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Amanda Basilio Santos
Anderson Pires Aires
Carlos Alberto Ávila Santos
(Org.)
Anais do IV Colóquio
Internacional
A Casa Senhorial: Anatomia dos
Interiores
1ª Edição
Pelotas
CLAEC
2017
© 2017, CLAEC
.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12/73. Nenhuma parte deste livro,
sem autorização previa por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais
forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Editoração e diagramação: Amanda Basilio Santos.
Capa: Fabrício Torchelsen Bassi.
ISBN 978-85-93548-04-8
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Observação: Os textos contidos neste e-book são de responsabilidade exclusiva de seus
respectivos autores, incluindo a adequação técnica e linguística.
A484
C284
Anais do IV Colóquio Internacional A Casa Senhorial
[livro eletrônico]: Anatomia dos Interiores / Amanda
Basilio Santos; Anderson Pires Aires; Carlos Alberto
Ávila Santos (Organizadores). 1. ed.– Pelotas: CLAEC,
2017. 562p.
PDF – EBOOK
Inclui Bibliografia.
ISBN: 978-85-93548-04-8
1. História da Arte 2. História da Arquitetura
CDU 728
CDD 709
ORGANIZAÇÃO DO EVENTO
Comissão organizadora:
Dra. Isabel Mendonça (Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa)
Dra. Ana Maria Pessoa dos Santos (Fundação Casa de Rui Barbosa/MINC)
Dr. Carlos Alberto Ávila Santos (Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas)
Comitê Científico:
Dra. Ana Lúcia Vieira dos Santos (Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense)
Dra. Marize Malta (Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Dra. Ester Gutierrez (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de
Pelotas)
Dr. Aldrin Moura de Figueiredo (Faculdade de História da Universidade Federal do Pará)
Dr. José Belmont Pessoa (Programa de Pós-Graduação da Escola de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal Fluminense)
Dr. Nelson Pôrto (Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do
Espírito Santo)
Dr. Hélder Carita (Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa)
Dr. Carlos de Almeida Franco (CITAR-Escola de Artes da Universidade Católica do Porto)
Dr. Gonçalo de Vasconcelos e Sousa (CITAR-Escola de Artes da Universidade Católica do Porto)
Dr. José Ferrão Afonso (CITAR-E Escola de Artes da Universidade Católica do Porto)
Site e Facebook:
http://vcoloquiosenhorial.wixsite.com/ivcoloquiosenhorial
https://www.facebook.com/IVCICS/
Realização:
Universidade Federal de Pelotas, Fundação Casa de Rui Barbosa e Universidade Nova de Lisboa.
Financiamento: CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
SUMÁRIO
Apresentação................................................................................................................................01
EIXO TEMÁTICO I – Proprietários, Construtores e Artífices: Vivências e Rituais..................03
“TRATAR-SE À LEI DA NOBREZA”: A FAMÍLIA OLIVEIRA BARBOSA E GRANDJEAN
DE MONTIGNY
Ana Lucia V. Santos e Ana Pessoa..................................................................................................04
ESTUCADORES DE VIANA DO CASTELO EM PALÁCIOS LISBOETAS – A OFICINA DE
RODRIGUES PITA E DOMINGOS MEIRA
Isabel Mayer Godinho Mendonça..................................................................................................28
VILA OSCARINA, RESIDÊNCIA LUXUOSA EM VITÓRIA: INÍCIO DO SÉCULO XX
Luciana Nemer Diniz......................................................................................................................61
A ESTÂNCIA DO SERRO FORMOSO-LAVRAS DO SUL. RS
Mônica de Macedo Praz.................................................................................................................76
ANÁLISE ESTILÍSTICA E CARACTERIZAÇÃO DE ARGAMASSAS DAS ESCARIOLAS
DA CASA 8 (PELOTAS, BRASIL) – UMA ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR
Pedro Luís Machado Sanches e Daniele Baltz da Fonseca..........................................................106
PERMANÊNCIAS E INOVAÇÕES TÉCNICAS E ORNAMENTAIS EM CASAS
SENHORIAIS URBANAS CONSTRUÍDAS PELOS BARÕES DO CAFÉ EM CAMPINAS –
SP
Renata Baesso Pereira e Ivone Salgado.......................................................................................129
FREDERICO STECKEL: PINTOR-DECORADOR DO IMPÉRIO E DA REPÚBLICA
Ricardo Giannetti.........................................................................................................................156
EIXO TEMÁTICO II – Identificação das estruturas e dos programas distributivos e o estudo de
nomenclaturas funcionais e simbólicas de cada espaço...............................................................180
A BELLE ÉPOQUE EM SÃO PAULO: ANÁLISE DA RESIDÊNCIA DE NUMA DE
OLIVEIRA DE VICTOR DUBUGRAS (1903)
Amanda Bianco Mitre..................................................................................................................181
PRIVACIDADE, HIGIENE, CONFORTO E SOFISTICAÇÃO EM CASAS URBANAS DE
CLASSE ALTA DE RIBEIRÃO PRETO NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Ana Carolina Gleria Lima e Maria Angela P.C.S. Bortolucci......................................................195
A CASA-SEDE DA FAZENDA DA TAFONA: ORGANIZAÇÃO E EVOLUÇÃO DE UMA
VIVENDA LUSO-BRASILEIRA
Ciane Luísa Junges Et al..............................................................................................................211
O ESPAÇO COMO CAMPO SIMBÓLICO: REGISTROS DO HABITAR NO SOLAR AMADO
BAHIA EM SALVADOR, BAHIA
Emyle dos Santos Santos e Victor Hugo Carvalho Santos............................................................226
PAÇO, SOLAR, SOBRADO, PALÁCIO E PALACETE: NOMENCLATURAS DA CASA
SENHORIAL DA IDADE MÉDIA AO SÉCULO XIX
Helder Carita...............................................................................................................................243
QUARTO DE COSTURA: ESPAÇO FEMININO NO SÉCULO XIX E XX. SOLAR DA
BARONESA – PELOTAS/RS
Larissa Tavares Martins..............................................................................................................260
A CASA SENHORIAL NO SERTÃO BAIANO: A SEDE DA FAZENDA MORRO BRANCO
DE JUVINO RIBEIRO
Luiz Alberto Ribeiro Freire..........................................................................................................278
A CASA SENHORIAL EM CONTEXTO RURAL: ESTUDO DE CASO SOBRE AS
TRANSFORMAÇÕES NO TERRITÓRIO DE SÃO JOSÉ DO RIO PARDO, SÉCULO XIX
Rafael Augusto Silva Ferreira e Renata Baesso Pereira..............................................................307
EIXO TEMÁTICO III – A ornamentação fixa: azulejos, tetos, talhas, pinturas, estuques, têxteis,
pavimentos, chaminés/lareiras, janelas, portas, pára-ventos e outros bens
integrados.....................................................................................................................................335
DO MANUAL À PRÁTICA: O REPERTÓRIO ORNAMENTAL DO SALÃO DE BILHAR DO
PALÁCIO LARANJEIRAS NO RIO DE JANEIRO
Ana Claudia de Paula Torem.......................................................................................................336
LADRILHOS HIDRÁULICOS: TAPETES DE CIMENTO, AREIA E PIGMENTO NOS
CASARÕES SENHORIAIS DE PELOTAS – RS
Andréa do Amaral Dominguez e Carlos Alberto Ávila Santos......................................................350
ESTUQUES EM RELEVO E TÉCNICAS PICTÓRICAS – METODOLOGIA DE INVENTÁRIO
Cristina Jeannes Rozisky, Fabio Galli e Carlos Alberto Ávila
Santos...........................................................................................................................................380
ENTRE ESTUQUES, LADRILHOS HIDRÁULICOS E ASSOALHOS DE MADEIRA DA
LOJA PARIS N’AMÉRICA
Marcia Cristina Ribeiro Gonçalves Nunes...................................................................................405
ARTE E MEMÓRIA: BENS INTEGRADOS DO SOLAR SALDANHA EM SALVADOR,
BAHIA
Maria Herminia Olivera Hernández............................................................................................422
AOS QUE CHEGAM: AS ESCULTURAS DO HALL DO PALÁCIO DO CATETE
Paulo Celso Liberato Corrêa.......................................................................................................437
EIXO TEMÁTICO IV – O equipamento móvel nas suas funções específicas e suas relações com
o espaço; o conjunto e as circulações das peças; a atmosfera do
lugar.............................................................................................................................................454
O INVENTÁRIO MARIA TOMÁSIA: LIBERALISMO E DISTINÇÃO
Ana Pessoa e Ana Lucia V. Santos................................................................................................455
ENTRE O FUNCIONAL E O ORNAMENTAL: PRATARIA DOMÉSTICA EM ACERVOS DO
PORTO NA SEGUNDA METADE DE OITOCENTOS
Gonçalo de Vasconcelos e Sousa..................................................................................................471
INVENTÁRIO, INVENÇÃO E INDIVIDUAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE OS MÓVEIS E
APETRECHOS DO CONDE DA BARCA A PARTIR DE DOCUMENTOS DESCRITORES
Marize Malta e Patricia D. Telles.................................................................................................497
PEQUENOS ACHADOS FORTUITOS: VESTÍGIOS DAS DIFERENTES OCUPAÇÕES DO
CASARÃO NÚMERO 8, CENTRO DE PELOTAS, RS, BRASIL
Taciane Silveira Souza e Pedro Luís Machado Sanches...............................................................514
CONSTRUTORES E ARTÍFICES E OS BENS INTEGRADOS AOS CASARÕES ECLÉTICOS
PELOTENSES: EM DOCUMENTAÇÃO DO FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX
Carlos Alberto Ávila Santos.........................................................................................................525
A COLEÇÃO DE AZULEJOS PORTUGUESES DO MUSEU DO AÇUDE: SALAS NOBRES
Mariana Rodrigues e Ana Pessoa.................................................................................................537
O INVENTÁRIO MARIA TOMÁSIA:
LIBERALISMO E DISTINÇÃO
Ana Pessoa Doutora em Comunicação, FCRB
Ana Lucia V. Santos
Doutora de História, EAU/UFF [email protected]
Este artigo integra pesquisa sobre a presença do “gosto neoclássico” no Rio de
Janeiro, em especial a atuação de Grandjean de Montigny na cidade, e tem como ponto de
partida uma edificação que recebeu intervenção do arquiteto, situada na esquina da rua do
Passeio com a rua das Marrecas, e seus proprietários, a família Oliveira Barbosa. A partir de
um esquema arquitetônico, depositado na Biblioteca Nacional, e do inventário de Maria
Tomásia, do acervo do Arquivo Nacional, as autoras desenvolveram duas comunicações,
“Tratar-se à lei da nobreza”: a família Barbosa de Oliveira e Grandjean de Montigny e O
inventário de Maria Tomásia: liberalismo e distinção, apresentadas no IV Colóquio A casa
senhorial: anatomia dos interiores, cujos conteúdos se complementam.
A análise do inventário de Maria Tomásia Oliveira Gonçalves1 permite observar o
estilo de vida das famílias de elite carioca em ascensão, o “tratar-se à lei da nobreza” no
Brasil, em meio à transição de colônia do império português, sob o pacto colonial, para nação
autônoma, sob a égide do constitucionalismo e a independência. Nesse contexto, ampliam-se
as possibilidades de ascensão social e de titulação, ao mesmo tempo em que se estabelece
uma nova ordem de consumo para uso pessoal e doméstico, com a importação de produtos
ingleses e franceses, a circulação de artistas e artesãos estrangeiros, e a adoção de novos
hábitos de sociabilidade.
1 Arquivo Nacional. ZN Fundo Juiz de Órfãos e Ausentes, caixa 916, n. 4075, ano 1825, gal. A.
456
Figura 1: Planta do Rio de Janeiro [A capital do Brasil] em 1831. Fonte: Biblioteca Nacional.
Maria Tomásia nasceu em 29 de março de 1871, em meio a uma prestigiosa família do
Rio de Janeiro. Ela era filha do negociante Tomás Gonçalves (c. 1747 – 1816)2 e Maria
Angélica de Oliveira (c. 1750 – 1826), e teve como irmãos Ana Dorotéia de Oliveira
Gonçalves (1789 – 1866), que se casou com o desembargador José Fortunato de Brito Abreu
Souza e Menezes, e o negociante José Marcelino Gonçalves (s.d. - 1854).
2 Segundo Cau Barata, Tomás Gonçalvez nasceu por volta de 1747, em Santa Maria Maior, vila da Guarda, bispado de Tui, reino de Galiza (Espanha) e faleceu no Rio de Janeiro, onde passou a morar antes de 1771. Foi sargento-mor, comendador e negociante no Rio de Janeiro, atuação esta atestada em 1799 e em 1811. No Brasil, passou a escrever seu nome com S. Era filho de Domingos Gonçalves e de Caetana Fernandez. Casou em 15/06/1771, no Rio de Janeiro, com Maria Angélica de Oliveira, carioca, nascida em cerca de 1750, e falecida em 06/10/1826, no Rio de Janeiro, filha de José Fernandes Santiago e de Ana Isabel de Oliveira.
457
Figura 2: Assinatura de Maria Tomásia em correspondência familiar, 1823. Fonte: Biblioteca Nacional.
Tomás Gonçalves era professo na Ordem Militar de Cristo e negociante de “grosso
trato” da praça do Rio de Janeiro; em 1799, ele constou da relação dos negociantes com as
maiores fortunas da corte, preparada pelo conde de Resende.3 Naquele momento, rivalizando
com os grandes proprietários de terras e escravos, os negociantes de grosso trato se
consolidavam como destacado segmento econômico da colônia, com controle de boa parte do
comercio transatlântico, em especial, o de escravos da costa da África; além de importantes
proprietários urbanos.
Tomás, com 14 propriedades,4 estava no seleto grupo de proprietários que aferiram
maior renda anual, entre 1.000$00 a 2.000$000, com seus aforamentos (CAVALCANTI,
2004, p. 439). Ele morava, inicialmente, em um sobrado na rua dos Pescadores,5 onde
também mantinha seu negócio. Em 1808, contudo, é mencionado na décima urbana6 como
proprietário de imóvel na prestigiosa rua do Passeio.7 Esta rua, assim como a rua das
Marrecas, inicialmente denominada das Belas Noites, que lhe era perpendicular, foi aberta
entre 1779 e 1783, por ocasião da construção do Passeio Público. O jardim se tornaria o lugar
de lazer da boa sociedade do final do século XVIII, que ali se reunia em rodas musicais
(MACHADO DE ASSIS, 1895). Tomás possuía outras propriedades na região, como as que
constariam do inventário de sua filha, tanto que doou, em 1791, uma casa da rua das Marrecas
para o padre José Mauricio, professor de música de José Marcelino, para que ele atendesse à 3 Arquivo Nacional. Correspondência dos Vice-Reis, códice 68, v. 15, p. 324.
4 Ele possuía chãos e moradias, como casa térrea na rua detrás do Hospício, que lhe dava a renda anual de 12$800 (AN, 1ON, 189, p. 167), morada de casas na rua das Mangueiras, que lhe valia 6$000 anuais (AN, 4ON, 125, p. 23), e casa alugada para loja de tecido na rua da Quitanda. (AN, 1ON, 209, p 133v). Sobre as propriedades de Tomás Gonçalves, ver Banco de Dados da Estrutura Fundiária do Recôncavo da Guanabara (1635-1770). Disponível em <http://mauricioabreu.com.br/escrituras>. Acesso em: 20 abr. 2017. 5 Em “uma morada de casas de sobrado, com 30 palmos de frente e 119 de fundos, comprada em 1799 (SCMRJ,
Tombo Geral, 1788, p.103) 6 AGCRJ. Décima urbana,1808 IMP/ FCM 0001, Rua do Passeio, fl. 250. 7 A rua do Passeio e a das Marrecas, inicialmente das Belas Noites, foram abertas quando da construção do
Passeio Público, entre 1779 e 1783, quando se tornou o lugar de lazer da boa sociedade do final do século XVIII, que ali se reuniam em rodas musicais (MACHADO DE ASSIS, A semana, 5 maio 1895)
458
comprovação de patrimônio exigida para obtenção das “ordens de diácono, e cantar missa
solene no ano de 1792” (PORTO ALEGRE, p. 357).
Com a chegada da Corte, o grupo de negociantes do Rio de Janeiro se fortaleceu e
estabeleceu intensa relação com a Coroa, onde empréstimos de recursos e imóveis eram
recompensados não só com cargos e mercês como, em especial, asseguravam interlocução nas
discussões sobre as novas regras de comércio. Estava em pauta a transformação das práticas e
regras estabelecidas ao longo de séculos pelo pacto colonial − ameaçadas pelos tratados
comerciais impostos pela Inglaterra, voltados para a internacionalização de produtos e
serviços, privilegiando os comerciantes ingleses − e o fim do tráfico negreiro. Com isso, ao
longo das primeiras décadas do século XIX, as fortunas dos negociantes de grosso trato foram
se diversificando, com transferência de capitais para negócios agrícolas, em especial o café, e
imobiliários, com a aquisição terrenos e construção de casas de aluguel.
Com a morte de Tomás Gonçalves, em 1816, D. Maria Angélica e José Marcelino
deram continuidade aos negócios, com a empresa Viúva Gonçalves e filho. Ainda naquele
ano, José Marcelino integrou a comissão de representantes do Corpo do Comércio que
ofereceu subscrição para investimento na educação pública a D. João VI; e ocupou a cobiçada
direção da Junta do Banco do Brasil, junto a Luiz de Sousa Dias e Fernando Carneiro Leão.
Ele seria o representante do Corpo do Comércio na administração da construção do Praça de
Comércio, desenvolvida, entre 1819 e 1820, pelo arquiteto Grandjean de Montigny, pelo que
recebeu a comenda da Ordem de N. S. de Conceição de Vila Viçosa (GAZETA DO RIO DE
JANEIRO, 12 maio 1820). Em 1826, ele estava entre os viadores de S. M; morreu em Paris, a
5 de fevereiro de 1854. (JORNAL DO COMMERCIO, 16 mar. 1854).
Maria Tomásia casou-se com o tenente-coronel José de Oliveira Barbosa (1753 −
1844), viúvo,8 por volta de 1801.9 José, nascido em família de militares, sentou praça como
cadete em 1775, e, após sucessivas promoções, foi nomeado, em 1798, coronel comandante
do regimento de artilharia, recebendo também a ordem militar de São Bento de Avis; nesse
posto comandou, em 1809, o Regimento de Artilharia que formou na chegada da Família
8 José havia se casado, em 1797, com Ana Joaquina de Velasco Molina, filha natural do coronel de Infantaria do
Rio de Janeiro, Vicente José Velasco Molina, que atuou como comissário em Buenos Aires para a execução dos tratados de paz e limites com a Espanha. José de Oliveira Barbosa herdaria do sogro a propriedade do oficio de escrivão da Ouvidoria e Correição do Rio de Janeiro (AHU_ACL_CU017, cx. 202, D. 12488). 9 Não se conhece a data de falecimento de Ana Joaquina e nem a do casamento de José com Tomásia, a não ser
que foi no dia 22 de outubro, conforme soneto na documentação familiar. Contudo, pode-se considerar que a compra de uma morada de casas de sobrado a 24/10/1800 também estivesse vinculada ao casamento com Ana Joaquina, tendo em vista sua localização em região eminentemente militar: “no largo do quartel do Regimento do Moura, defronte do oratório de Nossa Senhora da Batalha, onde faz canto e três frentes, duas para o mesmo largo e mar outra para o beco vulgarmente chamado de Moura” (AN, 1ON, 185, p ?), por 9.000 cruzados.
459
Real, em 1809. Neste mesmo ano, foi nomeado governador e capitão de Angola10 e, no ano
seguinte, promovido a marechal, quando então seguiu com a família para assumir o cargo em
Luanda, onde permaneceria até 1816.
De volta ao Brasil, Barbosa teria atuação destacada nos primeiros momentos da
independência,11 em especial quando, como ministro da Guerra, entre 10 e 14 de novembro de
1823, referendou o decreto que dissolveu a Assembleia Constituinte.12 Comendador da
Imperial Ordem de Avis em 1813, ele obteve o título de barão do Passeio Público a 24 de
outubro de 1829, e o de visconde do Rio Comprido, em 8 de julho de 1841.
O casal teve cinco filhos. O primogênito, José Thomas (1803 - 1888), foi iniciado
ainda criança na carreira militar, da qual reformou-se com a patente de capitão aos 21 anos.
Integrou, a partir de 1840, a equipe do recém-criado arquivo público, onde seria reconhecido
como paleógrafo honorário e trabalharia ativamente por 47 anos (JORNAL DO
COMMERCIO, 7 mar. 1888). Colecionador de documentos históricos, participou com
inúmeros itens da Exposição de História do Brasil, realizada pela Biblioteca Nacional, em
1881. Dentre eles, o desenho original, a nanquim, do Palácio da Bolsa, de Grandjean de
Montigny.13 Pouco depois, sua coleção de gravura foi adquirida pela Biblioteca Nacional. Ele
também guardaria um conjunto de sua correspondência familiar, um dos raros testemunhos da
intimidade doméstica do período, além de seus estudos de desenhos, com indicação de aluno
de A. Julien Pallière,14 também entregues à Biblioteca Nacional.
10
Ele assumiu a governança já sob a égide do Tratado de Comércio Luso-Britânico, de 19 de fevereiro de 1810, pelo qual, entre favorecimentos alfandegários a produtos ingleses, Portugal se comprometia a colaborar para a extinção gradual do tráfico de escravos nos estabelecimentos de Bissau e Cacheu. Esse acordo seria seguido, em 1815, com declaração firmada no Congresso de Viena, de 8 de fevereiro de 1815, sobre a abolição do tráfico de escravos. Esse tema seria retomado no tratado luso-brasileiro de 1815, quando Portugal passou a ficar proibido de coprar e traficar escravos ao norte do Equador. Seria José de Oliveira Barbosa quem comunicaria, a 25 de janeiro de 1815, ao marquês de Aguiar, o êxito da excursão de descoberta da comunicação entre a costa oriental e ocidental da África. 11 Ele, como comandante da polícia, integrou a Junta de Governo para a Província do Rio de Janeiro, ao lado de Mariano José Pereira da Fonseca, do bispo capelão-mor D. José, José Caetano Ferreira de Aguiar, do marechal Joaquim de Oliveira Álvares, do negociante de grosso trato Joaquim José Pereira de Faro, do desembargador Sebastião Luís Tinoco, de Francisco José Fernandes Barbosa e de Manoel Pedro Gomes. 12 Sucedeu ao então ministro, o tenente-coronel João Vieira de Carvalho, futuro barão e conde Lages, hostilizado por seu português, por um curto mandato de cinco dias, quando foi sucedido por João Gomes de Oliveira Mendonça, coronel e deputado da Assembleia Constituinte, que exerceu outro breve mandato de seis dias. 13 “Plan façade et coupe de la Bourse tel qu´il est éxécuté a Rio de Janeiro l´an MDCCCXX. Dedié a Son Excellence Monseigneur comte S. Lourenço par Grandjean de Montigny Architecte” (CATALOGO, 1981, p. 1436). 14 A. Julien Pallière foi um artista francês que esteve no Brasil de 1817 a 1826, quando então morou na rua dos Barbonos, onde dava aulas. Ele se casou com a filha mais velha de Grandjean de Montigny, com quem teve três filhos. É de Pallière o quadro a óleo A Lapa e a Igreja Nossa Senhoria da Gloria do Outeiro visto da rua dos Barbonos, de 1821, que registra com detalhe, em meio ao casario, os fundos do palacete dos Oliveira Barbosa. O relacionamento do artista com a família sugere uma encomenda do quadro, hoje integrante da coleção Sergio e Hecild Fadel.
460
Outros filhos de José e Maria Tomásia foram Joana Henriqueta (1804 − ?), que se
casou com o comendador Francisco Manoel Raposo e se tornaria freira após a morte do
marido; Maria Constância (1806 – c.1855), que se casaria com Cyro Candido Martins de
Brito (1790 − 1857), primeiro diretor do Arquivo Nacional, com quem teria três filhos e de
quem se divorciaria; Thomas Augusto, nascido em 1816; e Constança Gabriela (1819 – 1891)
que se casaria, em 1833, com o seu primo Dr. Luiz Fortunato Brito Abreu S. Menezes (1812
− ?), com quem teve cinco filhos15.
O casal mantinha uma relação de respeito e confiança, tanto que José solicitou que, em
caso de morte, sua esposa fosse nomeada tutora e administradora dos filhos e bens,16 e
constituiu um ambiente familiar amoroso e festivo, promovendo comemorações públicas,
como a destacada iluminação na fachada do sobrado, dos festejos de aclamação de D. João
VI,17 e domésticas, como alegres reuniões para assinalar natalícios e dias santos, como
testemunha a correspondência familiar. São bilhetes e cartas trocadas entre pais, filhos e
irmãos, com sonetos, manifestações de saudades, preocupações com a saúde e recomendações
a parentes e amigos. Por volta de 1820, com caligrafia desenhada e segura, Maria Tomásia
escrevia com frequência ao filho José Tomás, em repouso nas imediações da cidade. “Teu pai
se recomenda muito, e deita a sua benção, eu faço o mesmo aseita (sic) muitas saudades de
todas as irmãs, e do Tomaz.”18
Maria Tomásia faleceu 7 de agosto de 1825, aos 40 anos, deixando filhos menores. O
inventariante foi seu marido e, para fins de avaliação e partilha, seus bens foram agrupados
nos seguintes lotes: Casas e fronteiras, Arvoredos e terrenos, Escravos, Animais Muares e
Gado Vacum, Ouro, Prata, Relógios e Piano, Seges e seus pertences, Trastes de madeira e
Bens, Livros, Roupas e Ornamentos do Oratório.
15 Segundo Cau Barata (BARATA, 2008), os filhos de Constança Gabriela foram José Fortunato de Brito Abreu Souza e Menezes (Rio de Janeiro, 30/05/1834 – 22/03/1898), Luiz Fortunato de Brito Abreu Souza e Menezes (Rio de Janeiro, 05/01/1837 − ?), Constância de Brito Abreu Menezes (Rio de Janeiro, c. 1839 – 06/11/1867), casou-se a 19.05.1855, com Caetano Alves de Souza Filgueiras (Salvador, 22.06.1830− João Pessoa – Pb, 28/07/1882), doutor, presidente da Província de Goiás; Maria Fortunata de Souza e Menezes I, nascida c. 1841, no Rio de Janeiro, e falecendo ainda menor; e Maria Fortunata de Souza e Menezes II, nascida a 27/01/1849. Constança Maria Brito Filgueiras, filha de Constância e Caetano, casou-se com Carlos José de Arruda Botelho, filho do conde de Pinhal, com quem teve extensa prole. 16
BARBOSA, José de Oliveira. Requerimento encaminhado ao Ministério do Império, solicitando que seja sua mulher Maria Thomasia de Oliveira Gonçalves reconhecida como tutora e administradora dos filhos e bens, que ficarem depois de sua morte. Biblioteca Nacional, Manuscritos, c-1081, 031, n. 00. 17
“O tenente general José de Oliveira Barbosa fez iluminar na casa de sua residência um grande painel, que, tendo no centro a coroa real superior a cifra de Sua Majestade, mostrava debaixo dela estas palavras – Deus, e o meu Rei.” (SANTOS, 1943, p.639) 18 BARBOSA, José Tomás de Oliveira. Correspondência passiva de José Tomás de Oliveira Barbosa. Manuscritos - I-46,12,18, n. 29.
461
Os principais bens do casal eram imóveis urbanos, concentrados nos arredores do
Passeio Público, possivelmente resultado de dote ou herança de Tomásia: o sobrado da rua do
Passeio 16 havia sido reformado, em 1818, sob a orientação de Grandjean de Montigny,
quando foi erguido um inovador hemiciclo.19 Como também uma fronteira de pedra cal e
moradas de casas térreas na rua das Marrecas 8 e 26, que somaram 49 contos e uma
propriedade rural, no Catumbi Grande.20
Figura 3: “A Lapa e a Igreja Nossa Senhoria da Gloria do Outeiro visto da rua dos Barbonos” de A.
Pallière, 1821, com os fundos da casa dos Oliveira Barbosa à direita. (PESSOA, 2011, p. 168)
A chácara, comprada pelo casal em 1805, era situada entre os morros do Catumbi e
Santa Teresa, avaliada em 6200$000, com seus pertences e escravos. Em 1825, a chácara
compreendia casa, arvoredo, mata e pasto, e era servida por escravos. Era comum dentre as
famílias com recursos a posse de chácaras voltadas para o abastecimento doméstico, com o
cultivo de frutas, legumes e alguns pés de café. Inicialmente rústicas, essas propriedades
foram aos poucos se revestindo de conforto para atividades de lazer.
19 O edifício seria um marco da paisagem carioca, registrado, ao longo dos anos, em vários quadros e fotografias, até ser demolido, em 1936, para dar lugar ao cinema Metro Passeio. 20 Sobre os imóveis, ver “Tratar-se à lei da nobreza: a família Barbosa de Oliveira e Grandjean de Montigny”.
462
Na avaliação, a morada de casa térrea, com uma varanda à frente, formada por colunas
e parapeitos, com cocheira, cavalariça e senzala, foi estimada em 2.000$000. O arvoredo era
constituído por um variado pomar, com laranjeiras, parreiras, mangueiras, limoeiros,
pessegueiros, tamarineiros, jambeiros, cajueiros; árvores aromáticas, como craveiros e
loureiros; e um cafezal, com 530 pés de café. O terreno ficava entre dois montes, fazendo uma
grande planície onde tinha uma capoeira grossa, fonte d´agua e pasto para gado.
O casal possuía trinta e três escravos, identificados por nome, raça, idade, habilidades
e valor, como nestes dois exemplos: “Francisco Moçambique que pareceu ter trinta anos e,
disse entender muito de serviço de enxada, avaliado em cento e sessenta mil réis”, e (...) “Luiz
Rebollo, que pareceu ter vinte e oito anos, disse ter algumas do ofício de carpinteiro, avaliado
em cento e setenta e nove mil duzentos réis”21.
Como governador de Angola, principal fornecedor de escravos para o Brasil, o
tenente-coronel teve tarifa especial para o embarque de retorno de um lote de escravos para
seu uso,22 o que deve ter implementado o grupo de escravos da família. O conjunto, avaliado
em 5.450$000, era composto por homens e mulheres, entre velhos, adultos, jovens e crianças,
que pertenciam a doze diferentes raças: benguela, cabinda, cabunda, cassange, congo, crioulo
(sic), maringa (sic), moçambique, monjolo, rebolo e outras. Havia os escravos voltados para
as lidas rurais, como serviços de enxada, roça, de chácara; os que cuidavam das roupas, para
ensaboar, lavar, coser; os mais especializados, como pedreiros, carpinteiro; quitandeiro, fazer
de telhas; e os domésticos, que faziam “serviço de casa” e o “cozinheiro do comum”. A
chácara tinha ainda um pequeno lote de animais: seis muares, entre machos e mulas, para os
serviços de transporte de carga e capim, e sete animais, entre vacas e bois, para fornecimento
de leite e reprodução.
A relação de bens dos Oliveira Barbosa traduz os hábitos das elites, de uso e fruição
de produtos de luxo, tanto para uso pessoal, como viaturas, joias e vestes ornamentadas, como
para a sofisticação do ambiente doméstico, com peças e utensílios em prata, relógios, piano e
mobiliário requintado.
21
AN, ZN Fundo Juiz de Órfãos e Ausentes, caixa 916, n. 4075, ano 1825, gal. A. 22
During an 1811 shortage of shipping at Luanda, caused by the movement of Rio-based slavers to Cabindan beaches, Luso-African merchants offered to pay 15$000 per slave to attract ships to relieve pressure on barracoons overcrowded with dying slaves they could not evacuate to Brazil. The only recorded application of the 1758 restriction to 6$000 was by the governor Oliveira Barboza (sic), who invoked it to gain cheap passage for his personal slaves at the lower, legal rate when he ended his term in Angola and returned to Brazil in 1816. MILLER, p. 335 Oliveira Barbosa, 8 april 1811, AHU, Angola, Cx. 59, confirming that the 6$000 ceiling was still technically in effect (apud MILLER, p. 335).
463
Figura 4 Tipos de penteados de senhoras brasileiras (BANDEIRA, Júlio, 2013, p. 444)
Dos bens avaliados, as viaturas ocupavam especial lugar dentre os signos de riqueza e
prestígio. Em 1810, as carruagens, antes restritas à aristocracia que as exibiam, ricamente
decoradas, na cerimonias da Corte, já estavam, novas ou usadas, francamente anunciadas nos
jornais. A Gazeta do Rio de Janeiro oferecia carros com portas fechadas com vidros,
interiores estofados com tecidos nobres, jogo nas quatro rodas (sic), e paredes e coberturas
decoradas. Os Barbosa de Oliveira possuíam duas carruagens: uma “de frentes de portas e
varas interna pintura amarela e seus competentes arreios”, avaliada em 500$00, e outra, “de
portas e varas de bestas, de forro de damasco branco e seus competentes arreios”, estimada
em 300$00. Havia ainda uma traquitana − carruagem para duas pessoas, com quatro rodas,
fechada com cortina de couro, e que valia 150$000, e uma carroça, para atender à chácara.
Figura 5 Damas da corte (BANDEIRA, Júlio, 2013, p 350)
Dos conjuntos do inventário, o de maior valor é o denominado “ouro”, dedicado às
joias que, além da função de entesouramento, serviam como símbolo de fortuna e prestígio
social e eram muito apreciadas pelas mulheres da elite. No lote, havia cerca de 39 itens de
peças de ouro, entre alfinetes, correntes, colares, brincos, pulseiras, “memorias” etc., muito
deles cravejadas de brilhantes e ornados com pedras preciosas, cujo valor foi estimado em
seis contos setecentos e vinte nove mil: “O luxo das mulheres é indescritível. Jamais encontrei
reunidas tantas pedras preciosas e pérolas de extraordinária beleza...” comenta um viajante
(VON LEITHOLD, 1819 p. 30). A peça mais valiosa do lote foi uma pluma com tira e
arremates cravejadas de brilhantes,23 como as usadas pelas damas em momentos de gala,
23
“Uma pluma que tem sete hastes de brilhantes miúdos as quais arrematam um grande laço que pela parte de baixo se mostram quatro pés das mesmas hastes declaro que os brilhantes do Laço e oito mais entrando dois pingentes que pendem do mesmo Laço somão (sic) cento e cinquenta e sete brilhantes maiores e poderão haver
464
estimada em um 1.660$000, confirmando a observação de Leithold sobre o valor desses
ornamentos: “Sobre a cabeça colocam quatro ou cinco plumas francesas, de dois pés de
comprimento, reclinadas para a frente e, sobre a fronte, como em torno do pescoço e nos
braços, diademas incrustados de brilhantes e pérolas, alguns de excepcional valor” (VON
LEITHOD, 1819, p. 30). Nesse conjunto, foram também consideradas as condecorações, com
brilhantes, granadas e esmeraldas, da ordem militar de São Bento de Aviz, concedida tanto ao
tenente-coronel, como a seu filho José Thomas.
Figura 6 Duas damas da corte em grande gala (BANDEIRA, Júlio; 2013, p. 351)
No lote denominado “roupas”, foram considerados tanto peças e objetos do vestuário
de Maria Tomásia, como os demais têxteis do ambiente doméstico, envolvendo a
identificação de cerca de vinte diferentes tipos de tecidos.24 O guarda-roupas de Maria
Tomásia comportava tanto peças luxuosas como roupas simples para uso doméstico, entre
vestidos, camisas, saias, mantas, xales, e complementos – leques, lenços, chapéus, sapatos,
meias, indispensável25 e guarda-sol. Ela possuía conjuntos e vestidos de seda e cetim
ricamente ornados, como “vestido, manto e toucado de seda branca com guarnições em bom
uso” avaliados em 32$000; “dois ditos de sedas brancas diferentes, com guarnições de (?)” de
quinhentos miúdos nas sete hastes com seus pés mais em outras partes da mesma peça e a meio do dito laço tem um grande brilhante sobre o comprido de cantos quebrados boa qualidade vale um conto setecentos e sessenta mil réis”; Arquivo Nacional. ZN Fundo Juiz de Órfãos e Ausentes, caixa 916, n. 4075, ano 1825, gal. A. 24
Adamascado, algodão, baeta (tecido de lã grosso), bretanha (lençaria de linho fina produzida na Bretanha), brim, cambrai, cambraia (lençaria muito fina de linho, fabricada em Cambray), cassa (tecido fino e transparente de linho ou algodão), cetim, chita, damasco, escócia, escomilha de lã (lençaria muito fina, transparente), filó de seda, fustão (lençaria de linho ou algodão), lã, linho, linho lavrado, olanda (lençaria fina, que vem da Holanda), rapão (chita inglesa forte), seda. 25 Bolsinha feminina usada para levar objetos pequenos e de uso pessoal.
465
mais ou menos uso, no valor de 30$000; “um dito de seda cor de rosa com guarnições”, no
valor de 10$000; e os vestidos de “seda verde listado”, e de “dito branco de seda, com
guarnições de cor”, ambos a 9$000. Havia também os complementos luxuosos, como “xale de
fio de seda preta e uma guarnição de renda para vestido” avaliados em 6$000 réis, e
penteador26 de cambraia bordado, avaliado em 5$000. Para uso diário, havia onze vestidos
“brancos de chita, com uso” no valor de 12$000; “cinco xales de fazendas brancas e
estampadas, com uso”, no valor de 2$000; e “dois ditos de cetim verde barrados de lã e um
pequeno de seda com barra amarela”. Havia também a roupa de batizado dos filhos, “três
mandriões de diferentes cassas e uma touca branca” avaliada em 2$560, e “mantilha de
batizar muito usada”, valendo 1$000.
Figura 7 Vendedor de flor e fatias de coco (BANDEIRA, Júlio, 2013, p. 138)
Os têxteis domésticos compreendiam tapetes − um tapete de sala e uma alcatifa;
cortinas e capas de móveis; roupa de cama, como cortinados de cama, colchas, cobertas, dez
lençóis finos de linho, nove fronhas de diversos tamanhos, e um lençol de bretanha com três
fronhas; e roupa de mesa – panos de cobrir mesas, toalhas e guardanapos adamascados, em
26 Pano de linho que se põe ao redor do pescoço para cobrir os ombros e não sujar o vestido com cabelos enquanto se penteia.
466
algodão e em linho, e toalhas de cambraia. E, por fim, peças de tecidos e retalhos, medidos
em côvados, e complementos para costura, como rendas e fitas, medidas em varas.
O relógio era um objeto muito apreciado pela elite europeia, que havia sido
transformado, ao longo dos séculos XVII e XVIII, em objeto de luxo, e ostentado tanto em
paredes, colunas e mesas, como decoração, e de forma portátil, como relógio de bolso. Maria
Tomásia possuía dois ricos relógios de bolso, produzidos por duas prestigiadas firmas. Um,
cravejado de pérolas, da fábrica Veigneur, de Genebra, que atuou de 1770 a 1800, e outro, de
prata, da fábrica inglesa Justin Vulliamy, constituída por um suíço no sec. XVIII. A casa
possuía também dois relógios para cima de mesa de sala, um inglês e outro francês. Juntos,
foram avaliados em 105$200.
A prata era também tradicionalmente apreciada pelas elites portuguesas como sinal de
riqueza, além de ser altamente transacionável. Havia uma diversidade de objetos de prata de
uso doméstico, que podiam ser apreciados em festas e jantares, aliando o caráter utilitário ao
decorativo. A família possuía cerca de 20 itens de peças em prata, como salvas, castiçais,
bandejas, copos, bacias e talheres: “vinte e quatro garfos, vinte e quatro colheres, duas
grandes para sopa, tudo puro com treze marcas e quarenta e oito vezes emprestados”, no valor
de 88$000 e “vinte e quatro facas com cabo de prata e mais um cabo de faca grande”,
estimado em 40$000. Outras peças utilitárias, como “um par de estribos de meia para piano” e
“quatro fivelas pequenas” também foram incluídas nesse lote, estimado ao final em um
1.507$800.
A família possuía um piano avaliado em 180$000. Como já comentado, os Gonçalves
apreciavam música, tanto que José Marcelino teve aulas, possivelmente de violão ou cravo,
com o padre José Mauricio. A presença da Corte havia impulsionado a música erudita, com a
vinda de músicos portugueses para a incipiente cena artística carioca, e divulgado o uso do
piano, que passou a ser instrumento obrigatório nos saraus das famílias abastadas.
Os “trastes domésticos” em madeira da extensa família somam a cerca de 63 peças,
destinados a diferentes cômodos – salas, quartos, cozinha, biblioteca, capela, com armários,
bancas, conjunto de cadeiras, camas, canapés, cômodas, estantes, guarda louças, marquesas,
mesas, mochos, sofás, tremós e toucador. Nesse lote, foram considerados também outros
objetos desse material, como bandejas, caixas, carteira e quadros de moldura douradas com
pinturas da China.
As peças eram feitas de diversas madeiras, como jacarandá, madeira branca, madeira
estrangeira, preguiná, pequiá e tarubá, cujo valor total atribuído seria de 136$600. Os móveis
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em tácula, madeira vermelha originária de Angola, são provavelmente resultado da estada da
família na África. Nessa madeira, havia doze cadeiras de tácula com assento de palha, dois
armários pequenos e uma cama com pomo dito “à francesa”. Em jacarandá, havia banca de
cabeceira com assento, duas camas de solteiro; e sofá com assento de palha, cadeira com
braços, cadeira de encontro, um canapé, mesa grande para chá com pés de galo, duas mesas
de abrir velhas.
Desse conjunto, é possível identificar o mobiliário do “quarto do oratório” (capela),
cômodo usual nas casas de elite. No caso dos Barbosa de Oliveira, o oratório era formado pela
peça do oratório em si e dois nichos de madeira para os santos São Vicente e Senhor dos
Passos e quadros pequenos de santos, cujos têxteis e objetos − panos, toalhas e objetos, além
da pedra de arã e o missal, seriam estimados em item próprio: “Ornamentos do oratório”.
Os objetos mais decorativos e valiosos foram arrolados como “Bens”, e somaram
setenta e seis peças, entre tocadores franceses, caixa de costura pequena, quadros, espelhos de
salão, móveis, bandejas, castiçais, louças, como sopeiras e tigelas, aparelhos de mesa e chá;
além de cálices para vinho e copos para água. O gosto pela decoração pode ser observado no
uso de espelhos e quadros que deveriam estar expostos em cômodos nobres. Havia três
espelhos grandes de sala, com moldura dourada, um com cinco palmos de altura e três de
largo, e outros dois com quatro palmos de largura e cinco de cumprimento. A coleção de
quadros era formada por oito quadros de paisagem, sendo dois pequenos e seis grandes, com
molduras douradas; havia outros figurativos, todos com moldura dourada: um grande, com as
Musas, uma pintura mãe e filho, e o retrato de D. João, rei de Portugal, de corpo inteiro.
Quanto à louça, havia três aparelhos de mesa, sendo um aparelho de mesa de louça
Companhia das Índias, com duzentos e cinquenta peças, dois aparelhos de louça de porcelana,
um dourado e outro encarnado, com seis peças. Da Índia, havia também quatro tigelas para
caldo com seus pratos em casal, dezesseis casais de xícaras e pires da Índia matizados em
azul, e “cinco casais de ditos da Índia beira encarnada”. O hábito de tomar chá e café se
confirma com a presença de aparelhos próprios; havia três aparelhos de chá, um de porcelana
dourada, com remates verdes; outro dourado matizado de carmesim e ainda um matizado e
dourado por fora e por dentro, e um aparelho para café, com “vinte e dois casais de xícaras e
pires café matizadas de flores e beiras douradas”.
A coleção de livros do casal somou 50 títulos sobre diferentes assuntos. Além da
indefectível Bíblia Sacra, havia títulos voltados para os estudos militares - lembrando que
José de Oliveira Barbosa, já em 1795, havia sido nomeado lente da Academia
468
Militar27 - como Memórias de Artilharia e Arte da Guerra, matemática, Geometria de
Euclides e Matemática de Tosca [Compêndio matemático Tomas Vicente Tosca]; para
engenharia e construção, como Regras de Desenho, Engenheiro Português e Arquitetura de
Vignolla. Havia biografias de reis e militares como História de Carlos XII; [História de
Carlos XII, rei da Suécia, de Voltaire], Vida de Lord Wellington, Memórias de Portugal, além
de romances como Aventuras de Telêmaco, de poesia, como Obras de Ovídio, de línguas, e o
Dicionário Inglês- Português.
O inventário é um importante documento sobre os hábitos e costumes da família, e de
grande valia para melhor compreender a mentalidade e circunstâncias que proporcionaram a
intervenção de Grandjean de Montigny no sobrado da família à rua do Passeio. Entre livros,
quadros de paisagem e música, a família Oliveira Barbosa cultivava a sensibilidade
“ilustrada”, de valorização das letras e das artes, e a busca de distinção embasam a
contratação de renovado arquiteto francês para a reforma de seu amplo sobrado. A decoração
dos ambientes lançou mão de espelhos, utensílios de prata, mobiliário requintado e objetos de
gosto para preparar a casa para o convívio social alargado, para além do círculo familiar,
necessário para a ascensão profissional e política do tenente-coronel. Assim, os objetos de
aparato, como as viaturas, vestes, joias e insígnias da ordem militar, indicam a busca de
inserção da família nos círculos de elite, finalmente consagrada pelos títulos nobiliárquicos
conquistados por José de Oliveira Barbosa, barão do Passeio, em 1829, e visconde do Rio
Comprido, em 1841.
Por sua vez, as peças de madeira angolana, as louças da Companhia das Índias e os
demais objetos de origem oriental refletem persistência do gosto difundido pelas antigas rotas
transatlânticas entre colônias do império português, e presente em Luanda durante a estada da
família, mas já em transição no fim do período joanino, diante o consumo das novidades
europeias.
O inventário de Tomásia de Oliveira Gonçalves permite conhecer, em especial, o
universo material feminino, com a descrição detalhada de roupas de gala e de uso diário, dos
objetos e joias de adorno e os de valor afetivo, como as antigas roupas de batizado. Também o
cotidiano doméstico pode percebido nas entrelinhas, como as rezas diárias em oratório e a
prática da costura e bordados, com a caixa de costura e tecidos, rendas e retalhos.
27
AHU_ACL_CU_005, Cx. 155, D. 11713.pdf Disponível em <
https://bdlb.bn.gov.br/redeMemoria/bitstream/handle/123456789/208317/AHU_ACL_CU_005,%20Cx.%20155,%20D.%2011713.pdf?sequence=3&isAllowed=y >, Acessado em: 01/05/2017.
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