unidade entre subjetividade e objetividade.
Esta antiga Metafísica supunha de antemão a existência dos objetos que pretendia investigar, atribuindo aos mesmos predicados e características segundo abstratos raciocínios proposicionais, sem investigar a configuração complexa e determinações internas aos mesmos. Diferentemente, para Hegel, deve-se investigar o movimento do conceito que se autodesenvolve autonomamente abarcando diversas determinações e momentos; somente, assim, diz ele, atinge-se a autoafirmação do saber absoluto acerca do real. Com base nesta discussão, as questões centrais tratadas pela antiga Metafísica – alma, mundo e Deus – assumem uma perspectiva diferente de tratamento, sendo concebidas, segundo o método hegeliano, no interior do auto-movimento absoluto do conceito subjetivo que encontra-se presente na realidade do objeto – e não como simples ideias mentais abstratas. O presente trabalho, portanto, se dividirá em duas partes: primeiramente procurará apresentar as teses críticas de Hegel a respeito do método da “objetividade metafísica” e, sem segundo lugar, procurará delinear, em linhas gerais, como Hegel compreende o verdadeiro auto-movimento conceitual para a apreensão da essência de Deus e das demais questões metafísicas, tal como expõe na Introdução de sua Lógica da Enciclopédia.
Palavras-chave: Metafísica, Conceito, Conhecimento Verdadeiro, Método, Deus.
Falar do conceito de Metafísica na Lógica hegeliana parece ser uma tarefa
muito ampla, dado que podemos entender, de certo modo, toda a obra de Hegel como uma
discussão com temas metafísicos da tradição filosófica. Além disso, Hegel não delimita
aquilo que seria a perspectiva metafísica tradicional de seu sistema, ou mesmo a esfera que
poderia ser intitulada propriamente como a ciência Metafísica de sua filosofia. De outro
modo, encontramos dissolvidas em seus textos questões metafísicas de variadas espécies
abordadas segundo um novo método de apreensão e afirmação, que é aquele do saber
absoluto. Nesta perspectiva, podemos afirmar que Hegel se sente tocado pelas velhas
indagações filosóficas acerca de Deus, da alma, da infinitude. No entanto, o modo como as
aborda não se enquadra no interior do procedimento investigativo da antiga Metafísica
escolástica e também da Metafísica do início da Idade Moderna; antes, parte de uma
1 Professora Assistente no curso de Filosofia do Campus Cidade de Goiás da UFG.
Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 37
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
atitude crítica perante as mesmas. Com efeito, os fundamentos, propósitos e o método de
investigação da verdade operado pela ciência Metafísica como um todo já foram criticados
por Kant logo antes de Hegel. Nesta medida, a fim de melhor circunscrever a crítica de
Hegel ao antigo método da Metafísica e, ainda, sua nova postura frente aos conteúdos desta
ciência, buscando encontrar o viés metafísico de sua filosofia, convém rapidamente
retomarmos a perspectiva crítica de Kant a respeito do saber metafísico. Isso porque, de
certo modo, o argumento kantiano influenciou os termos das reflexões filosóficas
posteriores a ele, sobretudo daquelas empreendidas pelo Idealismo Alemão, incluindo
Hegel.
1.
Em sua Crítica da Razão Pura, Kant buscou verificar a possibilidade da
Metafísica como uma ciência dos conhecimentos puros; em termos mais amplos, procurou
inquirir acerca da possibilidade de um conhecimento que tivesse sua origem
fundamentalmente nos dados a priori da razão independentemente de toda experiência
empírica. Nesta medida, conforme Kant, o verdadeiro problema de toda a história da
faculdade da razão está em se pesquisar sobre quais princípios e até que limites se pode
aspirar conhecer para além de toda experiência sensível. Segundo afirma, dentre as
ciências puramente teóricas, apenas a Matemática e a Física obtiveram visível progresso e
extensão de seus conhecimentos em relação à sua parte pura (Cf. KANT, 2010, p. 50).
Enquanto a Metafísica, sustenta Kant, até agora parece não ter alcançado seu propósito
inicial – que é aquele de conhecer a verdade das coisas em si mesmas e dos entes
sobrenaturais – e, além disso, encontra-se mergulhada em um teatro confuso de disputas
infindáveis (Cf. KANT, 2010, p. 3).
Isso se deve, de modo geral, a dois fatores: primeiro, a Metafísica buscava e
acreditava conhecer os objetos ultrapassando completamente o nível da experiência
sensível, sem poder reconhecer nesta qualquer pedra de toque. Em segundo lugar, em sua
busca pela verdade, a Metafísica guiava-se pelas representações dos objetos que procurava
investigar; estes, já eram de antemão estabelecidos pela representação e, por consequência,
regulavam e determinavam a postura investigativa da razão.
Estas duas posições abarcavam a raiz do confuso procedimento da Metafísica
e, ademais, de suas afirmações ilusórias. No que tange ao segundo ponto, deve-se ter claro
que, para Kant, o método do conhecer tem, na verdade, seu ponto de partida no sujeito, de
Júlia Sebba Ramaho de Morais 38
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
maneira que é o objeto que tem de se submeter e guiar-se pelas faculdades e princípios
cognitivos do eu pensante – e não, como concebia a Metafísica tradicional, o sujeito guiar-
se pela representação dos objetos. Em relação ao primeiro ponto, devemos salientar que
extrapolar o âmbito da experiência sensível, para Kant, significa desconsiderar uma das
duas grandes e indispensáveis fontes dos princípios do conhecimento humano, que é
aquela da sensibilidade (Cf. KANT, 2010, p. 88). Com efeito, conforme Kant, o
conhecimento provém da unidade das formas a priori do espaço e do tempo, pertencentes à
sensibilidade, em conjunto com os conceitos puros de nosso entendimento. Juntos,
sensibilidade e entendimento organizam o dado empírico bruto que nos afeta externamente.
Nesta perspectiva, o conhecimento é apenas um saber fenomenal, que apreende somente os
objetos sensíveis tais como aparecem a nós, se adequando ao nosso aparelho cognitivo – e
não um conhecimento objetivo das coisas em si mesmas, ou de suas essências.
Portanto, no interior deste panorama da Crítica da Razão Pura, a Metafísica,
tal como era empreendida até então, não poderia produzir conhecimentos verdadeiros
acerca de seus objetos suprassensíveis, uma vez que alargava-se completamente para além
do terreno da experiência. Na linha deste argumento, Kant reserva uma parte significativa
de sua obra – a “Dialética Transcendental” – para criticar os objetos particulares clássicos
da Metafísica: o conceito de alma, pertencente à antiga “Psicologia Racional”, em seguida
o conceito de mundo e liberdade, pertencente à velha “Cosmologia” e, por fim, o conceito
de Deus, da chamada “Teologia Racional”. O que é preciso destacar, no entanto, é que,
segundo Kant, apesar de a Metafísica não ser possível como ciência dos conhecimentos
puros, permanecerá, todavia, sempre, como disposição natural de nosso espírito.
Diferentemente de Kant, no entanto, as antigas questões metafísicas tocam as
especulações de Hegel, de modo que podemos afirmar que subsiste um viés fortemente
transcendente em sua filosofia. No entanto, o que pretendo mostrar no presente trabalho é
que além de tais questões mergulharem-se na filosofia hegeliana sob o paradigma de um
novo método de investigação e adquirirem, destarte, uma nova face, a análise de Hegel
sobre as essências, sobre Deus, alma e liberdade, é precedida por uma crítica radical, com
certo viés kantiano, ao antigo procedimento metafísico. Com base nestas considerações
introdutórias, dividirei o texto que se segue em duas partes: primeiramente, pretendo
delinear os principais aspectos da crítica de Hegel ao que ele chama de “objetividade
metafísica”, que consiste na posição ingênua desta ciência em face do saber. Nesta análise,
procurarei apontar para possíveis aproximações com a perspectiva crítica de Kant que
Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 39
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
vimos acima resumidamente. Em seguida, procurarei expor o que poderíamos conceber
como ciência Metafísica em Hegel, segundo o ponto de vista do método do saber absoluto
trabalhado na Lógica da Enciclopédia.
2.
No “Conceito Preliminar” da Lógica da Enciclopédia, Hegel disserta sobre o
objeto da Lógica e sobre a natureza de seu conhecimento científico. No interior desta
discussão, aborda a posição inquiridora do saber a respeito da objetividade elaborado pela
Antiga Metafísica. Esta Antiga Metafísica corresponde, para Hegel, à filosofia Escolástica
da Idade Média que permanecera, de certo modo, nos primeiros sistemas filosóficos
modernos anteriores a Kant. Hegel qualifica o procedimento de tal filosofia de ingênuo,
uma vez que este, segundo ele, contém “a crença de que mediante a reflexão é conhecida a
verdade, a saber, que se apresenta ante a consciência o que os objetos verdadeiramente
são” (Hegel a, 1995, p. 89). Acreditar simplesmente que porque nós refletimos tal coisa de
determinado modo significa que a coisa seja realmente assim é, conforme Hegel afirma,
uma crença ingênua que partilhava a Antiga Metafísica juntamente com a mais comum
consciência ordinária e cotidiana (Cf. HEGEL a, 1995, p. 44). O maior problema de fundo
concernente a este tipo de operação cognitiva é não elaborar uma autoanálise de seus
próprios procedimentos, de seu próprio atuar, permanecendo e reforçando, assim, a simples
e natural visão da razão a respeito da relação entre o seu pensar e os objetos que se pensa.
No interior deste pano de fundo, Hegel destaca três principais pontos passíveis
de contestação no método operado pela Antiga Metafísica. Abordemos os três.
O primeiro deles, Hegel trata nos parágrafos 28 e 29 da Enciclopédia e afirma:
“Essa ciência (a Antiga Metafísica) considerava as determinações do pensamento como as
determinações fundamentais das coisas” (Hegel a, 1995, p. 90). Entendamos
primeiramente o que Hegel concebe por determinação (Bestimmung) em um sentido
amplo. Por determinações, podemos compreender aquelas características, ou momentos
constitutivos do objeto ou da coisa em questão. Cada determinação é limitada no sentido
de que é ela mesma, por exclusão de qualquer outra. Possui, pois, uma finitude, algo que a
limita e a encerra, fazendo-a afirmar-se como si mesma. Por exemplo, quando afirmo que
“esta cadeira é marrom”, estou determinando-a, estou caracterizando-a pela cor marrom e
limitando sua cor dentro de um vasto mar de possibilidades de cores; portanto, ela é
determinadamente marrom e não preta, azul etc.
Júlia Sebba Ramaho de Morais 40
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Hegel afirma que a Antiga Metafísica concebia as determinações do
pensamento como determinações fundamentais das coisas mesmas. Portanto, neste sentido,
quando determinava pelo pensamento, pela reflexão, um certo objeto, este antigo
procedimento ingênuo acreditava que estava ao mesmo tempo e necessariamente
encontrando a determinação e qualificação da própria coisa investigada. Em outros termos,
ao determinar pelo pensamento o objeto em questão, a Antiga Metafísica acreditava estar
conhecendo o mesmo tal como ele é. Assim, quando apenas pensava “Deus existe”, “Deus
é infinito”, “A alma é simples”, “A alma é imortal”, acreditava estar versando
verdadeiramente sobre as determinações destas coisas mesmas.
Ora, é preciso salientar que, para Hegel, o problema não é supor que o
pensamento possa abarcar a verdade em si dos objetos. Antes, será esta tese mesma que
Hegel irá desenvolver de um modo muito original em toda a sua Ciência da Lógica. Desse
modo, Hegel não concorda com Kant que nós só podemos conhecer algo quando
inevitavelmente recebemos dele dados sensíveis por meio de nossa experiência empírica.
Nesta medida, Hegel afirma que a filosofia da Antiga Metafísica situava-se muito mais
profundamente e muito mais além em sua busca pela verdade do que a perspectiva
fenomenal e empirista, diz Hegel, da filosofia crítica kantiana. Nestes termos, podemos nos
perguntar: se Hegel concorda com o antigo procedimento metafísico no que tange à
suposição da conquista da verdade dos objetos por meio da atividade do pensamento, então
qual o verdadeiro motivo da crítica hegeliana à problemática inscrita na Antiga Metafísica
a respeito da identidade das determinações de pensamento com as determinações reais dos
objetos? Em linhas gerais, o problema que temos de destacar neste ponto da crítica
hegeliana é o seguinte: simplesmente acreditar que determinar um conceito pelo
pensamento significa conhecer a determinação real e essencial do objeto em questão – tal
como acreditava a Antiga Metafísica – é não se dar conta, afirma Hegel, da totalidade
fecunda e especulativa que é o pensamento em seu processo de conhecimento da verdade.
Desse modo, Hegel afirma que o método da Antiga Metafísica correspondia tão somente
ao método de investigação representacional e predicativo do entendimento finito.
Segundo Hegel, há uma significativa diferença entre o conhecimento de nosso
entendimento intelectivo e aquele da razão (Cf. HEGEL a, 1995, p. 159-162). O primeiro
só conhece as coisas finitamente, atribuindo às mesmas predicações e determinações
limitadas que não possuem correspondência entre si; antes, mutuamente se excluem. Na
linha deste raciocínio, eu simplesmente vou agregando predicados e determinações ao
Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 41
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
objeto pensado sem observar a íntima conexão e necessidade de suas características umas
em relação às outras. Assim, por exemplo, quando o nosso raciocínio de entendimento
investiga a natureza da alma, ele atribui a esta os predicados e determinações de
simplicidade, unicidade, identidade, imortalidade. Tudo isso, no interior de uma reflexão
puramente exterior e passiva diante do objeto pesquisado, sem se dar conta de que a alma
mesma possui uma articulação interna orgânica que não pode ser concebida somente por
atribuições de predicados determinados, mas como um todo especulativo e estruturado no
qual cada parte depende, pressupõe e influencia a outra2. Por meio do raciocínio do
entendimento, operamos nosso processo de conhecimento usando categorias que
possuímos em nossa mente e referindo-as, umas ao lado das outras, de modo externo, aos
objetos pensados. Raciocinando assim, nunca poderíamos, segundo Hegel, conceber, por
exemplo, a infinitude da essência de Deus, que não meramente agrega diversas
determinações e predicados, mas abarca em sua interioridade totalizante diversos aspectos
e características que se inter-relacionam a fim de se afirmar como a infinidade suprema.
Portanto, nos dizeres de Hegel, somente o conhecimento da razão, do logos, ou do nous no
sentido grego – e não do entendimento – é que totaliza as diversas determinações que cada
objeto possui no interior de uma essência orgânica articulada, podendo, pois, conceber,
pelo pensamento mesmo, o verdadeiro presente na realidade.
O segundo ponto destacado por Hegel como passível de contestação no
contexto do procedimento investigativo da Antiga Metafísica aproxima-se
significativamente da crítica kantiana que vimos ao início. Nos parágrafos 30 e 31 da
Enciclopédia, Hegel atesta que, sem dúvida, os objetos que esta Metafísica investigava
eram, propriamente, objetos da razão humana: Deus, liberdade, mundo, alma. No entanto,
o problema é que concebia-nos como sujeitos dados já prontos à nossa representação. Ao
investigar, por exemplo, o conceito de mundo, o antigo método metafísico já supunha
representacional e definidamente o que vem a ser o universo para depois verificar quais
determinações cabiam à sua representação. Afirma Hegel:
2 A concepção hegeliana da alma é radicalmente distinta daquela sustentada pela Metafísica Escolástica e Moderna. Hegel alude constantemente a Aristóteles, afirmando: “Os livros aristotélicos sobre a alma, com seus tratados sobre os aspectos e os estados particulares da alma, são por esse motivo ainda sempre a mais notável ou a única obra de interesse especulativo sobre esse objeto. O fim essencial de uma filosofia do espírito só pode ser reintroduzir o conceito no conhecimento do espírito; e, com isso, reabrir também o sentido daqueles livros aristotélicos” (Hegel b, 1995, p. 9). Na “Antropologia”, onde Hegel trata especificamente sobre a alma (Seele), critica a concepção cartesiana, de Malebranche, Espinoza e Leibniz sobre a distinção entre alma e corpo, afirmando a unidade imediata entre os dois termos com o predomínio da alma sobre o corpo. Na perspectiva hegeliana, não se pode tratar a alma no sentido de sua exclusão do corpo, mas, sim como uma unidade orgânica totalizante que abrange seus estados e modos em íntima conexão.
Júlia Sebba Ramaho de Morais 42
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A Antiga Metafísica se comportou com estes conceitos [o conceito de liberdade e o de determinismo causal], como com os outros; por uma parte pressupôs uma representação do universo e se preocupou em demonstrar como um ou outro conceito [o de liberdade ou de causalidade] se adaptavam a tal representação e que o conceito oposto era defeituoso, porque esta representação não se deixava explicar por meio dele (Hegel, 1982, p. 445).
Nesta linha, o entendimento se indagava, então, se tais e tais determinações e
predicações se enquadravam ou não à representação já dada. Não se investigava, afirma
Hegel, pelo pensamento, a necessidade de concebermos deste exato modo a representação
que fazíamos do objeto. Tal tipo de raciocínio se mostrava, assevera Hegel, como
profundamente insuficiente e escasso. Não fazia, tal como é tarefa própria da filosofia, a
dedução e justificação necessárias de cada representação e conceito com que lida a razão;
apenas supunha e recolhia de modo habitual e empírico as representações simples e pobres
que se pretendia determinar.
Este ponto da crítica tem em comum com a kantiana, tal como vimos atrás, que
um problema central do antigo método da Metafísica é supor como dados de antemão os
objetos a serem investigados. Ora, afirma Kant, neste procedimento são os objetos, ou
melhor, as representações que deles temos que nos guiam na busca pela verdade. Mas, o
correto não seria justamente o contrário, ou seja, procurar investigar a própria validade
destas representações dos objetos em nosso conhecimento e não supô-las já de antemão
como verdadeiras? Kant afirma no “Prefácio” à segunda edição da Crítica da Razão Pura:
Até agora se supôs que todo nosso conhecimento tinha de se regular pelos objetos; porém, todas as tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a priori sobre os mesmos, através do que o nosso conhecimento seria ampliado, fracassaram sob esta pressuposição. Por isso, tente-se ver uma vez se não progredimos melhor nas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com a requerida possibilidade de um conhecimento a priori dos mesmos que se deve estabelecer algo sobre os objetos antes de nos serem dados. O mesmo aconteceu com os primeiros pensamentos de Copérnico que, depois das coisas não quererem andar muito bem com a explicação dos movimentos celestes admitindo-se que todo o exército de astros girava em torno do espectador, tentou ver se não seria mais bem sucedido se deixasse o espectador mover-se e, em contrapartida, os astros em repouso (Kant, 2000, p. 39).
Esta famosa passagem da Crítica contém a alusão ao célebre giro copernicano
que Kant operara na Filosofia. Mas, especificamente, importa-nos observar que Kant
sugere que talvez progrediríamos melhor nas tarefas da Metafísica se fundamentássemos
Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 43
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
nossos conhecimentos em nossas próprias estruturas e operações mentais subjetivas e não
nos objetos dados a nós de antemão. Ora, na perspectiva de Kant, a contradição inscrita no
centro da objetividade ingênua da Metafísica é que ao querer saber puramente pelo
pensamento as características distintivas de seus objetos, este pretenso saber não percebe
que, na verdade, recolhe os objetos daquela representação mais simples que possuímos,
contraditoriamente, da representação sensível. Para Kant, toda proposta de conhecimento e
inclusive, aquela da Metafísica, deve se fundamentar nos elementos e operações a priori
do sujeito que conhece, e não tomar os objetos como prontos – tal é a proposta de seu giro
copernicano.
Ocorre que a crítica de Hegel a este ponto do procedimento metafísico tem
ainda uma faceta própria e distinta desta perspectiva subjetiva da filosofia kantiana. Hegel
afirma que simplesmente pressupor o objeto dado como uma representação é tomá-lo como
sujeito de uma proposição, ou de um juízo; por exemplo, a representação de Deus seria o
sujeito do juízo que elaboraríamos para predicar e determinar Deus com qualificações.
Assim, tomamos o sujeito Deus e a partir daí predicamos, na forma do juízo, as
determinações “onipotente”, “soberano”, “onisciente” etc. Mas, assevera Hegel, a forma de
conhecimento por meio de juízos – que, mais uma vez, é própria do entendimento
intelectivo – não abarca a concretude conceitual da ideia mesma de Deus, ou de qualquer
que seja o objeto em questão (Cf. HEGEL a, 1995, p. 93-94). Assim, simplesmente judicar
sobre uma representação apenas afirma uma característica específica da mesma, jamais
exprime a complexidade e a intrincada teia de relações que subjazem aos objetos e que a
forma lógica do juízo jamais poderia dar conta.
Para finalizar, o último ponto que Hegel destaca em sua crítica é aquele que
afirma ser o procedimento da Antiga Metafísica um procedimento metodológico de tipo
dogmático. O dogmatismo estrito, nos dizeres de Hegel, é aquele que investiga duas
afirmações aparentemente contrárias a fim de atestar qual das duas seria verdadeira em
relação ao objeto pesquisado, à representação já dada. Assim, por exemplo, na pesquisa
metafísica sobre a representação do mundo que vimos atrás, investiga-se – segundo os
raciocínios antinômicos da razão – se a afirmação de que tudo no mundo segue leis
deterministas causais é mais pertinente à representação do cosmos do que aquela
proposição que assevera que o mundo, na verdade, abarca um primeiro começo espontâneo
Júlia Sebba Ramaho de Morais 44
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
e livre3. A pesquisa do entendimento procura saber qual das duas teses conforma-se melhor
à representação do mundo como algo finito, criado e dado no tempo. Ora, diz Hegel, o que
o método da Antiga Metafísica não percebe é que muitas vezes podemos conceber duas
proposições aparentemente opostas fazendo parte do mesmo objeto em questão. Assim, sua
filosofia especulativa procura unificar negações opostas e contraditórias afirmando, por
exemplo, que o mundo tanto é completamente sujeito às leis deterministas e mecânicas de
causa e efeito, quanto, por outro lado, abarca continuamente inícios livres e espontâneos
por meio da ação humana. Nesse caso, é preciso conciliar duas teses aparentemente
opostas no interior de um conhecimento muito mais amplo e profundo sobre a realidade
mundana. A razão, o logos, tem de procurar unificar e harmonizar teses opostas e não
simplesmente excluí-las segundo uma atitude dogmática extremista.
Como podemos perceber, os diversos pontos da crítica de Hegel à Antiga
Metafísica podem ser concebidos, todos, como pertinentes a problemas de metodologia na
investigação sobre as essências dos objetos e sobre os conceitos suprassensíveis de Deus,
alma, cosmos, liberdade. Hegel discordava da forma como se investigava os objetos
metafísicos, não afirmando, como Kant, que estes não podem ser conhecidos em si
mesmos, pois não passam pelo crivo da experiência sensível. Mas, podemos dizer, que a
concordância fundamental destes dois filósofos em relação a esta temática é que Hegel, tal
como Kant, observa a Antiga Metafísica como um conhecimento dogmático. Isso porque
este antigo saber não elabora a autorreflexão crítica de seus próprios procedimentos, não
opera a justificação metodológica essencial a toda e qualquer ciência4. Na concepção de
Hegel e de Kant, é isso que fazem ao criticarem a Antiga Metafísica, ajustando as contas
dela consigo mesma e, cada um ao seu modo, salvando-a de crenças injustificadas e
improcedentes.
Vejamos agora, em linhas gerais, como podemos conceber a Metafísica, ou a
pesquisa hegeliana acerca das essências verdadeiras no interior de sua Ciência da Lógica.
3 Este problema corresponde a uma das clássicas antinomias da razão. Kant já abordara e criticara
este problema na “Dialética da Razão Pura”, mais especificamente na Terceira Antinomia (Cf. KANT, 2010, p. 406-407). Segundo Kant, é impossível saber qual das duas proposições é verdadeira, pois a razão não consegue conhecer a totalidade do mundo a fim de saber se ele tem um primeiro começo ou uma espontaneidade inicial que abarcasse a liberdade. No entanto, afirma Kant, a razão prática transcende este conflito e deve supor a existência da liberdade para a realização de uma ação correta. Hegel afirma não ser de acordo com a razão raciocinar em termos antinômicos, pois não é o caso que o mundo possa ser pensado, dogmaticamente, em termos excludentes: de um lado, segundo uma proposição que o afirme como determinado causalmente; e, de outro lado, como livremente originado (Cf. HEGEL, 1982, p. 446).
4 Ver Crítica da Razão Pura, 2010, p. 30.
Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 45
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
3.
A Ciência da Lógica de Hegel pode ser entendida, conforme Vittorio Hösle
(2007), segundo uma quádrupla significação. Antes de tudo, podemos entendê-la como
Lógica mesmo, na medida em que investiga as formas e regras pertinentes ao pensamento
em geral. No entanto, sua significação lógica possui um sentido muito preciso, na medida
em que Hegel acredita tematizar não tão somente as regras formais de todo pensamento,
mas também as categorias que necessariamente completam o conteúdo dos objetos
existentes. Dessa maneira, juntamente com sua significação lógica, pode-se ler a Ciência
da Lógica de Hegel segundo sua perspectiva ontológica, ou seja, como uma ciência dos
objetos, ou dos seres enquanto seres. Dada a proposta do idealismo absoluto de sua
filosofia, há, segundo Hegel, uma unidade imanente entre o pensamento e a coisa existente
e, por isso, devemos pensar Lógica e Ontologia sob o prisma de uma única ciência. Com
efeito, uma vez que a filosofia hegeliana está igualmente interessada em pesquisar a
subjetividade cognoscente que conhece a si mesma e procura a validade conceitual de seu
conhecimento acerca dos objetos, sua teoria possui também uma significação
transcendental, como uma teoria do conhecimento de influência kantiana. Assim, segundo
o que temos visto, a Ciência da Lógica de Hegel possui um significado lógico, ontológico
e epistemológico.
Mas, o que nos interessa propriamente nesta gama de classificações da Lógica
hegeliana é que ela possui um traço eminentemente metafísico. Assim, para Hegel, a
Lógica nada mais é do que a exposição do pensamento de Deus em seu desenvolvimento.
Tal afirmação pode parecer estranha à primeira vista, mas o que Hegel quer dizer com isso
é que todo o seu tratado da Ciência da Lógica sobre as diversas categorias e momentos
concernentes tanto ao pensamento enquanto pensamento, quanto ao ser enquanto ser,
dizem respeito, em última instância, à essência mesma absoluta de Deus que subjaz a toda
realidade. Dessa maneira, dizer sobre quantidade, qualidade, modo, relação, essência,
aparência, efetividade, juízo, silogismo (que são os objetos de pesquisa de sua Lógica-
Ontológica) não é algo definitivamente externo ao conhecimento do absoluto que significa,
para Hegel, exatamente o conhecimento de Deus.
Para melhor entendermos esta posição de Hegel, é preciso esclarecer que,
segundo a compreensão hegeliana, a filosofia elabora e desenvolve afirmativamente o
método verdadeiro de conhecimento e este método, segundo Hegel, diz respeito tanto ao
Júlia Sebba Ramaho de Morais 46
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
sujeito que conhece, quanto aos objetos investigados; por isso, há, em sua filosofia, como
afirmamos acima, uma unidade íntima entre ser e pensar. No entanto, deve haver um
fundamento desta realidade absoluta, que é a plena união entre ser e conhecer – e este
fundamento absoluto é, justamente, Deus. Portanto, Deus, para Hegel, é a absoluta unidade
entre subjetividade e objetividade, entre as categorias lógicas do pensamento e as
categorias ontológicas do ser; sua essência é, desse modo, explicitada pelo
desenvolvimento e acabamento do método hegeliano da Ciência da Lógica. Segundo
Vittorio Hösle, a ontologia lógica hegeliana é, pois, fundada em sua teologia, ou seja, no
conhecimento de Deus como uma essência que se fundamenta a si mesma e fundamenta
absolutamente toda a realidade (Cf. HÖSLE, 2007, p. 84).
A perspectiva metafísica da filosofia de Hegel, consequentemente, é
sumamente teológica. As questões relativas à alma, à liberdade e ao cosmos permanecem
dispersas em vários momentos do sistema, nas partes pertinentes à Filosofia do Real5.
Nestes momentos, Hegel aborda o conceito de alma e de liberdade de um modo claramente
distinto das propostas da Antiga Metafísica sobre tais temas. Sua tematização em torno do
conceito de Deus, de outro modo, encontra-se de modo imanente na auto-exposição do
método em todo o seu sistema filosófico. O método possui fundamentalmente como objeto
a apreensão das essências verdadeiras compreendidas, todas elas, na natureza infinita de
Deus. Assim, Hegel procurar desenvolver, na Lógica, as determinações e relações abstratas
da essência de Deus, segundo as categorias do “Ser”, da “Essência” e do “Conceito”, que
são as três grandes partes da obra. Na Filosofia do Real, por outro lado, podemos encontrar
a manifestação da essência divina, quando Hegel trata da natureza e do mundo espiritual
do homem, abordando questões concernentes à religião, arte e filosofia.
A infinidade divina não poderia, desse modo, na perspectiva hegeliana, ser
compreendida como um estado para além da finitude do mundo e da existência em geral.
Isso significa que na tematização dialético-especulativa de seu sistema, uma infinidade ao
lado do finito seria também finita, limitada por um outro que ela mesma. Por isso, para
Hegel, o infinito engloba em si mesmo o momento do finito, negando-o e dissolvendo-o
em sua grandeza suprema. Em outras palavras, Deus é, para Hegel, a infinidade que possui
em seu interior, como negada, o momento da finitude; é, portanto, tanto transcendência
pura e abstrata, quanto imanência concreta e, somente assim, pode-se compreender sua
5 A Filosofia da Realidade corresponde à parte do sistema de Hegel que engloba a Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito. Nesta última, Hegel trata da religião cristã, como manifestação do Absoluto.
Metafísica na Ciência da Lógica de Hegel 47
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
infinidade. Esta proposta hegeliana convida-nos, assim, a pensar a existência de Deus sob
um ponto de vista especulativo: pensar Deus como aquela infinidade que pode ser
compreendida tanto sob seu ponto de vista abstrato, em sua Ciência da Lógica, quanto sob
seu ponto de vista concreto e imanente, quando Hegel aborda Deus como manifestado na
natureza e na existência humana.
Segundo Hegel, esta exposição que faz da essência divina é a racionalização,
pelo pensamento, do conteúdo da fé cristã. Para ele, a religião cristã é a única que possui
esta compreensão especulativa da infinidade divina, pois pensa a grandeza de Deus
manifestada na existência finita terrestre na figura de Cristo. O momento preciso,
entretanto, em que Hegel racionaliza e reflete sobre o conteúdo da fé cristã presente em nós
pelo sentimento pertence à sua Filosofia da Religião. Investigar este ponto, entretanto, já
seria assunto para outro trabalho. Mas, o que pudemos, em linhas gerais, observar neste
trabalho é que a proposta de Hegel de uma nova Metafísica baseia-se em uma compreensão
muito diferente sobre a relação entre pensamento e ser, sobre infinidade e finitude e, ainda,
sobre Lógica, Ontologia e existência de Deus. Apesar de Hegel criticar o procedimento
investigativo da Antiga Metafísica, não descarta, entretanto, sua especulação filosófica
acerca das essências.
Referências Bibliográficas
HEGEL, G.W.F. Ciencia de la Logica. 3ª edição. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1982.
_____. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Volume I. Lógica. São Paulo: Edições Loyola, 1995 a.
_____. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Volume III. A Filosofia do Espírito. São Paulo: Edições Loyola, 1995 b.
HÖSLE, V. O Sistema de Hegel: o Idealismo da Subjetividade e o Problema da Intersubjetividade. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. 7ª edição. Lisboa: Edições 70, 2010.
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl
Martina Korelc1
Resumo: A partir da consciência da crise das ciências no início do século XX, Husserl se preocupou em renovar as ciências, de modo que estas pudessem novamente possibilitar aos homens o acesso ao sentido do ser. Fenomenologia assim deve ser em primeiro lugar um método de acesso “às coisas mesmas”, e este método implica a suspensão de todo saber não esclarecido e a elucidação do que é dado com evidência; isto significa a análise daquilo que é dado enquanto pensado na consciência da subjetividade transcendental. Com isto a subjetividade transcendental é compreendida como um primeiro absoluto necessariamente pressuposto em todo o sentido do ser do mundo, e o ser da subjetividade na sua relação essencial ao mundo é o campo de todo o interesse fenomenológico. Ao analisar o ser da subjetividade, Husserl descobre uma orientação para um telos final, uma teleologia, que ele descreve como a forma do ser da subjetividade ou intersubjetividade na sua totalidade. Como origem desta teleologia pode ser pensado Deus. De fato Husserl afirmou que a fenomenologia é um caminho não confessional a Deus. Mas, no interior do campo originário da fenomenologia, a transcendência de Deus pode ser analisada unicamente na sua relação necessária com a subjetividade transcendental; isto é: Deus se mostra na subjetividade como a ideia da perfeição absoluta, à qual todo o devir histórico do mundo e da humanidade aspira e que permanece de algum modo transcendente a todas as realizações históricas, com pólo ideal idealmente transcendente à consciência fática. Ora, a sua transcendência não convence, por permanecer essencialmente dependente da subjetividade transcendental; este Deus é um Deus pensado, isto em, um Deus filosófico, racional. Seria possível fenomenologicamente esclarecer o ser de Deus enquanto fundamentando o próprio ser fático da subjetividade? Husserl pensou que a fenomenologia como ciência das essências deveria ser uma propedêutica para a metafísica científica, isto é, uma ciência primeira do ser fático. A ela Husserl apenas indica como a meta última das suas investigações, sem contudo conseguir a desenvolver. Seria possível por esta metafísica fenomenológica esclarecer suficientemente o ser não apenas enquanto sentido, mas enquanto ser, e com isto esclarecer também Deus como origem do ser? A presente comunicação pretende levantar estas questões, isto é, apresentar brevemente como Husserl pensa Deus e metafísica e refletir sobre as possibilidades e os limites do seu pensamento.
I.
No pensamento de Husserl é possível relacionar a metafísica e a questão de
Deus; é o que pretendo fazer brevemente nesta palestra. Em primeiro lugar é preciso
esclarecer o que seria metafísica para Husserl. Na obra Meditações cartesianas, Husserl
afirma que a fenomenologia pretende eliminar ou pôr em questão apenas uma metafísica
ingênua, um saber suposto, mas não esclarecido, e não a metafísica em si, que abordaria as
“últimas e mais elevadas questões” postas à razão humana (HUSSERL, s.d., p. 196-197),
entre elas, a do ser, da possibilidade da vida autenticamente humana, do sentido da
existência e da história, da morte e destino, problemas éticos e religiosos... A metafísica
1 Professora Adjunta na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás.
Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 49
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
seria para Husserl uma ciência rigorosa e fundamentada, universal, a primeira entre as
ciências que tratam a realidade fatual. Ora, a fenomenologia tal como Husserl a
desenvolveu, não é ainda esta metafísica; Husserl ocupou-se por toda a vida com aquela
ciência fundamental que seria preparatória para a ciência universal dos fatos; a ela ele
chamou de filosofia primeira, por ser a primeira a ser elaborada e neste sentido
fundamental. Preocupou-se com o método e com o conhecimento eidético, isto é, das
essências a priori de todo o ser possível, não real. Pretendeu esclarecer assim o único
caminho possível para qualquer ciência ou saber fundamentado; este caminho é a radical
tomada de consciência de si mesmo. Neste sentido, Husserl renova a convicção que
animou Santo Agostinho, citado por ele várias vezes: “Não queiras ir para fora, volta em ti,
no interior do homem habita a verdade” (De vera religione, 39, 72). Penso que seja ainda
necessário refletir sobre o que isto significa, para não cairmos no idealismo com o qual
fenomenologia de Husserl constantemente é tentada; e sobretudo, talvez não seja ainda
claro como seria a metafísica que Husserl pretendeu desenvolver. O que apresento aqui,
portanto, não é definitivo, não são teses da metafísica, são apenas questões metafísicas a
partir de escritos de Husserl.
II.
Segundo as palavras de Husserl numa carta, a leitura do Novo Testamento teve
um enorme efeito sobre ele, quando jovem de 23 anos, efeito que resultou na aspiração de
encontrar o caminho para Deus e para uma vida autêntica por meio da rigorosa ciência
filosófica.2 A procura da fundamentação ou justificação absoluta, última, do saber, a meta
que move toda a sua rica e árdua pesquisa filosófica, é concebida por ele também como a
meta de toda a vida humana autêntica e encerra em si o ideal de ser humano verdadeiro, da
razão definitivamente autônoma e da liberdade plenamente responsável, capaz de
responder por si. Neste contexto, a pergunta sobre Deus para Husserl não é uma pergunta
lateral, mas muito importante, ou até a pergunta mais importante da filosofia. Segundo as
suas palavras, “toda a filosofia autônoma, como foi a aristotélica e como ela permanece
uma exigência eterna, chega necessariamente a uma teleologia e a uma teologia filosófica –
como o caminho (não-confessional) para Deus” (E III 10, 14a). Husserl mesmo
compreendeu como a sua missão pessoal a de levar os homens, que não têm o consolo e a
2 AVÉ-LALLEMANT, 1994, p. 85.
Martina Korelc 50
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
segurança da fé religiosa, a Deus – pretendeu “chegar a Deus sem Deus”3. O fato de não
obstante disso Husserl não ter dedicado a esta questão nenhum estudo sistemático, mas
apenas apontou para este problema em vários escritos, deixa se explicar pela convicção de
Husserl, de não ter ainda desenvolvido suficientemente a fenomenologia como ciência
fundamental.
A tomada radical de consciência de si significa para Husserl em primeiro lugar
suspender a validade de tudo o que presumimos saber, todos os pressupostos, entre eles o
pressuposto mais natural da transcendência do mundo em relação à consciência que o
pensa, e até do meu ser psicofísico no mundo, para poder obter o acesso ao domínio mais
originário da realidade, onde a realidade se dá a pensar originariamente; este domínio
originário é a minha subjetividade transcendental e na compreensão do seu ser e operar é
possível recuperar o sentido do ser, que nas ciências e na filosofia se perdeu. A atitude
fenomenológica significa reorientar o olhar, do mundo para a própria subjetividade. A
subjetividade transcendental é portanto o absoluto a partir do qual todo o ser do mundo – o
objeto das ciências empíricas – pode ser explicado. A fenomenologia pretende descrever e
explicar como o mundo, e tudo o que este implica, vem a ser pensado originariamente, com
sentido, pela subjetividade, na consciência transcendental.
A subjetividade transcendental, ou seja, o meu próprio ser transcendental com
a sua extraordinária ordem imanente, é contudo também um fato, um fato último,
implicando com isto uma ineliminável contingência. Uma pergunta ulterior é, portanto,
ainda possível e até necessária a partir da procura pela fundamentação radical: esta
facticidade da subjetividade transcendental não exige ainda uma ulterior justificação ou
fundamentação? Nas Ideias I, Husserl levanta tal questão, sublinhando que é sobretudo a
ordem encontrada na consciência, a teleologia, que exige a pergunta pelo fundamento.
Como fundamento da ordem ou racionalidade encontrada na consciência, e da teleologia
que explica esta ordem, deve ser suposto um princípio teológico, um princípio ordenador
do absoluto; deste modo Husserl introduz claramente a questão de Deus na pergunta
fenomenológica sobre o fundamento da facticidade da subjetividade transcendental. Como
Deus é pensado? Nos parágrafos 51 e 58 das Ideias I, mencionados aqui, Husserl traz
3 “A vida do homem não é nada outro do que um caminho para Deus. Eu procuro alcançar esta meta
sem as provas, método e pontos de apoio teológicos, nomeadamente, chegar a Deus sem Deus. Eu devo, por assim dizer, até eliminar Deus da minha existência científica, para preparar um caminho até Deus para os homens que não têm a certeza da fé através da Igreja, assim como a possui a senhora. Eu sei que este meu procedimento poderia ser perigoso para mim mesmo, se eu mesmo não fosse um homem profundamente ligado com Deus e profundamente crente em Cristo” (JÄGERSCHMIDT, 1981, p. 56).
Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 51
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
alguns elementos importantes, essenciais, para a compreensão da questão de Deus. O
“princípio teológico” que deve ser suposto implica uma transcendência de tipo novo em
relação à transcendência do mundo, cujo sentido e validade natural foram suspendidas
precisamente por precisarem da fundamentação. E, Deus não é apenas transcendente de
modo diferente do mundo e em relação ao mundo, mas também em relação à consciência
absoluta, afirma Husserl enfaticamente no mesmo texto. A transcendência de Deus se
anuncia na consciência de modo diferente também da do próprio Eu, cuja transcendência
em relação à corrente de vivências é chamada de “transcendência imanente”; esta
diferença, segundo Husserl nas Ideias, implica que ele, Deus, não é dado de modo imediato
à consciência, mas é conhecido de modo mediato, precisamente através da pergunta pelo
fundamento da facticidade da ordem teleológica na consciência. A conclusão importante
de Husserl é: “Ele seria, portanto, um ‘absoluto’ num sentido totalmente diferente do
absoluto da consciência, assim como, por outro lado, um transcendente num sentido
totalmente diferente do transcendente no sentido do mundo” (Hua III, p. 140; 134).
Antes de tentar iluminar esta problemática a partir de outros textos de Husserl e
de seus comentadores, deve contudo ser pontuada a decisão metodológica que guia as
pesquisas de Husserl e que é anunciada um pouco adiante do texto citado: por ser Deus
uma transcendência em relação à subjetividade transcendental, embora radicalmente
diferente da transcendência do mundo, ele deve ser posto entre parênteses para se poder
manter o estatuto absoluto da subjetividade transcendental e a partir dela esclarecer o ser
do mundo.
“Naturalmente nossa redução fenomenológica é extensiva a esse ‘absoluto’ e a esse ‘transcendente’. Ele deve permanecer fora de circuito no novo campo de investigação a ser estabelecido, uma vez que este deve ser um campo da própria consciência pura” (Hua III, p. 140; 134).
Por princípio, portanto, a fenomenologia não pode sem mais – sem a devida
clarificação e justificação a partir da subjetividade transcendental absoluta – manter a
validade de nenhuma transcendência, nem sequer da transcendência de um fundamento
último que suporta o próprio ser da subjetividade. Mas, é a partir do ser da subjetividade
transcendental enquanto absoluto que será possível voltar à pergunta sobre Deus como o
princípio ordenador do absoluto, numa consideração absoluta, como lemos, isto é,
submetida ao rigor da redução transcendental. Se contudo nos deparamos com a sua
Martina Korelc 52
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
transcendência, diz Husserl, e se o seu ser não é simplesmente o ser do vivido, já que ele é
diferente da consciência, isto significa que
“tem de haver no fluxo absoluto da consciência e em suas infinitudes outros modos de anunciar transcendências, diferentes da constituição de realidades de coisas [...]; e, finalmente, é preciso que haja também modos intuitivos de anunciar transcendências aos quais o pensamento teórico se amolde e possa, seguindo-o racionalmente, trazer à compreensão a atuação coerente do suposto princípio teológico” (Hua III, p. 121-122;119).
Esclarecer como na imanência da consciência se anuncia e manifesta a
transcendência de Deus, e por meio disso esclarecer racionalmente a própria ideia de Deus,
é talvez aquele saber final ao qual toda a filosofia autônoma e consistente deve conduzir,
como afirma Husserl, mas para o qual talvez ele mesmo se reconhecia ainda não
suficientemente preparado, ainda a caminho. Contudo, é possível a partir de poucas
afirmações nos escritos publicados e nos manuscritos de pesquisa compreender algo do seu
pensamento a respeito.
A meu ver, contudo esta redução da transcendência de Deus é problemática,
não poderá ser recuperada racionalmente, porque implica uma decisão, uma posição diante
deste problema. Husserl decidiu pessoalmente não considerar previamente a existência de
Deus, embora tivesse fé, e não considerar aquilo que sabia sobre Deus pela fé. Isto o
distingue de Santo Agostinho.
III.
O ser do mundo é relativo ao ser da consciência transcendental, onde ele é
dado, constituído enquanto válido para mim – e isto significa, no pensamento de Husserl,
válido para a humanidade, já que o sentido objetivo e verdadeiro, do ser do mundo implica
confirmação intersubjetiva. Ora, que a consciência transcendental constitui de fato o
mundo com sentido, isto é, um mundo que pode ser racionalmente compreendido, que
segue leis que podem por sua vez ser estudadas pelas ciências naturais... – isto é um fato
que não pode ser explicado unicamente pela própria subjetividade transcendental. Pois, já
nas Ideias I é claro para Husserl que do fato da existência do mundo tal como é constituído
pela consciência transcendental, do fato da própria constituição, não se conclui nenhuma
necessidade desta constituição. Pode, pois, ser pensada também a possibilidade de o
Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 53
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
mundo não ser constituído, isto é, de não haver nenhuma coerência nas vivências que nos
fazem perceber o mundo enquanto realmente existente.
Esta facticidade da constituição do mundo é, portanto, em si surpreendente,
“milagre”, nas palavras de Husserl, ou um fato transcendental “irracional” que está nos
limites da explicação da fenomenologia.
Esta facticidade não é o campo da fenomenologia e da lógica, mas o da metafísica. O milagre [Wunder] é aqui a racionalidade, que se mostra na consciência absoluta, não por nela se constituir qualquer coisa em geral, mas por se constituir uma natureza que é o correlato das ciências naturais exatas. Que racionalidade é esta? Ela consiste, poderíamos dizer, [...] no existir de uma correlação entre a consciência fática e ciência empírica (Hua VII, p. 394). Por trás abre-se uma problemática que não pode mais ser interpretada adiante no solo fenomenológico: a da irracionalidade do fato transcendental, que se pronuncia na constituição do mundo fático e da vida espiritual fática: portanto, a metafísica num sentido novo (Hua VII, p. 188, nota 1).
Uma entre as perguntas últimas ou definitivas no aspirar à clarificação e
fundamentação da ciência, para Husserl parece ser a facticidade da racionalidade do
mundo para a consciência, o fato de o mundo poder ser compreendido cientificamente, de
ter portanto nele uma ordem sensata, um sentido. Este fato não tem fundamento suficiente
ou justificação última no interior da consciência ou em geral no próprio fato absoluto de
haver consciência constituinte. Ou seja, a constituição, através de atos e operações que são
a própria vida da subjetividade na qual o mundo é produzido, não significa “criação” do
mundo. Para a própria subjetividade transcendental, esta constituição é algo radicalmente
dado, ou seja recebido, um fato admirável, uma “graça”, que pode porém também ser
retirada, pois a subjetividade não garante a partir de si que o mundo ordenado não se
desfaça em caos de sensações e o Eu unitário, enquanto possuindo o mundo, não se
dissolva. O mundo mantém, portanto, por causa disso um caráter de estranheza, de
alteridade – assim como o próprio Eu permanece no seu núcleo mais originário obscuro
para si mesmo, anônimo. A subjetividade transcendental, se quer esclarecer a sua própria
vida constitutiva, deve voltar-se reflexivamente sobre si mesma, debruçar-se na medida do
possível para o que está “escondido”, “anônimo” na sua própria vida do Eu, e perguntar
pelo princípio ordenador diferente dela mesma, que Husserl sem escrúpulos nomeia de
Deus.
Antes de passar para as considerações de Husserl sobre Deus, é preciso
elucidar ainda o segundo elemento da facticidade, mencionado por Husserl na passagem
Martina Korelc 54
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
das Ideias I citada acima, nomeadamente a questão da teleologia. Pois não é o mero fato da
constituição de qualquer coisa – não o mero fato de haver qualquer coisa, poderíamos dizer
– que exige a pergunta por um fundamento transcendente à subjetividade transcendental,
mas o fato de ser constituído o mundo com sentido, o fato de haver racionalidade, lemos;
talvez se possa dizer que é a questão da origem do sentido que abre Husserl ulteriormente
às questões metafísicas, e certamente a pergunta sobre Deus está ligada para Husserl
estreitamente ao esclarecimento da teleologia. Na Erste Philosophie Husserl afirma a
respeito do fato do ser do mundo: “Já o ser do mundo enquanto fato encerra uma
teleologia” (Hua VIII, p. 258). O sentido do mundo, a sua verdade e a ciência na qual ele
se exprime, são o telos que Husserl descobre no fato do ser do mundo. Mas a teleologia
não diz respeito em primeiro lugar e originariamente ao ser do mundo, mas ao ser da
subjetividade transcendental, a partir da qual o sentido do mundo se explica, como
sabemos. É, pois, voltando-se na consideração fenomenológica transcendental radical
sobre o ser da subjetividade transcendental, que no seu próprio caráter absoluto não deixa
de ser um fato, um fato último e absoluto, como diz Husserl, que o fenomenólogo
desencobre uma aspiração necessária ao sentido, isto é, uma teleologia escondida.
Husserl descobre a teleologia, isto é, a aspiração a uma meta, em todos os
níveis da vida da subjetividade, ele a chama de forma ontológica do ser da subjetividade
transcendental (Hua XV, p. 378). Em primeiro lugar, para Husserl, o ser da subjetividade
transcendental é um devir constante, o ser está num processo temporal de constituição que
é orientado para uma meta. Num primeiro nível de reflexão, Husserl analisa a consciência
cognitiva; a característica essencial da consciência é a intencionalidade, que significa o ser
orientado da consciência para um objeto intencional e por si já é um processo teleológico.
Neste sentido, Husserl descobre na consciência uma aspiração ao conhecimento, ao ser
auto-dado, à verificação e à realização da posse intencional sempre mais perfeita do ser do
objeto; em última instância, trata-se da aspiração à evidência, à verdade e à autonomia da
subjetividade através da ciência. Esta aspiração, contudo, – que se realiza plenamente na
decisão e na realização do conhecimento científico, na ciência definitivamente justificada,
que pode ser por um lado chamada o telos da vida da subjetividade – é detectada por
Husserl já na passividade da consciência, na dimensão anterior à atividade de
conhecimento, por exemplo na consciência do tempo. Segundo ele, também os instintos, as
kinestesias, os sentimentos, as tendências mais primitivas no ser da subjetividade, que lhe
pertencem na sua facticidade, são teleologicamente orientadas para a constituição, como a
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
base irracional da atividade racional, porque os atos livres e conscientes do conhecimento
se constroem sobre elas e há nelas e em toda a vida da consciência um entrelaçamento de
todos os níveis. Que na subjetividade se deva constituir o mundo cientificamente
conhecível na sua verdade, está portanto escrito de algum modo na estrutura da consciência
como o seu telos, como a orientação do seu devir, e que a subjetividade realize a ciência é
o telos escondido que aponta a vocação da humanidade enquanto racional. Isto não pode
ser compreendido no sentido de que a realização da constituição e ulteriormente da ciência
seja algo instintivo; antes, a estrutura da consciência, já a partir dos seus níveis mais
elementares, nos quais ainda não se pode sequer falar da consciência intencional e
objetivante, é tal que torna possível a realização da meta mais alta, o conhecimento, o
esclarecimento do sentido do mundo, que é a vocação do homem. E isto é algo que pode
causar admiração e que precisa ser filosoficamente elucidado, fundamentado.
A orientação para a constituição do mundo, e para a ciência sempre mais certa,
contudo, ainda não é todo o sentido da teleologia do ser; ou seja, a meta para a qual todo o
processo do ser da subjetividade, como telos, é orientado, não se compreende unicamente
pela aspiração ao ser verdadeiro do mundo, embora isto seja importante. A subjetividade,
pela sua operação constitutiva, não constitui apenas o mundo, mas sobretudo a si mesma, e
o processo do devir é o processo da formação do ser da própria subjetividade, do seu ser
verdadeiro. Para compreender isto, devemos levar em consideração que a vida da
consciência, para Husserl, não é apenas teórica, mas sempre também prática; o conceito da
vontade por causa disto se torna fundamental também para compreender a noção do ser da
subjetividade e a sua teleologia. A vontade é principalmente a faculdade da subjetividade
de pôr as metas e se orientar conscientemente para elas; ela é criativa, porque abre a
subjetividade para o futuro ao antecipar as metas, mas sobretudo porque cada decisão
determina o próprio ser do Eu, pelo que o Eu se torna pessoal, ganha habitualidades que
ulteriormente orientam o seu ser. A escolha e a decisão pelas metas autênticas, que
realizem a aspiração profunda do homem, é um tema importante da ética husserliana que
abre a reflexão sobre os valores que motivam a vontade. É no interior da sua
fenomenologia da vontade que Husserl ulteriormente aprofunda a questão da teleologia.
Refletindo fenomenologicamente sobre o seu próprio ser, pondo em parênteses as
múltiplas metas particulares que a pessoa assume irrefletidamente, a partir da tradição ou
como habitualidades pessoais, ou até como respostas imediatas a múltiplos impulsos, o Eu
pode descobrir em si, como horizonte latente da sua própria vontade, uma aspiração mais
Martina Korelc 56
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
fundamental. Ela é primeiramente uma aspiração à concordância e à unificação, na qual as
contradições consigo mesmo – e com os outros, como poderemos ver adiante – sejam
superadas. Assim como no campo do conhecimento, a aspiração de fundo é a de chegar à
coisa mesma, na qual todos os aspectos da coisa, e em última instância do mundo, sejam
unificados e as contradições superadas na evidência do ser da coisa, na verdade – assim
também do ponto da vista da vida da vontade há um aspirar à unificação do próprio Eu que
por meio de todos os atos determina a si mesmo e não pode ser em contradição consigo
mesmo, nas suas múltiplas metas e tarefas. A unidade do mundo é na verdade fundada na
unidade do Eu. E o Eu é unificado pela vontade unificada, pela posição e decisão da meta
mais autêntica, que realize o seu ser autêntico. O que orienta a vontade é um tender ao fim
que realize todas as aspirações e metas, que realize o Eu e lhe confira a unidade definitiva e
que possa manter-se definitivamente. Este fim é o telos que de modo primeiramente latente
motiva a vontade, mas deve tornar-se consciente e pessoalmente assumido. A unidade que
ele realiza é uma unidade teleológica.
A meta derradeira ou o telos pode ser apenas o ser autêntico da pessoa, a
perfeição do ser no sentido ético, isto é, o ideal de uma existência pessoal autêntica e
verdadeira. E por o homem ser necessariamente intencionalmente ligado a todos os outros
com os quais intersubjetivamente constitui o mundo comum, o telos da perfeição do ser
implica a perfeição da comunidade, da humanidade, isto é, uma unificação ética de homens
numa comunidade eticamente perfeita. Isto significa que o telos é uma ideia infinita,
realizável apenas num progresso infinito que implica renovação e aproximação sempre
maior.
A realização da comunidade perfeita, à qual a subjetividade transcendental está
teleologicamente orientada, implica também a constituição ou realização de um mundo no
qual este ideal ético possa ser realizado. Que isto seja de fato a aspiração dos homens no
mundo e que a sua realização seja possível – assim Husserl afirma em Erste Philosophie –,
é o fato admirável da teleologia que obriga a perguntar pela sua origem ulterior. Que o fato
da aspiração ao valor ou dever absoluto, e a possibilidade da sua realização num mundo
que os homens possam formar, pelo menos no infinito, tenha a fundamentação em Deus –
que é de fato Deus quem orienta o curso do ser dos homens e do mundo por meio dos
homens – Husserl o afirma claramente em Erste Philosophie:
Cada homem está sob um dever absoluto, que é dirigido a ele individualmente; e de novo o homem na comunidade. Este dever absoluto
Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 57
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
está em referência aos valores, o homem se satisfaz, quando segue estes. Mas o mundo é de tal modo, que não é um mundo sem sentido que não se ocuparia da realização do dever absoluto. Mesmo que em particular alguma meta absolutamente devida não seja realizada, a vida no todo contudo é traçada de tal modo, que a vida no Bem absoluto pode realizar-se. Nenhum destino cego – um Deus “rege” o mundo. O mundo “tende” a metas, valores absolutos, ele lhes prepara o caminho nos corações dos homens, os homens poderiam realizar na sua liberdade um mundo de Deus – sem dúvida mesmo através da graça divina, pela qual devem ser motivados e predispostos a aspirar a tal na plena consciência e força de vontade (Hua VIII, p. 258).
Esta teleologia é a forma ontológica do ser, isto é, a forma do processo do devir
da subjetividade transcendental. A fenomenologia, que pretende ser a elucidação radical da
subjetividade transcendental, deve portanto trazer à luz esta teleologia escondida do ser. E
isto implica, em última instância, também elucidar o seu fundamento.
Um último elemento ainda deve ser acrescentado a esta primeira parte. Alguns
anos depois da Erste Philosophie, no manuscrito E III 9 de 1931, Husserl não diz mais a
que a realização da ideia infinita da perfeição, da forma do ser da subjetividade
transcendental, seja possível ou possa ser real. A idéia da perfeição infinita é possível
apenas na forma da vontade, isto, da decisão; o ser da subjetividade é neste sentido ser da
vontade, e Husserl fala da decisão para a eternidade, que seria a vontade no sentido
próprio. No outro manuscrito afirma: “Eu posso apenas tornar-me bom, e não ser bom, mas
somente posso tornar-me bom no querer-tornar-me-bom” (Ms. E III 1, 3b). A partir da
reflexão sempre mais urgente no tempo de Husserl sobre a irracionalidade aparente do
acontecer histórico, sobre a não-aproximação da vida dos homens ao ideal teleológico,
sobre o destino e o sofrimento, sobre o mal fazendo parte da vida dos homens e da
humanidade, Husserl deve perguntar-se se de fato este telos conduz o desenvolvimento de
mundo e da história, pois pelos fatos históricos este não parece ser o caso; neste sentido, a
teleologia seria o fato enquanto aspiração e não enquanto realização. Husserl chega então à
compreensão que a fé no sentido, a fé na teleologia e no conduzir divino da história da
humanidade para o bem, não obstante o mal atual, é a condição de possibilidade da
realização da teleologia, da unificação definitiva da pessoa, a condição da possibilidade da
vida ética no mundo. A fé é a condição de possibilidade da racionalidade e
significabilidade da vida humana, a fé – o irracional – é a condição de possibilidade do
racional, e neste sentido, por tornar possível o racional, ela se torna racionalmente exigida,
segundo Husserl.
Martina Korelc 58
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
IV.
O passo seguinte nesta exposição consiste em mostrar, como segundo Husserl
Deus pode ser pensado ou conceituado, ou seja, o que Husserl diz sobre Deus.
Por um lado, para explicar a constituição do mundo que não pode ser apenas a
operação de uma consciência singular, Husserl pensa uma subjetividade superior, como um
Eu da unidade das subjetividades que abarcaria todos os Eus e todos os fluxos de
consciência singulares e abarcaria tudo o que é temporalmente constituído. Deus seria este
Eu superior e poderia ser pensado como aquele que motivaria a constituição do mundo
como um todo, por meio da sua relação intencional especial com as consciências
singulares, operando em tudo ou criando o mundo no sentido da ‘Ideia do Bem’ (Hua XV,
p. 301-302). Husserl o define como “vida infinita, infinito amor, infinita vontade, sua vida
infinita uma única atividade” (Ms. B II 2, 27a). Ele não é pensável como a própria
totalidade de subjetividades, mas diferente delas, portanto um Absoluto num sentido
último, para o qual deve haver um caminho a partir do absoluto da totalidade de
subjetividades. Husserl diz:
Deus não é a própria totalidade das mônadas, mas a Entelequeia nela existente, a Ideia do desenvolvimento infinito, do da ‘humanidade’ a partir da razão absoluta, como ordenando necessariamente o ser monádico, e ordenando-o a partir da própria livre decisão (Hua XV, p. 610).
A constituição do mundo pode ser explicada, por outro lado, pela presença de
Ideia, ou telos, na subjetividade, enquanto aquilo que motiva a constituição. E esta
presença de telos não se explica pelo mero fato da subjetividade, nem pelo mero fato da
totalidade de mônadas. Na sua origem Husserl também pensa Deus, como sendo ele a
própria Ideia da teleologia ou de telos que motiva a constituição na vida das subjetividades
transcendentais. Isto tudo, porém, deve ser ainda melhor elucidado. Para compreender a
relação entre Deus e a teleologia, Husserl refere-se de algum modo a Platão, à ideia de
Deus como ideia mais alta, Ideia do Bem, segundo a qual o mundo é ordenado e a qual
todo ser aspira. Husserl de fato define em vários textos Deus claramente como a Ideia da
perfeição do ser, da vida, a partir da qual a ideia do mundo perfeito pode ser concebida, ou
como a entelequeia de todo o desenvolvimento: “Deus como Ideia, como Ideia do ser mais
perfeito; como Ideia da vida mais perfeita, na qual se constitui o ‘mundo’ mais perfeito,
que a partir de si desenvolve criativamente o mundo espiritual mais perfeito em relação a
Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 59
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
uma natureza mais perfeita” (Hua XXVIII, p. 225-226). Esta Ideia enquanto telos não pode
ser presente na consciência como outras ideias ou formas, mas é o pólo final a qual tudo
aspira, e Husserl a chama também de “Ideia-pólo absoluto ideal”, que coincide com a razão
ou Logos absoluto e assim também com a verdade absoluta, como se exprime Husserl:
“Logos absoluto, a Verdade absoluta em sentido pleno e total, o unum, verum, bonum, aos
quais é dirigido todo o ente finito na unidade do aspirar que abarca cada ente finito” (E III
4, 36b). Enquanto Logos ou razão, Deus pode bem ser pensado como origem da ordenação
e legalidade do mundo. Relacionada a isto aparece por vezes em Husserl também uma
concepção de Deus como o ser-em-si que possui a totalidade de ciência, ou seja, como o
sujeito do saber total, da ciência absoluta, que é por sua vez também pensada em alguns
textos como o telos que dirige a história da humanidade. E de modo semelhante, a filosofia
pode também ser definida como ciência absoluta do ser absoluto, isto é, de Deus: “A
filosofia como ideia, como correlato da ideia de Deus, como ciência absoluta do ser
absoluto, como ciência da ideia pura da divindade e como ciência do ser absolutamente
existente” (Hua XXVIII, p. 226). Se Deus é pensado como Ideia da perfeição, do Bem,
pode se tornar compreensível como ele pode ser também o telos do desenvolvimento ético,
portanto o ideal do ser verdadeiro e da comunidade verdadeira e perfeita no sentido ético.
Para esclarecer este último aspecto, a dimensão ética da teleologia, precisamos entender a
relação entre a teleologia da vontade da subjetividade transcendental e Deus.
Anteriormente mencionei que é no âmbito da sua fenomenologia da vontade que Husserl
desenvolve os últimos aspectos da teleologia do ser da subjetividade transcendental,
precisamente através da noção da vontade como ato de decisão livre e refletida para o fim
mais autêntico da vida, para o ser verdadeiro e autêntico, e através da noção da vontade
como o horizonte latente, no qual opera uma aspiração teleológica, uma vontade
transcendental universal que move em direção ao telos, que move a vontade pessoal para a
escolha consciente do telos, na qual este assume a forma explícita da meta pessoal, unindo
na totalidade todos os objetivos. Ora, sobre esta vontade transcendental universal, Husserl
diz que é a vontade divina que vive em todos os sujeitos individuais. E num manuscrito
não publicado ele fala explicitamente da omni-consciência como vontade, que está sobre as
mônadas individuais e as orienta para os valores absolutos, para o Bem e Belo absolutos,
para o amor infinito: “Tudo o que é belo e bom, toda a vontade finita orientada para o bem
é um raio da vontade divina” (Ms. B II 2, 27a-27b). A vontade divina deve significar a
vontade da realização da teleologia, na medida em que Husserl identifica Deus com a
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
própria Ideia da teleologia. Assim é possível pensar que seja esta vontade a motivar a
constituição do mundo e todo o processo do desenvolvimento do ser da subjetividade
transcendental, como que a partir do horizonte da vontade monâdica.
Até aqui já se tornou mais claro, como a partir da procura do esclarecimento
radical dos nexos de motivação da auto-constituição e da constituição do mundo na
subjetividade transcendental, Husserl responde à questão do fundamento último do fato da
constituição, identificando o fundamento com Deus. Encontramos a caracterização de Deus
como Ideia absoluta da teleologia, isto é, do Bem e da Verdade absolutos, ou também o
amor infinito; por outro lado, Deus é nomeado também o Logos absoluto e a sua vontade
como aquela que vive em todos os sujeitos e os move para os valores absolutos, isto é, para
o próprio Deus e a realização da ideia da humanidade e do mundo infinitamente perfeitos.
Tudo isto pode parecer correspondente à noção cristã de Deus. Mas, devem ser
levantadas algumas questões a respeito desta concepção de Deus. Muitos comentadores
levantaram o problema da imanência ou transcendência de Deus em relação à subjetividade
transcendental. Deus é pensado por Husserl por um lado como Ideia, e assim como um
pólo infinito transcendendo o processo do ser ou do devir da subjetividade e da
intersubjetividade, mas por outro lado é identificado com este próprio processo, como o
processo da vontade, o que certamente é problemático e não pode ser aceito na
compreensão cristã de Deus. Quando Husserl fala, por exemplo, sobre o ser como processo
de devir, fala deste ser como ser divino:
Todo o ser absoluto [é] um fluxo de um devir que se harmoniza teleologicamente e está orientado para as metas ideais (devir não no sentido empírico), o fluxo uno de ser ‘divino’ e Deus é a entelequeia, ou seja, forma pura, à qual o desenvolvimento do ser no impulso do έρωϛ aspira. Mas, esta forma pura é uma ideia e contudo a ‘força eficaz’ omnipresente em todo o ser (Ms. B I 4, 55).
E definindo Deus como Ideia, procura descrevê-lo como uma Ideia
absolutamente única, com uma unicidade ontológica, mas sem deixar de ser ideia, isto é,
ser pensado. Esta ideia
traz em si unicidade ontológica, um ser, que não é Eidos, mas enquanto ser na verdade absoluta, enquanto ser em nenhuma relatividade de situação, em nenhum horizonte, mas como ente que trazendo em si tudo o que é verdadeiramente na verdade absoluta, é anuncio e realidade na necessidade absoluta – realidade no sentido de uma supra-realidade, que traz sentido, fundamenta e possibilita toda a realidade de tudo o que é relativo, de tudo o que é finito” (Ms. E III 4, 37a).
Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 61
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Pensar Deus como Ideia e como o processo do ser enquanto vontade, significa
esclarecer suficientemente o seu ser absolutamente transcendente à consciência? Seria
possível esclarecer satisfatoriamente a transcendência de Deus a partir do pressuposto
metodológico de fenomenologia de Husserl que põe a subjetividade transcendental como o
absoluto?
O pressuposto metodológico de considerar todo o ser e todo o sentido do ser a
partir da subjetividade leva Husserl a pensar também Deus, na sua transcendência, nos
limites da constituição da subjetividade transcendental.
“O apriori subjetivo é aquilo que precede o ser de Deus e do mundo e de tudo o que é para mim, que penso. Também Deus é para mim, o que ele é, a partir de minhas próprias operações de consciência [...]. Também aqui, como em relação ao Alterego, a operação da consciência certamente não significará que eu invento e faço esta transcendência mais alta” (Hua XVII, p. 258).
Num outro texto, Husserl parece indicar uma dependência da vontade divina
em relação à subjetividade ou intersubjetividade transcendental: a vontade divina
pressupõe a intersubjetividade para ser concreta.
A vontade absoluta universal, que vive em todos os sujeitos transcendentais e que torna possível o ser individual-concreto da omnisubjetividade [Allsubjektivität] transcendental, é a vontade divina, que pressupõe, porém, a intersubjetividade inteira, não como se esta a precedesse, como possível sem ela (também não como a alma pressupõe o corpo [Leib-körper]), mas como o estrato estrutural, sem o qual esta vontade não pode ser concreta (Hua XV, p. 381).
Todas estas afirmações são muito ambíguas e de difícil interpretação; apontam
assim para a dificuldade de Husserl de chegar a uma compreensão satisfatória deste
problema. O que se compreende, por exemplo, destas afirmações é que para Husserl a
operação da vontade universal de ser não é criação do mundo do nada, em sentido
absoluto, ou seja, não explica em absoluto a aparição do mundo na consciência, mas
apenas o seu progresso através dos graus do ser relativo. O que, por exemplo, não está
explicado é a origem do material que vem a ser “sempre melhor” ordenado no processo do
desenvolvimento em direção à Ideia infinita do ser perfeitamente realizado. Isto talvez seja
também uma consequência da decisão metodológica de ficar com o absoluto da
consciência transcendental. Por isso Deus parece não poder ter nenhuma realidade
independentemente da consciência e do seu processo de ser. A ideia de Deus é o Telos
infinito ideal, que aparece no fluxo infinito do ser apenas como valor infinito. Seu ser,
Martina Korelc 62
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
portanto, é o ser de ideia; por mais que esta seja absoluta e diferente de outras ideias,
superando todas como ideia de perfeição, é contudo apenas uma ideia, um ser pensado.
V.
Infelizmente, não consegui ainda apresentar algo mais definitivo e completo
sobre a metafísica a partir da fenomenologia. Além da falta de conclusões mais
sistemáticas do próprio Husserl, que não se deu por satisfeito com nada do que foi
apresentado aqui – reconhecia-se de fato ainda não preparado para falar de Deus – também
eu mesma não cheguei ainda a conclusões satisfatórias. No fim posso propor apenas
algumas questões.
1. Se a fenomenologia pretende esclarecer o sentido do ser, mas não consegue
elucidar suficientemente o sentido do ser de Deus e da sua transcendência, que é o
fundamento e a justificação última do ser da subjetividade, será que poderá em absoluto
esclarecer o sentido? O sentido do ser não se fundamenta ultimamente no próprio ser? É
justo considerar o ser da subjetividade, que pode ser legítimo ponto de partida, apenas
como o processo de consciência? Mas, será que Husserl também se deu conta disso e por
isso projetou uma ciência metafísica que não seria idêntica à fenomenologia, não trataria
do ser enquanto pensado, enquanto possível, mas do ser fático, real? Talvez as questões
metafísicas não possam ser definitivamente resolvidas pela própria fenomenologia, mas
pela metafísica que esta torna possível? Deveria se pensar melhor sobre o ser da
subjetividade e da intersubjetividade.
2.Para poder avaliar a proposta filosófica de Husserl, a sua proposta de voltar a
si mesmo para esclarecer o sentido, é confortador lembrar de Santo Agostinho que propôs
o caminho semelhante: a verdade não se encontra fora do homem, no mundo, mas no
interior, no coração do homem. Ali Agostinho encontra Deus como Verdade que habita na
alma, mas que lhe é ao mesmo tempo absolutamente exterior e infinitamente superior.
Deus de Agostinho não depende do ser do homem. Porque Husserl não chega à mesma
conclusão? A diferença talvez esteja na decisão de Husserl, por um lado, de suspender o
saber sobre Deus adquirido pela tradição, pela fé religiosa. A sua pretensão é a de chegar a
Deus sem Deus, isto é racionalmente, sem a ajuda da revelação. Na verdade, esta pretensão
impressiona. A fé que ele defende é uma fé racional, e Deus não consegue ser
compreendido desvinculado dos limites do pensamento humano. Agostinho, por outro
lado, afirma que a razão apenas faz compreender o que a fé já sabe, por acolher a Verdade
do Mestre divino que habita o coração. O que a fé sabe pela revelação divina não precisa
Questões metafísicas na fenomenologia de Husserl 63
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
nem deve ser suspenso, apenas é esclarecido pela razão. A razão humana, de fato, sozinha
não chega a Deus, porque ele se comunica e precisa simplesmente ser escutado e acolhido.
Pensemos ainda sobre isto. Ao voltar-se para o próprio interior, o filósofo pela
reflexão talvez encontre o que há nele. Agostinho dedicou o seu ser inteiro, a sua vida, a
Deus na Igreja. Husserl, por outro lado, embora fosse cristão evangélico e se tenha
considerado como um autêntico crente em Cristo, compreendeu a sua própria missão antes
na filosofia e, segundo os testemunhos, não participava da vida cristã da sua Igreja, por
considerar que isto o desviaria da missão de filósofo. Era um sincero e incansável
procurador da verdade, mas talvez não tenha conseguido na sua alma descansar na Verdade
que é Cristo, a exemplo de Agostinho. Mas, tudo isto compreenderemos talvez melhor se
nos voltarmos nós mesmos mais radicalmente para Aquele que está no nosso interior.
Referências bibliográficas
AVÉ-LALLEMANT, Eberhard. “Edmund Husserl zu Metaphysic und Religion”, in: Gerlach, Hans-Martin, Sepp, Hans Rainer, Husserl in Halle. Spurensuche im Anfang der Phänomenologie. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1994, p. 85-108.
HUSSERL, Edmund. Cartesianisce Meditationem und Pariser Vorträge. Hua I. Ed. S. Strasser, 1950. Meditações Cartesianas. Trad. Port. A. M. Magalhães. Porto: Rés, s.d.
____. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologische Philosophie. Erstes Buch. Hua III, IV, V. M. Biemel, 1952. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Trad. port. M. Suzuki. Aparecida, SP: Ideias& Letras, 2006.
____. Erste Philosophie (1923-24). Erster und Zweiter Teil. Hua VII, VIII. R. Boehm, 1959.
____. Zur Phänomenologie der Intersubjektivität. Texte aus dem Nachlass. (Dritter Teil). Hua XV. I. Kern, 1973.
____. Formale und Transcendentale Logic. Hua XVII, Den Haag: M. Nijhoff, 1974.
____. Vorlesungen über Ethik und Wertlehre. 1908-1914. Hua XXVIII. Ullrich Melle (Hrsg.). The Hague, Netherlands: Kluwer Academic Publishers, 1988.
____. Manuscritos inéditos: B I 4, B II 2, E III 1, E III 4, E III 9, E III 10.
JÄGERSCHMIDT, Adelgundis. “Gespräche mit Edmund Husserl 1931-1936”, em Stimmen der Zeit, 199, Freiburg: Verlag Herder, 1981.
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A compreensão de pessoa humana em Karol Wojtyla1
Arpuim Aguiar de Araujo2
Resumo: Karol Wojtyla busca definir o ser humano seguindo um fundamento: pessoa humana. Sua é influenciada por pensadores como Max Scheler, Emmanuel Mounier e Tomás de Aquino; por concepções fenomenológicas, personalistas e também pela questão metafísica. Tais influências acarretaram em uma filosofia própria, cujo olhar visa à compreensão do próprio homem no mundo.
Seu pensamento se interessa pela análise da integridade do próprio homem, ou seja, a pessoa humana. Para Wojtyla, é na revelação dessa pessoa humana que o próprio homem se encontra. Conceber o homem como pessoa, é dar sentido existencial a ele.
A pessoa humana tem por característica a capacidade de cognição. O seu conhecimento possibilita conhecer a verdade natural e essencial das coisas em si mesmas, captando seus fatos universais e inteligíveis. O conhecimento do homem permite a experiência humana, que por consequência acarretará em seu ato. E será por meio desses atos, que a pessoa poderá ser conhecida.
A pessoa tem por si o aspecto de destaque entre demais seres, apesar disso, não o torna isolado da relação com o mundo, da relação de vivência com os demais seres, com outros homens (o próximo) e dele com ele mesmo; pois há uma ação de experiências próprias (experiência humana) que o mantém nessa relação referida. Tal relação possibilita o homem ter acesso à sua interioridade (consciência), por meio da qual permite com que ele dê um significado e sentido determinado ao meio em que ele vive.
Wojtyla tenta assim chegar à estrutura ontológica da pessoa humana, ou seja, considerando fundamentalmente o homem em sua ação, como esta ação se manifesta imediatamente na experiência e na consciência da pessoa. Seu pensamento fundamenta a pessoa em três dimensões: a dimensão da ação; da autotranscendência e da integração. Tais dimensões impedem com que o homem seja concebido como um mero objeto.
Desta forma, a comunicação proposta terá como princípio apresentar as ideias fundamentais sobre o ser humano a partir da compreensão wojtyliana de pessoa humana, apontando para sua verdadeira posição essencial no mundo.
Palavras-chave: Pessoa humana, ato, experiência humana, conhecer, verdade e dimensões.
É um impulso próprio do homem o desejo por conhecer as coisas que o cercam
e conhecer a si mesmo. Mas por que ele conhece? Por que ele quer conhecer? Por que o
homem se atém tanto em querer conhecer o próprio homem em sua essência?
Primeiramente, o conhecer por si, está intrinsecamente relacionado à verdade,
por isso, será sempre um saber sobre a verdade daquilo que está disponível para ser
conhecido. Voltar-se para a verdade das coisas é entender a essência das mesmas, é
entender suas reais necessidades, não apenas restringindo (ou reduzindo) as coisas ao
sentido pragmático, mas compreendê-las num mundo de relações e vivências. Então, é a
1 Texto apresentado na III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz, no
dia 13 de setembro de 2011. 2 Aluno do sexto semestre do curso de Filosofia do IFTSC.
Arpuim Aguiar de Araujo 66
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
busca pela verdade, o motivo principal que o homem, que conhece, busca conhecer o
próprio homem em sua essência. É nessa questão metalinguística (o de conhecer o
conhecimento e aquele que conhece) que se começará a árdua tarefa de desvelar o ser
humano.
Nessa tarefa de cognição do próprio homem, nos deparamos com algumas
formas de pensamentos diferentes, como por exemplo, a filosofia personalista que é uma
ramificação da antropologia filosófica. A respeito das formas de pensamentos diferentes
sobre o homem, o filósofo Max Scheler afirmará, na introdução de seu ensaio
antropológico “A posição do homem no cosmos” que o ser humano é concebido de muitas
formas. O filósofo, ao se questionar sobre a palavra homem, encontra três respostas que
não se relacionam, as quais pertencem a três esferas antropológicas diferentes: uma
antropológica científico-natural, uma filosófica e outra teológica. Scheler (2003) acredita
que tais pensamentos tradicionais não possuem uma ideia una de homem, onde muitas
tentativas como as das ciências especiais, por mais valiosas que possam ser devido sua
pluralidade, acabam mais obscurecendo a essência do homem do que a iluminando. Para
Scheler, a filosofia personalista tenta resolver também esse embate dos pensamentos
tradicionais sobre a ideia do homem, visando uma base ampla por meio de pontos referidos
à essência do homem em comparação com os demais seres vivos e sua posição metafísica
peculiar.
A antropologia de Karol Wojtyla é tida como personalista, cujo pensamento é
influenciado por pensadores como Max Scheler, Emmanuel Mounier e Tomás de Aquino;
por concepções fenomenológicas, personalistas e também pela questão metafísica. Tais
influências acarretaram em uma filosofia própria, cujo olhar visa à compreensão do próprio
homem no mundo.
O pensamento wojtyliano se interessa pela análise da integridade do próprio
homem, significando que, em sua maneira, Wojtyla visa compreender a criatura humana
procurando integrá-la a todos os elementos que a compõe. Sua antropologia busca definir o
homem seguindo um fundamento próprio: pessoa humana. A partir de então Wojtyla se
“apropria” da análise da pessoa humana para compreender o homem. Para Wojtyla, é na
revelação dessa pessoa humana que o próprio homem se encontra. Conceber o homem
como pessoa é inseri-lo em seu próprio mistério, é dar sentido existencial a ele. Na
definição antropológica de Karol Wojtyla, em sua filosofia personalista, há uma relação
A compreensão de pessoa humana em Karol Wojtyla 67
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
referencial entre experiência humana e consciência. A experiência humana se encontra
como fundamento incipiente na formação da consciência.
Mas, para começar a compreensão de pessoa humana, é preciso também
compreender o que vem a ser pessoa. O termo pessoa advém do grego prósopon que
significa máscara, no latim significa persona. Essa máscara, para os gregos, está
equivalente ao sentido do personagem, e seguindo este mesmo sentido o termo pessoa foi
introduzido na linguagem filosófica pelo estoicismo popular para indicar as funções que o
homem representava na vida, como podemos perceber nas funções citadas por Epiteto: “...
que tu representes a um mendigo... a pessoa de um coxo, de um magistrado, de um homem
comum” (ABBAGNANO, 1982, p. 730). Desse conceito de função, é possível apontar
para a questão da relação, pois toda a função está sempre em relação a algo, logo esse
termo pessoa passou a ter fortemente a conotação de um ser relacional (ABBAGNANO,
1982, p. 730). Na filosofia aristotélica, essa relação estava acidentalmente adicionada à
substância da coisa.
No que se refere ao pensamento cristão, a partir de 325 d.C. a fim de evitar o
significado de pessoa como máscara, e como um acidente adicionado à substância adotou-
se a palavra grega hipóstasis, ao invés de prósopon. O filósofo Plotino (ABBAGNANO,
1982, p. 475), que influenciou no pensamento cristão da época, usou o termo hipóstasis
para determinar as três substâncias principais do mundo inteligível: o Uno, a Inteligência
(nous), e a Alma. No latim, a tradução desse termo é substantia. Na discussão cristã,
hipóstasis passou então a designar a substância individual, ou seja, exatamente a própria
pessoa, não tendo o caráter relacional como um acidente, mas sim como a própria
substância.
Deste modo, é possível deduzir que o termo pessoa não está necessariamente
relacionado ao ser humano. A definição basilar sobre pessoa para a teologia escolástica
surgiu sob influência de discussões filosóficas e cristológicas do séc. IV, a qual Boécio
afirma a pessoa como “naturae racionalis individua substantia”3 por esse motivo, é
possível estar se referindo a Deus como a pessoa divina, ou seja, na pessoa do Pai, do Filho
e do Espírito Santo.
São Tomás (ABBAGNANO, 1982, p. 730), entretanto, ao elucidar o dogma
trinitário, revalida o significado do conceito da palavra pessoa como sendo de relação,
mesmo afirmando simultaneamente a substancialidade da relação do Deus Uno e Trino:
3 Tradução de minha autoria: Ser de substância individual natural e racional.
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Assim como a divindade é Deus, assim a paternidade divina é Deus Pai, que é pessoa divina: portanto, a pessoa Divina significa a relação enquanto subsistente; isto é, significa a relação na forma da substância, que é a hipóstase subsistente na natureza divina; não obstante que aquilo que subsiste na natureza divina outra coisa não é senão a natureza divina (ABBAGNANO, 1982, p. 731).
Assim, nessa discussão metafísica, como São Tomás, Wojtyla (apud
MONDIN, 1995, p. 25) acredita que não há um termo melhor para qualificar o ser do
homem do que concebê-lo como pessoa: “Persona significat id qoud est perfectissimum in
tota natura, scilicet subsisten in natura racionali”4. No sentido comum, para São Tomás, a
pessoa é, portanto distinção e relação.
Max Scheler (ABBAGNANO, 1982, p. 732) se vale do termo pessoa para
destacá-la, de uma forma peculiar, como um ser de relação, mais especificamente, um ser
de relação com o mundo, e será essa relação que definirá essencialmente a pessoa. Desta
essência, se verifica o eu que é definido pela relação com o mundo externo, o indivíduo
pela relação com a sociedade e o corpo pela relação com o ambiente.
Em Wojtyla a pessoa humana tem por si o aspecto de destaque entre demais
seres, apesar disso, não o torna isolado da relação com o mundo, da relação de vivência
com os demais seres, com outros homens (o próximo) e dele com ele mesmo; pois há uma
ação de experiências próprias (experiência humana) que o mantém nessa relação referida.
Tal relação possibilita o homem ter acesso à sua interioridade (consciência), por meio da
qual permite com que ele dê um significado e sentido determinado ao meio em que ele
vive.
O conhecimento da pessoa possibilita conhecer a verdade natural e essencial
das coisas em si mesmas, captando seus fatos universais e inteligíveis. O conhecimento do
homem permite a experiência humana, que por consequência acarretará em seu ato. E será
por meio desses atos, que a pessoa poderá ser conhecida.
Scheler (ABBAGNANO, 1982, p. 732) afirma que a pessoa é dada somente
onde é dado um poder fazer por intermédio do corpo e, de forma precisa, é um poder fazer
que não se fundamenta somente sobre a lembrança das sensações produzidas por meio dos
movimentos externos e por meio das experiências vividas, mas também precede o agir
efetivo.
4 Tradução de minha autoria: A pessoa significa aquilo que é perfeitíssimo em toda a natureza, a
saber, ela subsiste na natureza racional.
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Para Wojtyla, o agir é a fonte do conhecimento da pessoa. Segundo Aristóteles
e São Thomas de Aquino (apud SILVA, 2005), o ato humano procede do entendimento
geral do ser e da teoria de potência e ato, isso quer dizer que, na ação do homem há uma
potência correspondente a ele que depende de ser atualizada por ele, tal potência compõe o
cerne da pessoa humana que é irredutível. O homem atua de forma própria pelo ato
voluntário, por meio do qual irá expressar sua liberdade. O ato voluntário é um sinal que há
consciência na pessoa.
Então, Wojtyla (apud SILVA, 2005), busca chegar à estrutura ontológica da
pessoa humana considerando o homem em sua ação, como ela se manifesta imediatamente
na experiência e na consciência da pessoa, seguindo o percurso do efeito à causa e não da
causa ao efeito que partem dos pressupostos da potência e do ato.
Há diferença entre a atuação consciente e a consciência de atuar. A primeira
está diretamente relacionada ao sentido atributivo o qual indica o dinamismo intencional
orientado para os objetos. Já a segunda, está para o sentido substantivo cuja referência se
volta para a dimensão reflexiva da consciência. Wojtyla se atém à consciência substantiva,
ao atuar consciente da pessoa humana; esta é uma característica constitutiva da estrutura da
pessoa em ação:
A consciência se faz presente na ação antes, durante e depois dela acontecer. O agir da pessoa encontra-se, desenvolve-se e completa-se na presença da consciência, o que é fundamental para que o ser humano tenha conhecimento de sua ação (SILVA, 2005, p.31).
Wojtyla tenta assim chegar à estrutura ontológica da pessoa humana, ou seja,
considerando fundamentalmente o homem em sua ação, como esta ação se manifesta
imediatamente na experiência e na consciência da pessoa. Seu pensamento fundamenta a
pessoa em três dimensões: a dimensão da ação (encarnação); da autotranscendência
(vocação) e da integração (comunhão). Essas dimensões impedem com que o homem seja
concebido como um mero objeto, como apenas um indivíduo, ou a um ser coletivista.
Karol Wojtyla rejeita o individualismo, porque enclausura o ser humano em si mesmo, e o coletivismo (totalitarismo), que dilui o homem na coletividade, porque o torna impessoalizante. A pessoa humana não pode ficar perdida em sua liberdade, nem reduzida a um indivíduo coletivo. A pessoa é preservada na participação, por que essa evita a alienação. A criatura humana possui, intrínseca a sua natureza, a vocação de conviver com os outros no amor. O amor é entendido como o exercício que possibilita ao ser humano a plenificação da autopossessão, da auto-realização e do convívio humano, de fato, com o seu semelhante. A
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
comunidade é constituída pela comunhão de pessoas. [...] A participação, juntamente com a integração e a transcendência, evita a coisificação do ser humano. [...] Participar significa personalizar-se. (SILVA, 2005, p. 143)
A dimensão da integração é o reflexo da relação entre a ação e a
autotranscendência, isto significa, que a comunhão é o fruto da relação entre a encarnação
e a vocação. Portanto, a realização do homem está justamente na busca pela plenificação
da relação entre essas três dimensões. Na integração, o homem intensifica o conhecimento
de si. A integração revela na consciência o próximo, pois considerando a pessoa como um
ser relacional, o conhecimento do próximo possibilitará integrá-la existencialmente numa
comunidade humana.
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2.ed. São Paulo, Editora Mestre Jou, 1982.
MONDIN, Battista. Definição filosófica da pessoa humana. Tradução de Ir. Jacinta Turolo Garcia. Palestra proferida na Universidade do Sagrado Coração, Bauru, EUDSC, 1998.
MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Tradução de Vinícius Eduardo Alves. São Paulo, Centauro, 2004.
MOIX, Candide. O pensamento de Emmanuel Mounier. Tradução de Freo Marcelo L. Simões O.P. vol. 10, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra Ltda., 1968.
SCHELER, Max. A posição do homem no cosmos. Tradução Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003.
SILVA, Paulo Cesar da. A antropologia personalista de Karol Wojtyla: pessoa e dignidade no pensamento de João Paulo II. Aparecida, SP, Idéias & Letras, 2005.
Bibliografia
BURGOS, Juan Manuel. La filosofia personalista de Karol Wojtyla. Revista Persona. Revista Iberoamericana de Personalismo Comunitário. Publicado en "Notes et documents", 2006, p. 53-64; en esta revista, por error, el artículo aparece sin citas.
CHAIGNE, Hervé. Presença de Mounier. Organizador: Jean-Marie Domenach; tradução Maria Lúcia Moreira. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1969.
WOJTYLA, Karol. Metafísica della persona: tutte le opere filosofiche e saggi integrativi. A cura di Giovanni Reale e Tadeusz Styczen. Vaticano, Libreria Editrice Vaticana; III edizione Bompiani il Pensiero Occidentale, 2005.
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Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade
Cláudio José De Carvalho
Resumo: Trata-se de um estudo sobre as relações entre a Fé e a Razão. O objetivo principal é demonstrar que a Religião Católica e a Ciência estão relacionadas e que ambas falam a mesma linguagem, porém com focos diferentes. Por muito tempo, a Religião e a Ciência se encontraram em constantes conflitos. Hoje se sabe que constitui um grande e doloroso mal entendido essa visão de incompatibilidade entre a Fé e a Razão e que ambas são como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para contemplar a verdade. O método consistiu em uma revisão bibliográfica que teve por base livros de antropologia teológica, documentos da Igreja Católica e o livro “A Origem das Espécies” de Charles Darwin. Concluiu-se que tanto a Fé como a Razão precisam uma da outra para continuar seu progresso rumo ao conhecimento da verdade e maior felicidade do próprio homem.
Palavras-chave: Religião Católica, Ciência, Fé, Razão
Introdução
Desde o início do século XVII a Ciência e a Religião Católica enfrentam
constantes conflitos (LALOUP,1960). Diferentes autores de ambas as áreas tentam
comprovar suas teorias em detrimento de seus “adversários”. Hoje se sabe que a Igreja
Católica, dentre as Religiões mais acreditadas de nosso tempo, é a que melhor acolhe a
Ciência (LALOUP,1960) e ainda a vê como cooperadora do projeto divino (TEPE, 2003).
A teoria evolucionista proposta por Charles Darwin1, em 1859, em nada ofende
a dignidade espiritual do homem e só veio confirmar o relato bíblico sobre a criação,
encontrado no livro do Gênesis, em que Deus criou de forma evolutiva, dos seres mais
“primitivos” aos mais “evoluídos” (SULDERS, 1970).
Ainda é importante o estudo de tal tema, pois a origem do homem e do mundo
sempre foi um assunto que motivou o próprio homem a formular várias hipóteses, das
quais a ciência ainda não se posicionou concretamente, e, também, percebe-se que, em
1 Quando Charles Darwin (†1882) propôs a sua teoria evolucionista, os teólogos católicos
mostraram-se contrários à mesma, pois era mecanicista ou afinalista, ateleológica; com efeito, a evolução se faria mediante a luta pela vida (struggle for life), na qual as espécies mais fracas teriam perecido, ao passo que as mais fortes terão sobrevivido. A Providência Divina ou a Sabedoria do Criador não eram devidamente consideradas. Com o tempo, porém, os pensadores católicos tomaram consciência das novas descobertas nos campos da paleontologia, da arqueologia, da biologia, e verificaram que se pode separar os dados da ciência da filosofia materialista com que Charles Darwin os interpretou. Daí a nova posição assumida oficialmente pela Igreja e formulada por Pio XII em 1950, conforme o texto da encíclica Humani Generis.
Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade 73
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todas as épocas, o homem vive uma inquietação para responder a certas perguntas como:
“de onde vim?” e “para onde vou?”. Conforme João Paulo II em sua encíclica Fides et
Ratio: “O desejo de conhecer é uma característica comum a todos os homens”.
Além disso, para uma melhor convivência entre os homens, é necessário que
haja um diálogo entre a razão e a fé, uma vez que se trata de duas dimensões essenciais de
seu ser, para que o homem continue a realizar as funções que Deus lhe atribuiu no
momento da Criação: “ser senhor e imediato representante de Deus no mundo visível”
(BITTENCOURT, sem data).
Assim, o objetivo desse trabalho é demonstrar que a Religião Católica e a
Ciência estão relacionadas e que ambas falam a mesma linguagem, porém com focos
diferentes.
Desenvolvimento
Fé e Razão constituem as duas colunas pelas quais o espírito humano se eleva
para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo
de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a ele, para que, conhecendo-o e
amando-o, possa chegar também a verdade plena sobre si próprio, o mundo e Deus (JOÃO
PAULO II, 2002).
A Igreja recebeu um mandato divino de sacralização do mundo e de todas as
suas atividades; ela há de estar presente a todos os momentos da história e em todos os
setores da atividade humana para fazer ouvir o apelo de Deus (LALOUP, 1960). Assim, a
Ciência deve respeitar algumas regras fundamentais: ter em conta que o caminho do
homem é um caminho que não permite descanso; não se pode percorrer tal caminho com
orgulho de quem pensa que tudo é fruto de conquista pessoal; e fundar-se no “temor de
Deus” (JOÃO PAULO II, 2002).
Hoje constitui um erro achar que o Deus dos cristãos é um grande obstáculo
para a ciência e aos progressos humanos. (LALOUP, 1960). Para o Concílio Ecumênico do
Vaticano II, a pesquisa científica metódica nunca será oposta à fé, e vai mais longe, vendo
o próprio Deus atuando com o cientista e este cooperando com o Criador no projeto divino
de recapitular tudo em Cristo (TEPE, 2003).
Diante dessa falsa visão de uma incompatibilidade, a Igreja proclama que a Fé
não é irracional. Por isso ela valoriza tantos homens e mulheres que aprenderam a ver na
Cláudio José de Carvalho 74
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
beleza da natureza os sinais do Mistério, do amor e da bondade de Deus, e que são sinais
luminosos que ajudam a compreender que o livro da natureza e da Sagrada Escritura falam
do mesmo Verbo que se fez carne (DA, 2007).
O Papa Leão XIII, na encíclica Providentissimus Deus, em 1893, escreve: “Os
escritores sagrados, ou, antes, o Espírito Santo, que pela boca deles falava, não tencionava
ensinar aos homens algo sobre a natureza das coisas visíveis” e que se o corpo humano tem
origem na matéria pré-existente, a alma espiritual é imediatamente criada por Deus.
Não há motivo para existir concorrência entre a Fé e a Razão: uma implica à
outra, e cada qual tem o seu espaço próprio de realização. Assim, em Deus reside a origem
de tudo, nele se encerra a plenitude do mistério, e isso constitui a sua glória; ao homem,
pelo contrário, compete o dever de investigar a verdade com a razão, e nisso está a sua
nobreza (JOÃO PAULO II, 2002). “A glória de Deus é ocultar uma coisa e a glória dos
reis é sondá-las” (Pr 25,2).
A Sagrada Escritura não foi redigida para ensinar o homem sobre ciências
naturais, mas tem em vista expor ao homem o sentido último e o valor das criaturas, e cabe
a ciência explorar e descrever sobre as coisas criadas e a forma de sua origem
(BITTENCOURT, sem data).
O livro do Gênesis, na Bíblia, descreve um desenvolvimento progressivo da
vida na terra, desde os mais imperfeitos (a matéria caótica desordenada), a separação da
terra da água, a criação das plantas, dos peixes, dos animais selvagens e domésticos até o
mais perfeito, o homem. Tal relato bíblico da criação foi confirmado pela ciência
(SMULDERS, 1970; BITTENCOURT, sem data). Todavia, a produção do homem não
termina como a dos animais, com a formação do corpo: o Criador ainda sopra em suas
narinas para lhe dar a vida. O “sopro de vida” significa simplesmente a vida, e esta é obra
do Criador e não da matéria (BITTENCOURT, sem data).
A vida que a ciência pesquisa faz parte da evolução do universo, de partículas à
galáxias, estrelas e planetas. Na terra, essa evolução produziu condições físicas, químicas e
térmicas que eram exatamente as condições certas para a decolagem dos estupendos
processos da evolução biológica. Tais condições só poderiam ter surgido em um universo
governado por leis e regularidades precisamente coordenadas. Essa mente misteriosa que
esta além e anterior ao próprio universo, o “bom senso” dos homens tem sempre chamado
de Deus (TEPE, 2003).
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Para a fé cristã, Deus é autor do universo, criador do mundo visível e invisível,
mas não o criou e deixou-o à autonomia total. Ao bem dizer, Ele NÃO “criou” uma só vez
no passado, pois Deus não conhece passado nem futuro, Ele vive no seu hoje eterno. Do
nosso ponto de vista temporal, devíamos dizer que ele continua a criar - meu pai trabalha
até hoje (Jo 5,17). (TEPE, 2003).
Deus, por seu Espírito, que enche o orbe da terra, sustenta o todo da criação e
todas as criaturas singulares, dando-lhe a “energia” e a “autonomia”, de forma relativa,
próprias para suas atividades (Ele sustenta o Ser) (TEPE, 2003).
Antes de aparecer o homem como observador, Deus observava e contemplava
com carinho a obra do universo – Deus via que tudo o que tinha feito era muito bom (cf.
Gn 1,10-31). Ao homem, Deus deu, além do papel divino de observador do mundo
subatômico, a atividade de intervir “criativamente” na natureza, descobrindo cada vez
melhor a realidade, sistematizando as descobertas e transformando-as. (TEPE, 2003).
Uma afirmação que provocou um grande desconforto, no início de pesquisas
paleontológicas, foi a de que o homem descende do macaco, isso deixou muitos cristãos
revoltados, pois esses se sentiam mais dignificados por uma interpretação fundamentalista
do Gênesis em que Deus mesmo forma o homem do barro, soprado nele o espírito da vida
(TEPE, 2003).
Se o corpo humano é matéria, nada impede que se admita a origem do mesmo a
partir da matéria viva pré-existente, porém, não se pode dizer que provem do macaco tal
como se conhece hoje, pois este já está de tal modo especializado que não evolui mais. O
corpo humano vem de um tronco mais primitivo dito “primata”, do qual teria originado os
macacos mais aperfeiçoados e o corpo humano organizado, apto a ser sede da vida humana
(BITTENCOURT, sem data).
Na teoria evolucionista, o barro vivificante permanece, mas já passado por
muitas transformações genealógicas, a genética vem para reforçar definitivamente tal
teoria e vai ainda mais longe, afirmando que todos os seres vivos descendem de uma única
célula viva que apareceu na terra há uns quatro bilhões de anos. (TEPE, 2003).
Charles Darwin em seu livro “A Origem das Espécies” (1859) termina com a
seguinte afirmação: “É realmente um sublime pensamento que o Criador tenha soprado o
germe da vida apenas em poucas formas, e talvez em uma só... Assim, de um início tão
singelo uma incontável série das mais belas e maravilhosas formas evoluiu e ainda evolui”.
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Na própria evolução se descobre a face do Criador. A teoria da evolução visa
somente ao lado exterior daquilo que o ato criador continuado de Deus realiza
sucessivamente no tempo e no espaço. (SMULDERS, 1970).
Considerações finais
A Ciência e a Religião têm uma revelação progressiva, onde no princípio um
conhecimento era suficiente para a época e com o passar dos tempos foi se tornando
obsoleto, precisando de novas pesquisas para maior clareza do assunto, é o que vemos com
a revelação do Antigo para o Novo Testamento e com as grandes descobertas feitas pela
tecnologia científica. “Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não sois capazes de
compreender agora. Quando ele vier, o Espírito da Verdade, guiar-vos-á em toda a
verdade” (Jo 16, 12-13a).
Tanto a Religião Católica quanto a Ciência falam dos mesmos assuntos, porém
com objetivos diferentes a alcançar. Em nada as explicações de uma ferem a outra, pelo
contrário, elas se apoiam para elevar o conhecimento do homem e fazê-lo descobrir o
sentido de tudo, principalmente da sua própria existência.
Há, porém, o risco de ambas se acharem independentes e percorrerem
caminhos que possam levá-las ao fanatismo, como bem nos exemplifica o mundo atual,
onde encontramos catástrofes tanto na religião, com homens explorando outros e mesmo
matando-os em nome de Deus, como na ciência, com as guerras químicas e biológicas,
abortos, aquecimento global e outros, sempre concorrendo contra a vida do próprio
homem.
Assim, a humanidade deve encontrar um equilíbrio entre o conhecimento
científico e religioso para que o mundo possa viver a verdadeira felicidade, prometida por
Jesus Cristo e que é a oferta de agradável odor (Ex 29,18) que o homem moderno pode
oferecer a Deus, seu Criador.
Religião Católica e Ciência: União versus Rivalidade 77
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Referências Bibliográficas
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova Edição, Revista e Ampliada. 5° Impressão. Editora Paulus, São Paulo, SP. 2008
BITTENCOURT, Dom Estevão OSB. Apostila de Antropologia Teológica. Fundamentação Bíblica – Antigo Testamento. Parte I: A Criação. Disponível em: <http://diacononeves.com/documentos/Cursos/ANTROPOLOGIA.doc> acessado em: 06/04/2011
DOCUMENTO DE APARECIDA (DA). Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e do Caribe, 2007. 11° Edição. Editoras: CNBB, Brasília. Paulus, São Paulo. Paulinas, São Paulo. 2009.
DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. 1859 . Tradução de: PAUL, Joaquim da Mesquita. Lello & Irmão – Editores. Porto, Portugal. 2003.
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LEÃO XIII, Papa. Providentissimus Deus: Carta Encíclica. 1893. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_18111893_providentissimus-deus_en.html. Acesso em: 01/04/2011.>
TEPE, Dom Valfredo, ofm. Antropologia Cristã: Diálogo Interdisciplinar. Editora Vozes. Petrópolis, RJ. 2003.
SMULDERS, Pieter. Fé na Criação e no Evolucionismo: in A Redescoberta do Homem: do Mito à Antropologia Crítica. Traduzido por: Luiz Leal Ferreira. Editora Vozes Limitada. Petrópolis, RJ. pag 59-84. 1970.
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
O homem: um ser composto de corpo e alma, segundo Tomás de Aquino
Divino Eterno1
Resumo: O homem, para Tomás de Aquino , encontra-se na fronteira do mundo espiritual e do mundo corpóreo, ou seja, segundo o seu pensamento, o homem é concebido como uma unidade composta de dois princípios: um orgânico, princípio corpóreo; e outro inorgânico, princípio espiritual. Na ordem corpórea, o primeiro; na ordem espiritual, o último. E ,de fato essa questão da unidade do homem ou da relação da alma com o corpo é o grande problema clássico com o qual S. Tomás se defronta. Dentre as muitas teses medievais acerca do que é o homem, a tese da pluralidade das formas substanciais hierarquizadas no mesmo composto – alma e corpo como duas substâncias dotadas de ato próprio de ser – além de atrair mais simpatias, parecia ser, na Idade Média, a mais apta para preservar a natureza da alma intelectiva, que tinha a função de governar o corpo. Todavia, rejeitando a tese da pluralidade das formas, Tomás de Aquino, segundo princípios da filosofia aristotélica – a teoria hilemórfica – afirmou a unidade substancial do composto humano, desenvolvendo, assim, a sua antropologia segundo a concepção unidual do homem. Tese que além de resguardar a unidade substancial do homem, preserva a natureza intelectiva da alma. Portanto, em sua tese acerca do homem como um ser composto de corpo e alma, Tomás não só assegurou a superioridade da alma em relação ao composto humano, como também, de certa forma, colocou o homem numa situação de sublime contraste. Ele situou o no limite entre duas realidades opostas: o mundo corpóreo e o mundo espiritual. A afirmação do homem como um ser de fronteira, o coloca, assim, na ordem da criação como um ser único, totalmente singular. O homem tanto pode sentir a matéria, como também pode ascender-se ao imaterial, ao espiritual. O homem, portanto, é o ser da transcendência, ao mesmo tempo em que é o ser da imanência.
Palavras-chave: alma, corpo, hilemorfismo, unidade, substancial.
O homem, segundo Tomás de Aquino2, encontra-se na fronteira do mundo
espiritual e do mundo corpóreo, ou seja, de acordo com o seu pensamento, o homem é
concebido como uma unidade composta de dois princípios: um orgânico; e outro
inorgânico. Segundo Vaz (1991, p. 69), na perspectiva da definição clássica acerca do que
é o homem, a questão da unidade do homem ou da relação da alma com o corpo é o grande
problema com o qual S. Tomás defronta-se; problema tal “que se apresenta como um dos
temas mais vivamente polêmicos da filosofia medieval” (VAZ, 1991, p. 69). Dentre as
muitas teses medievais acerca do que é o homem, a tese da pluralidade das formas
substanciais hierarquizadas no mesmo composto – alma e corpo como duas substâncias
dotadas de ato próprio de ser – além de atrair mais simpatias, parecia ser, na Idade Média,
a mais apta para preservar a natureza da alma intelectiva, que tinha a função de governar o
1 Aluno do 3º Ano do curso de Teologia no Instituto Santa Cruz. 2 S. T. I, q. 77, a. 2, resp.
A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 79
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
corpo. Todavia, Tomás rejeitou essa perspectiva de conceber o homem, e, a partir de
elementos da filosofia aristotélica – a teoria hilemórfica – afirmou a unidade substancial do
composto humano, desenvolvendo, assim, a sua antropologia segundo a concepção unidual
do homem. Tese que, além de resguardar a unidade substancial do homem, preserva a
natureza intelectiva da alma.
Na história do pensamento filosófico antropológico, a discussão acerca da
unicidade ou não-unicidade do homem se deu sob o signo da divergência. De acordo com
Mondin (1987, p. 272), esse problema suscitou ao longo da história da filosofia soluções
muito variadas e contrastantes. Ele afirma que de acordo com o pensamento de alguns
filósofos, a alma é uma substância, cuja substancialidade identifica-se com a do homem, ou
seja, o homem é a alma; para outros, a alma não é uma substância, mas um acidente, isto é,
mera função da matéria, para estes o homem é o corpo; e para um terceiro grupo, a alma é
uma substância completa, dotada de ato próprio de ser, mas que não se identifica com a
substancialidade do homem, pois esta compreende também o corpo.
Em Platão, por exemplo, a concepção acerca do homem se deu sob a
perspectiva dualista: corpo e alma. Na qual a alma é o princípio superior. A definição do
que seja o ser humano, o princípio que define o que é o homem. O corpo, nessa relação, é
tido apenas como o cárcere da alma. Uma barreira, um obstáculo que impede ou dificulta a
alma de atingir o seu mais alto estado de ser: a contemplação do Belo, da coisa em si. E, de
fato, Reale afirma que o corpo, no pensamento platônico, é concebido não como um
receptáculo da alma que lhe possibilidade desenvolver as suas faculdades, mas “como
‘túmulo’ e ‘cárcere’ da alma e lugar de expiação” (REALE, 1994, p. 203). O corpo é,
assim, o princípio inferior, o engano, a prisão na qual a alma deve purificar-se. Portanto,
nessa perspectiva, “enquanto temos um corpo, estamos mortos porque somos,
fundamentalmente, a nossa alma” (REALE, 1994, p. 203).
Nesse sentido dualista acerca da concepção do homem, apontamos também
Descartes, cuja antropologia se deu segundo a estrutura dualista cartesiana: res cogitans,
para designar o mundo espiritual: a alma; e res extensa, para designar o mundo corpóreo.
A única certeza imediata que Descartes tem é o cogito, o “eu penso”; ou seja, única certeza
que lhe é imediata é a consciência; isto é, a alma. Portanto, de acordo com João Ameal
(1947, p. 371), tanto para Descartes como para Platão e os idealistas que o seguiram, o
homem é identificado como a sua alma. Concepção esta que Ameal designa como ilusão.
Ilusão por duas razões principais: primeiro, a alma não é espírito puro; segundo, a alma
Divino Eterno 80
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
não é substância completa. Ela não é espírito puro “porque o seu caráter específico é o de
tender a unir-se a um corpo; não é substância completa porque não pode, por si só, realizar
todas as suas operações, como a vegetativa e a sensitiva” (AMEAL, 1947, p. 371). Para os
idealistas, portanto, o homem não era uma unidade substancial intrínseca, mas a união
entre duas substâncias completas, enquanto dotadas de ato próprio de ser, assim como o
timoneiro e o barco.
Para os materialistas, o homem é identificado como o corpo. Segundo o
materialismo, tudo é matéria, pois o ser seria o mesmo que a corporeidade, sendo, portanto,
o espírito mera função da matéria. É o mesmo princípio dos atomistas, em que toda
realidade se resume a pequenas partículas de matéria. Segundo uma afirmação do
materialista Jakob Moleschott (apud FILHO, 2004, p. 269), “o homem é aquilo que come”.
Portanto, segundo o materialismo, o princípio substancial que identifica o homem é a
matéria: o homem é o seu corpo.
Por outro lado, partindo do hilemorfismo, que segundo Selvaggi (1988, p. 399),
"é o centro não só da filosofia da natureza [...], mas também de toda a filosofia
aristotélica”, São Tomás desenvolveu a sua concepção do ser humano, definindo o homem
como uma unidade formada por dois elementos distintos: a matéria-primeira
(potencialidade) e a forma substancial (princípio realizador). Na sua concepção, a alma e o
corpo não são considerados como duas substâncias completas por si mesmas. “O homem
não é só alma, mas é algo composto de alma e corpo”.3 Não há, portanto, um ato de ser do
corpo e outro da alma. “O ato de ser é um só, o da alma, ao qual desde o primeiro instante
do seu existir dele faz participar também o corpo” (MONDIN, 1987, p. 275). Essa relação
de unidade entre a alma e o corpo não é simplesmente o encontro entre duas substâncias
completas, dotadas de um ser autônomo, mas trata-se de elementos substanciais em que
pelo menos o corpo não dispõe de um próprio ato de ser. Essa relação configura-se com a
união da forma substancial com a matéria, da qual se engendra uma substância nova.
Assim, segundo S. Tomás, a alma e o corpo formam uma única substância: o homem. Há,
portanto, um único ato de ser: o da alma, do qual o corpo participa.
Acerca do hilemorfismo, “O nome de teoria hilemórfica (de duas palavras
gregas que significam matéria e forma) foi dado à doutrina, proposta inicialmente por
ARISTÓTELES, que define a essência dos corpos como resultante da união de dois
3 S. T. I, q. 75. a. 4, resp.
A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 81
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
princípios chamados matéria e forma” (JOLIVET, 1998, p. 112) 4. Portanto, em relação à
teoria hilemórfica, entende-se a doutrina que explica a composição última de qualquer
corpo por duas substâncias incompletas: matéria substancial e forma substancial. A matéria
constitui-se o elemento indeterminado, e a forma o elemento determinante, aquele que irá
atualizar a matéria, imprimindo nela determinada forma. Neste sentido, o corpo é a
matéria-prima, isto é, “potência e pura potência [...] capaz de converter-se em qualquer
corpo, graças a sua absoluta indeterminação original” (JOLIVET, 1998, p. 113)5; e a alma
a forma, isto é, forma substancial, pois “é por ela que a matéria se torna tal corpo. É por
isto que se diz que a forma é ato da matéria. Assim, a alma racional (forma substancial) é
o ato que faz da matéria-prima um corpo humano” (JOLIVET, 1998, p. 113). E de fato, S.
Tomás afirma o seguinte: “A alma que é princípio da vida não é corpo, mas ato do corpo,
assim como o calor, que é princípio do aquecimento, não é corpo, mas um ato do corpo”.6
Portanto, a alma é ato do corpo. Como ato, ela é o primeiro princípio vital do corpo,
enquanto este é o princípio das operações. “O primeiro [princípio] pelo qual um corpo vive
é a alma. [...] Por conseguinte, esse princípio [...] é a forma do corpo”.7 E é por esta mesma
forma que o homem é um ser em ato, um corpo, um ser vivo, um animal e um homem;
pois, a alma, como forma perfeita, contém virtualmente todas as perfeições das formas
inferiores: alma vegetativa e sensitiva.8
Na teoria hilemórfica, toda matéria-prima e forma substancial são princípios de
ser; ou seja, elas não são seres, pois a matéria-prima e a forma substancial não podem
existir como tal, com exceção da alma humana. Ela para existir necessita de um corpo, pois
a sua criação é concomitante à sua infusão no corpo, ao qual ela imprime ser.9 No entanto,
após a união com o corpo, a alma pode a qualquer momento separar-se dele. E essa
separação não implicará no seu fim, pois ela, como sendo espírito, é incorruptível. Acerca
da incorruptibilidade da alma, S. Tomás diz o seguinte:
É necessário dizer que a alma humana, que chamamos de princípio intelectivo, é incorruptível. Ora, uma coisa se corrompe de duas maneiras: por si ou por acidente. É impossível ao que é subsistente ser
4 Grifo do autor. 5 Itálico do autor. 6 S. T. I, q. 75, a. 1, resp. 7 S. T. I, q. 76, a. 1, resp. 8 Cf. S. T. I, q. 76, a. 6, quanto ao 1º. 9 Acerca da criação da alma, o Ameal pergunta: “em que momento cria Deus a alma humana?”. E,
em seqüencia, nos dá a resposta: “No memento da sua união com o corpo” (1947, p. 388). Também nessa linha, Hugon sublinha: “O momento da criação da alma é o da infusão no corpo” (1998, p. 134).
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
gerado ou corromper-se por acidente, isto é, por algo gerado ou corrompido. Assim compete a uma coisa ser gerada ou corrompida, como também o ser, o qual se recebe por geração e se perde por corrupção. Por isso aquilo que tem o ser por si não pode ser gerado ou corrompido por si. As coisas que não subsistem, como os acidentes e as formas materiais, são feitas ou se corrompem pela geração ou corrupção do composto. – Acima foi demonstrado que as almas dos animais não subsistem por si, mas apenas a alma humana. Portanto, as almas dos animais se corrompem quando o corpo se corrompe, e a alma humana não pode se corromper a não ser que se corrompesse por si. Que isso aconteça é absolutamente impossível, não só para a alma humana, como também para todo subsistente que é só forma10.
Em relação à unidade entre a forma e a matéria-prima, essa unidade constitui
uma única espécie. De fato, o Padre Édouard Hugon sublinha: “o corpo e alma estão entre
si como a matéria e a forma, porque da sua união resulta uma só pessoa e uma só natureza”
(1998, p. 140). Essa unidade substancial que se dá entre o corpo e a alma é tão profunda
que em todas as operações do homem há sempre uma contribuição tanto do corpo quanto
da alma. De fato, em todas as ações do homem, “o que atua não é a alma desligada do
corpo, nem o corpo desligado da alma; é o composto da alma e do corpo, o homem integro,
a pessoa” (1947, p. 383). De fato, em todas as ações humanas é o composto que atua, mas
segundo a sua forma que é a alma; pois esta, como primeiro princípio vital do composto
humano, é o princípio de todas as faculdades, embora ela seja o sujeito das faculdades
inorgânicas, enquanto o composto humano é o sujeito das faculdades orgânicas.
No homem, portanto, não há como definir, ou apontar os limites objetivos do
corpo e da alma. Ou, então, como muitos pensadores tentaram indicar no corpo humano o
lugar preciso no qual está localizado a alma. Descartes, por exemplo, dizia que a alma
estava localizada na glândula pineal. Além disso, Ameal (1947, p. 378) afirma também
que:
Certo número de antigos filósofos, [...] consideram a alma acidentalmente instalada numa determinada parte do corpo, donde dirigia as operações vitais como dum posto de comando. Platão, por exemplo, situa na cabeça; Epicuro e os Estoicos, no coração; Homero e Empédocles, no sangue; Parmênides, no peito.
Para S. Tomás, diferentemente dos filósofos que afirmavam que a alma estava
localizada em determinada parte do corpo, a alma encontra-se em todo o corpo. Segundo,
seu pensamento,
10 S. T. q. 75, a. 6, resp.
A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 83
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A alma encontra-se em todo o corpo que anima; nele se expande, não por difusão local, mas como atividade vivificadora; está, com efeito, presente, por inteiro, nas mais pequenas partes do corpo; [...] mas em algumas partes do organismo manifesta mais atividade e menos noutros; está inteiramente em todo o corpo e inteiramente em cada uma das suas partes11.
Além disso, para Tomás, não haverá uma única alma para vários corpos, assim
como pensava Averroes; ou várias almas em um só corpo: um princípio vegetativo, um
sensitivo e um intelectivo – os dois primeiros corruptíveis, e o último, incorruptível –
assim como afirmava Platão. Erros, aliás, combatidos por S. Tomás. Refutando Averroes,
ele afirma que “é impossível que haja uma única forma para várias realidades
numericamente distintas, como é impossível que essas realidades numericamente distintas
tenham um único ser. Pois que o princípio do ser é a forma”.12 Por outro lado, refutando
Platão, o aquinense afirma que “se aceitamos que a alma está unida ao corpo como uma
forma, é totalmente impossível que haja em um mesmo corpo várias almas essencialmente
diferentes”. Pois, “nada é absolutamente uno, a não ser por uma única forma pela a qual se
tem o ser”.13 Ou seja, o princípio que dá o ser e a unidade a uma coisa é o mesmo. Por
conseguinte, se, segundo o argumento de Platão, o homem fosse vivo graças a uma
primeira forma, a alma vegetativa; se fosse animal graças a uma segunda forma, a alma
sensitiva; e se fosse homem graças a uma terceira forma, a alma racional, então, seguir-se-
ia que o homem não possuiria unidade perfeita. No entanto, segundo Tomás, “a alma
intelectiva contém virtualmente tudo o que tem a alma sensitiva dos animais e a alma
vegetativa das plantas”14.
O homem, portanto, de acordo com a exposição do pensamento tomista, é uma
unidade perfeita, completa, composta de uma única alma e um único corpo. Mas, em
relação a essa unidade do composto humano, qual seria o momento da união substancial
entre a alma e o corpo? Esse momento se dá quando o corpo está suficientemente disposto;
ou seja, no momento da concepção. No entanto, Hugon afirma que “S. Tomás e os antigos
pensavam que tal não seria desde o instante da concepção” (HUGON, 1998, p. 135). No
entanto, se analisarmos a questão à luz da teoria hilemórfica, que é a principal base teórica
da filosofia antropológica de Tomás, concluiremos que em sua antropologia, o momento da
11 De Trinitate, lib. IV, cap. 6 Apud AMEAL, 1947, p. 380. 12 S. T. I, q. 76, a. 2, resp. 13 S. T. I, q. 76, a. 3. 14 Idem.
Divino Eterno 84
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
união substancial entre a alma e o corpo, necessariamente, se dá na concepção. Pois, de
acordo com o hilemorfismo, a matéria-prima e a forma substancial por si mesmas não
podem engendrar uma nova espécie. O engendramento de uma nova espécie se dá no ato
da forma, no qual a matéria participa como potência que recebe da forma o seu ato de ser.
Portanto, é impossível ao corpo humano se desenvolver por si mesmo, uma vez que a alma
é o seu princípio vital. A constituição do homem se dá no ato da alma, do qual o corpo
participa como o elemento substancial que recebe em si o ato de ser, realizado pela alma.
Assim, o momento da infusão da alma no corpo, de fato, se dá na concepção. A vida,
portanto, em seu sentido pleno de desenvolvimento inicia-se na concepção.
A originalidade de Tomás, neste sentido, segundo Ameal (1947, p. 382),
consiste no seu ato de considerar a relação entre a alma e o corpo não como problema de
união entre duas substâncias que se supõem completas, mas em considerar essa relação
como de união entre duas substâncias incompletas, para formar um ser composto. E, de
fato, Vaz (1991) sublinha que a engenhosidade de Tomás nesta tarefa se deu justamente
em ele conceber uma teoria acerca do homem, na qual assegurasse tanto a condição física
quanto a condição espiritual do homem como dimensões constituintes de um mesmo
composto, sem, todavia, ameaçar a condição superior da alma em relação ao corpo.
Portanto, em sua tese acerca do homem como um ser composto de corpo e alma, Tomás
não só assegurou a superioridade da alma em relação ao composto humano, como também,
de certa forma, colocou o homem numa situação de sublime contraste. Ele situou o homem
no limite entre duas realidades opostas: o mundo corpóreo e o mundo espiritual. A
afirmação do homem como um ser de fronteira, o coloca na ordem da criação como um ser
único, totalmente singular. O homem tanto pode sentir a matéria, como também pode
ascender-se ao imaterial, ao espiritual. O homem é o ser da transcendência, ao mesmo
tempo em que é o ser da imanência.
A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 85
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Referências Bibliográficas
AMEAL, João. São Tomás de Aquino. 3 ed. Porto, Livraria Tavares Martins, 1947.
FILHO, Ives Gandra Martins. Manual esquemático da história da filosofia. 3 ed. rev. ampl. São Paulo, LTr, 2004. p. 269 – 270.
HUGON, Padre Édouard. Os princípios da filosofia de São Tomás de Aquino: as vinte e quatro teses fundamentais. Tradução de D. Odilão Moura O. S. B. Porto Alegre, EDIPUCRs, 1998.
JOLIVET, Régis. Curso de filosofia. Tradução de Eduardo Prado de Mendonça. 20 ed. Rio de Janeiro, Agir, 1998.
LAUAND, Luiz Jean. Tomás de Aquino: vida e pensamento – estudo introdutório geral. In: . Verdade e Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MONDIN, B. O homem, quem é ele? São Paulo, Paulinas, 1987.
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz; Marcelo Perine. São Paulo, Loyola, 1994. vol. II.
SELVAGGI, Filippo. Filosofia do mundo: cosmologia filosófica. Tradução de Alexander a. MacIntyre. São Paulo, Loyola, 1988.
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica: a criação, o anjo, o homem. São Paulo, Loyola, 2002. Part. 1, v. 2.
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia filosófica I. 3 ed. São Paulo, Loyola, 1991.
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos De Bento XVI1
Mário Correia2
Resumo: No mundo de belezas e verdades, onde Deus não é atraente, os ensinamentos do Papa Bento XVI tem sido marcados pelos temas Beleza e Verdade. Em um de seus discursos ele disse que “o mundo precisa de beleza”. Em outro afirmou: “a beleza é a grande necessidade do homem”. Que beleza o mundo precisa? Que beleza o homem necessita? São essas as perguntas que vão nortear o nosso discurso. Para tecer argumentos, recorrerei aos ensinamentos do papa, mas também farei uso de alguns de seus escritos enquanto cardeal. Feito isso, considerações serão desenvolvidas para justificar a afirmação de que a beleza, a qual o Papa se refere, é aquela que manifesta a Verdade. É uma beleza coerente, fascinante, que envolve todas as nossas realidades dando lhes sentido e significados. É uma beleza que atrai o ‘apático mundo’ à Verdade que é uma pessoa: Jesus Cristo, “o mais belo entre os filhos dos homens”, Beleza que nos salva, “que espalha a graça, o encanto”.
Palavras-chaves: Beleza, mundo, homem, Verdade.
"A humanidade pode viver sem a ciência, pode viver sem pão,
mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para fazer no mundo.
Qualquer segredo consiste nisto, toda a história consiste nisto". (Dostoievsky).
No mundo de belezas e verdades, onde Deus não é atraente, os ensinamentos do
Papa Bento XVI têm sido marcados pelos temas Beleza e Verdade. Pode parecer
anacrônico falar desses temas na atualidade. No entanto, no contexto atual, o debate sobre
esses temas não é só sugerido, como tem sido necessário. Não se limitando ao campo
cultural e artístico, eles provocam discussões também no âmbito religioso-espiritual e até
na vivência cotidiana. Dessas discussões é preciso emergir a certeza de que os dois temas,
beleza e verdade, não estão desvinculados, ao contrário, a beleza mostra a verdade e a
verdade reflete a beleza. Estando desvinculados, o resultado é um esteticismo efêmero,
banal e superficial, que conduz o homem ao vazio, ao absurdo.
Essa realidade não nos parece distante. São por estas e outras razões que o papa
Bento XVI, intensificando o que disse seus predecessores, tem gastado tempo em seus
ensinamentos com esse assunto, despertando interesses, encantamento, mas também
1 Texto apresentado na III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz, no dia 16. 09.2011.
2 Acadêmico do 2º ano do curso de Teologia do IFTSC.
A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 87
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
inquietações. Sua posição é fundada na certeza de que a beleza manifesta a verdade e o seu
caminho “é um percurso privilegiado e fascinante para se aproximar do Mistério de Deus”
3. Na confusão de um mundo materialista, neo-pagão e secularizado, o papa tem insistido
na recuperação da via pulchritudinis como um dos métodos mais profícuos para o anúncio
da Verdade. Esta via – via da Beleza – é capaz de despertar o homem de seu profundo
torpor, é capaz de dar “uma saudável sacudidela que o leve a sair de si mesmo, que o
arranque da resignação, da comodidade diária”4.
A via da Beleza tem nas expressões artísticas um meio privilegiado, mas não único,
para sua instauração. No encontro que o papa teve com os artistas em novembro de 2009,
ele expressou o desejo de renovar a amizade da Igreja com o mundo da arte – com os
“guardiões da beleza” – tão necessária nos nossos dias marcados por mudanças sociais e
culturais. Naquela ocasião, analisando a crise em que o mundo se encontra em seus
diversos âmbitos, o Papa atribuiu as suas causas a um enfraquecimento da esperança e
desconfiança nas relações humanas, que manifestam sinais de resignação e, sobretudo, de
agressividade e desespero. Diante disso, “somente a beleza, diz o papa, pode oferecer
novamente, entusiasmo e confiança. A experiência do belo autêntico... leva a um confronto
cerrado com a vivência diária, para libertá-la da escuridão e para transfigurá-la, tornando-a
luminosa e bela”5. Por isso, retomando Paulo VI, o papa atualizou a veemente afirmação:
“o mundo precisa de beleza para não cair no desespero”6. Um ano depois, na dedicação do
altar da Sagrada Família em Barcelona, em um parecido discurso, fez uma constatação: “a
beleza é a grande necessidade do homem”7. Estas duas afirmações geram inquietações e
nos faz perguntar: de que beleza o mundo precisa? De que beleza o homem necessita? São
essas as perguntas que vão nortear o nosso discurso. Para tecer argumentos, recorrerei aos
ensinamentos do papa, mas também farei uso de alguns de seus escritos enquanto cardeal.
A beleza, a qual o papa se refere, é coerente. É uma coerência que se manifesta, de
modo evidente, na Criação, na Revelação e na sua Transmissão, mas, sobretudo, no
homem, enquanto receptor da Revelação. A coerência da obra criada “permite reconhecer a
face do Criador” e recorda que o “mundo não é produzido pela obscuridade e pelo absurdo.
3 BENTO XVI, Audiência geral, 18 de novembro de 2009. 4 Idem, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009. 5 BENTO XVI, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009. 6 Idem, ibidem. 7 Idem, Homilia da Missa dedicada ao altar e à Igreja da Sagrada Família, 7 de novembro de 2010.
Mário Correia 88
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Ele deriva de uma inteligência, de uma liberdade, deriva de uma beleza que é amor”8.
Fazendo um mundo belo e coerente, o próprio Deus se revela e a criação se torna uma
expressão, testemunha de sua beleza e plenitude coerente. É uma beleza manifestada
também na Revelação expressa na Bíblia e na Tradição, melhor, na junção delas. A
complexidade e a unidade dessas fontes são incomparavelmente belas9. Também o
Magistério, na Transmissão da Revelação, manifesta a beleza coerente em sua bela
organicidade que, nas palavras de Ratzinger, é uma “beleza que reluz o esplendor da
verdade”10. Portanto, Criação, Revelação e Magistério formam uma unidade coerente e,
por conseguinte, bela. Quem percebe essa harmonia se sente atraído, fascinado, ainda que
não consiga entender todos os seus matizes.
Mas, entre as coisas criadas, o homem é um ser particular da beleza divina: ele “é
um reflexo daquela beleza originária que é Deus”11. Recepcionando a Revelação, o homem
pode tornar-se especialmente belo em virtude da graça que daí vem e que o capacita a
reconhecer “em si o reflexo da luz divina”12. Não se trata de uma beleza puramente
estética ou heroica, mas plenamente humana e revelada por Cristo. Unido a ele, o homem
se santifica, representando assim de modo particular a beleza divina. Outro modo humano
de testemunhar a coerência da beleza cristã e potencializar a humanidade são as “obras que
nasceram da fé e que a expressam”13. Junto com a santidade, as obras inspiradas na fé são
“verdadeira apologia do Cristianismo, ou melhor, a prova mais persuasiva da sua
verdade”14. Diante disso, se a Igreja quer que a fé ainda continue crescendo, com certeza,
um meio eficaz é levar o homem de hoje a ter o contato com os santos, o contato com o
8 RATZINGER, Joseph. Apud, Charles Morerod, A beleza na Teologia de Joseph Ratzinger, in
http://www.movimentoliturgico.com.br/Portal/index.php?option=com_content&view=article&id=362%3Aliturgia-a-beleza-na-teologia-de-joseph-ratzinger&catid=42%3Acat-artigos-liturgia&Itemid=53&showall=1
9 cf. Idem. Dio e il mondo, Essere cristiani nel nuovo millennio, In colloquio con Peter Seewald, Edizioni Paoline, Cinisello Balsamo, 2000, p. 208.
10 Idem. Ibidem. 11 BENTO XVI, Audiência geral, 29 de agosto de 2007. 12 Idem, ibidem. 13 Idem. Audiência Geral, 31 de Agosto de 2011.
14 RATZINGER, Joseph. Apud, Charles Morerod, A beleza na Teologia de Joseph Ratzinger, in http://www.movimentoliturgico.com.br/Portal/index.php?option=com_content&view=article&id=362%3Aliturgia-a-beleza-na-teologia-de-joseph-ratzinger&catid=42%3Acat-artigos-liturgia&Itemid=53&showall=1
A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 89
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
belo: “não foi porventura a beleza que a fé gerou no rosto dos santos a estimular muitos
homens e mulheres a seguir as suas pegadas?”15?
A Beleza cristã não é superficial, nem alienante. Por ser coerente, ela envolve todas
as realidades humanas, inclusive aquelas que aparentemente não nos atraem, como a dor e
o sofrimento, dando-lhes sentido, revelando sua verdade. Estamos assim diante do
paradoxo da beleza que encontramos nuanças em Cristo, “o mais belo entre os filhos dos
homens” (Sl 45,3), mas também sem “beleza nem aparência... [com] uma fisionomia
desfigurada pela dor” (Is 53,2). Como conciliar esse paradoxo? Uma questão mais
decisiva: é a beleza ou a feiura, expressa no sofrimento, que manifesta a verdade mais
profunda? A conciliação e a resposta é o próprio Cristo que, mesmo desfigurado, continua
revelando a suprema verdade de que Deus é amor. Nele “encontram-se a beleza da verdade
e a beleza do amor; mas o amor, sabemo-lo, requer também a disponibilidade para sofrer,
uma disponibilidade que pode chegar até à doação da vida por quem se ama (cf. Jo 15,
13)”16. A beleza da verdade inclui a ofensa, a dor e até a morte. Em Cristo essa realidade é
evidenciada: a beleza não recusa a dor, antes, dá-lhe sentido. Acreditar nessa verdade é
indispensável para que a beleza cristã não seja um conceito estético, indiferente à dor e ao
sofrimento humano. Portanto, a beleza cristã, a qual o papa se refere, inclui o paradoxo da
cruz, pois nela se revela a Verdade sobre o sofrimento do homem.
A autêntica beleza suscita no homem o movimento transcendental. Mas o homem
também pode encantar-se com beleza que o faz voltar para si mesmo e, ao invés de
liberdade, ela se torna uma prisão. Tal beleza, diz o papa, é
ilusória e falsa, superficial e sedutora até ao aturdimento e, em vez de fazer sair os homens de si e de os abrir a horizontes de verdadeira liberdade atraindo-os para o alto, aprisiona-os em si mesmos e torna-os ainda mais escravos, privados de esperança e de alegria. Trata-se de uma beleza sedutora, mas hipócrita [...]. Ao contrário, a autêntica beleza abre o coração humano à nostalgia, ao desejo profundo de conhecer, de amar, de ir para o Alto, para o Além de si.17
A beleza ilusória e falsa leva o homem a encurvar em si, o conduz ao absurdo, ao
vazio, ao desespero ou ao contentamento com uma beleza fugaz e limitada. Ao contrário, a
autêntica beleza suscita conversão transcendental, a abertura relacional e profunda com o
15 BENTO XVI, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e
das Novas Comunidades, 22 de maio 2006. 16 Idem, ibidem. 17 Idem, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009.
Mário Correia 90
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
outro, com a criação e com Deus. Ela desperta um relacionamento cativante, fascinante e
atraente. Infelizmente, essa verdade não parece tão evidente entre os cristãos. Parece que
muitos estão cansados diante da beleza de sua fé e outros a buscam fora do cristianismo,
fora da Igreja. A realidade de cansaço, de desencanto na vida interna da Igreja, não permite
fazer vir à luz a beleza da Verdade professada e anunciada. Algo de errado acontece...
É preciso que os cristãos voltem a redescobrir o encanto, o fascínio e a atração de
sua Beleza, “tão antiga e tão nova”18, para poder mostrá-la, nos dias de hoje, aos homens
de hoje. Um dos espaços privilegiados para resplandecer essa Beleza é a Celebração
Litúrgica. Uma digna Celebração ajuda a reconhecer que a “liturgia é a mais alta expressão
da beleza da glória de Deus, e constitui de alguma maneira um debruçar-se do Céu sobre a
Terra”19. Ela, antes de tudo, não é obra humana, mas divina. É de se lamentar a situação de
muitas de nossas Celebrações. Infelizmente, a concepção utilitarista tem invadido nossas
igrejas e empobrecendo as ações Litúrgicas, diminuindo a beleza e tornando-a,
simplesmente, “útil”. O resultado é o gosto banal e medíocre que traz consigo o cansaço, o
tédio e, no extremo, o vazio. Outro inimigo tem sido a falsa simplicidade que gera
banalidade. As Celebrações Litúrgicas, lembra Ratzinger, devem ser simples: “mas simples
não significa de baixo nível. Há a simplicidade do banal e a simplicidade que é a expressão
da maturidade”20. Não é fácil organizar uma digna Celebração Litúrgica, no entanto, os
limites de tantas situações não podem ser normas para todos, nem álibi para o descuido, a
falta de decoro. Que no final das nossas celebrações, o cristão não saia da igreja com a
mesma miséria com a qual chegou. É preciso despertar nele o entusiasmo com a realidade
a que se espera, com a vida eterna já começada. As Celebrações Litúrgicas faz isso
manifestando o Belo, mas não de modo banal.
A beleza é um caminho, um dos itinerários mais atraentes e fascinantes para se
chegar a Deus, para encontrar a Verdade. Outro lugar privilegiado para resplandecer a
beleza cristã é a caridade, o amor em ato. Como a beleza, a caridade também é inseparável
da verdade. Aliás, “verdade e caridade coincidem”, encontrar a verdade é viver na
caridade. É precisamente a união das duas, “da sinfonia, da harmonia perfeita entre
18 Santo Agostinho, Confissões, X, 27. 19 BENTO XVI, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e
das Novas Comunidades, 22 maio de 2006. 20 RATZINGER, Joseph. Apud, Charles Morerod, A beleza na Teologia de Joseph Ratzinger, in
http://www.movimentoliturgico.com.br/Portal/index.php?option=com_content&view=article&id=362%3Aliturgia-a-beleza-na-teologia-de-joseph-ratzinger&catid=42%3Acat-artigos-liturgia&Itemid=53&showall=1
A Beleza como manifestação da Verdade nos Ensinamentos de Bento XVI 91
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
verdade e caridade, que emana a beleza autêntica, capaz de suscitar admiração, maravilha e
alegria verdadeira no coração dos homens”21. O mundo precisa da verdade que resplandece
e rompe com a mentira, com a banalidade. O homem precisa da caridade que inflame seu
coração e o liberte do orgulho, do egoísmo, de si mesmo. Diz o papa: “temos necessidade
de que a beleza da verdade e da caridade alcance o íntimo do nosso coração e o torne mais
humano”22. É o crente, o cristão, por meio de sua união com seu Mestre, o maior
responsável para manifestar e exprimir a beleza, a excelente síntese da verdade e da
caridade. Para tanto, o seu testemunho precisa ser nutrido por essa beleza, o anúncio que
ele faz precisa ser visível, entusiasmante, alegre e atraente. Sua vida precisa ser uma
eloquente transparência da beleza emanada da Verdade e da Caridade. Cabe aos cristãos,
enfatiza o papa, fazer com que a autêntica
beleza suscite no olhar e no coração de quantos as admiram o desejo e a necessidade de tornar bela e verdadeira a existência, cada existência, enriquecendo-a com aquele tesouro que nunca desfalece, que faz da vida uma obra-prima, e de cada homem um artista extraordinário: a caridade, o amor”23.
É preciso oferecer a beleza capaz de saciar a precisão do mundo e sanar a
necessidade do homem. “Este mundo no qual vivemos, retomemos o discurso inicial,
precisa de beleza para não precipitar no desespero”24. As belezas que o move fascinam,
mas são ilusórias e falsas, provindas de um esteticismo vazio e desvinculadas da Verdade.
No mundo que precisa de beleza, existe o homem necessitado da Verdade e ambos, “beleza
e verdade se tocam”25. As belezas que nos são apresentadas pela publicidade, por exemplo,
têm o intuito de despertar a cobiça, a busca de satisfação momentânea e são contraditórias
ao alto ideal de abertura, de busca por uma Ordem superior e fora de nós, de busca pela
Verdade. A Beleza sem o compromisso com a Verdade é inútil, não tem valor para o
homem. Nas palavras do Papa, “não há beleza que tenha valor se não há uma verdade a ser
21 RATZINGER, Joseph. Homilia, 18 de abril de 2005. 22 BENTO XVI, Discurso na inauguração da exposição preparada por ocasião dos sessenta anos de
sacerdócio, 4 de julho de 2011. 23 Idem, ibidem. 24 Idem, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009. 25 Idem, Mensagem ao presidente do Pontifício Conselho para a Cultura por ocasião da 13ª sessão
púlblica dedicada ao tema: “universalidade da beleza: confronto entre estética e ética”. 24 de novembro de 2008.
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
reconhecida e seguida, se o amor se limita a sentimento passageiro, se a felicidade se torna
miragem inalcançável, se a liberdade degenera em instintividade”26.
A Beleza “é chave do mistério e apelo ao transcendente”, dizia o João Paulo II na
Carta aos Artistas27. Se ela perde sua raiz transcendental, não se orienta mais para Deus,
não manifesta mais a Verdade. Em um mundo distraído e fechado a Deus, à Verdade, a
Beleza é um profícuo meio para chamar atenção, para acordar o homem, enchê-lo de
esperança e coragem para viver o dom único da existência. A beleza, por sua característica
de abrir e alargar os horizontes do homem, de fazê-lo sair de si, de aproximá-lo do Infinito,
é “um caminho para o Transcendente, para o Mistério último, para Deus”. Ela é um
percurso transcendental que “assimila o tudo no fragmento, o infinito no finito, Deus na
história da humanidade”28.
A beleza é a grande necessidade do homem porque o homem é necessitado da
Verdade. Se assistimos a uma grande confusão estética, no que diz respeito à beleza, não é
tão diferente também no que diz respeito à Verdade. A crise de beleza tem raízes na crise
de verdade, pois só a verdade pode orientar e livrar o mundo e o homem da confusão em
que se encontra. Sem dúvidas, “onde há a verdade deve nascer a beleza, onde o ser
humano se realiza de modo correto, bom, expressa-se na beleza. A relação entre verdade e
beleza é inseparável e por isso precisamos da beleza”29. Para o cristão, não há dúvidas,
nem devaneios quanto à Verdade: “a Verdade é divina; é o «Logos» eterno, que ganhou
expressão humana em Jesus Cristo, que pôde afirmar com objetividade: «Eu sou a
verdade» (Jo 14, 6)”30. É Cristo, a Verdade, a Beleza que salva o mundo do desespero, a
beleza que salva o homem do absurdo. O mundo precisa da beleza porque precisa de
Cristo. O homem tem necessidade da beleza porque tem necessidade de Cristo, ‘o mais
belo entre os filhos dos homens, do qual espalha a graça, o encanto’.
No início falamos que a arte é um dos modos mais privilegiados para manifestar a
beleza e os artistas são os seus guardiões. Eles são capazes de criar um espaço de beleza,
de fé e esperança que leva o homem ao encontro com Aquele que é a Verdade e a própria
26 Idem, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais e das
Novas Comunidades, 22 maio de 2006. 27 João Paulo II. Carta aos Artistas, nº 16. 28 BENTO XVI, Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro de 2009. 29 Idem, entrevista concedida aos jornalistas durante o vôo para a Espanha, 6 de novembro de 2010. 30 Idem, Discurso no encontro com o mundo da Cultura em Portugal, 12 de maio de 2010.
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Beleza31. O papa lembra que precisamos dos artistas, pois eles nos recordam que a via
pulchritudinis é capaz de suscitar admiração e desejo, formar a sensibilidade das almas e
alimentar a paixão por aquilo que é autenticamente belo, expressão do gênio humano e
reflexo da Beleza divina32. Mas, também o papa recorda que cada homem pode ser um
artista capaz se fazer de sua vida um lugar onde brilhe o amor, a caridade. Portanto, que o
Espírito Santo, artífice de toda beleza existente, nos ilumine e nos oriente para a Beleza
que salva, desperte a mente e aqueça nossos corações para contemplar toda a sua plenitude.
Que ele nos ajude a ser “artistas” da caridade e nos auxilie a seguir o conselho do papa:
“fazei coisas belas, mas, sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza”33. Amém!
Referências
AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984.
BENTO XVI. Audiência geral, 18 de novembro de 2009.
www.vatican.va/audiências.
___________, Audiência geral, 29 de agosto de 2007. www.vatican.va/audiências.
___________, Audiência Geral, 31 de Agosto de 2011. www.vatican.va/audiências.
___________. Discurso por ocasião do Encontro com os artistas, 21 de novembro
de 2009. www.vatican.va/discursos.
___________, Discurso no encontro com o mundo da Cultura em Portugal, 12 de
maio de 2010. www.vatican.va/discursos.
___________, Discurso na inauguração da exposição preparada por ocasião dos
sessenta anos de sacerdócio, 4 de julho de 2011. www.vatican.va/discursos.
___________, Entrevista concedida aos jornalistas durante o vôo para a Espanha,
6 de novembro de 2010. www.vatican.va/viagens.
31 Cf. BENTO XVI, Homilia da Missa dedicada ao altar e à Igreja da Sagrada Família, 7 de
novembro de 2010. 32 Idem, Mensagem ao presidente do Pontifício Conselho para a Cultura por ocasião da 13ª sessão
pública dedicada ao tema: “universalidade da beleza: confronto entre estética e ética”. 24 de Novembro de 2008.
33 Idem, Discurso no encontro com o mundo da Cultura em Portugal, 12 de maio de 2010.
Mário Correia 94
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
___________. Homilia da Missa dedicada ao altar e à Igreja da Sagrada Família,
7 de novembro de 2010. www.vatican.va/homilias.
____________, Homilia da Missa dedicada ao altar e à Igreja da Sagrada
Família, 7 de novembro. www.vatican.va/homilias.
__________, Mensagem aos participantes do II Congresso Mundial dos
Movimentos Eclesiais e das Novas Comunidades, 22 de maio 2006.
www.vatican.va/mensagens.
___________, Mensagem ao presidente do Pontifício Conselho para a Cultura por
ocasião da 13ª sessão púlblica dedicada ao tema: “universalidade da beleza: confronto
entre estética e ética”. 24 de novembro de 2008. www.vatican.va/mensagens.
JOÃO PAULO II. Carta aos artistas. www.vatican.va/joãopauloii/cartas.
MOREROD, Charles. A beleza na Teologia de Joseph Ratzinger, in
http://www.movimentoliturgico.com.br/Portal/index.php?option=com_content&view=artic
le&id=362%3Aliturgia-a-beleza-na-teologia-de-joseph-ratzinger&catid=42%3Acat-
artigos-liturgia&Itemid=53&showall=1 – acessado no dia 25 de agosto de 2011.
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e no ensaio “Do ente e da essência”, de Santo
Tomás de Aquino1
Pedro Mendonça Curado Fleury2
Resumo: Trata-se de um artigo sobre a proximidade entre a doutrina de Parmênides, no poema “Da Natureza”, e de Santo Tomás, no ensaio “Do ente e da essência”, acerca da relação entre o ser e o ente, mais especificamente o homem. O objetivo é verificar alguns pontos de proximidade entre os dois pensadores, bem como a tangibilidade do conhecimento de Deus e da relação fundamental entre ele e o homem tal como a doutrina cristã de Santo Tomás o concebe já no início do pensamento filosófico. O método consistiu em pesquisa de revisão bibliográfica dos textos mencionados, bem como de artigos, livros e capítulos de livros que os comentam. Observou-se que Parmênides, nos fragmentos de que se tem contato – seja pelo conteúdo, seja pela estrutura do texto e pela linguagem utilizada –, demonstra a necessidade do pensamento para se chegar ao conhecimento, bem como que aquele que pensa está enraizado no próprio Ser e, ao mesmo tempo, detém o Ser. Este fundamenta o ente, dá e permite-lhe a existência. Assim, percebendo o Ser, o homem que pensa recebe dele a sua participação nele; e, mais, através da palavra, revela-o em seu próprio corpo. Na segunda parte do trabalho, analisou-se o referido texto do Doutor Angélico, que tem sua importância não tanto por seu conteúdo, explicitado e desenvolvido em obras posteriores, mas por ser um dos primeiros textos do autor. De ente et essentia constitui, assim, um testemunho valioso do florescer intelectual e das concepções metafísicas mais pessoais e arraigadas de Santo Tomás. Nele estão as bases fundamentais de suas principais obras posteriores, notadamente das duas Sumas. Partindo de um ponto totalmente contrário ao de Parmênides, o ente e a essência – aquilo que mais facilmente se percebe com os sentidos –, Santo Tomás chega à fundamentação racional da existência do ser em si subsistente, Deus, de quem todos os entes recebem seu próprio ser, sua existência. Trata-se de semelhança patente entre os dois pensamentos. Concluiu-se, desta forma, que, por caminhos diversos e separados por cerca de dezessete séculos, ambos os pensadores consideram que o ente revela o Ser – embora da mesma maneira –, de quem fundamentam a existência pelo exercício da razão, bem como que chegam à fundamentação da existência humana, recebida do Ser em si subsistente que, para Santo Tomás, é Deus.
Palavras-chave: Ontologia; Ente; Essência; Deus; Homem.
O presente trabalho aborda o poema “Da Natureza”, de Parmênides de Eléia.
Trata-se do discurso de uma deusa, no qual são indicadas três vias para o conhecimento.
Destas, elege somente uma como válida, a da consideração de que o ser é e não pode ser
que não seja. Por meio de um caminho poético, acaba por fundamentar a existência dos
entes e do homem.
Paralelamente, aborda-se o ensaio “Do ente e da Essência”, de Santo Tomás de
Aquino, no qual o filósofo medieval traça as bases de sua teoria ontológica. Partindo do
1 Artigo apresentado na III Semana Acadêmica do Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz, no
dia 13/09/2011. 2 Seminarista da Arquidiocese de Goiânia, 1º de Filosofia, e bacharel em Direito pela UFG.
Pedro Mendonça Curado Fleury 96
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
ente e da essência, como realidades perceptíveis aos sentidos, chega à existência de Deus,
ser único e subsistente em si mesmo, que confere o ser às demais substâncias, inclusive ao
homem. Este, com efeito, possui um espaço único na ordem das criaturas.
Em uma época em que o cristianismo sofre constantes críticas e
questionamentos sobre sua própria adequação à realidade social, pode ser útil evidenciar a
relação entre um de seus pilares doutrinais (Santo Tomás) e um filósofo pré-socrático
(Parmênides), testemunha do nascimento mesmo da filosofia grega e, portanto, da cultura
ocidental (JAEGER, 1994).
O filósofo escolástico, por sua vez, possui grande importância para o
pensamento e doutrina cristãs (BENTO XVI, 2010; JOÃO PAULO II, 1998; 1992). Ele,
superando o aristotelismo, “introduziu na história uma filosofia que, por seu fundamento
mais íntimo, era irredutível a qualquer um dos sistemas do passado e, por seus princípios,
permanece perpetuamente aberta para o futuro”. (GILSON, 1998)
A presente pesquisa, ao investigar as ligações entre estes dois pensadores, quer
evidenciar como a reflexão filosófica acerca de Deus, tal como fazem os pensadores
cristãos, é tangível já a partir do início da filosofia e, assim, a proximidade entre filosofia
grega e o cristianismo.
Parmênides e o ser
Parmênides – que viveu em Eléia entre os séculos VI e V a.C. – revolucionou o
pensamento grego, passando, da consideração global acerca da natureza e de seus
princípios (filosofia da physis), para uma teoria sobre o ser (ontologia). (REALE, 1999)
Na obra de Parmênides, é significativa a sua estrutura poética. Tal aspecto –
aliado ao próprio fato de ter sido escrito em grego – já nos abre um grande leque de
significados. Heidegger ressalta este aspecto de riqueza da linguagem, pois a palavra
grega, em si, é um caminho: “o que é dito na língua grega é, de modo privilegiado,
simultaneamente aquilo que em se dizendo se nomeia” (1989; cf. JAEGER, 1994).
Não por acaso, Parmênides elege três caminhos para o conhecimento em seu
poema “Sobre a natureza”. Destas, somente uma será por ele considerada veraz. Esta via
parte do princípio “o ser é e não é possível que não seja”. Por outro lado, “o não-ser não é
e não pode ser de modo algum” (REALE, 1999).
A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e (...) 97
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
O verbo ser e seus sentidos
Na esteira da afirmação de Heidegger, é preciso verificar que o verbo ser, em
sua significação original possuía uso existencial: o significado de estar de fato presente, de
possuir realmente uma existência. E, mais, esta presença não se refere unicamente ao
presente, mas efetivamente ao passado e ao futuro. Trata-se do núcleo de significação do
verbo ser em todo o período homérico grego (MARQUES, 1990), que preparou
imediatamente o surgimento da filosofia (REALE, 1999). A utilização predicativa ou
copulativa do verbo, tal como a conhecemos nos dias atuais é fruto do enfraquecimento
progressivo de sua significação original.
Há ainda um sentido chamado “veritativo” (MARQUES, 1990; SANTOS,
2002), não menos importante, que representa um desdobramento da função sintática do
verbo. Trata-se de um uso metalinguístico, fazendo-o significar, num outro nível, a verdade
de uma proposição. Assim, “Ésti significa não somente é, mas também ‘é verdade que é’”.
Daqui parte o princípio básico de que “toda proposição comporta a afirmação implícita de
sua própria verdade”. (MARQUES, 1990)
Há ainda, paralelamente, um sentido nominal do verbo (como dizer: “o ser”),
ou lexical, que traz ainda mais forte a ideia de presença que perdura, de permanência, e,
portanto, oposta ao devir. (MARQUES, 1990)
Parmênides oscila entre um e outro nível de sentido do verbo na tentativa de,
pela universalidade do sentido veritativo do verbo ser, universalizar o sentido de
permanência. O ser teria, assim, presença e permanência universal, excluindo, o não-ser e o
devir do campo do logos, do universo do dizer e do pensar – que, tendo em mente a noção
grega de nomenclatura, implica exclusão do mundo do conhecimento. (MARQUES, 1990)
Desta forma, fica explícito em Parmênides que a via segundo a qual o ser é
leva à verdade. Ela constitui-se válida pelo fato de ter como sujeito um nome positivo (a
permanência, a presença que perdura – sentido lexical) em relação com um verbo também
afirmativo. Podemos dizer, então que afirmar “o ser é” seria algo como afirmar “é verdade
que o ser existe perenemente”.
Pedro Mendonça Curado Fleury 98
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A teorização do não-ser e o esquema mental do mito
Por outro lado, tomar um termo negativo como sujeito de um verbo negativo
não passa de uma via de palavras vazias e, por isso, o não-ser é indizível e não designa
nada. Não são pertinentes, contudo, as críticas de Platão (no “Sofista”), e de Nietzsche
(1989), a Parmênides, pois não se pode estabelecer uma equivalência estrita entre um
esquema poético e proposições lógico-gramaticais. (MARQUES, 1990)
As proposições sobre o não-ser só são possíveis no contexto mítico do discurso
da deusa. Parmênides utiliza esta espécie de subterfúgio para tratar sobre a via do erro. Na
verdade, o filosofo pré-socrático tinha em mente o caminho como uma metáfora da
maneira de ser adequada ou não ao conhecimento. (MARQUES, 1990)
O mito, assim, afigura-se como “esquema mental” que viabiliza o discurso
sobre o caminho impossível do não-ser, e também permite traçar a afirmação absoluta do
ser e a exclusão radical do não-ser. Abre-se, desta maneira, à possibilidade de decisão
(krísis) pelo caminho do ser. (MARQUES, 1990)
No fragmento 7 há ainda um aspecto importante. Afirma-se: “Não é possível
que isto prevaleça, ser (o) não ente” (v. 1). Não se trata aqui do não-ser, mas daquilo que
não pode ter o estatuto pleno de ser: as coisas que nascem e morrem, aparecem e
desaparecem. Diferenciar o ser e o conjunto dos entes – a chamada terceira via, na qual
está presente a problemática da multiplicidade do real, das aparências – é bem outra coisa
que diferenciar ser e não-ser (MARQUES, 1990). Sobre isto, retomaremos infra.
A relação entre ser e pensamento como referência ao ente
No fragmento 8 vê-se um exercício concatenado de discernimento (krísis), no
qual, a cada característica afirmada sobre o ser, um aspecto contraditório do devir é
eliminado. Reale refere-se a este trecho do poema como possuidor de “uma lógica férrea” e
de “uma lucidez absolutamente surpreendente” (1999). Em Parmênides, é a krísis que
permite “a instauração do pensar, que é pensar o ser, a partir do ser”. Há uma
correspondência originária entre ser e pensar, na qual o pensar pertence ao ser. O saber
verdadeiro, único saber, é imune ao não-ser. (MARQUES, 1990; JAEGER, 1994)
Importam para nós neste momento os versos 34 a 38 deste fragmento: O mesmo é pensar em vista de que é pensamento.
A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e (...) 99
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Pois não sem o que é, no qual é revelado em palavra, Acharás o pensar: pois nem era ou é ou será Outro fora do que é ... (PARMÊNIDES, 1989)
Fica expresso aqui que ser e pensamento são uma só coisa, pois “aquele que
diz e pensa o ser o faz enraizado no próprio ser”, que não admite intervalos. Parmênides
utiliza a palavra grega noeîn (geralmente traduzido simplesmente como “pensar”), que em
seu sentido arcaico significa “uma atitude receptiva de modo a deter aquilo que aparece”.
Ou seja, o pensar é ser, é “revelação” do ser, “algo que brota” dele. (MARQUES, 1990; cf.
NIETZCHE, 1989)
Para Marques, Parmênides, ao tratar do pensamento, coloca em jogo a questão
do homem, cuja peculiaridade “surge do seu modo próprio de pertencer ao ser, isto é,
percebendo-o (pensando-o)”. Só a partir daqui pode verificar-se a separação entre o ser e o
homem (1990). Ele – o homem – é representante maior daquela categoria de coisas, os
entes, que não têm estatuto pleno de ser, mas nem por isso são igualados ao não ser.
Aqui podemos notar que, não obstante a doutrina comum, Parmênides refere o
ser ao ente. É o que afirma Marques com base na análise gramatical das diversas
utilizações do verbo ser ao longo dos fragmentos. (MARQUES, 1990)
Com efeito, é significativo que esta ontologia do ente dos fragmentos 34 a 38
apareça mesclada às características do próprio ser, do ser em si mesmo. Entende-se, então,
que os primeiros fragmentos, que tratam, grosso modo, da existência do ser, o façam em
função do ser do ente. Depois, especialmente no fragmento 8, ao tratar da relação ser-
pensamento – e, por consequência, ser-homem –, o faz para remetê-lo ao ser em si.
(MARQUES, 1990)
O fragmento apresenta o ser como fundamento do noeîn: “o pensamento será
sempre pensamento do ser e a palavra será revelação que faz aparecer o ser no seu corpo”.
Não se trata apenas de uma via para o conhecimento, de um pensamento capaz de alcançá-
lo. Trata-se aqui da primeira “fundamentação da existência humana como um todo”, de seu
ser. (MARQUES, 1990; cf. JAEGER, 1994)
Pedro Mendonça Curado Fleury 100
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
A ontologia de Santo Tomás no ensaio De ente et essentia
Cerca de dezessete séculos depois de Parmênides, Santo Tomás de Aquino
(1225-1274) erigiu em seu vasto pensamento uma ontologia própria, realizando uma
síntese original entre Platão e Aristóteles (SALLES, 2009; TORREL, 2008). Neste tema, o
ensaio “De ente et essentia” – um dos primeiros textos do autor, escrito provavelmente à
época da preparação de sua licença em teologia – constitui, assim, um testemunho valioso
do florescer intelectual e das concepções metafísicas mais pessoais e arraigadas de Santo
Tomás. Nele estão as bases fundamentais de suas principais obras posteriores, notadamente
das duas Sumas, iniciadas cerca de dez anos depois.
Santo Tomás parte já de um ponto divergente com Parmênides: inicia seu
estudo pelo ente e pela essência, por serem eles as primeiras coisas que se concebe na
inteligência, as mais acessíveis (AQUINO, 1988). Passa à análise da relação entre forma e
matéria (a substância simples), detecta a necessidade de uma substância supra-substancial,
fundante e originante de todas as demais, bem como a necessidade absoluta de a essência
desta ser idêntica a seu ser (SOUZA NETO, 2010).
Analisa, portanto, as substâncias compostas, ou seja, aquelas que possuem
“matéria e forma conhecidas” (AQUINO, 1988), como o homem, que possui alma e corpo.
Estas substâncias existem, mas por participação, pois somente Deus seria “a existência por
si subsistente” (AQUINO, 2001).
Santo Tomás afirma que existem substâncias simples, nas quais a essência
reside em sentido mais verdadeiro e elevado. Trata-se de categoria mais nobre de ser, causa
das substâncias compostas (AQUINO, 1988), que transcende a elas (JOLIVET, 1998).
Afirma o Santo, no n. 2 do capítulo segundo que “isto ocorre, pelo menos, com aquela
substância primeira e simples por excelência, que se denomina Deus”. Todavia, por serem
as substâncias simples “mais ocultas”, suspende o seu estudo por um momento. (1988)
Seguindo o caminho que partiu do ente como primeira coisa perceptível, afirma
que matéria e forma constituem sua essência (que é “aquilo segundo o que uma coisa
existe”). O ente é, portanto, uma substância composta. Os dois componentes da essência
não são, contudo, equivalentes: há um primado da forma, que é “a perfeição ou certeza de
cada coisa”. Tudo que um ente é, ele o é graças a sua forma, sem prejuízo de causas
externas. (AQUINO, 1988; SOUZA NETO, 2010)
A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e (...) 101
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Observa Aquino que a essência não pode ser só a matéria, pois ela não
determina o gênero ou a espécie dos entes, “não constitui um princípio de conhecimento”.
Também não pode ser só a forma, pois é a matéria que a individua; ela é “princípio
individualizante” que permite à essência ter uma particularidade e uma definição, o que
não é possível a algo que é universal. (AQUINO, 1988)
Por esta razão, a matéria não é mero acidente, ou seja, um elemento
dispensável à essência. É pela matéria signada – no caso do homem, o corpo determinado,
“este corpo”, e não somente um corpo em hipótese – que o indivíduo se designa da espécie,
é concreto. (AQUINO, 1988)
No capítulo quinto do ensaio, Santo Tomás passa a analisar a maneira como a
essência se encontra nas substâncias separadas, ou seja, nas que têm forma, mas não
matéria. Chega a elas partindo do primado da forma, pois é esta que dá o ser à matéria,
transforma-a em ser em ato. A forma, contudo, em si mesma não depende da matéria para
existir. (AQUINO, 1988)
A forma tem dependência em relação à matéria somente nos entes mais
distantes do primeiro princípio, que é ato primeiro e puro. Nestes entes, a forma não pode
se designar da espécie sem a matéria, permanecendo abstrata. Quanto mais próxima do
primeiro princípio, contudo, menos dependente da matéria. (AQUINO, 1988)
Chega-se, assim, à existência das substâncias simples, que não possuem
essência recebida na matéria, mas somente na forma. Além disso, se esta substância
simples fosse exclusivamente ser, ela seria subsistente: teria o ser em si mesmo, sem
dependência de qualquer outra substância. Não receberia em si, portanto, adição de
diferença (aquilo que destaca as espécies em relação ao gênero), pois, do contrário, haveria
algo na forma que a determinaria em relação a outro tipo de substância da mesma espécie,
e este algo já não seria mais ser em si mesmo. (AQUINO, 1988)
Este ponto, aliado ao fato de ela, por ser simples, não receber matéria – o que
designaria indivíduos distintos numa mesma espécie – faz com que esta substância simples
deva ser única. Consequência lógica é que todas as outras substâncias não têm a existência
coincidente com a essência. (AQUINO, 1988)
Estes demais entes possuem aspectos de sua forma que não são ser e que
devem necessariamente provir de outro princípio, extrínseco a ela. Isto pelo fato de que
estes aspectos – ao menos eles –, não existindo em si mesmos, não podem ser causados ou
Pedro Mendonça Curado Fleury 102
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
produzidos pela própria forma: “por conseguinte, é necessário que toda coisa cujo ser
difere da sua natureza tenha sua existência de outra”. (AQUINO, 1988)
Santo Tomás demonstra, assim, a necessidade da existência de uma coisa
determinada que seja a causa das demais substâncias, pelo fato de ser puro ser. Aquilo que
antes era uma hipótese é agora uma certeza filosófica:
Ora, já que tudo aquilo que existe por outro pode ser reduzido àquilo que existe por si, como à sua causa primeira, por esta razão é necessário que exista uma determinada coisa que seja a causa do ser para todas as outras coisas, pelo fato de ser puro ser [...] este ser é a causa primeira, isto é, Deus. (AQUINO, 1988)
Sintetiza-se assim, minimamente, o que em obras posteriores foi chamada de
segunda via de prova da existência de Deus: a via da causa universal absolutamente
primeira (cf. AQUINO, 2001, q. II, a. III).
A partir daqui, já no capítulo sexto do ensaio, Santo Tomás passa a uma sucinta
hierarquia das substâncias, como que recapitulando o que foi dito, a partir do modo em que
a essência se concretiza nelas. (SOUZA NETO, 2010)
Em primeiro lugar está Deus, “cuja essência é seu próprio ser ou existência”.
Ele, sendo simples, tem em si todas as perfeições como uma só coisa. Depois, há as
substâncias criadas intelectuais, que não têm matéria, mas em que o ser difere da essência:
os anjos que, quanto ao ser, são finitos, mas não limitados por nenhuma matéria. (SOUZA
NETO, 2010)
Tipo especial destas substâncias intelectuais ou simples, a alma humana é a
única a possuir multiplicidade de indivíduos na mesma espécie, graças ao fato de ser
recebida num corpo. Com efeito, ela recebe o ser individualizado no corpo, do qual é ato.
Esta individuação, este ser absoluto que ela recebe, permanece para sempre, mesmo após o
perecimento do corpo. (AQUINO, 1988)
Esta doutrina, depois aprofundada em outros escritos do autor, representa a
fundamentação da existência do homem no contexto da criação, localizando-o na
hierarquia das substâncias. Sendo ainda um ser intelectual, por sua alma, encontra-se no
último grau das criaturas inteligentes, pois ganha o ser absoluto somente uma vez unida ao
corpo. (GILSON, 1998; SALLES, 2009)
À alma “é essencial ser a forma de um corpo e constituir com ele um composto
físico da mesma natureza que todos os compostos de matéria e de forma”. Contudo,
enquanto é a forma do corpo e dá-lhe o ser, domina-o e supera-o “de tal maneira que a
A relação entre o ser e o ente no poema “Da natureza”, de Parmênides, e (...) 103
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
alma humana assinala os confins e como que a linha do horizonte entre o reino das outras
Inteligências e o domínio dos corpos”. (GILSON, 1998)
Santo Tomás demonstra, assim, a relação entre o ser em si subsistente, Deus, e
o homem. Esta criatura ímpar é substância composta, cuja essência é sua alma e seu corpo
e, ao mesmo tempo, é ser intelectual que depende da matéria para ter o ser – que recebe de
Deus –, mas que permanece ser mesmo após o perecimento da matéria.
Considerações Finais
Aproximar Parmênides e Santo Tomás é tarefa exigente. Como se pode ver,
divergem já no itinerário que seus raciocínios empreendem para chegar ao ser em si
mesmo: a questão dos sentidos como via para o conhecimento. Mas há pontos de
proximidade.
Parmênides defende que o conhecimento do ser em si subsistente se dá pela
consideração racional do próprio ser, mediante um discernimento lógico: “o ser é e não
pode não ser...” ou, como vimos, algo como “é verdade que o ser existe perenemente e o
contrário é inexistente”. Para ele, os entes não têm estatuto pleno de ser, mas pertencem ao
ser, pensando-o e percebendo-o. Fundamenta, assim, a existência humana, que também
revela e manifesta o ser pelo próprio pensamento e por sua palavra.
Santo Tomás, por sua vez, partindo do dado fático da existência dos entes e das
essências e considerando racionalmente as distinções entre existência e essência, chega à
prova (pela necessidade) da existência do ser em si subsistente, Deus. Dele, o homem e
todos os outros entes recebem o seu próprio ser.
Desta feita, podemos verificar três pontos em comum: (i) o ser que subsiste por
si mesmo é revelado/manifestado nos entes; (ii) para chegar ao conhecimento do ser em si
subsistente é necessário o exercício da racionalidade (não se dá diretamente pelos
sentidos); e (iii) os entes – o homem, especialmente – recebem daquele ser seu estatuto de
ser, embora em caráter distinto.
Pedro Mendonça Curado Fleury 104
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
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Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios
Ueslei Vaz Aredes1
Resumo: O homem moderno apresenta fortes desconfianças em relação ao conhecimento simbólico. Inconscientemente, é levado a relegá-lo ao mundo de mentalidade pré-lógica, considerando incapaz de rigor suficiente para fundamentar o autentico conhecimento. Destarte, o uso dos símbolos é elemento constitutivo da economia bíblico-cristã e a liturgia representa este simbolismo à luz da fase atual da historia salutis. Deste modo, os sacramentos são sinais. Sinais do amor de Deus para com a humanidade. No entanto, Cristo é o sacramento do Pai. A Igreja instituída e desejada pelo Pai e concretizada por Cristo, é sacramento de Cristo. Pertencer a Igreja é pertencer a Cristo. E Jesus se faz presente na Igreja através dos sacramentos, que é seu: e a Igreja apenas os administram. Assim através dos sacramentos revelam os sinais do seu amor.
Entretanto, o sacramento não é apenas sinal, é uma realidade, é o próprio Cristo. Diante dessa realidade ao mesmo tempo cognoscível e incognoscível entra o dado da fé, pois podemos perder seu sentido, e cair num mero ritualismo. Porventura, os ritos pouco falam por si mesmo. Precisam ser explicados. Destarte, o sinal que precisar ser explicado, não é sinal. O que deve ser explicado não é o sinal, mas o mistério contido no sinal. Caso não seja cognoscível e ao mesmo tempo incognoscível pode ser tentado em cortar toda a relação com o simbólico religioso. E ao fazer isso, não corta apenas uma riqueza importante da religião: fecha-se a janela de sua própria alma, porque o simbólico e o sacramental constituem dimensões profundas da realidade humana.
Deste modo, no presente monólogo, trataremos da realidade transcendental do sacramento/símbolo/sinal na vida do homem que esta em comunhão com a Igreja e com os homens. Desta comunhão os sinais remetem um caráter ao mesmo tempo imanente que remete imediatamente ao transcendente/scalon.
Palavras-chaves: antropologia, eclesiologia, fenomenologia, símbolos/sinais e scatolon
Introdução
Atualmente os sacramentos são questionados e até mesmo negados. Para
recuperarmos o sentido originário do sacramento precisamos descer a um nível mais
profundo da reflexão e da realidade. Nesse nível, o sacramento aparece como a
corporificação de um modo de pensar numa unidade tensa, entre as realidades que tomadas
em si parecem se contraporem: o divino e o humano, o invisível e o visível, o eterno e o
temporal. O sacramento traduz a comunhão destas realidades polares; faz uma presente na
outra; encarna o divino e transfigura o humano. Neste nível, o sacramento não emerge
tanto como gestos e coisas sagradas da religião, mas como o modo pelo qual Deus se
1 Aluno do 3º ano do curso de Teologia no Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz. E-mail:
Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios 107
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
comunica e se faz presente no mundo. O sacramento é a mediação pela qual e na qual
Deus, Jesus Cristo, sua Graça, a Igreja... atingem os homens.
Sacramento como mistério, mysterion do plano de salvação
Devemos iniciar nossa pesquisa com as seguintes perguntas: O que significa
sacramentum e mysterion? De que modo se terá feito a passagem de mysterion para
sacramentum? Um sentido básico de sacramentum é mysterion. 1º) Mysterion no AT tem o
seu significado com a conotação cúltica. 2º) No entanto, os mistérios cultuais, de acordo
com Odo Casel, são uma ação sagrada e cultual em que, sob o véu de um rito, um fato
salvífico se torna presente; enquanto realiza este rito, a comunidade cultual participa do
fato salvífico e desta forma adquire a salvação para si. 3º) Este significado original de
mysterion desenvolveu-se aos poucos numa concepção mais abstrata e teológica do
mysterion. Assim os mistérios foram despojados de seu caráter sacral, enquanto os cultos
foram considerados como mistérios. De acordo com Casel: Mysterion são ritos e
celebrações secretas dos mistérios; as diversas partes e elementos dos mistérios, como
symbola (fórmula) e os objetos (alimento, imagens) são visíveis e per si compreendidos,
vedados aos profanos e incompreensíveis a eles; os mistérios aparecem como os profundos
ensinamentos dos filósofos sobre o divino, ensinamentos comunicados somente a pessoas
iniciadas, pois, são inatingíveis pela pura razão. É o mistério fontal que se oculta no
silêncio; esse silenciar místico chega-se por um desvelar através dos símbolos. Deste
modo, os ritos e o culto divino são considerados como símbolos da misteriosodade divina e
de verdades ocultas: sua explicação é mística porque desvela o sentido oculto. Cabe, então,
a teológica mistagógica explicar e interpretar estes símbolos. Pois, para a teologia,
mysterion é o próprio divino e tudo quando se pode conhecer simbolicamente do divino.
Somente a partir dessas considerações pode se resultar o termo sacramentum: onde o
divino, o oculto está sempre ligado com algo visível, que é tomado como símbolo; este por
sua vez revela, comunica e conserva o mysterion.
No AT, na literatura apocalíptica e nos profetas, mysterion designa um segredo
escatológico, i.e., um anúncio revelador dos acontecimentos futuros determinados por
Deus, cuja revelação e interpretação são reservadas aos que foram por Deus inspirados.
Daí conclui-se que, o mysterion são os desígnios e decretos ocultos da vontade divina.
Revelados por Deus, estão contidos nas palavras dos profetas; são comunicados aos que
promovem a justiça. Por isso, a comunidade é a fonte do segredo guardando-o com todo
Ueslei Vaz Aredes 108
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
cuidado. Agora, no NT, Deus age na história e sua ação manifesta-se no fim dos tempos
messiânicos para realizar definitivamente seu eterno desígnio.
O que caracteriza o mysterion como segredo, está no fato do mysterion ser
inatingível e incompreensível à razão, mas que ele consiste na sua não-revelação, que está
no segredo de Deus; mas que ele vai se revelando aos poucos através da palavra e da ação,
através de órgãos humanos (Ef 3,5), pela Igreja (Ef 3,10) que destina o segredo a todos os
homens. Por isso, o plano da salvação e sua realização constituem o único mistério, a
encarnação do Verbo. Deste modo, mysterion pode significar ao mesmo tempo mysterion
de Cristo e mysterion do plano de salvação.
Mysterion de Cristo como realização do mysterion do plano da salvação
A realização do mistério, realiza-se através de Cristo, que forma o centro do
mysterion. No mysterion de Deus em Cristo são abrangidos criação e consumação, início e
fim do mundo, tirando-os do âmbito de seu próprio poder e conhecimento. Pois na
revelação do mistério divino os tempos atingem o seu fim (Ef 1,10). Em seguida, ele
aparece como o Cristo cósmico que consuma todas as coisas, sendo ele a cabeça da
totalidade; na Igreja, seu corpo e seu pléroma, ele governa de modo visível, realizando a
salvação; mostra o que significa sua condição de ser cabeça de todas as coisas. A fórmula
in christo mostra claramente que Ele é o centro do mysterion que realiza na unidade entre
cristãos, ateus, judeus e gentios. Portanto, segue que o mysterion possui uma dimensão
intra-terrestre. No mysterion uma realidade celeste invade a esfera do antigo aion.
Apresentam-se sempre uma faceta humana e outra divina. A história da salvação acontece
dentro da história no mundo. Então, o mysterion constitui a conjunção de um
acontecimento terrestre e uma ação divina.
Mysterium-sacramentum
A palavra sacramento é originariamente cristã. Descreve a palavra sacrum,
linguagem sacral, sinal sagrado. Isso explica pelo fato dos cristãos primórdios evitarem
palavras que estabelecessem uma conexão entre culto cristão e os mistérios pagãos. Por
isso foram eliminadas não só a palavra mysterion, mas as palavras correspondentes latinas
como, sacra, arcana, initia. Deste modo, sacramentum aparece como um elemento que já
pudemos constatar no mysterion, ou seja, na unidade do humano e do divino que nele se
Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios 109
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
expressa. O sacramentum contém sempre um componente humano (juramento,
consagrado, rito) e um divino (o próprio sagrado).
Mysterium-sacramentum como fases do plano da salvação
Mysterium-sacramentum indica as diversas fases da economia da salvação: o
tempo antes de Cristo, o tempo de Jesus, da Igreja e as realidades escatológicas; o
sacramentum significa as relações entre essas fases. Para o tempo antes de Cristo, significa
a praeparatio, figura, typus, simbolum, parábola, species, praeformatio; para o tempo de
Jesus, a realização das promessas, a manifestação do próprio Deus em forma humana; para
o tempo depois de Cristo, a Igreja, sacramentum que expressa participação e realização
sacramental dos mistérios de Jesus na Liturgia.
O AT deve ser considerado como um mysterion voltado para Cristom i.é, uma
profecia dada de modo velado sobre Cristo. A vida de Jesus constitui um prelúdio,
exemplo e símbolo de uma vida que ainda há de continuar, a saber, a do Corpo Místico de
Cristo para dentro da história no mundo. A Igreja por sua vez é símbolo da realização
antecipada da Igreja na glória. Seu mysterion está aberto para o futuro; contudo, ele não é
consumado, i.e., o já e o ainda não. Deste modo, a Igreja vive do novo céu irrompido pela
ressurreição de Jesus e da nova terra; mas por enquanto esta realidade escatológica
manifesta-se apenas por sinais, símbolos e sacramentos.
Mysterium-sacramentum como signum sacrum: sacramentum mysterii – mysterium sacramenti
Definimos então que, de um lado, o mysterrium-sacramentum é aquilo que
visível e palpável, por outro lado, o signum sacrum como aquilo que é misterioso ou
oculto. Destarte, sacramentum mysteri indica o visível, o tocável, o histórico do mysterium
e o mysterium sacramentui, por sua vez, mostra o secreto, o divino, o intocável, o
sobrenatural do sacramentum.
Santo Agostinho faz a distinção entre sacramentum de mysterium.
Sacramentum significa o sinal sagrado e religioso do mysterium como tal. Apenas
posteriormente, a Agostinho, o mysterion grego é traduzido pela palavra latina: mysterium
e concorre com a palavra sacramentum. Daí em diante sacramentum assume um
significado sacramental no sentido dos nossos sete sacramentos ou em forma de ações
litúrgicas como res sacra, signum sacrum; em conseqüência disso, o mysterum adquire um
Ueslei Vaz Aredes 110
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
significado mais abstrato com res arcana divina salutaris. Deste modo, coloca-se o acento
sobre o visível, qualifica-se o mysterium como sacramentum; descolocando o acento sobre
o invisível e o divino, designa-se o sacramentum de mysterium. Assim, a ideia fundamental
subjacente ao mysterium e sacramentum é que Deus se comunica, tornando-se presente e
age espiritualmente sobre aos homens através dos elementos materiais.
Mysterium-sacramentum como os mistérios litúrgicos
Entre os signa sacra que os Padres da Igreja qualificavam de mysterium e
sacramentum encontram-se, sobretudo, os mistérios do culto e toda a Liturgia da Igreja.
Pois, de fato, o primeiro emprego de sacramentum com versão de mysterium se deu no
contexto do batismo, portanto, no contexto de uma ação litúrgica. Este conceito doutrinal
foi promulgado novamente pela Constituição Vaticano II (SC), onde Cristo é o principal e
o máximo sacramento, como ponto focal do plano salvífico de Deus que já estava oculto
nas revelações do AT, reveladas nas ações, pessoas, ritos e palavras; manifestou-se no
sacramento da sua encarnação e nas ações e palavras de sua vida (sacramenta carnis
Christi) e que agora continua vivo agindo na Igreja, visto que a Ecclesis est totus adventus
Filli Dei. Assim, deste sacramento primário origina-se Totius Ecclesiae admirabile
sacramentum. Qualquer ação da Igreja é por isso mesmo sacramental, sacramento. A Igreja
se entende como personificação de Cristo na terra, de tal sorte que qualquer ação de Cristo
significa uma ação de seu corpo. Entre todas as suas ações sacramentais algumas são
qualificadas de sacramenta e de mysteria; através deles a Igreja celebra a presença do
plano da salvação, dos mysteria carnis Christi e precisamente nas ações litúrgicas. Estes
ritos litúrgicos contêm de alguma forma a res arcana, a salvação messiânica.
Portanto, o mysterium do culto aparece como uma ação sacra, que prolonga a
ação de Deus; é realidade espiritual, que se realiza sob o véu de sinais e gestos
perceptíveis, tornando a salvação presente aos fieis. Então, passado, presente e futuro são
abrangidos na Liturgia, porque o mysterion de Cristo e sua salvação abarcam toda a
amplitude da história.
Até Agostinho os sacramentos e os mistérios (Mistério Eucarístico e as ações
litúrgicas) eram considerados como prolongamento da existência de Cristo. Sinal
sacramental e seu significado eram concebidos de tal forma que estivessem intimamente
relacionados entre si. O signum sacrum não era uma cópia fiel de Cristo, mas um reflexo
de Cristo presente no sacramentum, o aparecimento de uma realidade sagrado através do
Os Sacramentos da Vida através dos Mistérios 111
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
sinal visível. Então, a fórmula o sacramento é um sinal visível da graça invisível expressa
de maneira lapidar a mais intima união dos dois elementos, compreensível aos fieis e
incompreensível aos que não creem. Na escolástica, devida muitas controvérsias entre o
sacramentum e res sacramenti, chegam a conclusão que: o visibile signum produz um
invisibili signum, chamado sacramentum manens que por sua vez produz a graça
sacramental. No entanto, todos os sacramentos conferem um sacramentum manens (a
graça sacramental), seja um caráter sacramental indelével no Batismo, na Confirmação, e
na Ordenação, seja um ornatus animae, um adorno da alma, nos outros sacramentos.
Sob o aspecto teológico, os sacramentos significam, principalmente no
Batismo e a Eucaristia, a presença do plano salvífico de Deus e da ação salvadora de Cristo
em favor de cada indivíduo. Neles se atualiza a vontade misericordiosa de Deus instaurada
definitivamente no mundo em Cristo, na corporiedade de um sinal, o encontro com Deus, o
encontro velado no nosso caminho de Emaús para o eschatolon, a pátria definitiva.
Os sacramentos constituem corporificações encarnatórias e eclesiais da graça,
que, de acordo com a natureza humana, i.e., a graça mais o esforço humano, se cristaliza e
se manifesta em sua ação. O símbolo é como que a face visível do mistério da
comunicação do próprio Deus aos homens. Nesta economia da salvação, faz parte do
evento da graça que ela seja comunicada de modo sacramental pelo fato de o destinatário,
o homem, o constituir um ser sacramental. Em suma, o mysterium-sacramentum se revela
através do signum. Ele é a conjunção do divino e do humano, do sacramental (sinal) e do
misterioso (mistério), de tal maneira que um se torna presente no outro e se manifesta no
agir. Por isso, o determinante do sinal não é o conceito do visível, mas o sensível, que
pertence ao campo de nossas experiências e observações, entre as quais se encontra o
ouvir. Neste âmbito, o sinal nunca foi tomado como sinal vazio, mas já como participação
daquilo que ele indica. Porém, tudo é transparente diante o sagrado. E o sinal deve falar per
si, quando o sinal necessita de ser explicado deixar de ser sinal. Deste modo, diante do
sacramentum-misterium-signum deve-se silenciar os sentidos e a razão, pois, onde razão
não consegue chegar ela se cega e deve ser guiada pela voz do coração, a fé. O finito diante
do infinito, o temporal diante do eterno, o humano diante do divino, não o conhece, mas o
sente e o experimenta. Por isso, ambos se tornam dois mistérios e dois sacramentos de
salvação, na qual e da qual transcende o humano no divino, o temporal no eterno, o finito
no infinito, o início no fim.
Ueslei Vaz Aredes 112
Anais da III Semana Acadêmica do IFTSC - 12 a 16 Set. 2011
Considerações Finais
Por fim, tentei demonstrar que o homem não é só manipulador do seu mundo.
É alguém capaz de ler a mensagem que o mundo carrega em si. Estas mensagens estão
escritas em todas as coisas que formam o mundo. Pois, as coisas constituem um sistema de
signos. São silabas de um grande alfabeto. E o alfabeto está a serviço de uma mensagem
escrita nas coisas, mensagens que pode ser descrita e decifradas para quem possui os olhos
abertos. Assim, o homem é o ser no mundo que é capaz de ler a mensagem do mundo. É
sempre aquele que na multiplicidade de linguagens, pode ler e interpretar. Viver, no
entanto, é ler e interpretar. No efêmero pode ler o Permanente, no temporal; o Eterno, no
mundo. Então o efêmero se transfigura em sinal da presença do Permanente; o temporal
em símbolo da realidade; o mundo em grande sacramento de Deus.
Com o pensamento sacramental quer-se expressar a convicção de que a história
de Deus com os homens acontece em eventos, em atos e encontros historicamente
constatáveis: esses se tornam sinais da proximidade de Deus. Neles Deus se mostra: aos
homens, e neles se aproxima deles, transformando-os.
A estrutura dupla (mostrar e dar-se) determina o conceito da revelação como
auto comunicação: Deus se doa a si mesmo e mostra como ele é. Pensamento sacramental
significa: Deus se comunica aos homens corporalmente, se torna experimentável
corporalmente. Todavia, o fato de ser realmente Deus que age e é experimentado não se
pode comprovar independentemente da fé: pois da experiência sempre se faz parte não
apenas o evento, mas também da sua interpretação.
Referências Bibliográficas
BOFF. L. O Sacramento da vida e a vida dos sacramentos. Paulinas. São Paulo. 1981.
BORTOLINI. J. Os Sacramentos em sua vida. Paulinas. São Paulo. 2002.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Loyola. São Paulo. 2004.
DENZINGER. H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações da fé e moral. Loyola. 2007.
THEODOR SCHENEIDER (ORG). Manual de Dogmática Vol. II. Vozes. Petrópolis. 2002.