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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 1
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS
IV Simpósio ProfLetras/UENP
&
II SIDIALE - Simpósio Diálogos Linguísticos e Ensino
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) Campus de Cornélio
Procópio
08 a 10 de outubro de 2018
ORGANIZAÇÃO DOS ANAIS:
Letícia J. Storto & Samandra de Andrade Corrêa
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 2
COORDENAÇÃO GERAL
Eliana Merlin Deganutti de Barros COMISSÃO ORGANIZADORA Eliana Merlin Deganutti de Barros Gabriela Martins Mafra Jakeline Aparecida Semechechem Letícia Jovelina Storto Lívia Maria Turra Basseto Marilúcia Domingos dos Santos Striquer Osnir Branco Samandra de Andrade Corrêa Vanessa Santos Fonteque COMISSÃO TÉCNICA Daniela Monica Cabral Beatriz Carolini Bento Xavier
COMISSÃO CIENTÍFICA Maria Ilza Zirondi
Bruna Carolini Barbosa Leticia Jovelina Storto
Samandra de Andrade Corrêa
MONITORES Camila da Silva Pelizari
Danielle Felicio Gabriela Pepis Belinelli
Leticia Vidotti dos Santos Mariana Helena Delavia Natalia Prado Xiriqueira
Nathalia de Souza Toncovitch
WEB DESIGNER Leticia Jovelina Storto
Coordenação do ProfLetras/ UENP: Marilúcia Domingos dos Santos Striquer
Coordenação da Graduação em Letras/ UENP, Cornélio Procópio: Raquel Gamero
Carga Horária: 36 horas
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ – UENP
Campus de Cornélio Procópio PR 160, Km 0 (saída para Leópolis)
Cornélio Procópio, PR Fones: (43) 3904-1906; 3904-1907
MAIORES INFORMAÇÕES:
http://sidiale.webnode.com sidiale.com
www.sidiale.com
ANAIS DO SIDIALE:
http://anaisdosidiale.webnode.com
E-MAIL: [email protected]
■ Os textos aqui publicados são de responsabilidade exclusiva de seus autores, inclusive
revisão e citações.
Capa de Letícia J. Storto
Imagem da Capa: Josealbafotos, disponível no Pixabay (https://pixabay.com/)
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APRESENTAÇÃO
Assim como aconteceu em 2017, em 2018, o Simpósio
PROFLETRAS/UENP se articula ao SIDIALE – Simpósio Diálogos Linguísticos
e Ensino –, evento criado pelo Grupo de Pesquisa (CNPq) DIALE, liderado pelas
Profas. Dras. Eliana Merlin Deganutti de Barros e Letícia Jovelina Storto.
O grupo DIALE - Diálogos Linguísticos e Ensino (UENP/ CNPq)
desenvolve pesquisas em duas linhas, uma que se dedica aos estudos analíticos
do texto e do discurso, outra que foca tanto o ensino e aprendizagem da Língua
Portuguesa, como língua materna, como a formação do professor. Ambas as
linhas têm como escopo uma visão enunciativa da linguagem e sociointeracional
do ensino e aprendizagem. Este simpósio reúne pesquisadores desse e de
outros grupos de pesquisa que se interessam pela pesquisa a respeito de
linguagem, ensino etc
O IV Simpósio do PROFLETRAS (Mestrado Profissional em Letras em
Rede Nacional) da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) tem por
finalidade apresentar e debater as pesquisas desenvolvidas por mestrandos do
Programa. O evento também objetiva ser um espaço de discussão de estudos
sobre o ensino-aprendizagem e formação do professor de língua portuguesa e
literatura, promovendo palestras de pesquisadores da área.
É nesse sentido que o Simpósio PROFLETRAS/UENP se articula ao
SIDIALE, em sua segunda edição, o qual busca fomentar pesquisas na área dos
Estudos da Linguagem, tendo como escopo estudos tanto de fenômenos
linguísticos diversos e como da língua como objeto de ensino-aprendizagem.
Sendo assim, o SIDIALE vai ao encontro das discussões empreendidas no
PROFLETRAS. O evento conjunto se destina, assim, a professores, alunos
(graduação ou pós-graduação) e pesquisadores da área de Letras, com ênfase
na área de ensino da língua portuguesa e literatura. Destacamos nosso interesse
pelos profissionais da Educação Básica, pois o foco é, sobretudo, a simbiose
inerente entre teoria e prática docente.
Eliana Merlin Deganutti de Barros & Letícia Jovelina Storto
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SUMÁRIO
A construção de um modelo teórico do infográfico sob a perspectiva do ISD ..................................................................................................................... 6
Gabriela Pepis Belinelli ................................................................................................ 6
Eliana Merlin Deganutti de Barros ............................................................................... 6
A potencialidade dos elementos fantásticos nos contos de Lygia Fagundes Telles ............................................................................................................... 27
Elisete Soares .............................................................................................................. 27
Mariângela Alonso ..................................................................................................... 27
Admirável mundo novo e admirável chip novo: uma nova visão intertextual distópica.......................................................................................................... 48
Naraiane Tais da Silva ................................................................................................ 48
Ane Caroline Santos ................................................................................................... 48
A importância da compreensão da intertextualidade na música “Além do espelho”, de João Nogueira .......................................................................... 64
Rafael Augusto Moraes Monteiro .............................................................................. 64
Lívia Maria Turra Bassetto ......................................................................................... 64
Inclusão de alunos com necessidades especiais: problemáticas em torno do processo de ensino-aprendizagem ......................................................... 74
Gabriela Martins Mafra .............................................................................................. 74
Aparecida de Fátima Martins Mafra ........................................................................... 74
Formação de educadores para o trabalho em sala de aula com base na oralidade letrada ............................................................................................. 88
Gesmilher de Almeida Lopes ..................................................................................... 88
Leitura linguístico-textual de um apólogo: trabalhando com a literatura infanto-juvenil ................................................................................................. 99
Letícia Jovelina Storto ................................................................................................ 99
Karen Alves de Andrade Moscardini ......................................................................... 99
Solange Aparecida de Souza Monteiro ...................................................................... 99
O cardápio na perspectiva do Interacionismo Sociodiscursivo .............. 116
Franciele Andriane da Costa..................................................................................... 116
Rafaela Zenovello ..................................................................................................... 116
Marilúcia dos Santos Domingos Striquer ................................................................. 116
Uma análise textual dos discursos instituídos em “O patinho feio” de Andersen ....................................................................................................... 132
Aline Regina Lemes de Sene .................................................................................... 132
Marilúcia dos Santos Domingos Striquer ................................................................. 132
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Uma contribuição para o ensino da língua portuguesa: tratando o gênero causo ............................................................................................................. 150
Luciane Cristina Benites Pereira .............................................................................. 150
Uma perspectiva sociolinguística sobre identidade e esteriótipo no discurso humorístico stand up comedy..................................................... 163
Angélica Prestes Rosas ............................................................................................. 163
Beatriz dos Santos da Silva ...................................................................................... 163
Naraiane Taís da Silva .............................................................................................. 163
Bruna Carolini Barbosa ............................................................................................ 163
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A construção de um modelo teórico do infográfico sob a perspectiva do ISD
The construction of a theoretical model of the infographic from the
perspective of ISD
Gabriela Pepis Belinelli (UENP/CCP – G)
Eliana Merlin Deganutti de Barros (UENP/CCP – PQ)
RESUMO: Este artigo é fruto de um trabalho de Iniciação Científica voluntária, vinculado ao projeto de pesquisa coordenado pela Profª. Drª. Eliana Merlin Deganutti de Barros: “Gêneros do jornal como objetos de transposição didática”, o qual faz parte do Grupo de Pesquisa DIALE – Diálogos Linguísticos e Ensino (UENP/ CNPq). A fundamentação teórica que norteia este trabalho são os estudos do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), sobretudo, a sua concepção de práticas de linguagem configuradas em gêneros textuais e o seu modelo de análise de textos. A pesquisa também tem como base os estudos acerca dos gêneros do jornal, com foco na infografia jornalística. O objetivo deste artigo é apresentar o trabalho desenvolvido na Iniciação Científica, a qual envolve o estudo bibliográfico do gênero “infográfico”, a pesquisa analítica amparada por um corpus textual e a elaboração de um modelo teórico deste gênero. Espera-se, com isso, contribuir para a produção de materiais didáticos que se pautam na metodologia das sequências didáticas de gêneros criadas pelo ISD e, também, colaborar com os estudos que tomam os gêneros textuais como objetos de ensino da Língua Portuguesa.
PALAVRAS-CHAVE: Gêneros Textuais. Infográfico. Interacionismo Sociodiscursivo. Modelo
Teórico.
INTRODUÇÃO
Este trabalho está vinculado ao projeto de pesquisa “Gêneros do jornal
como objetos de transposição didática”, coordenado pela Profª. Drª. Eliana
Merlin Deganutti de Barros, o qual se insere no Grupo de pesquisa DIALE –
Diálogos Linguísticos e Ensino (UENP/ CNPq).
A pesquisa vincula-se aos estudos do gênero textual/discursivo como
objeto de ensino da língua. Estudos esses que têm aflorado nas últimas décadas,
em contraponto aos estudos tradicionais do ensino da língua, os quais se servem
de fragmentos da língua, como palavras, frases, orações como objetos centrais
do processo de ensino/aprendizagem linguística, desconsiderando o todo da
enunciação – os textos/discursos/gêneros.
O trabalho pauta-se nos estudos teórico-metodológicos do Interacionismo
Sociodiscursivo (ISD), (BRONCKART, 2003, 2008; SCHNEUWLY; DOLZ, 2004;
entre outros) e em suas bases epistemológicas (BAKHTIN, 1997). Também tem
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como aporte trabalhos que tomam os gêneros do jornal como objeto de estudo,
como é o caso de Bonini (2003) e aqueles que se dedicam à investigação do
infográfico dentro do contexto jornalístico (FOGOLARI, 2014).
Metodologicamente a investigação pauta-se em uma abordagem qualitativa, de
cunho descritivista e documental, tendo como objeto principal o “infográfico”, um
gênero textual da esfera jornalística.
O objetivo deste artigo é identificar e analisar subgêneros de infográficos
que circulam em algumas revistas brasileiras, com o intuito de elaborar um
modelo teórico (BARROS, 2012) de um subgênero que sirva de suporte para
elaboração de futuros materiais didáticos, sobretudo, os que se pautam na
metodologia das sequências didáticas de gêneros (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004).
Para delimitar o subgênero a ser modelizado, foi feita uma pesquisa exploratória
em revistas voltadas para o público jovem. Como objetivo específico pretende-
se também verificar até que ponto o infográfico funciona como gênero autônomo
ou conjugado (BONINI, 2003) a outro gênero, como é o caso da reportagem.
A intenção é, principalmente, contribuir para a produção de materiais
didáticos que se pautam na metodologia das sequências didáticas de gêneros
criadas pelo ISD e, também, colaborar com os estudos que tomam os gêneros
textuais como objeto de ensino da Língua Portuguesa. Espera-se, com esse
trabalho, fomentar as pesquisas que procuram articular os Estudos da
Comunicação com os Estudos da Linguagem, para fins de transposição didática.
GÊNERO TEXTUAL/DISCURSIVO: CONFIGURAÇÕES DE PRÁTICAS DE
LINGUAGEM
Ao falar sobre gêneros textuais/discursivos1 não há como não referenciar
Mikhail Bakhtin, pois é ele quem dá base para a concepção de língua como
interação ou ação social, concepção essa que embasa as principais teorias que
se dedicam aos estudos sobre os gêneros. De acordo com o teórico russo,
gêneros são “enunciados2 relativamente estáveis” (BAKHTIN, 1997) que
1 Embora Bakhtin (1997) utilize a nomenclatura gêneros discursivos, no nosso trabalho usaremos a expressão gêneros textuais (utilizada pelo ISD, fonte teórica da pesquisa), porém, conservando a mesma concepção. 2 É importante ressaltar que, nesse caso, enunciado e texto possuem a mesma significação: unidade de comunicação.
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circulam nas diversas esferas da atividade humana, em contextos de interação
diversos, frutos de uma intenção comunicativa.
Marcuschi (2005, p. 19), apoiando-se em autores que abordam os
gêneros pelo olhar sociorretórico (cf. BAZERMAN, 2006; CARVALHO, 2005),
define gêneros “uma ‘ação social tipificada’, que se dá na recorrência de
situações que torna o gênero reconhecível”. Para o autor, “a ação com gêneros
é sempre uma seleção tática de ferramentas adequadas a algum objetivo”
(MARCUSCHI, 2005, p. 19 - 20). Bazerman (1994 apud MARCUSCHI, 2005, p.
18) afirma que os gêneros textuais “são o que as pessoas reconhecem como
gêneros a cada momento do tempo, seja pela denominação, institucionalização
ou regularização [...] são rotinas sociais de nosso dia-a-dia”. É possível perceber
que os pontos-chave dessa visão são a recorrência – que dialoga com a
estabilidade dos gêneros apontada por Bakhtin (1997) – e a ação retórica, que
atribui aos gêneros um teor pragmático.
Na definição de Bakhtin (1997) – enunciados relativamente estáveis – o
caráter estável dos gêneros refere-se às suas propriedades linguístico-
discursivas e funcionais regulares, o que os tornam objetos genéricos. Ou seja,
cada gênero possui características e funções próprias, que requerem o domínio
dos sujeitos-produtores para utilizá-los como instrumento do agir comunicativo.
Eles se encontram em arquitextos (BRONCKART, 2008), espécies de
repertórios de gêneros, disponibilizados pelas gerações anteriores. Ou seja, nós
não criamos os gêneros na hora da nossa comunicação, nós fazemos um
“empréstimo” dos modelos existentes em uma determinada esfera social. Por
exemplo, o indivíduo cuja intenção é reclamar formalmente sobre um problema
da sua comunidade precisa acionar os gêneros da “esfera da cidadania” (cf.
BARROS, 2012) para encontrar o que mais se adequa a sua intenção
comunicativa. Porém, ele precisa dominar a forma de agir por meio desse
gênero, para que possa realizar a interação discursiva pretendida.
Na definição de gêneros de Bakhtin (1997) vemos que o termo
relativamente dá abertura para ir além da aparente estabilidade dos gêneros,
ressaltando seu caráter flexível, variável e dinâmico. Marcuschi (2005) alerta que
os gêneros, mesmo sendo caracterizados pela sua canonização (se não fosse
esse poder de padronização, não os identificaríamos), deixam espaço para uma
vasta mobilidade, tanto do ponto de vista sincrônico como diacrônico, permitindo
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mudanças sócio-históricas e variações contextuais e de estilo. O autor
caracteriza-os como “formações interativas, multimodalizadas e flexíveis de
organização social e de produção de sentidos” (MARCUSCHI, 2005, p. 19).
De acordo com Marcuschi (2005, p. 25), “quanto mais um gênero circula,
mais ele é suscetível a mudanças ou alterações por se achar estreitamente
ligado a uma moldagem social”. Para o autor:
[...] os gêneros se configuram de maneira plástica e não formal; são dinâmicos, fluindo um do outro e se realizando de maneira multimodal, circulam na sociedade das mais variadas maneiras e nos mais variados suportes. Exercem funções sócio-cognitivas e permitem lidar de maneira mais estável com as relações humanas em que entra a linguagem (MARCUSCHI, 2005, p. 23).
Por essas citações, nota-se que o autor dá ênfase a uma característica
primordial dos gêneros: seu caráter fluido, dinâmico; o que dialoga com a
instabilidade do gênero na definição de Bakhtin (1997) – “relativamente estável”.
Isso porque os gêneros mudam de um ponto de vista diacrônico (são
influenciados por uma época sócio-histórica) e variam sincronicamente, de
contexto de uso para contexto de uso.
Já Rojo e Barbosa (2015, p. 16) tomam os gêneros como organizadores
e mediadores da comunicação. Para as autoras, gêneros são “entidades que
funcionam em nossa vida cotidiana ou pública, para nos comunicar e para
interagir com as outras pessoas”. As pesquisadoras, apoiando-se na visão
bakhtiniana de gêneros discursivos, sintetizam o processo de “nascimento” dos
gêneros na sociedade:
Diferentes modos de vida e circunstâncias ligados às diversas esferas/campos de comunicação, por sua vez relacionadas com os vários tipos de atividade humana e determinadas, em última instância, pela organização econômica da sociedade, gerariam tipos temáticos, composicionais e estilísticos de enunciados/textos relativamente estáveis – os gêneros (ROJO; BARBOSA; 2015, p. 64).
Marcuschi (2005), também fundamentado nos estudos bakhtinianos,
ressalta a clássica máxima de que a comunicação verbal só é possível por algum
gênero textual. Ou seja, os gêneros são ferramentas essenciais para a
comunicação humana, como afirma Bakhtin (1997, p. 302):
[...] se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no
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processo de fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.
Bakhtin (1997) propõe uma divisão dos gêneros entre primários e
secundários. O primeiro refere-se aos gêneros mais simples e espontâneos,
ligados à oralidade, que podem ser aprendidos sem instruções, como por
exemplo o diálogo familiar. O segundo, por sua vez, refere-se aos gêneros mais
complexos, de caráter cultural, ligados à escrita, que dependem de uma
escolarização para serem compreendidos e utilizados, por exemplo: resenha,
reportagem, etc. O autor distingue também três elementos do gênero: o conteúdo
temático, a construção composicional e o estilo. O primeiro diz respeito àquilo
que é dizível em um gênero; a construção composicional refere-se à
macroestrutura textual; já o estilo diz respeito aos elementos linguístico-
discursivos que caracterizam um gênero.
Já o ISD, corrente teórica que ampara nossas pesquisas, trabalha com
um modelo de análise de textos/gêneros sistematizado por categorias de três
níveis: 1) a infraestrutura geral do texto; 2) os mecanismos de textualização; 3)
os mecanismos enunciativos. São essas categorias que focalizamos no tópico
seguinte.
MODELO TEÓRICO: CATEGORIAS DE ANÁLISE DO ISD
O modelo teórico, proposto por Barros (2012), constitui uma primeira
etapa do modelo didático. Trata-se de um processo de modelização preliminar
do gênero, essencialmente teórico e elaborado de forma genérica, que serve
como suporte para a construção de diversos modelos didáticos e sequências
didáticas (cf. SCHNEUWLY; DOLZ, 2004).
Este caráter genérico permite que não se leve em conta as capacidades
dos alunos e nem o contexto de ensino, pois, como afirma Barros (2012, p. 15),
são as sequências didáticas que “precisam ser adaptadas a um contexto de
ensino específico, uma vez que se configuram ferramentas didáticas que
possibilitam a transposição do conhecimento teórico de um gênero para o
conhecimento a ser ensinado”.
O modelo teórico segue os primeiros passos do modelo didático: i) busca
por especialista do gênero (por pesquisa bibliográfica ou observação de campo);
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ii) análise de um corpus textual representativo do gênero. A única diferença é
que esse modelo não necessita de adaptações para se adequar a um contexto
específico de intervenção didática. Essa pesquisa traz, assim, essas duas
etapas: i) uma busca por autores que tomam o infográfico como objeto de estudo;
ii) uma análise de corpus baseada em uma pesquisa exploratória preliminar de
alguns suportes selecionados para a investigação.
Para a elaboração do modelo teórico, Barros (2012) elaborou um quadro
com perguntas diretivas fundamentadas nas categorias de análise do ISD
(BRONCKART, 2003), o qual servirá de ferramenta para a análise do infográfico.
Para uma visualização das categorias analíticas do ISD, trazemos uma síntese
a seguir.
Bronckart (2003) sistematiza as categorias para análise de textos/gêneros
em três níveis: 1) a infraestrutura geral do texto; 2) os mecanismos de
textualização; 3) os mecanismos enunciativos. A infraestrutura geral do texto
envolve o plano textual global, os tipos de discursos e as formas de planificação
textual, ou seja, os tipos de sequências. Os mecanismos de textualização são
responsáveis por dar coerência articulatória ao texto, os quais são analisados,
pelo ISD, por três categorias: a conexão, a coesão nominal e a coesão verbal.
Já os mecanismos enunciativos envolvem o gerenciamento das vozes e a
modalização dos enunciados. O quadro abaixo sintetiza o modelo proposto por
Bronckart (2003) para a análise de textos/gêneros:
Quadro 1 – Categorias de análise textual do ISD
INFRAESTRUTURA GERAL DO TEXTO
MECANISMOS DE TEXTUALIZAÇÃO
MECANISMOS ENUNCIATIVOS
1. Plano textual global 1. Conexão 1. Gerenciamento das vozes
2. Tipos de discursos 2. Coesão nominal 2. Modalizações dos enunciados
3. Tipos de sequências 3. Coesão verbal
Fonte: adaptado de Bronckart (2003).
É, pois, a partir desse quadro analítico que Barros (2012) propôs a
ferramenta com perguntas diretivas para a elaboração de um modelo teórico do
gênero. E é essa ferramenta que pautará a nossa análise do infográfico.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 12
MODELO TEÓRICO DO INFOGRÁFICO
Como dissemos, para a elaboração do modelo teórico partimos,
primeiramente, para a busca de respaldo bibliográfico, para, em seguida, fazer
uma pesquisa exploratória em alguns suportes selecionados para a
investigação, a fim de delimitar o subgênero (BONINI, 2003) de infográfico que
vamos nos concentrar na análise de corpus baseada nas categorias do ISD.
AS VOZES DOS ESPECIALISTAS: PESQUISA BIBLIOGRÁFICA
O infográfico é considerado um gênero emergente da esfera jornalística,
ou seja, um gênero relativamente recente, que ainda está se consolidando como
uma prática discursiva dentro do jornalismo. Por esse motivo, ainda existem
poucos trabalhos voltados ao estudo da infografia.
De maneira geral, os infográficos podem ser entendidos como textos
jornalísticos que unem linguagem verbal e não verbal para expor conteúdos de
forma compacta e facilitar a compreensão e a visualização do leitor. De acordo
com Cirne (2010, p. 3), “promover um entendimento mais claro e possibilitar que
o esboçado se fixe na memória é efeito desejado a todo e qualquer infográfico”.
A infografia não é ilustração, nem somente texto. É uma junção estética harmônica entre imagens [...] e textos [...], com efeitos de sentido e organizadas de maneira que cada uma das partes não exerça mais relevância sobre a outra. Estima-se a ponderação entre o verbal e o não-verbal (CIRNE, 2010, p. 3).
Alguns autores supõem que a infografia surgiu por volta de 1620 – mesmo
período em que surgiu o jornalismo impresso. No entanto, Fogolari (2014) afirma
que, nesse período, os jornais traziam apenas mapas simples e ilustrações de
texto, os quais não podem ser considerados como infográficos. Além disso, a
autora acrescenta que “os primeiros registros efetivos de infografia em jornais
impressos ocorrem há mais ou menos 200 anos” (FOGOLARI, 2014, p. 121).
Vários pesquisadores, entre eles, Ribeiro (2016), Paiva (2016) e Fogolari
(2014), dão foco à multimodalidade do infográfico. Segundo Paiva (2016),
infográficos são textos visuais informativos que contém informações verbais e
não verbais em uma mesma forma composicional. São, portanto, textos
multimodais, constituídos, em síntese, pela combinação de modos semióticos
verbais e imagéticos. Fogolari (2014) também aborda o infográfico como um
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 13
gênero que combina linguagem verbal e não verbal para compor um texto
jornalístico, e, por isso, o classifica como dentro de um sistema híbrido, devido à
mistura destas linguagens. Por “não verbais” estão todos os elementos que
utilizam outras semioses, além da verbal, para compor um texto multimodal. Em
textos impressos é mais comum encontrarmos figuras, cores e gráficos,
enquanto nos meios digitais é possível inserir elementos como sons, links,
vídeos, animações, entre outros.
O infográfico visa unir diversas informações em um único espaço, por
meio de palavras e imagens, com o objetivo de simplificar e otimizar a
visualização das informações, acelerando a compreensão e a memorização do
leitor. Fogolari (2014) afirma que, com o intuito de atrair novos leitores, a mídia
impressa tem apostado cada vez mais em elementos visuais, portanto, é
necessário que o infográfico seja um texto ágil, simples e compacto, no qual o
leitor consiga captar todas as informações.
Cirne (2010, p. 11) afirma que “os infográficos são muito usados na
representação de um acontecimento para o qual o discurso verbal seria mais
complexo e solicitaria mais espaço”. Já Campos (2014) aborda a infografia como
uma opção mais estimulante ao leitor, visto que as imagens e demais
possibilidades interativas atraem uma atenção maior, aumentando as chances
de leitura do texto. Valero Sancho (2001) e Alberto Cairo (2008) (apud RIBEIRO,
2016, p. 32) também ressaltam que os infográficos são importantes “para que
informações e dados relevantes possam ser melhor e mais rapidamente lidos e
compreendidos pelo leitor”. Assim, pode-se dizer que este gênero é de extrema
importância para os leitores visuais de jornais e revistas, que desejam a
visualização plena do conteúdo de forma prática e rápida.
De acordo com os autores pesquisados, o jornalismo impresso é o
principal meio de circulação de infografias. Mas, hoje em dia, graças aos avanços
tecnológicos, é possível encontrar infográficos nos meios de comunicação em
geral, com diversos formatos e tamanhos. Na TV, por exemplo, os infográficos
estão presentes nas previsões do tempo, nos gráficos e tabelas explicativas, etc.
Já na internet, observam-se infográficos mais dinâmicos, em que são agregados
hiperlinks, animações, sons, entre outros recursos interativos da web. Souza
(2012) expõe o diferencial do gênero nos meios de comunicação digitais:
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 14
[...] a infografia digital é-nos apresentada como um discurso jornalístico que se caracteriza pela quebra do caráter linear do texto escrito, pela estruturação essencialmente gráfica do conteúdo, e pelo propósito bem claro de fomentar o interesse e a compreensão nos leitores (SOUZA, 2012, p. 52).
Segundo Fogolari (2014), o infográfico:
[...] se distribui na página em relação a outros textos, com os quais forma um bloco de informação. Uma hipótese que se mostrou interessante, nesse sentindo, é a de que o infográfico teria a função de ‘chamar a atenção’ do leitor para a leitura do texto base, haja vista que o gênero é composto por ilustrações, na sua maioria coloridas, que são percebidas de imediato no instante em que a página é aberta (FOGOLARI, 2014, p. 133 – grifos nossos).
Por essa citação é possível perceber que a autora toma o infográfico
como um gênero conjugado (cf. BONINI, 2003) a “outros textos” (outra matéria
jornalística). Ou seja, ele seria um suporte ou um complemento textual. Teria a
função de “chamar a atenção” do leitor, como citado pela autora. Entretanto,
entendemos que esse gênero pode ter um caráter autônomo (cf. BONINI, 2003),
uma vez que pode funcionar como prática discursiva independente, que, por si
só, desempenharia uma função comunicativa, ou seja, ele poderia ser publicado
sozinho, desprezando a sua função clássica de “complementar” uma matéria
jornalística. Nesse caso, ele próprio seria a matéria – muitos chamam de
reportagem infográfica ou matéria jornalística infográfica.
Cirne (2010) destaca a independência do infográfico, mas em outra
perspectiva. Para a autora, mesmo acompanhando uma matéria jornalística o
infográfico tem sua autonomia comunicativa:
[...] esta pode ser descartada do contexto, sem necessariamente interferir no entendimento do texto que a acompanha, bem como o contrário também é presumível – a infografia por si só deve ter um sentido sólido, fundamentado, ou seja, deve ser passível de constituir a própria informação (CIRNE, 2010, p. 3).
Partindo de um estudo de caso, Teixeira (2007) estipula duas
classificações para o infográfico:
a) enciclopédicos: infográficos mais amplos, com temas mais gerais e
caráter universal. Podem ser independentes, quando abordam assuntos
gerais de maneira autônoma, ou complementares, quando tem a função
de acompanhar uma notícia ou reportagem de caráter mais amplo;
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 15
b) específicos: infográficos com aspectos e temas mais singulares. Também
podem ser divididos entre independentes, os quais não acompanham
uma reportagem e apresentam sua própria introdução, ou
complementares, que acompanham notícias e reportagens, mas são
responsáveis por dar maiores informações e detalhes.
Em outra perspectiva, Cirne (2010), por meio de levantamento
bibliográfico, apresenta os seguintes tipos de infografias:
a) complementares: funcionam como complemento de um texto;
b) independentes: não se vinculam a nenhum texto;
c) individuais: estruturados de maneira simples;
d) compostos: acompanhados de recursos multimídias;
e) jornalísticos: fixados ao tema de uma matéria jornalística;
f) enciclopédico: abordam assuntos de maneira totalizante.
Para nossa pesquisa, fizemos uma junção entre a categorização de
Teixeira (2007) e Cirne (2010), e selecionamos quatro subgêneros3 do
infográfico para nossa pesquisa exploratória: 1) enciclopédico complementar; 2)
enciclopédico independente; 3) específico complementar; 4) específico
independente. A delimitação desse quadro teve como propósito simplificar o
processo de análise, uma vez que nosso objetivo e subsidiar futuros processos
de transposição didática da infografia para o contexto do ensino da língua.
A próxima seção deste artigo será destinada, assim, à uma pesquisa
exploratória, com o objetivo de explorar os quatro subgêneros do infográfico nos
suportes que compõem nosso corpus. Ao final, caberá fazer uma escolha quanto
ao objeto de análise da modelização teórica.
PESQUISA EXPLORATÓRIA DO CORPUS
Após estudo do gênero “infográfico” pelas vozes dos especialistas, foi feita
uma pesquisa exploratória, a fim de analisar a funcionalidade da infografia.
Foram utilizados exemplares das revistas Galileu, Aventuras na História e
SuperInteressante, conforme segue:
3O que estamos chamando de subgêneros, os autores denominam tipos – seriam configurações textuais particulares delimitadas da configuração mais genérica (o que identificamos como gêneros textuais).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 16
1. Galileu: edições 303, 304 e 305 de 2016.
2. Aventuras na História: edições 155, 157 e 158 de 2016.
3. SuperInteressante: edições 371-A e 372-A de 2017.
A seleção do corpus se deu em razão do perfil demonstrado pelas
revistas, visto que todas se assemelham por possuírem um estilo voltado a um
público mais jovem, com recursos semelhantes ao mundo virtual.
No decorrer da pesquisa exploratória, foi possível observar que a revista
Galileu apresenta conteúdos mais científicos e simula uma interatividade por
meio de layouts modernos que se assemelham com a discursividade do mundo
virtual, ao passo que a revista Aventuras na História é mais voltada para temas
históricos e possui um design mais “tradicional”, e a SuperInteressante
demonstra assuntos mais amplos e configuração visual mais formal. Ainda
assim, consideramos que as três possuem perfil semelhante e se voltam a um
público mais jovem, científico e engajado.
Além disso, pôde-se notar que, apesar de se considerar certa semelhança
do perfil das revistas, a incidência de infografias é uma grande variante. Os três
exemplares da revista Galileu continham infografias em quase todas as páginas,
ao passo que as revistas Aventuras na História e SuperInteressante
apresentaram poucos infográficos. Com o intuito de esclarecer as noções
obtidas por meio da análise, foi criado um quadro que demonstra a incidência
dos subgêneros do infográfico, delimitados na nossa pesquisa bibliográfica, no
corpus selecionado: 1) enciclopédico complementar; 2) enciclopédico
independente; 3) específico complementar; 4) específico independente.
De acordo com o que foi demonstrado na seção sobre as vozes dos
especialistas, o subgênero enciclopédico complementar apresenta infográficos
com temas e caráter universal e funciona como complemento de outro texto, ao
passo que o enciclopédico independente também traz assuntos gerais, mas não
se vincula a nenhum outro texto. Já o subgênero específico complementar exibe
infográficos com temas mais singulares e acompanha outros gêneros/textos,
enquanto o específico independente também expõe conteúdos mais
particulares, mas não se relaciona com nenhum outro texto.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 17
Quadro 2 – Incidência de infografias nas revistas analisadas
INCIDÊNCIA DE INFOGRAFIAS NAS REVISTAS
TOTAL SUBGÊNEROS DOS
INFOGRÁFICOS
GALILEU
AVENTURAS NA HISTÓRIA
SUPER INTERESSANTE
1) Enciclopédico complementar
10
1
3
14
2) Enciclopédico
independente
3
0
3
6
3) Específico
complementar
6
7
2
15
4) Específico independente
21
2
3
26
Fonte: a autora.
Como vemos, a maior incidência de infográficos foi na revista Galileu, com
ênfase no subgênero “infográfico específico independente”. Sendo assim, para
a elaboração do modelo teórico, selecionamos tal subgênero como objeto de
análise textual, uma vez que nosso objetivo é subsidiar futuras modelizações
didáticas. Ou seja, nesse momento, seria importante dar destaque a
configurações genéricas que possuem maior peso quantitativo nos veículos
jornalísticos do mundo jovem.
ANÁLISE DO CORPUS: O INFOGRÁFICO “ESPECÍFICO INDEPENDENTE”
COMO OBJETO DE ESTUDO
Conforme exposto na seção bibliográfica, realizou-se uma pesquisa
exploratória, a fim de verificar os infográficos presentes em nosso corpus e
delimitar os principais subgêneros encontrados. Ao final da pesquisa, optou-se
pela análise de infográficos específicos independentes, levando em
consideração a grande incidência nos exemplares analisados, bem como o
caráter autônomo (cf. BONINI, 2003) deste subgênero.
No quadro 2, é possível observar que infográficos específicos – que
apresentam temas mais singulares – tendem a aparecer mais nas revistas,
dividindo-se entre complementares ou independentes. Os infográficos
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 18
complementares, como se pôde comprovar, acompanham um texto verbal e
servem como adicionais, os quais fornecem mais informações e detalhes sobre
determinado assunto. Em contrapartida, os infográficos independentes não se
vinculam a nenhum outro gênero ou texto introdutório, pois desempenham uma
função comunicativa e valem por si só. Cabe ressaltar, aqui, que infográficos
independentes não estão livres de textos, pois conforme já foi dito, a
característica principal da infografia é a mistura entre o verbal (palavras, frases,
textos, etc.) com o não verbal (imagens, gráficos, tabelas, etc.), ainda que se
considere sua natureza independente.
Portanto, foram selecionados cinco infográficos específicos
independentes, os quais denominamos, nesta pesquisa, de “matérias
jornalísticas infográficas”, com a intenção de descrever suas principais
características, ou seja, modelizá-los teoricamente a partir de análise de
categorias do ISD propostas por Bronckart (2003). A seguir trazemos a descrição
do corpus textual analisado:
Quadro 3 – Corpus da modelização dos infográficos específicos independentes
NÚMERO DESCRIÇÃO DO CORPUS
1 “Altos e Baixos”, Revista Galileu, p. 21, edição 304 – novembro/2016
2 “Black Mirror? Vamos por partes”, Revista Galileu, p. 23, edição 303 – outubro/2016
3 “Agosto na História”, Revista Aventuras na História, p. 10 e 11, edição 158 – agosto/2016
4 “Guia da Astronomia Amadora”, Revista Galileu, parte II, p. 44 e 45, edição 305 – dezembro/2016
5 “Truque dos covilhetes”, Revista SuperInteressante, p. 11, edição 371-A – fevereiro/2017
Com as impressões obtidas no decorrer da pesquisa exploratória do
corpus, elaboramos diferentes denominações para os infográficos analisados,
visto que todos são caracterizados como “específicos independentes”, mas
possuem suas particularidades. A partir dessas observações elaboramos cinco
tipologias diferentes, as quais descrevemos a seguir.
1. Infográfico estruturado em gráficos. O infográfico 1, “Altos e Baixos”,
traz uma média da altura da população de diferentes países no último
século, e é estruturado basicamente a partir de um gráfico, contendo
apenas texto verbal introdutório – ou seja, a informação introdutória se dá
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 19
por meio de palavras, enquanto as informações principais são expostas
graficamente. Portanto, a denominação mais apropriada para este
subgênero seria “infográfico estruturado em gráficos”.
2. Infográfico imagético subdividido em partes textuais. O infográfico 2,
“Black Mirror [...]” possui um caráter diferente dos demais analisados.
Observou-se que o aspecto mais chamativo é a imagem localizada no
centro da página. Tal imagem, caracterizada como central, é dividida em
partes, sendo que cada parte é descrita com um texto verbal. Optamos,
então, considerá-lo como um “infográfico imagético subdividido em partes
textuais”.
3. Infográfico com linha do tempo. O infográfico 3, “Agosto na História”, foi
denominado “infográfico com linha do tempo”. Como o próprio nome já
diz, tal subgênero é estruturado por uma linha cronológica, acompanhada
por diversos blocos de textos que mostram detalhes sobre o tema
abordado.
4. Infográfico composto por tópicos explicativos. O infográfico 4, “Guia
da Astronomia Amadora”, é parte de uma extensa matéria sobre
astronomia na revista. Optamos por denominá-lo de “infográfico composto
por tópicos explicativos”, visto que apresenta tópicos temáticos
explicativos articulados a imagens do universo – textos e imagens, nesse
caso, são balanceados para compor a matéria jornalística infográfica.
5. Infográfico instrucional. O infográfico 5, “Truque dos covilhetes”, foi
caracterizado como “infográfico instrucional”, pois apresenta um passo a
passo sobre técnicas de truques de mágica. A matéria infográfica é
dividida em blocos, sendo que cada bloco apresenta instruções, de forma
verbal, com o acompanhamento de imagens demonstrativas. Neste caso,
texto e imagem se articulam e se complementam, manifestando uma das
principais características da infografia.
Nos parágrafos a seguir, trazemos uma descrição do subgênero
“infográfico específico independente”, o qual estamos denominando de “matéria
jornalística infográfica”. A descrição é feita a partir da análise do nosso corpus,
com base no quadro elaborado por Barros (2012), fundamentado nas categorias
de análise do ISD e dividido pelos três tipos de capacidades de linguagem: de
ação (traz as características contextuais prototípicas do subgênero), discursivas
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 20
(características do nível discursivo, como tipos de sequência textual) e
capacidades linguístico-discursivas (características linguísticas, como o
funcionamento da coesão textual).
No que se refere às capacidades de ação, a matéria jornalística infográfica
pertence à esfera jornalística e está vinculada a uma prática informativa, pois
visa dar informações de forma mais rápida e sintética ao leitor sobre temas ou
fatos de interesse do veículo jornalístico e do seu público, articulando linguagem
verbal e não verbal. O emissor é um jornalista e/ou designer gráfico, que
desempenha papel discursivo de alguém que tem por objetivo informar o leitor
sobre determinado fato ou tema de forma sintética e visual. O destinatário é o
leitor das revistas, que desempenha o papel discursivo de um leitor que busca
uma leitura rápida, mas completa, sobre determinado fato ou tema. A relação
estabelecida entre produtor e destinatário se dá no nível jornalístico, de cunho
informativo. O texto é produzido com a finalidade de divulgar uma matéria
jornalística de forma sintética e visual e costuma se ater a temas mais
particulares, voltados para o foco do suporte jornalístico. Atualmente, o gênero
possui bastante valor na sociedade devido às características do público
contemporâneo (agilidade, objetividade, rapidez, etc.).
Quanto às capacidades discursivas, a matéria jornalística infográfica
apresenta um discurso do expor teórico. O infográfico 4, por exemplo, ao trazer
explicações sobre certos aspectos do tema, o faz sem implicar parâmetros
contextuais, ou seja, quem escreveu, o público leitor e o tempo de publicação,
como mostra o trecho: “OBSERVADOR NO EQUADOR – Todas as estrelas
nascem e se põem (intervalo de 12 horas) em arcos perpendiculares ao
horizonte. Constelações dos dois hemisférios visíveis no céu ao longo do ano”.
Como é possível perceber, é um expor que mantém um distanciamento do leitor.
Entretanto, há infográficos que simulam certa interação com o leitor por meio,
por exemplo, de perguntas retóricas como o infográfico 2: “De onde vem o nome
da série? Uma das hipóteses [...]”. Mesmo num texto instrucional, como o
infográfico 5, em que poderia ser usado o modo imperativo (com implicação do
leitor), vemos que o autor da matéria infográfica prefere utilizar o modo indicativo
para descrever as ações que pretende instruir: “O mágico coloca três copos e
três bolas sobre a mesa”. Portanto, prototipicamente, classificamos o corpus
como expor teórico. O plano textual global apresenta prototipicamente: título,
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 21
subtítulo, normalmente aparece a assinatura do jornalista/designer (mais comum
na revista Galileu); de forma não linear, informações verbais e não verbais, de
forma articulada; dependendo do tipo de infográfico, podem aparecer gráficos
(infográfico 1), tabelas, listas, setas (infográfico 2), cronologia (infográfico 3),
quadros, sequências de imagens numeradas (infográfico 5), sempre utilizando
recursos visuais multicromáticos. Por exemplo, o infográfico 2 traz como título
“Black Mirror? Vamos por partes”; um subtítulo que explica melhor a função da
matéria jornalística infográfica, acompanhado da especificação de autoria; uma
imagem ilustrativa dividida em partes temáticas das quais saem setas que
direcionam a textos verbais informativos. A sequência predominante é a
explicativa e descritiva. O infográfico 2 é exemplo de sequência explicativa, uma
vez que se coloca uma problemática no título e subtítulo da matéria, e essa é
explicada nas partes apontadas pelas setas que saem da imagem. O infográfico
4 traz trechos descritivos a partir de tópicos temáticos, como “ASCENÇÃO RETA
– Medida sobre o plano do Equador Celeste”. Mesmo sendo a descrição e
explicação sequências analisadas como prototípicas, é possível encontrar,
pontualmente, sequências narrativas, como no infográfico com linha do tempo
(infográfico 3): “1940 – O revolucionário russo Leon Trotsky morre na Cidade do
México. Ele foi atacado por Ramón Mercader [...]”.
Já no que concerne às capacidades linguístico-discursivas, observamos
que, por serem textos mais curtos, não há muita incidência de retomada textual.
Quando existem, são normalmente de ordem lógica (a/o qual, isso com valor
rotulador sintético, etc.). O infográfico 5, por exemplo, apresenta o seguinte
trecho: “Com as bolas feitas de metal, é possível esconder ímãs no fundo dos
copos. Isso ajuda a evitar que a bolinha caia e que o público descubra o segredo
do truque” (destaque em itálico feito pela autora). Geralmente, o tempo verbal
usado é o presente, e a ancoragem é o momento de produção do texto. Sendo
assim, é possível aparecerem tempos no passado ou futuro, desde que
ancorados ao momento de produção. O infográfico 3 serve como um exemplo,
pois narra acontecimentos do ano 47 A.C., mas utiliza verbos no presente (o que
é denominado pela literatura linguística como presente histórico) como pode-se
confirmar no trecho: “Ao vencer Farnaces II, rei do Ponto, e dominar a Ásia,
JÚLIO CÉSAR, profere suas famosas palavras: “Veni, vidi, vinci” (“Vim, vi e
venci”). E torna-se ditador perpétuo” (destaques em itálico feitos pela autora). Os
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 22
conectivos usados, geralmente, são de ordem lógica (mas, porém, sendo assim,
etc.), como se verifica no infográfico 5, no trecho: “Dentro de um dos copos há
uma bola escondida – mas para escondê-la bem é preciso agilidade” (destaque
em itálico feito pela autora). O registro linguístico é o formal, porém, por conta da
aproximação com o leitor, é possível às vezes uma linguagem um pouco mais
informal, como exemplifica o infográfico instrucional, em que o autor usa uma
linguagem figurada, mais próxima da linguagem do cotidiano: “O mágico faz as
bolinhas ‘viajarem’ de um copo para o outro”. Sendo assim, a variedade
linguística é a variedade culta. A escolha lexical depende do tema do infográfico,
por exemplo, o infográfico 1, cujo título é “Altos e Baixos”, retoma várias vezes
esses léxicos e outros relacionados à altura da população (tema central da
matéria), como “homens que mais cresceram”. Os sinais de pontuação também
são de ordem lógica, como ponto final, vírgula, ponto e vírgula. Em alguns
momentos, é possível simular uma interação com o leitor a partir de perguntas
retóricas, como se vê no infográfico 2: “De onde vem o nome da série? Uma das
hipóteses é que tenha saído de Black Mirror, faixa de abertura de Neon Bible
(2007)”. O tom do texto é mais informativo, de caráter mais objetivo e sintético.
É comum a menção explícita de vozes externas, como a voz de pesquisadores
ou pessoas relacionadas diretamente ao tema, como mostra o infográfico 1: “Um
grupo internacional de cientistas chamado NCD Risk Factor Collaboration
analisou 1.472 pesquisas do último século [...]”.
Por fim, adentramos nas capacidades multissemióticas, em que foi
possível constatar peculiaridades em cada um dos infográficos analisados. O
infográfico estruturado em gráficos (1) tem como característica básica a
apresentação de gráficos para demonstrar resultados que a matéria jornalística
infográfica objetiva divulgar. Os gráficos, por si só, não representam a matéria
jornalística, mas a sua articulação com as informações verbais do título,
subtítulo, espaço textual de destaque, etc. Como o infográfico faz parte da esfera
jornalística e tem por objetivo trazer informações rápidas para o leitor, o gráfico
não pode ser complexo, pois precisa vulgarizar as informações de forma didática
para um público específico (dependendo do leitor-alvo do suporte jornalístico). O
infográfico imagético subdividido em partes textuais (2) tem uma imagem e suas
partes (que depende do foco da matéria) como ponto central. Por isso, essa
imagem deve ter um tamanho expressivo para chamar a atenção do leitor.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 23
Normalmente, essas partes servem como “chamada” para a
descrição/explicação de certos componentes imagéticos.
O infográfico com linha do tempo (3) é bastante clássico nas matérias
jornalísticas infográficas. Traz uma linha do tempo marcada por períodos
cronológicos com uma divisão visual em forma de sequência de quadros em
articulação com algumas imagens relacionadas às especificações das
informações contidas em cada período. No caso do infográfico composto por
tópicos explicativos (4), as imagens aparecem como complemento das
informações verbais contidas em cada tópico explicativo. Em nosso exemplo, há
também uma imagem central com legendas que integraliza as informações da
matéria jornalística. O infográfico instrucional (5) traz uma sequência de imagens
conjugadas a uma sequência numerada de instruções para cada etapa do
processo que se deseja descrever/explicar/relatar. No nosso exemplo, a
instrução está direcionada a ensinar como se realiza o “truque dos covilhetes”.
Nesse tipo de infográfico, as imagens são geralmente apresentadas em forma
de desenhos focados nas ações que se deseja instruir. Essas imagens precisam
ser bastante claras para o leitor, uma vez que complementam as instruções
verbais. É comum, nesse tipo de imagem, aparecerem setas para reforçar a
instrução, como é possível verificar na figura que acompanha a primeira
instrução do nosso exemplo. Em todas as matérias jornalísticas infográficas
analisadas, a utilização de cores é bastante importante. Muitas vezes, são as
cores que diferenciam partes do objeto, tópicos explicativos, a imagem verbal da
não verbal, os quadros, etc.
Como podemos observar, a matéria jornalística infográfica é um gênero
que articula a imagem verbal e não verbal de forma sintética, buscando para
isso, recursos discursivos e linguísticos para trazer uma informação ao leitor de
forma mais didática, mas que por si só, tenha um começo, meio e fim.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O infográfico ainda é um gênero emergente na esfera jornalística e, por
conta disso, não existem tantos estudos e análises a seu respeito. O objetivo
deste artigo foi, portanto, desenvolver uma pesquisa bibliográfica e analítica
sobre este gênero, a fim de depreender possíveis subgêneros, a partir de uma
pesquisa em revistas de grande circulação entre o público jovem – a saber:
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 24
Galileu, Aventuras na História e SuperInteressante. Com isso, buscamos
verificar se o gênero pode funcionar tanto como um gênero autônomo como
conjugado (BONINI, 2003) a uma matéria jornalística. O objetivo principal foi
elaborar um modelo teórico (BARROS, 2012) a partir de um subgênero
delimitado na pesquisa exploratória.
Após a pesquisa bibliográfica e exploratória do corpus, delimitamos quatro
subgêneros de relevância: enciclopédico complementar, enciclopédico
independente, específico complementar e específico independente; sendo que
este último foi o escolhido para a modelização do gênero. Tal escolha se deu
devido à maior incidência de infográficos desse aspecto nas revistas analisadas.
Com a análise, confirmou-se a ideia de gênero autônomo, já postulada por Bonini
(2003), visto que os infográficos específicos independentes possuem essa
autonomia/independência de outros textos. Para esta pesquisa, rotulamos esse
subgênero como “matéria jornalística infográfica”, uma vez que problematiza um
tema ou fato e, de forma una, não fragmentada, traz um texto que contempla a
“resolução” desse problema, apresentando informações de forma
multissemióticas para didatizá-lo.
Além disso, foi possível delimitar cinco tipologias específicas para a
matéria jornalística infográfica a partir do corpus analisado: “infográfico
estruturado por gráficos”, infográfico imagético subdividido em partes textuais”,
“infográfico com linha do tempo”, “infográfico composto por tópicos explicativos”
e “infográfico instrucional”, os quais foram objetos da nossa modelização teórica.
Essas tipologias são importantes, também, para o contexto de transposição
didática do gênero, uma vez que é possível o professor conduzir um projeto de
ensino a partir de uma tipologia específica.
Esperamos, com esta pesquisa, contribuir para os próximos estudos
acerca do infográfico e para a produção de materiais didáticos que venham a
utilizá-lo como objeto a ser ensinado – visto que é um gênero rico, que ainda
pode ser muito explorado, e possui forte potencial contemporâneo para o ensino
da língua na perspectiva dos multiletramentos (ROJO, 2012).
REFERÊNCIAS
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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 25
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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 26
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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 27
A potencialidade dos elementos fantásticos nos contos de Lygia Fagundes Telles
The Potentiality of the Fantastic Elements in the Tales of Lygia Fagundes
Telles
Elisete Soares (UENP/CCP - G)
Mariângela Alonso (UENP/CCP - PQ)
RESUMO: O objetivo deste artigo é delimitar de maneira sucinta o percurso histórico do gênero fantástico e suas principais implicações na ficção de Lygia Fagundes Telles. Para tanto, analisaremos os contos As Formigas e A Caçada, salientando os elementos fantásticos, bem como os objetos descritos nos textos, os quais acabam por transmitir ambiguidade e hesitação no leitor, caracteres essenciais para o funcionamento do gênero fantástico. Serão utilizados os aparatos críticos de Todorov (1970), Camarani (2014), Sá (2003), Silva e Lourenço (2010), Dimas (2009), Lucas (1990), Monteiro (1980), Régis (2007), Santiago (1998), entre outros. Palavras-Chave: Literatura-fantástica. Lygia Fagundes Telles. As formigas. A caçada.
INTRODUÇÃO
A literatura fantástica é um gênero que costuma causar deleite em leitores
de todas as faixas etárias. A curiosidade, impulsionada pela hesitação de um
mundo incógnito, permite uma evasão da realidade, transportando o leitor para
uma outra dimensão que encanta, choca, desperta sentimentos e concede
experiências curiosas. Ela trabalha temas da obscuridade da alma humana, do
que é considerado proibido pela sociedade e pela religião, mas que está
presente no cotidiano desde os primórdios.
Identificar os elementos fantásticos em um texto é essencial para que o
ato de leitura possa ser pleno em sua significação. Por isso, o presente artigo
tem por objetivo geral tecer considerações a respeito do gênero fantástico e suas
implicações na ficção de Lygia Fagundes Telles.
Para realizar esse trabalho, foram escolhidos dois contos: As Formigas,
do volume Seminário dos ratos (1977) e A caçada (1970), de Antes do baile
verde (1970), ambos de Lygia Fagundes Telles. Autora intimista, Lygia escreve
e descreve sobre o universo feminino, redigindo diversos textos que dialogam
com o fantástico. Os dois contos supracitados foram selecionados por possuírem
critérios que se enquadram nesse gênero, e que serão discutidos ao longo desse
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 28
artigo, destacando de forma especifica as características fantásticas, tais como
o tempo, o espaço, a ambiguidade, a hesitação, a descrição dos cenários e das
personagens, de forma qualitativa e objetiva, de modo a esmiuçar os aspectos
mais pontuais da ficção da autora.
Logo a seguir, descreveremos brevemente o contexto do surgimento das
narrativas fantásticas e das teorias de Todorov (1970), Camarani (2014), Sá
(2003), Silva e Lourenço (2010), entre outros, para posteriormente adentrar na
análise dos contos, objetivo desse trabalho.
POR QUE O MUNDO FANTÁSTICO DAS NARRATIVAS NOS ATRAI?
O desejo de experimentar o insólito, de sentir medo e calafrios
acompanhados pelo sentimento de ansiedade impulsionado por um alto teor de
adrenalina e de quebrar regras socialmente impostas faz com que busquemos,
para assim viver a experiência do outro, narrativas e filmes que tratam
explicitamente essa temática. A curiosidade nos leva pela incansável busca de
sentir e experimentar de forma controlada a experiência do outro, uma vez que
podemos voltar a ela quantas vezes desejarmos sem nos comprometermos
diretamente, e isso está guardado no inconsciente de cada indivíduo.
Em um artigo para a revista Galileu, Rita Loiola afirma que, o anseio que
uma criança possui de ouvir a mesma história que a assusta não é aleatório.
Esse terror que vivenciamos ao ler um livro ou assistir um filme voltado para o
fantástico permite o desenvolvimento psíquico dos pequenos, uma vez que o
pavor possui formas distorcidas e que habitam internamente em nós de forma
primitiva, despertando sensações e sentimentos que ainda não estão
devidamente controlados. Essa é a explicação da razão dessa fase da vida
termos tanto pesadelos e medo de coisas consideradas insignificantes pelos
adultos. As narrativas fantásticas nos ensinam a projetar todo esse pavor que
mantemos dentro e a lidar com os pesadelos que tanto nos assombram,
encontrando coragem para vencer os obstáculos em nosso inconsciente.
Entretanto, é relevante salientar que esse medo, como a biologia nos explica, é
que permite que os seres humanos prodigam e preservem a espécie, sendo por
isso que as narrativas fantásticas tanto nos fascinam.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 29
Para Loiola (2011) as pessoas gostam de sentir medo. Além disso, o
terror controlado na tela ajuda a entender o mundo e a experimentar sensações
que não existem em outro lugar:
As aulas de ciência ensinam que medo, ansiedade e estresse ajudaram o homem a evitar o perigo e a progredir. Evolutivamente importantes, eles aumentam a eficiência do organismo, deixando-o pronto para a briga. Assim que o cérebro percebe uma ameaça, um sistema chamado circuito do medo entra em ação. Formado por núcleos cerebrais como a amigdala e o hipocampo, ele libera neuro-hormônios e neurotransmissores para defender o organismo. Dopamina, endorfina e adrenalina vão para o sangue, preparando o corpo para a reação. Só que, quando o monstro é de papelão, o cérebro percebe a pegadinha e suspende a produção das substâncias. E a alta da dopamina, que deixa o corpo atento e alerta durante esses momentos, dá a sensação de prazer e calma. Como se o corpo ficasse chapado em segundos. (LOIOLA, 2011, p. 2)
Cantar uma canção de ninar para uma criança prestes a dormir que
envolva elementos do fantástico, uma lenda ou um mito que as deixem
amedrontadas é mais comum do que se imagina, e esse processo é socialmente
aceito e transmutado ao longo das gerações e são geralmente contadas a noite
em épocas especificas do ano (como a quaresma e o halloween).
Essa prática permite assegurar que as crianças permaneçam dentro dos
limites de forma sutil, pois o medo que bruxas, lobisomens, fantasmas, saci, etc.,
possam vir atrás após alguma peraltice cometida, é maior do que se imagina e
acaba por servir como ferramenta de doutrinação por parte dos adultos que
desejam controlar as ações de alguma criança levada, uma vez que “o medo de
alguma forma está associado a um estado de angústia, angústia que castra,
tolhe, inibe e reprime, algo que vai muito além do compreendido e manifesto”
(D`ELÍA, 2013). As crianças sentem mais o efeito do sobrenatural porque não
conseguem separar o real do imaginário. Acabamos por aprender esse processo
na medida em que vamos adquirindo maturidade para tal e passamos a ter
fascínio pelas histórias fabricadas que outrora nos amedrontavam.
COMO SURGIU O TERMO FANTÁSTICO
Contos e relatos são práticas de tentativas de explicação para eventos
sobrenaturais que assolam a humanidade desde os seus primórdios. Muitos
desses relatos sobrenaturais são passados ao longo das gerações e sobrevivem
até os dias atuais, tal é o fascínio que possuímos pelo oculto:
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 30
Essas histórias que afloram a mente do ser humano são preservadas ao longo do tempo e se tornam imortais. Recorrendo aos mitos europeus, podemos citar o já conhecido panteão grego, com deuses e titãs dotados de poderes que extrapolam as leis tais como conhecemos. No extremo oriente, temos a milenar China, com seus dragões e suas simbologias; ou, trazendo nosso foco para as Américas, podemos citar o México e a sua cultura ligada à morte, além do próprio Brasil onde os mitos folclóricos, tais como o Boi Bumbá, Iara, Saci Pererê, a Mula sem cabeça, a Caipora, o Curupira, foram preservados até os dias atuais, e são conhecidos por boa parte da população brasileira. Todas estas histórias estão cercadas de acontecimentos inexplicáveis, ou sobrenaturais. (SILVA; LOURENÇO, 2010, p.1)
Surge, então, a necessidade de uma vertente dentro da Literatura que
analise todos os aspectos que envolva esse tipo de narrativa: a Literatura
Fantástica, que se serve assim dos elementos provenientes do gótico, dos
contos e lendas populares, dos sonhos e das descobertas científicas.
Segundo Sá (2003), o termo fantástico está diretamente relacionado a
temas sobrenaturais: ao folclore, ao mundo das fadas e da feitiçaria, dos
vampiros e lobisomens, e também, ousaríamos dizer, às crenças religiosas, às
superstições dos espíritos, da possessão, transes, prodígios, milagres,
sonambulismo e licantropia. Vem da palavra grega “Phantastikos”, que evoca
fantasia, imaginação, para depois firmar-se como uma nova modalidade literária.
É um gênero que evolui de forma concomitante com a filosofia e a
expressão linguística, e que foi profundamente talhado no Romantismo,
desenvolvendo-se em contrapartida ao Classicismo, ao plano político e social,
com uma nova concepção do homem e da forma exacerbada que o “eu” versus
“mundo” eram trabalhados no romance.
O termo foi definido e redefinido por quase setenta anos por vários
teóricos diferentes. Sá (2003) cita Lovrecraft e sustenta que uma das primeiras
tentativas em definir o termo fantástico por esse autor está diretamente
relacionada ao medo e aos sustos imprevisíveis que a obra deveria suscitar no
leitor implícito. Contudo, essa ideia foi descartada por muitos teóricos, pois nem
todo texto fantástico causa pavor e medo.
Silva e Lourenço (2010) afirmam que sua percussão, no entanto,
começou no século XVIII com o Iluminismo e toda a racionalidade que a época
propunha, com o questionamento dos possíveis relatos de séculos passados.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 31
Camarani (2014) defende a teoria de que o objetivo da repercussão do
positivismo e do século das luzes era fazer com que o homem perdesse o medo
do escuro, dos fantasmas e dos espíritos, pois tudo seria devidamente explicado
pelas leis naturais. Esse forte desejo de crer no sobrenatural não se perde:
[...] por volta de 1770, quando o espírito científico e positivo granjeou uma grande parte do público esclarecido, as ciências ocultas também se beneficiaram de um novo interesse. Castex explica essa coincidência de interesses, assinalando que quanto mais se obstina o espírito crítico, mais se afirma a necessidade da crença: o movimento ocultista seria um protesto contra a implacável filosofia que destrói os mitos consoladores. Assim, os ocultistas dirigem-se a uma sociedade cuja fé foi abalada, mas o fervor permanece intacto. (CAMARANI, 2014, p.32)
É nesse cenário que o fantástico literário se desenvolve, com a oposição
das leis que deveriam ser “fixas” e “imutáveis”, abolindo a tênue linha que rege
as fronteiras do real e do imaginário, do interior e do exterior, do sonho e da
magia, dando ênfase à intuição e imaginação, sem deixar de aproveitar, no
entanto, as descobertas que a ciência acabava por proporcionar.
Com isso, no século XIX, com a publicação de vários trabalhos
relacionados às pesquisas eletromagnéticas e à psiquiatria, Freud contribuirá e
será a grande influência nos estudos relacionados à literatura fantástica. Ao
invés de radicalizar o sobrenatural nas obras literárias, as descobertas científicas
e as certezas positivistas acabam por estimular cada vez mais a imaginação do
ser humano com a propagação do espiritismo, cujo objetivo era a tentativa de
encontrar uma resposta para as inquietações pós-morte. Os temas abordados
agora serão a loucura, as alucinações e as angústias humanas. O Surrealismo
também se aproveitaria, por assim dizer, das teorias freudianas, e acabaria
tentando encontrar uma possível explicação para o mundo paralelo e fantástico
nas artes.
É importante salientar que ainda no século XIX, o gênero fantástico
permitia laborar temas considerados tabus dentro de uma sociedade
(assassinato, necrofilia, loucura, incesto, rituais de magia negra, etc),
transgredindo leis, pois trabalhava situações humanas que geralmente ficavam
obscuras e que eram dificilmente tratadas: “o fantástico surge frequentemente
de uma ruptura da constância do mundo perceptivo ou físico (gigantes, mortos
vivos), do mundo moral (perversidades) ou do mundo estético (monstros)”
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 32
(CAMARANI, 2014, p.50). Nada disso é construído de forma aleatória, mas o
objetivo também é explanar sobre questões tenebrosas da humanidade.
Atualmente, esses estudos e essas reflexões ficaram sob a responsabilidade
(ainda que não exclusiva) da psicanálise.
De acordo com Silva e Lourenço (2010), a partir do século XX, a narrativa
fantástica se torna mais sutil, adentrando esferas mais complexas, ou seja,
passa a discutir elementos da atualidade e do cotidiano, tais como: angústias
existências, avanços tecnológicos, desigualdade social, entre outras temáticas.
Contudo, a característica mais importante das narrativas fantásticas é fazer com
que o leitor aceite os fatos inexplicáveis como se estes fossem reais.
A leitura de um texto fantástico, portanto, possibilita uma evasão da
realidade, permitindo ao leitor conhecer e adentrar um mundo ignoto, ao mesmo
tempo em que o aceita como real, pois apresenta homens comuns: “a narrativa
fantástica, por sua vez, necessita da oposição marcante entre o real diegético e
o sobrenatural ou o inexplicável.” (CAMARANI, 2014, p.44). É de extrema
relevância que o diálogo entre obra e leitor aconteça, bem como a consideração
do destinatário, assim como a compreensão do emissor. O autor deve usar
estratégias para que o monstro mantenha o interesse do leitor, fazendo com que
seu espírito crítico se adormente por um momento, e que ele seja capaz de sentir
a atmosfera mágica, deixando seduzir-se. A maneira como o autor-narrador irá
explanar os fatos, determinará a credibilidade do conto.
Entretanto, é importante destacar que é de extrema relevância a maneira
como o fantástico será relatado, pois o leitor não está interessado se os
elementos sobrenaturais são reais ou não, mas se o contista será convincente
em suas especulações.
Geralmente, no conto fantástico o tempo e o espaço estão amalgamados
em uma atmosfera de terror. Esses se completam, como se fossem um: “Há um
paralelismo entre espaço e tempo: mesma lentidão tanto em relação à
aproximação do lugar maldito, quanto no que se refere à espera da meia-noite”
(CAMARANI,2014, p.51). A espacialidade reproduzida retrata a solidão da
condição humana em que o leitor se sente inserido, em uma busca incessante
pelo proibido e pelo insólito.
O monstro retratado no conto aparece inicialmente de uma forma sutil,
como uma fissura do real. É um pressentimento, um presságio que o leitor irá
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 33
descobrindo aos poucos, para logo após ver todo seu universo estável regido
por leis severas, ser fragmentado. É por isso que o fantástico aterroriza, pois
infringe com a razão de um mundo aparentemente inabalável.
No entanto, o fantástico não possui uma concepção inteiramente estática,
pois conforme a sociedade evolui, o gênero muda e se adapta, funcionando
como um registro da memória coletiva de um povo, uma vez que ele reflete
concepções de crença, de filosofia, de cultura e de tecnologia.
O FANTÁSTICO NOS CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES
Analisaremos os contos As formigas e A Caçada, de Lygia Fagundes
Telles. Para tanto, utilizaremos o aporte crítico de Todorov (1970) e sua teoria
fantástica.
Todorov publica em 1970 um estudo intitulado Introdução à literatura
fantástica, em que descreve e classifica a literatura fantástica como um gênero
literário: “os gêneros existem em níveis de generalidade diferentes e que o
conteúdo desta noção se define pelo ponto de vista que se escolheu”
(TODOROV, 1970, p. 5), cada um com suas particularidades específicas que o
determinam, embora algumas dessas características possam sofrer
modificações ao longo dos tempos, designando assim outro tipo de gênero.
O termo fantástico seria precisamente o que não é explicável aos
conhecimentos humanos, ou seja, aquilo que consideramos irreal, produto de
nossas imaginações férteis ou que faz parte integrante da realidade e que são
regidas por forças ocultas, estando acima de todas as possibilidades. Portanto,
o que caracteriza essa nomenclatura seria precisamente essa incerteza que
paira sobre o texto, dado que “O fantástico é a vacilação experimentada por um
ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento
aparentemente sobrenatural.” (TODOROV, 1970, p.16) e ainda “o fantástico se
apóia essencialmente em uma vacilação do leitor — de um leitor que se identifica
com o personagem principal— referida à natureza de um acontecimento
estranho” (TODOROV, 1970, p.82), mesclando assim o real e o imaginário na
tentativa de definir e explicar. É nessa irresolução que o fantástico se instala.
Consequentemente, são o mistério e a vacilação os elementos primordiais que
rondam a vida cotidiana responsável pela elucidação desse gênero:
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Esta vacilação pode resolver já seja admitindo que o acontecimento pertence à realidade, já seja decidindo que este é produto da imaginação ou o resultado de uma ilusão; em outras palavras, pode-se decidir que o acontecimento é ou não é. (TODOROV, 1970, p.82)
Contudo, é necessário que consigamos identificar a quem pertence esse
momento de vacilo: do narrador ou do leitor. É extremamente difícil definir esse
processo, uma vez que o leitor se sente parte integrante do mundo do
personagem e da ambiguidade que é construído ao longo do texto. O leitor deve
ainda aceitar as condições fantásticas que a narrativa proporciona, rechaçando
“tanto a interpretação alegórica como a interpretação ‘poética’” (TODOROV,
1970, p.20) no momento da leitura para que o fantástico ocorra.
Não obstante, nem todos os textos fantásticos seguem a ordem exata
de hesitação. Todorov apresenta textos em que essas situações de oscilação
serão exclusivamente do leitor, ou seja, os personagens estarão convictos da
verdade aparente e quem questionará esses elementos será unicamente o leitor:
Por conseguinte, o leitor não se identifica com nenhum dos personagens, e a vacilação não está representada no texto. Diremos então que esta regra da identificação é uma condição facultativa do fantástico: este pode existir sem cumpri-la; mas a maioria das obras fantásticas se submetem a ela (TODOROV, 1970, p 19)
Temos, portanto, três condições para que o Fantástico ocorra segundo
Todorov: 1) o leitor deve considerar o mundo dos personagens como de pessoas
reais, onde ele deve hesitar entre uma explicação natural ou sobrenatural dos
acontecimentos relatados; 2) a hesitação deve ser sentida também pelo
personagem, que representará o leitor, para logo em seguida ter uma postura de
julgamento perante o texto; 3) o leitor deve rechaçar tanto a leitura poética
quanto a alegórica. Geralmente, o primeiro e o terceiro itens acabam por se
cumprir, enquanto que com o segundo pode ter-se uma oscilação enquanto a
essa expectativa, mas usualmente todos os três acabam acontecendo.
A experiência que o leitor desenvolve durante a leitura ajuda a definir a
nomenclatura fantástica. A maneira que o leitor recepciona o texto, e se ele irá
despertar certa atmosfera também definem o termo, pois a emoção que o texto
poderá suscitar é extremamente relevante. Contudo, TODOROV (1970) salienta
que o medo que um texto fantástico “deverá” despertar não deve ser considerado
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 35
em exclusivo, pois o fantástico não deve necessariamente causar terror ou
temor, mas um possível questionamento de dúvida aparente da realidade, da
ilusão e da maneira que vemos certos fatos insólitos e de como eles se
apresentam.
AS FORMIGAS
Em As formigas temos duas jovens universitárias que chegam a uma
pensão. Narrado em primeira pessoa, o narrador é autodiegético, com um
espaço determinado. Sem nome, a estudante de medicina é a protagonista, pois
todo o conflito gira em torno dela, e é denominada de “prima”: “Quando minha
prima e eu descemos do táxi” (TELLES,1998, p.7).
Sem descrição, a narradora enumera somente uma característica da
prima, estudante de medicina: “Estudo direito. Medicina é ela” (TELLES,1998,
p.7) que acaba desenvolvendo um estrabismo quando fica nervosa: “Ela apertou
os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.” (TELLES, 1998,
p.10). A deficiência dos olhos da protagonista no conto, indica uma visão
imprecisa, acarretando duplicidade, ambiguidade e a deformação dos relatos
ocorridos, uma vez que paira certa incerteza relacionado ao esqueleto de um
anão que se monta sozinho. Quando as estudantes chegam à pensão, a
narradora percebe que a uma das janelas de fronte também possui um dos
“olhos” ineficiente: “Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas
ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada.”
(TELLES, 1998, p.7)
É interessante destacar que o sobrado, como é descrito no conto, retoma
aos castelos assombrados, elemento muito explorado nas narrativas de terror.
Os contos fantásticos se servem também dessas características para despertar
no subconsciente do leitor aspectos surreais, que causam medo e pavor. A
descrição da espacialidade nesse tipo de conto é essencial para firmar o gênero
fantástico, assim como a atmosfera pressentida deve ser convincente em suas
especulações.
Conforme a narrativa se desenrola, a narradora deixa transparecer um
pequeno lado de sua personalidade: “prendi na parede, com durex, uma gravura
de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro” (TELLES,
1998, p.8). Com esse pequeno indício, percebemos que a narradora tem certo
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 36
fascínio pelo fantástico, uma vez que o artista Marcelo Grassmann (1925-2013)
retrata em suas gravuras seres mitológicos (homens com corpo de animal),
criaturas macabras e inquietantes, aves assustadoras e demônios, ao mesmo
tempo em que temos um retrato do lado infantil da personagem que ainda não
amadureceu, marcado sobremaneira pela posse do urso de pelúcia, objeto que
remete à ingenuidade das crianças quando presenciam um relato fantástico,
uma vez que elas não conseguem separar o real do fantasioso.
De acordo com Todorov (1970), a escolha do narrador em primeira
pessoa, muito comum nas narrativas fantásticas, é uma estratégia utilizada para
possibilitar credibilidade e veracidade aos relatos, ao mesmo tempo que causa
aproximação entre o personagem e o leitor, embora a terceira possa ser
tranquilamente utilizada sem danificar o efeito fantástico e ambíguo do texto.
O conto inicia com a descrição da pensão: “É sinistro.” (TELLES,1998,
p.7). No século XX, a literatura fantástica, assim como os outros gêneros
literários, sofre alterações. O sobrenatural já aparece nas primeiras linhas do
texto, e não mais após algumas indicações e gradações. Quando o narrador
declara que o ambiente é “sinistro”, temos já no início uma alusão ao que está
para suceder nas próximas linhas.
O ambiente retratado da pensão possui uma atmosfera gótica e romântica
sugerida no seguinte trecho: “Ficamos imóveis diante do velho sobrado de
janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada.”
(TELLES,1998, p.7). A passagem: “A mulher não respondeu, concentrada no
esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto”
(TELLES,1998, p.7), constitui também uma atmosfera de elementos pitorescos
do romantismo, pois as escadas em caracóis retomariam esses componentes,
uma vez que elas remetem aos castelos medievais, além da vertigem do sentido
e da identidade. Essas casas em ruínas transmutam uma visão inquietante, com
o ressurgimento do passado no presente. Tais construções decadentes trazem
em suas estruturas histórias de um tempo remoto, funcionando como um
depositório de segredos sombrios. O fantástico privilegia esses espaços de
aberrações arquitetônicas.
A descrição do local no início da narrativa indica um personagem lúcido,
capaz de fazer relações, que transmite confiança à veracidade dos fatos, para
no decorrer dos relatos, lançar dúvidas no leitor, pois a personagem além de
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 37
despertar de vários sonhos relacionados ao anão, indicando uma oscilação
quanto à realidade e fantasia, na noite da fuga e da quase completa montagem
do esqueleto, ela aparece embriagada após participar de uma festa de
casamento: “Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta” (TELLES,
1998, p.11). O leitor, portanto, encontra-se na hesitação que os textos fantásticos
devem despertar: trata-se de um sonho ou realidade? Acreditar no relato, mesmo
proveniente de um narrador que possui os sentidos turvos devido à bebida
alcoólica? É esse elemento primordial que Todorov (1970) afirma que o gênero
deve suscitar no leitor.
O fato de a narradora sonhar quase todas as noites com o anão, indica
que a mesma além de ter ficado enternecida com os restos mortais, o evento lhe
causa terror em seu inconsciente. O medo faz com enxerguemos a circunstância
de forma distorcida da realidade, permitindo que o lado primitivo da fuga seja
acionado, além de nos induzir em acreditar ter ouvido ou presenciado certas
situações:
Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? (TELLES,1998, p.12)
“O quarto [que ficava no sótão] não podia ser menor, com o teto em
declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas”
(TELLES,1998, p.7). Esta passagem possibilita ambientes delimitados,
fechados, em que percebemos um interior quase claustrofóbico, narrado sempre
em uma temporalidade noturna, privilegiando a escuridão que causar terror,
dúvida, espaço em que os personagens e o leitor não conseguem separar o real
da imaginação. Embora a narradora só afirme que era “quase noite”
(TELLES,1998, p.7) quando as personagens chegaram ao local, sem decretar
com exatidão a hora certa, o conto transcorre sempre à noite e na madrugada.
Os efeitos sinestésicos nas narrativas fantásticas também são relevantes,
pois os cheiros descritos no texto auxiliam a construção tétrica do ambiente e da
tomada de consciência dos personagens, funcionando como uma revelação
epifânica, uma vez que é pelo cheiro que as personagens percebem que algo
está para acontecer: “De onde vem esse cheiro? — perguntei farejando. Fui até
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 38
o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. — Você não está sentindo um cheiro meio
ardido?” (TELLES,1998, p.8).
Não se sabe ao certo se o odor está ligado ao esqueleto do anão ou às
formigas. A prima que estuda medicina, no entanto, descarta a possibilidade de
carne putrefata, e afirma que o cheiro pode ser bolor, o que causa certa dúvida,
uma vez que bolor não possui a característica “ardida”, e ao mesmo tempo que
não se sabe ao certo o que atrai as formigas, visto que todos os ossos do anão
estavam completamente limpos: “Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de
anão. E tão limpo, olha aí” (TELLES, 1998, p.7). Portanto, temos também a
hesitação na descrição desse cheiro que se intensifica conforme o esqueleto vai
adquirindo a forma, sumindo pela manhã junto com as formigas. Esse fato
acompanhará todas as madrugadas das meninas até a fuga eminente.
A problemática do conto acontece quando a dona da pensão cede à futura
médica, protagonista do conto, uma caixa que contém um esqueleto de um anão
em perfeitas condições deixadas pelo antigo inquilino. Já naquela noite
percebem no quarto uma trilha de formigas que passam pela fresta da porta e
desembocam dentro da caixa, reorganizando os ossos na estrutura anatômica
correta. No entanto, as formigas só fazem caminho de ida: “São milhares, nunca
vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida — estranhei.”
(TELLES, 1998, p.9). Curiosa e fascinada, é ela que nota a forma organizada
que as formigas se dirigem ao caixote de ossos, bem como a mudança da
colocação dos mesmos, até a formação correta da estrutura anatômica: “Me
lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com
as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote com uma
omoplata de cada lado.” (TELLES, 1998, p.9).
As meninas ficam cada vez mais intrigadas com as formigas que só
aparecem na madrugada, trazendo consigo o cheiro desconhecido. De manhã
tudo volta ao normal, sem qualquer indício da passeata das formigas pelo quarto:
— E as formigas? — Até agora, nenhuma. — Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando. — Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? — Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então, quem?! (TELLES, 1998, p.10)
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O anão e a velha dona da pensão são personagens planos e tipificados,
peças fundamentais para o desenrolar da narrativa. A velha, por possuir um gato:
“Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.” (TELLES, 1998, p.8), animal
que geralmente acompanha as bruxas nos contos de fadas, dispõe de uma
descrição descuidada e inquietante:
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho. (TELLES, 1998, p.7)
A descrição nos transporta para um mundo de mistério por sua aparência
e costumes peculiares, bem como o anão, personagem muito explorado também
nos contos de fadas, por ser algo mágico, fantástico. É interessante notar que a
figura do anão é constante na obra da autora. Em seu conto O anão no jardim
(1995) que se encontra na coletânea A noite escura e mais eu e Ciranda de
pedra, primeiro romance da autora publicado 1954, o anão é caracterizado como
um personagem emblemático e insólito, por retratar algo grotesco, que causa
inquietação e por ser um personagem assíduo dos contos de fadas. Temos no
anão uma imagem dissonante de um adulto preso no corpo de uma criança que
não sofre desenvolvimento. Por ser mais sensível ao fantástico, o lado infantil
acaba predominando.
Podemos afirmar, portanto, que o anão contribui para a atmosfera
fantástica do conto, pois guarda em si um segredo, uma hesitação por estar
preso em uma dimensão que não lhe pertence. Todorov (1970) afirma que o
papel que o elemento sobrenatural desempenha em uma narrativa é de extrema
relevância:
O sobrenatural comove, assusta ou simplesmente mantém em suspense ao leitor [...] o sobrenatural constitui sua própria manifestação, é uma auto-designação [...] o sobrenatural intervém, como dissemos, no desenvolvimento do relato. (TODOROV, 1970, p.85)
Com Todorov (1970) afirmamos que o gênero fantástico pode ser
classificado em estranho e maravilhoso. No fantástico-estranho “Os
acontecimentos que com o passar do relato parecem sobrenaturais, recebem,
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 40
finalmente, uma explicação racional” (Todorov, 1970, p.25). Entretanto, se ele
não conseguir uma explicação lógica para os fatos ocorridos e essa explanação
permanecer no viés do sobrenatural e esses for comprovado, temos então o
Maravilhoso, que “não pode ser explicado pelas leis da natureza tal como são
reconhecidas; estamos, pois, no terreno do fantástico-maravilhoso.” (Todorov,
1970, p.30). Contudo, por se tratar de uma autora brasileira da modernidade,
temos um hibridismo do gênero em As formigas, manifestando-se por meio do
fantástico estranho e maravilhoso concomitantemente. Isso é possível e
bastante compreensível, uma vez que “toda obra modifica o conjunto das
possibilidades; cada novo exemplo modifica à espécie” (TODOROV, 1970, p. 6).
Assim, o conto em questão é estranho pelas possíveis explicações que temos
ao longo do texto (a personagem que narra se apresenta ora bêbada, ora
acabando de acordar de um sonho com o anão). E também maravilhoso pela
presença da velha que retoma as bruxas e o anão, personagens característicos
dos contos de fadas.
Temos, portanto, um texto multifacetado, bem característico do século XX
e do estilo peculiar de Lygia Fagundes Telles.
A CAÇADA
A caçada, de Lygia Fagundes Telles é também um conto fantástico e se
encontra na coletânea Antes do baile verde (1970). O conto relata um
personagem que vive um surto de esquecimento, e que procura respostas
incansavelmente em uma pintura de uma tapeçaria deteriorada. Mesmo
apresentando narrador onisciente de terceira pessoa, este não possui
conhecimento sobre o nome do personagem, denominando-o apenas como “o
homem”.
A narrativa tem início com o protagonista dentro de uma loja de
antiguidades. Enquanto observa distraidamente os outros objetos, finalmente
fixa o olhar sob o objetivo que o leva todos os dias ao recinto: uma velha
tapeçaria pregada no fundo da loja que possui uma pintura bastante particular:
Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à
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espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta. (TELLES,1970, p. 48)
O homem, que acredita conhecer a perfeição da pintura, não consegue
recordar nada a respeito: “Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria
assistido a essa mesma cena. E onde? ….” (TELLES,1970, p.48). O personagem
sabe somente que de alguma forma faz parte daquele objeto. Mesmo de olhos
fechados se recorda de todos os detalhes da pintura. A dona da loja, uma
senhora de idade, não entende o fascínio despertado no homem, e reage com
indiferença ao interesse do personagem: “Já vi que o senhor se interessa mesmo
é por isso... Pena que esteja nesse estado” (TELLES,1970, p.47),
desestimulando qualquer possibilidade de venda:
(...) essa tapeçaria não aguenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido (...). Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços. (TELLES,1970, p. 47)
Deixado ali por um desconhecido, o tapete fora abandonado na loja anos
atrás, já em estado deteriorado:
Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto… Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu. (TELLES,1970, p. 47).
Todas as vezes que o homem olha para a pintura, seu corpo reage de
forma violenta, causando-lhe calafrios, palpitações, dores musculares, insônia,
palidez, acompanhado de alta tensão e ansiedade. Tudo por não recordar
quando e onde tivera contato com a gravura.
O homem nota que a pintura está mais nítida: “As cores estão mais vivas.
A senhora passou alguma coisa nela?” (TELLES,1970, p.47). A senhora, no
entanto, não consegue notar nenhuma diferença na tela: “A velha firmou mais o
olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los. — Não vejo diferença nenhuma.”
(TELLES,1970, p.48).
Quando o caso começa a intrigar, o homem nota que a seta do arco do
caçador havia sido disparada. Fato que, somente ele consegue visualizar:
“Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta…— Que seta? O
senhor está vendo alguma seta?” (TELLES,1970, p.48).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 42
Todo esse relato ambíguo deixa o leitor perplexo e ansioso, tal como o
protagonista, pois este consegue entrever, por meio da narração, toda confusão
dos sentimentos que o personagem vivencia, sua crise de identidade, ao mesmo
tempo em que deseja entender tudo que está acontecendo com o protagonista,
mas ao mesmo tempo se distanciando para perceber toda hesitação e
ambiguidade que paira no texto. De acordo com Todorov (1970), esse processo
é bastante comum nos textos fantásticos:
O fantástico implica, pois, uma integração do leitor com o mundo dos personagens; define-se pela percepção ambígua que o próprio leitor tem dos acontecimentos relatados. Terá que advertir imediatamente que, com isso, temos presente não tal ou qual leitor particular, real, a não ser uma “função” de leitor, implícita ao texto (assim como também está implícita a função do narrador). A percepção desse leitor implícito se inscreve no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos dos personagens. (TODOROV, 1970, p.19)
A condição necessária para que o fantástico ocorra é pautada pelos
acontecimentos estranhos que rondam a obra, despertando sentimentos
particulares no leitor (medo, terror, ansiedade, angustia e até mesmo
curiosidade). De acordo com Todorov, “O elemento sobrenatural resulta ser o
material narrativo que melhor cumpre esta função precisa: modificar a situação
precedente e romper o equilíbrio (ou desequilíbrio) estabelecido.” (TODOROV,
1970, p.86)
A hesitação que o leitor sente relacionada aos elementos narrados e se
eles são reais ou irreais, e se são evocações da mente do personagem ou do
ambiente em que a história transcorre, são elementos considerados fantásticos.
A ambiguidade, essa vacilação da verdade aparente que gira em torno da
dúvida, ou seja, tudo o que está no plano da incerteza relacionado ao irreal,
termina por caracterizar-se como fantástico. É uma amálgama da realidade
aparente com a fantasia criada pela mente, pelo psicológico do indivíduo, em
que o mesmo procura explicações racionais para acontecimentos estranhos e
inaceitáveis.
A dona da loja procura ainda dar uma solução para os possíveis
devaneios do homem: “Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede
já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — lamentou, disfarçando um
bocejo” (TELLES,1970, p.48), trazendo o leitor para a realidade, ao mesmo
tempo que firma a loucura aparente em o personagem vive.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 43
O homem, deixado a sós, continua em sua investigação: “E se tivesse
sido o pintor que fez o quadro?” (TELLES,1970, p.49), para logo em seguida
descartar a ideia, uma vez que detestava caçadas: “E se fosse o artesão que
trabalhou na tapeçaria?” (TELLES,1970, p.50). Os recursos linguísticos
utilizados nos textos fantásticos também ajudam a afirmar o gênero, pois é por
meio das palavras que são transmitidas as ambiguidades e as incertezas que
permeiam a leitura. O uso de “e se” indica insegurança que permeia o
protagonista. O sobrenatural e a dúvida surgem por meio da ambiguidade gerada
por essas palavras.
O homem, no momento da observação, nota um animal que tenta se
esconder atrás de uma pequena moita e se sente comovido, pois sabe que a
morte da criatura é inevitável, para finalmente se convencer que fora um dos
personagens da pintura:
“Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão
bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada!” (TELLES,1970, p.48).
O fantástico prioriza os ambientes de grandes florestas, de natureza
selvagem, uma vez que anuncia um lugar que foge das marcas humanas, quase
virgem, responsável por abrigar seres obscuros e sobrenaturais, pois esse
espaço escapa da ordem da civilização, representando assim algo que não
segue regras delimitadas, mas caótico em sua composição, o que reflete de
forma inconsciente os medos do personagem.
O homem deixa a loja e perambula pela cidade inquieto, quando lhe passa
a possibilidade de estar enlouquecendo: “Mas não estou louco.” (TELLES, 1970,
p.49). A obsessão é tamanha pela gravura que o homem chega a sonhar com a
floresta da caçada. Acorda aos gritos quando percebe que fora atingido: “Sou o
caçador? Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue” (TELLES,
1970, p.50).
Após o pesadelo da noite anterior, o homem decide retornar à loja logo
cedo para destruir a tapeçaria. A senhora lhe permite o acesso e o homem
percebe que já não está mais na loja, mas dentro da pintura: “Seus dedos
afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era
uma coluna, era uma árvore!” (TELLES, 1970, p.50), para logo em seguida ser
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“atingido” e desfalecer no chão: “E rolou encolhido, as mãos apertando o
coração” (TELLES, 1970, p.50)
Nesse conto, a dúvida é tão bem construída pelo autor que não sabemos,
enquanto leitores, se os acontecimentos são frutos de nossa imaginação fértil ou
do personagem, enquanto que o narrador persiste em lançar as dúvidas como
um recurso do gênero:
Em primeiro lugar, o personagem não está de tudo decidido quanto à interpretação dos fatos: também ele crê às vezes em sua loucura, mas nunca chega à certeza. [...] Ao mesmo tempo, o narrador não está seguro de que tudo o que o personagem viveu dependa da ilusão; insiste inclusive sobre a verdade de certos feitos relatados. (TODOROV, 1970, p.22)
Passado e presente são amalgamados na narrativa, completando-se.
Quando o espaço muda, é o passado que deseja mostrar algo, pois geralmente
o espaço é marcado por esses acontecimentos. Nesse conto, o protagonista vive
na busca frenética por respostas de algo que não se recorda. O personagem,
que é um herói problemático com uma oscilação de identidade, passa a adentrar
o espaço fantástico.
Nada indica que ele confrontará o extraordinário, o impossível. Os objetos
utilizados revelam o problema na narrativa, pois nem o personagem, nem o leitor
dão a devida importância a ele, o que acaba por chocar quando a problemática
se revela em seu entorno. Esse objeto está inserido no cotidiano, como algo
normal, irrelevante. A animação da matéria nos contos fantásticos, como o tapete
em A caçada se desenvolve como um objeto mediador para a loucura aparente
do protagonista, que acaba tornando-se obsessivo ao perseguir o próprio eu.
Conforme Todorov:
O princípio que temos descoberto pode designar-se como o questionamento dos limites entre matéria e espírito. Este princípio engendra diversos temas fundamentais: uma casualidade particular, o pandeterminismo; a multiplicação da personalidade; a ruptura do limite entre sujeito e objeto; e, por fim, a transformação do tempo e o espaço. (TODOROV, 1970, p.64)
As narrativas fantásticas do século XX mudam um pouco o seu foco.
Por retratar uma literatura intimista, Telles trabalha os temas dos conflitos do Eu
versus Mundo, como uma busca frenética por um possível enquadramento do
homem na sociedade. Todorov declara que “os temas do eu podiam interpretar-
se como realizações da relação entre o homem e o mundo, do sistema
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 45
percepção-consciência” (TODOROV, 1970, p.73). Assim, “os temas do eu se
fundamentavam sobre uma ruptura do limite entre o psíquico e o físico”
(TODOROV,1970, p.78). Notamos, portanto, um indivíduo perdido em busca de
uma identidade que até mesmo ele desconhece, causando-lhe um desvio de
personalidade. No trecho abaixo:
Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. (TELLES, 1970, p.48)
A forma com que o narrador descreve as cores que permeiam o tapete,
é uma estratégia que evoca repulsa no leitor, ao mesmo tempo em que suscita
medo ao descrevê-la com nuances escuras e tenebrosas.
A tempestade, a cor negro-violáceo e o líquido maligno são
mobilizadores empregados para dar realidade ao irreal, remetendo ao
inconsciente, aos pesadelos, ao mesmo tempo em que promove um clima de
pavor e horror, muito utilizado nesse tipo de gênero.
Em A caçada temos um Fantástico-estranho, uma vez que a explicação
racional cairia sobre a loucura aparente do protagonista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente trabalho, procuramos mostrar como o gênero fantástico
apresenta-se na ficção de Lygia Fagundes Telles e nos contos analisados.
Escolhemos esses contos por apresentarem elementos ambíguos e por
possuírem cenários característicos que retomam os contos fantásticos (floresta
e velho sobrado), bem como os fortes elementos que os compõem, tais como: a
hesitação que emana dos textos, as angústias e inquietudes do homem
contemporâneo, o tempo, o espaço, os personagens tipificados dos contos de
fadas, os odores e as cores descritos, entre outros.
O narrador dos contos de Telles possui um olhar agudo sobre os fatos,
bisbilhotando cuidadosamente os objetos e os personagens da narração. Ele
lança dúvidas e incertezas ao longo da narrativa, elemento primordial para que
o Fantástico seja perceptível. O final em aberto permanece ao encargo do leitor,
que deverá escolher entre o surreal ou uma explicação plausível que o satisfaça.
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De acordo com Dimas, o narrador lygiano apresenta comportamento incerto e
sinuoso, o qual:
[...] não favorece a clareza, nem a objetividade. Mas favorece a dúvida e a curiosidade que, aliás, serão as constantes da maioria dos contos deste livro, cujos finais preferem a incerteza, não obstante o acúmulo de detalhes anteriores que, em princípio, deveriam esclarecer e não confundir. Na ficção de Lygia Fagundes Telles, o final não é, forçosamente, conclusivo. Antes, pelo contrário. (DIMAS, 2009, p. 130)
Escrito em uma linguagem coloquial, ambos os textos retratam situações
do cotidiano. A autora nem sempre anuncia de forma imediata os efeitos
catastróficos, o que acaba por gerar suspense e inquietude no leitor. Seus
personagens possuem uma aparência simples e inocente. Porém, à medida que
o mistério se estabelece, acabam por corroer toda sanidade psicológica que
ainda possuem, fato que acontece com a fuga das primas da pensão e com o
possível momento de insanidade do homem da tapeçaria.
Portanto, podemos considerar ambos os contos fantásticos por possuírem
fortes características potenciais do gênero. Assim, a narrativa de As formigas é
caracterizada por não ser um fantástico-puro, mas um hibridismo literário e A
caçada por ter um protagonista à beira de um possível desiquilíbrio mental, um
fantástico-estranho.
REFERÊNCIAS CAMARANI, Ana Luiza Silva. A literatura fantástica: caminhos teóricos. São Paulo: Editora Cultura Academia, 2014. CANDIDO, Antonio. A nova narrativa. In: CANDIDO, Antonio. A Educação pela noite e outros ensaios. E.ed. Sâo Paulo: àtica, 1989.p.199-215. CORTAZÁR,Júlio.Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1993. D’ELÍA, Karla Alessandra de Amorim. Uma abordagem psicológica sobre o Medo. Portal da Educação, 2013. Disponível em: https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicologia/uma-abordagem-psicologica-sobre-o-medo/49333 acesso: 25/mar/2018. JUNIOR, Arnaldo Franco. Operadores de Leitura da Narrativa. Maringá. Edvem, 2009. LOIOLA, Rita. Revista Galileu. Entenda por que gostamos de sentir medo. Brasil. Disponível em: http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI113919-
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17579,00ENTENDA+POR+QUE+GOSTAMOS+DE+SENTIR+MEDO.html acesso: 25/mar/2018 PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Cia.das Letras, 2004. PIRES, Priscila Aparecida Borges Ferreira. As insólitas formigas de Lygia Fagundes Telles. Paraná: Anais Selliticon, 2015. SÁ, Marcio Cicero de. Da literatura fantástica (teorias e contos). São Paulo, 2003. SILVA, Luis Cláudio Ferreira. LOURENCO, Daiane da Silva. O gênero literário fantástico: considerações teóricas e leituras de obras estrangeiras e brasileiras. Maringá Paraná, 2010. TELLES, Lygia Fagundes. A caçada. IN: Antes do baile verde. São Paulo. Cia das letras, 1970. TELLES, Lygia Fagundes. As formigas. IN: Seminário dos Ratos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2014.
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Admirável mundo novo e admirável chip novo: uma nova visão intertextual distópica
Brave new world and brave new chip: a new dystopic intertextual vision
Naraiane Tais da Silva (UENP - G)
Ane Caroline Santos (UENP - G)
RESUMO: Levando em consideração as primícias da literatura comparada (BASSET, 1993; GYARD, 1994; NITRINI, 2000 entre outros) entende-se que comparar é a forma que rege as semelhanças entre duas ou mais obras em diferentes nacionalidades. Já que comparar eminentemente é provido pelo pensamento do ser humano, assim como, pela sua organização cultural (CARVALHAL, 2007). A partir disso, tomamos como objeto de análise a obra Admirável mundo novo (1932) do escritor Inglês Aldous Huxley fomentando o intertexto gerado pela canção Admirável Chip novo (2003) da cantora e compositora brasileira Priscila Novaes Leone (Pitty). O objetivo deste artigo é desenvolver os aspectos relevantes que tornam esses trabalhos citados semelhantes tendo como aporte o tempo e o espaço no momento de criação desses feitos literários: Admirável mundo novo (1932) e Admirável Chip novo (2003). Nesse sentido, os resultados revelam que as obras Admirável mundo novo (1932) e Admirável Chip novo (2003) contém elementos similares distópicos quando expõem o contexto social de cada civilização que são regidas pelas ordens governamentais e que a manipulação social é derivada pelo condicionamento estabelecido pelos líderes do governo. PALAVRAS-CHAVE: Literatura comparada. Intertextualidade. Distopia.
INTRODUÇÃO
A literatura comparada é um campo desenvolvido como meio de
comparar obras literárias tendo como referência o espaço e o tempo em que as
mesmas foram produzidas. Nesse quesito, os estudos comparativos quebram
barreiras nacionais pois se interligam com as questões internas e externas da
produção literária como os aspectos culturais de cada sociedade.
Este vasto campo de conhecimento baseia-se no ato de comparar que
pode acorrer por meio de duas diferentes escolas literárias a Americana e a
Francesa. A partir disso, é possível fazer comparações entre diferentes obras da
área da literatura tendo como aparato as escolas citadas acima. De fato, a
vertente Americana permitiu ter com maior amplitude emitir um grande número
de comparações pela inserção de diversos elementos literários como os
instrumentos artísticos: quadros, músicas, esculturas etc. (CARVALHAL, 2007;
REMAK, 1994).
Nesse sentido, está pesquisa utilizou-se de duas diferentes obras
estéticas com a intenção de tornar visível os estudos comparativos. Em primeiro
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plano, tomamos como soma Admirável mundo novo (1932) do autor inglês
Aldous Huxley que é uma distopia quando inverte valores reais para uma
realidade ficcional sociológica.
Em segundo plano, fizemos menção a canção Admirável Chip novo
(2003) da cantora e compositora brasileira Priscila Novaes Leone (Pitty). Está
canção foi originada a partir da obra de Huxley como meio crítico ao atual
governo vivenciado pela cantora Leone em seu país. Nesse quesito, ambas as
obras possuem semelhanças em relação ao enredo e as críticas contra o poderio
governamental.
Seguindo essa linha de análise, condecoramos que os trabalhos aqui
apresentados fomentam aspectos comparativos. A partir disso, decidimos
estudar os elementos intertextuais decorrentes a essas obras. Levando em
consideração o contexto de produção, ou seja, os aspectos culturais e sociais
que determinam a correlação que se estabelece em ambos trabalhos.
Dessa forma, nos apropriaremos dos métodos existentes da disciplina
de literatura comparada sobre nossos objetos de estudos. Neste caso, os
métodos criados pela escola Americana como forma de agregar ênfase aos
estudos comparativos apresentando os valores que regem este vasto campo
literário.
OBJETIVO
O objetivo desta pesquisa é utilizar os estudos desenvolvidos pela
literatura comparada como método de comparação entre duas obras com
diferentes papeis estéticos. Neste caso, as obras Admirável mundo novo de
Aldous Huxley publicada em 1932 e a música Admirável Chip novo produzida
pela cantora e compasitora Priscila Novaes Leone (Pitty) repercutida em 2003.
Os aspectos traçados estarão direcionandos as condições de produção dos
criadores levando em consideração o tempo e o espaço em que desfrutavam
durante a produção dessas obras.
OS DESAFIOS DA LITERATURA COMPARADA
A literatura comparada surge no século XIX decorrente dos
pensamentos cosmopolitas que procuravam comparar estruturas ou analogias
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da época com o intuito de extrair leis gerais que promovessem o domínio de
poder sobre as ciências naturais. A compreensão dada a esta área literária é
permeada pela investigação de duas ou mais obras literárias, entretanto, para
Carvalhal (2007) e Remak (1994) a área comparativa promove um vasto campo
de atuação alcançando outras áreas como a da arte: a música, pintura, escultura
etc.
Não obstante, comparar é um processo que ocorre naturalmente dentro
do pensamento do homem e de sua organização cultural (CARVALHAL, 2007).
Por esse viés, os comparatistas pretendem demonstrar os fatores que permeiam
as culturas e entre outros aspectos que regem o âmbito literário levando em
consideração o valor da influência sobre todo tipo de aporte que envolvem a
literatura.
Podemos assim dizer que grandes obras literárias influenciaram ou
influenciam outros escritores de outros países. Como, por exemplo,
Shakespeare um dos grandes criadores literários de todos os tempos que
possibilitou influenciar outros escritores como Charles Dickens, Machado de
Assis e o próprio escritor Aldous Huxley. A partir disso, a literatura comparada
busca estabelecer os traços de semelhanças que envolvem essas obras
literárias. De fato, cada escritor obteve diferentes pensamentos, assim como,
distintos métodos que foram marcados pelo contexto social da época e que só
podem ser revelados por meio do ato de comparar.
Inicialmente, o estudo da comparação foi visto como algo para não ser
estudado, até porque a literatura não era vista como algo inovador (BASSET,
1993). Além de que outros campos de estudos surgiram com mais influência
sobre a sociedade em questão deixando os estudos comparativos de lado.
Por causa da amplitude de outros campos de conhecimento a literatura
comparada passou por diversas crises em diferentes países da Europa. Pode-
se dizer que as obras canônicas permeavam os primeiros estudos e que as
diferentes escritas da língua Inglesa trouxeram dúvidas. Segundo Wellek (1994)
os objetivos e os métodos permeados pela literatura comparada trouxeram
contradições. Neste quesito, a “comparação” se tornou sinônimo para os estudos
comparatistas condiz Carvalhal (2007), pois não havia uma metodologia
específica para tal campo. Ou seja, comparar se tornou o objeto de estudo da
literatura comparada.
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Como contribuição para os estudos comparativos conhecer as línguas
estrangeiras se tornou um elemento primordial para o início de carreira nesse
campo. O comparatista deveria também compreender os motivos de cada autor
ao escolher suas fontes de inspiração no momento de produção da obra. Além
de ser obrigado a encontrar escritos de outros autores em outras línguas, para
constatar a relação desenvolvida entre as obras escolhidas (GYARD, 1994).
Em outras palavras, o comparatista devia ser alguém com vocação para
lidar com este trabalho de semelhanças. Segundo Guyard (1994) a literatura
comparada é o estudo de obras literárias de diferentes nacionalidades, portanto
o comparatista deve estar sempre em contato com as mudanças e diversidades
para poder realizar suas pesquisas:
A literatura comparada é a história das relações literárias internacionais. O comparatista se encontra nas fronteiras, lingüísticas ou nacionais, e acompanha as mudanças de temas, de idéias, de livros ou de sentimentos entre duas ou mais literaturas. Seu método de trabalho deve-se adaptar a diversidade de suas pesquisas (GUYARD, 1994. p.97)
Mais à frente a literatura comparada se tornou uma disciplina que foi
aprimorada por algumas vertentes de ensino que existem ainda hoje, que
desenvolveram métodos para os estudos comparativos. No entanto, as
metodologias e métodos criados por estes sobrecarregaram a comparação entre
os materiais literários (WELLEK, 1994).
As instituições criadas estabeleceram condições arbitrárias em relação
aos estudos comparatistas. As escolas literárias Americana e Francesa
promoveram diferentes ideologias quanto aos primórdios do comparatismo.
A escola Francesa é permeada pelos materiais documentais providos
pela fonte e pela influência, ao qual limita-se a crítica literária. Segundo Wellek
(1994) o estudo francês estaria apenas voltado a fontes e influencias, causas e
efeitos.
Os estudos promovidos pela escola Americana são mais abrangentes
para o estudo da comparação (REMAK, 1994). Pois, a literatura comparada deve
assumir as diferenças significativas de linguagem que ultrapassam estigmas
como a nacionalidade e a tradição. Levando isso em consideração, a vertente
Americana desenvolveu-se mais entre as escolas pela ampla forma de trabalhar
os estudos comparativos.
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ORIGINALIDADE LITERÁRIA
É indiscutível afirmar que as obras de cunho literário carregam
influências de vários escritores nacionais ou internacionais. Dessa forma, o
estudo da literatura comparada desenvolveu dúvidas sobre a origem de
produção das obras literárias. Nesse sentido, debate-se então sobre o teor de
originalidade que é provido pelo campo estético da literatura, já que parte dos
escritores usam referências externas e internas que regam a autenticidade de
cada um destes.
Então o criador literário depende de outros para o desenvolvimento de
seu trabalho, sendo assim, os questionamentos sobre o ser “original” e
independente ocorrem automaticamente. A angustia da influência separa os
autores que se permitem ser influenciados, o que para Nitrini (2000) ocorre por
meio de dois polos que são significativos na visão de Bloom:
Bloom só se interessa por poetas fortes, isto é, aquelas grandes figuras que combatem seus precursores, também poetas fortes, até a morte. No pólo oposto, acham-se os poetas fracos cuja imaginação capaz se apropria de tudo para si, não se aventurando no embate que se concretiza por meio da desleitura (NITRINI, 2000.p.146).
Em outro ponto de vista é condecorado que a imitação ou invenção
permeadas por outras obras se diferem entre o tempo e o espaço (CARVALHAL,
2007). Ou seja, a dependência que os escritores mantêm por outras obras se
distanciam pelo momento em que cada criador atua como literato.
Infelizmente o conceito de originalidade ainda é questionado quando se
refere a influências literárias, a estudiosa Odette de Mourgues apresentada por
Nitrini (2000) diz que o original está ligado a dois sentidos comuns o “imaginado
sem modelo” e aquele que produz sua “marca própria”.
O primeiro é quando o criador provê seu próprio modelo de obra a partir
de sua imaginação sem ser influenciado, ou seja, esse material se desenvolve
de modo independente de um modelo inexistente de influência.
De outro lado, o segundo conceito é aquele com marca própria de
originalidade é aquele escritor que teve influências, porém, conseguiu assimilar
tão bem a fonte influenciada que passa quase despercebida suas similaridades.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 53
Para os estudos comparativos as fontes e influências são indagadas, mas aquilo
que é promovido através de grandes criadores pode constituir o termo original:
A originalidade que percebemos numa obra literária, ou seja, sua marca própria, não é outra coisa senão o gênio criador que levou um escritor a escolher um assunto, modificar uma técnica, etc., nas suas relações complicadas e variáveis com a tradição, com as influencias especificas que agiram sobre ele e com o gosto de sua época. É muito importante considerar com algum cuidado as relações entre os dois elementos da originalidade relativa: o esforço criador e o condicionamento da época (NITRINI, 2000, p.141)
Na concepção de Valéry, trazida por Nitrini (2000) em Literatura
comparada teoria e crítica a originalidade é uma forma de influência. Um autor
original é aquele que consegue pegar as influências de vários outros autores e
transforma-las em algo totalmente diferente. Segundo Valéry em Carta sobre
Mallarmé “Nada mais original, nada mais próprio do que nutrir-se dos outros.
Mas é preciso digeri-los. O leão é feito de carneiro assimilado” (NITRINI, 2000.
p.134 apud VALÉRY, 1960. p.478).
Nessa percepção, ser influenciado por outros é comumente aceitável,
mas é necessário aflorar sentidos novos a cada obra desenvolvida. Para
Carvalhal (2006), a escrita literária é uma reescrita interminável que pode
desenvolver diversos significados, que são originados pelo contexto social de
cada produtor do campo da literatura.
INTERTEXTUALIDADE LITERÁRIA
É necessário afirmar também que a intertextualidade ocorre entre as
obras literárias tornando-se um aspecto fundamental logo que um texto dialoga
com outro. Ou seja, o intertexto é a representação de duas vozes e o
agrupamento de duas ideias em uma escrita literária, acrescenta Carvalhal
(2007).
Nesse sentido, a intertextualidade ocorre de maneira significativa ao se
relacionar com outros materiais e outros textos. Os escritos literários em si
permanecem manuseados por meio da história e da sociedade quando
ultrapassam as barreiras nacionais (NITRINI, 2000). Desse modo, a
comunicação entre textos se tornam imprescindível para atuação da literatura
comparada.
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Basta acreditar que o texto é uma réplica de outro e que a linguagem
poética é um diálogo entre dois textos. Dessa forma, ocorre o intertexto
incorporado por um diferente texto que se torna outro referencial materializado.
A partir disso, é possível observar o modo como que esse material se
apropria de outros materiais linguísticos (NITRINI, 2000). Qualquer escrito
literário pode ser analisado quando comparado pelas suas formas e
propriedades linguísticas. Para Carvalhal (2007), trata-se de entender como a
intertextualidade é explorada nesse segundo momento como uma “invenção” de
sentidos.
A ligação desenvolvida pela obra através da intertextualidade dá lugar a
poética da palavra libertando-se dos elementos semânticos gramaticais. Ao que
se refere isso, a conectividade gerada por duas superfícies textuais estabelece
ligação entre escritor e leitor que é definida pela palavra literária que busca a
significação de sentidos na ordem poética. Nitrini (2000) acrescenta como
ambivalência literária já que há a diversidade de significados entre a recriação
desses novos textos.
UTOPIA E DISTOPIA
Com o início do capitalismo industrial no fim do século XVII e no início do
século XIX surgiram os pensamentos utópicos, entretanto, o termo Utopia
apareceu na obra de Thomas More em 1516:
Enquanto ideal, a utopia possuiu seu momento mais prolífico no início do capitalismo industrial – fins do século XVIII e início do século XIX – por mais que as raízes do pensamento utópico ou do gênero literário utopia tenham surgido bem antes, em 1516, mais exatamente com a Utopia, de Thomas More. Se More e seus contemporâneos utopistas – como o italiano Tommaso Campanella, autor de La città del Sole – tinham como fonte de inspiração de seus escritos os relatos de viagem dos colonizadores que se aventuraram pelas Américas e pelas Índias; (PONE, 2014, p. 223).
As ideias utópicas segundo Pone (2014) envolviam a consolidação de um
pensamento ideal de nacionalidade entre países e estados. Podemos então
entender que a utopia é como um lugar em que tudo funciona perfeitamente e
que a realidade é melhor do que a que vivemos. Ou seja, é a construção de um
lugar ideal e imaginário que os criadores literários inferiram em suas obras
desconstruindo os sentidos providos pelo senso comum (BECKER, 2017).
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Nesse sentido, os enredos voltados para os temas utópicos envolvem uma
sociedade organizada e em harmonia social.
Ricardo Azevedo (2016) em seu artigo Duas palavras sobre ficção, utopia
e literatura afirma que a utopia é extremamente importante tanto na literatura
quanto na vida real, pois é a partir dela que buscamos um mundo ideal, o autor
cita ainda como exemplo os transplantes de órgãos, engenharia genética e
avanços a respeito do DNA e da nanotecnologia, da informática, da internet e
dos celulares, que para pessoas que viveram no século XVII isso seria visto
como utópico ou impossível.
Posteriormente surgiu a palavra Distopia com o objetivo de nos explicar
uma inversão de valores, ou seja, enquanto uma realidade utópica tudo acontece
de maneira perfeita, na distopia isso não acontece como apresenta Pone (2014):
A visão distópica é bem mais condizente com o momento atual e diz bem mais sobre a forma como o desequilíbrio das forças produtivas, hoje, significam a quebra da relação dialética entre tecnologia e ser humano, estando este em movimento descendente, enquanto aquela só evolui (PONE, 2014, p. 226).
Os temas distópicos apresentam os conflitos de um tempo e
potencializam problemas confrontados pela sociedade (BECKER, 2017). Tanto
a Distopia quanto a Utopia demostram ao leitor um mundo ficcional, entretanto,
opostos quanto aos aspectos positivos de negativos de uma civilização.
METODOLOGIA
Seguindo os estudos comparativos faremos uma análise estre duas
obras de diferentes estéticas para explorar os aspectos intertextuais promovidos
pela literatura comparada. Nessa presente pesquisa utilizaremos como objeto de
análise a obra Brave new world do escritor Inglês Aldous Huxley publicada em
1932 (versão em língua portuguesa: Admirável mundo novo). Assim como, a
música Admirável Chip novo lançada no ano de 2003 pela cantora e compositora
brasileira Priscilla Novaes Leone popularmente conhecida como “Pitty”.
Ademais, destacaremos os traços opostos e semelhantes que envolvem o
enredo desses dois trabalhos.
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LITERATURA COMPARADA: ADMIRÁVEL MUNDO NOVO VS ADMIRÁVEL
CHIP NOVO
A obra Admirável mundo novo escrita pelo escritor Aldous Huxley
publicada em 1932 apresenta uma crítica social moderna associada ao
capitalismo e aos avanços tecnológicos sobre a humanidade daquela época. A
obra busca mostrar um futuro distópico e extremista sobre a sociedade em
questão. Sociedade esta que desde o nascimento é controlada por cientistas que
pretendem desenvolver seres humanos perfeitos condicionados pelos seus
comandos. Tanto as crianças como os adultos são manipulados para obedecer
a essas ordens, nesse sentido, religião, Deus, sentimentos ou até mesmo família
não existem dentro dessa inversão de valores.
O escritor Aldous Huxley também se utiliza de um dos maiores escritores
de todos os tempos conhecido como Shakespeare, com o intuito fomentar as
questões apresentadas na obra Admirável mundo novo.
Já a música Admirável Chip novo criada em 2003 pela cantora e
compositora brasileira conhecida como Pitty (Priscilla Novaes Leone) apresenta
uma crítica contra os líderes governamentais do país do Brasil. Condizendo que
a população é regida pelas ordens superiores e que cada indivíduo é submetido
a corresponder e aceitar o atual governo. Além de relatar que as pessoas dessa
época agem como se fossem robôs e que são manipuladas o tempo todo por um
governo capitalista.
Essas duas obras fazem intertexto quanto aos assuntos relacionadas a
sociedade da época e fazem menção aos poderes governamentais com os quais
sofrem a população pela manipulação. De fato, Admirável Chip novo música da
cantora Pitty foi gerada a partir da obra de Huxley. O que difere esses trabalhos
são as diferentes perspectivas manuseadas pela cultura vivenciada pela
musicista e pelo o escritor em seu ano de publicação.
LITERATURA COMPARADA: UM INTERTEXTO DISTÓPICO
Na obra de Huxley Admirável mundo novo apresenta questionamentos
sobre a manipulação que a população sofre quanto ao poder governamental:
“Não há civilização sem estabilidade social. Não há estabilidade social sem
estabilidade individual” (HUXLEY, 2001, p. 34). Ou seja, os líderes do estado
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pretendem estabelecer um modelo social e impor este sobre as pessoas para
que se tornem uma humanidade idealizada.
O que acontece também em Admirável Chip novo, a cantora desenvolve
críticas que abordam o atual sistema organizado pelo governo no ano de 2003:
“Mas lá vêm eles novamente, eu sei o que vão fazer, reinstalar o sistema”
(LEONE, 2003). As obras são permeadas pela história e pela sociedade em
questão, neste caso as obras escolhidas estabelecem ligações sociológicas,
condiz Nitrini (2000).
A música representa a dominação em que a população é submetida
por classes superiores. Aliás, se torna perceptível pelo próprio título do romance
comparado ao da compositora que trocou a palavra “mundo” pela palavra “Chip”.
Os trabalhos em si apropriam-se de fatores linguísticos que promovem a
intertextualidade (NITRINI, 2000). A palavra “Chip” representa a indução de
fazeres conduzidos por este pequeno material tecnológico com o objetivo de
cumprir funções desejadas pelo controlador.
No romance este aparato é demostrado pela criação humana dentro de
laboratórios pois seria de mais fácil manipulação:
Vou começar pelo começo - disse o D.I.C., e os estudantes mais aplicados anotaram sua intenção no caderno: Começar pelo começo. - Isto - agitou a mão – são as incubadoras. - E, abrindo uma porta de proteção térmica, mostrou-lhes porta-tubos 10 empilhados uns sobre os outros e cheios de tubos de ensaio numerados. — A provisão de óvulos para a semana. Mantidos à temperatura do sangue; ao passo que os gametas masculinos - e abriu outra porta - devem ser guardados a 35°, em vez de 37°. A temperatura normal do sangue esteriliza (HUXLEY, 2001 p. 10).
Na música a representação de condicionamento humano é a do sujeito
assimilado ao robô (obra tecnologicamente desenvolvida por mãos humanas). A
crítica viabilizada pela compositora configura uma população conduzida por
outros como se fossem máquinas.
Nesse quesito, cria-se dois sentidos para o mesmo assunto
representativos que se tornam ambivalentes (NITRINI, 2000), aos quais
confundem-se o ser vivente com o ser manipulado. Pois, demostra uma
sociedade remida por ordens e que cada indivíduo é categorizado como um robô,
já que apenas recebem ordens para depois cumpri-las:
Pane no sistema, alguém me desconfigurou Aonde estão meus olhos de robô?
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 58
Eu não sabia, eu não tinha percebido Eu sempre achei que era vivo (LEONE, 2003).
É perceptível notar também que os comandos dentro de uma
humanidade capitalista são configurados por decretos. Como por exemplo a
exploração de condicionamento aos sentimentos que são deixados de lado pois
o que importa é a nova caracterização humana: “É o segredo da felicidade e da
virtude: amarmos o que somos obrigados a fazer. Tal é a finalidade de todo o
condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem
escapar” (HUXLEY, 2001 p. 35).
Na letra da canção essa denotação é permeada pelos diálogos
oferecidos pela cantora durante a música: “Não, senhor, sim, senhor; Não,
senhor, sim, senhor” (LEONE, 2003). Não obstante, no romance de Huxley há
novamente a emancipação de poderes vindos dos superiores quando esses
obrigam a sociedade em questão a seguir aquilo que se é sugerido:
Até que finalmente, o espírito da criança seja essas coisas sugeridas, e que a soma dessas sugestões seja o espírito da criança. E não somente o espírito da criança. Mas também o adulto, para toda a vida. O espírito que julga, e deseja, e decide, constituído por essas coisas sugeridas. Mas todas essas coisas sugeridas são aquelas que nós sugerimos, Nós! (HUXLEY, 2001 p. 49).
Isso é decorrente também na letra da canção “Pense, fale, compre,
beba; leia, vote, não se esqueça” que faz menção a governo e suas exigências.
As determinações são mantidas como se fossem um estilo de vida ideal: “O
mundo agora é estável. As pessoas são felizes, tem o que desejam e nunca
desejam o que não podem ter”, em Admirável mundo novo essa vida desejada
é perfeita socialmente e promoveria a felicidades de todos (HUXLEY, 2001 p.
256). De alguma forma essas exigências deveriam ser cumpridas tanta pela
visão governamental de Leone (2003) ou pela visão estatal do escritor Huxley
(2001).
No entanto, as emancipações sociais foram questionadas dentro da obra
Huxley (2001), por meio da personagem Selvagem, que por sua vez contrariou
a formas de comandos estabelecidas pelos superiores:
O Selvagem sacudiu a cabeça. - Tudo isso me parece absolutamente horrível. - Sem dúvida. A felicidade real sempre parece bastante sórdida em comparação com as supercompensações do sofrimento. E, por certo, a estabilidade não é, nem de longe, tão espetacular como a
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instabilidade. E o fato de se estar satisfeito nada tem da fascinação de uma boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de um combate contra a tentação, ou de uma derrota fatal sob os golpes da paixão ou da dúvida. A felicidade nunca é grandiosa. - Pode ser - disse o Selvagem, depois de um silêncio. - Mas será preciso chegar ao horror desses gêmeos? - Passou a mão pelos olhos, como se procurasse apagar da lembrança a imagem daquelas longas filas de anões idênticos nas mesas de montagem, daquelas manadas de gêmeos enfileirados na entrada da estação do monotrilho de Brentford, daquelas larvas humanas que rodeavam o leito de morte de Linda, da fisionomia interminavelmente repetida de seus agressores. - Horríveis! (HUXLEY, 2001 p. 127).
Embora, devemos reconhecer também que as ações permeadas pelo
romance sobre os personagens são derivadas pelo o capitalismo, que por sua
vez é um dos traços de semelhança entre as duas obras. Os aparatos
relacionados pelo comércio também são atribuídos por meio do livro: “É
impossível obter alguma coisa por nada. A felicidade tem de ser paga” (HUXLEY,
2001 p. 265). Para Leone (2003) ler, comprar, votar são verbos determinados
como ordens e que dão suporte ao regime de poder emanado pelo dinheiro.
Mediante a isso não há restrição ao poder, mas sim ao condicionamento
gerados pelos favores que a população deve dar aos líderes governamentais,
pois “Nada é orgânico, é tudo programado” (LEONE, 2003). Cada ser é ordenado
pela ambição provida pelo capitalismo em que os sentimentos permanecem em
segunda opção pois deveras atrapalham a dominação sobre estes.
Na obra Admirável mundo novo, as fabulações de emoções traduzem a
busca por esta liberdade, que neste caso é representado pela personagem
Selvagem: “quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autentico, quero a
liberdade, quero a bondade” (HUXLEY, 2001 p. 278). No entanto, isso não pode
ocorrer pois essa busca pela libertação deixaria a civilização instável, como de
fato é demostrado contra as conspirações da existência de Deus:
Diga, antes, que a culpa é da civilização. Deus não é compatível com as máquinas, a medicina científica e a felicidade universal. É preciso escolher. Nossa civilização escolheu as máquinas, a medicina e a felicidade. Eis por que é preciso que eu guarde esses livros no cofre. Eles são indecentes. As pessoas ficariam escandalizadas se... O Selvagem interrompeu-o. - Mas não é natural sentir que há um Deus? - O senhor poderia igualmente perguntar se é natural fechar as calças com fecho ecler - retrucou o Administrador sarcasticamente (HUXLEY, 2001 p. 134).
Compreendemos que a obra de Huxley apresenta uma visão distópica
da realidade quando se refere a religião, aos sentimentos, os relacionamentos
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 60
sociais, ou seja, os valores humanos. O enredo é permeado por uma história que
reflete os conflitos existentes dentro da sociedade da época como Becker (2017)
assim define as questões distopicas.
O autor nos apresenta uma sociedade em que seus indivíduos são
separados por castas “Ainda assim - insistiu o Selvagem - é natural crer em
Deus quando se está só, completamente só, à noite, pensando na morte...”
(HUXLEY, 2001, p. 134). Nesse caso os diálogos entre esses são
menosprezados por questões de poderio.
Isso ocorre também na letra da música de Leone as classes sociais que
são inferiores e devem prestígio aos seus comandantes. Grande parte da
população sofre por não ser ouvida, assim contentando-se com o poder
emanado pelo governo. O que demostra ser a canção uma distopia realizada
quando há as inversões de valores. Já que que automaticamente à ficção se
torna real na cultura da musicista:
Pense, fale, compre, beba Leia, vote, não se esqueça Use, seja, ouça, diga Tenha, more, gaste, viva Pense, fale, compre, beba Leia, vote, não se esqueça Use, seja, ouça, diga Não, senhor, sim, senhor Não, senhor, sim, senhor! (LEONE, 2003).
Portanto, temos duas sociedades em que todos os valores são
distorcidos, e os direitos individuais não são levados em consideração já que
ocorre uma espécie de “ditadura” a qual os indivíduos são obrigados a viver.
Automaticamente a população se prende a ideias de outros e que geram dúvidas
sobre a própria existência como ocorre na obra de Huxley:
Não, o verdadeiro problema é este: como é que não posso; ou antes, pois sei perfeitamente por que é que não posso, o que eu sentiria se pudesse, se fosse livre, se não estivesse escravizado pelo meu condicionamento? (HUXLEY, 2001 p. 115)
De fato, as emoções de cada indivíduo são organizadas segundo os
aparatos capitalistas que são demostrados por uma sociedade angustiada. Em
que não há liberdade de expressão e que também é representada na canção “E
eu achando que tinha me libertado” fortalecendo as dores vividas por cada
civilização (LEONE, 2003).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 61
Não obstante, a ficção social se torna grotesca por expor exageros quanto
aos sentimentos humanos pois não há estabilidade nos pensamentos de cada
um como seres existentes. Na obra Huxley fica nítido entender que só haverá
felicidade em um mundo em que as pessoas tenha um modelo ideal de
percepção.
Aliás, para os idealistas da obra de Huxley uma vida bem-sucedida
contrapõe as valorizações humanas e que quando isso acontecer a humanidade
se tornará estável. Pois, deveras como cita Huxley (2001) o mundo de Admirável
mundo novo não é como Otelo obra de Shakespeare em que tudo parece estar
estável, ou seja, a estabilidade está ligada as ações instáveis segundo a fala dos
Administradores:
Porque o nosso mundo não é o mesmo mundo de Otelo. Não se pode fazer um calhambeque sem aço, e não se pode fazer uma tragédia sem instabilidade social. O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, tem o que desejam e nunca desejam o que não podem ter (HUXLEY, 2001 p.256).
E que segundo o intertexto com a obra Otelo de Shakespeare as
condições sociais que as personagens da obra de Huxley viviam não
alcançariam o mundo idealizado de um dos maiores escritores universais: “Mas
esse é o preço que temos de pagar pela estabilidade. É preciso escolher entre a
felicidade e aquilo que antigamente se chamava a grande arte. Nós sacrificamos
a grande arte [...]” (HUXLEY, 2001 p. 126/127).
Considerando isso, o termo estável não é difundido quando valorizamos
a crítica emanada pela música de Leone. Em que esta demostra uma sociedade
inconformada com a manipulação política sobe seu país e que o
condicionamento governamental não contribuí com o progresso da civilização.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As obras Admirável mundo novo e Admirável Chip novo possuem um
longo distanciamento de tempo de quase um século, no entanto, interligam-se
através da temática. Já que fazem menção a semelhantes situações vividas por
essas duas divergentes sociedades em questão.
É notável que as perspectivas fomentadas pelas duas obras discorrem
sobre os mesmos conflitos em ambas civilizações. Aldous Huxley propôs uma
sociedade moderna angustiada com os avanços sociológicos que manipulavam
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 62
o âmbito social. Nesse momento, a população se via condicionada pelos
superiores em função da não liberdade de seus respectivos lugares como seres
humanos.
Assim como na canção Leone esclarece sua visão sobre aquela
determinada sociedade naquele determinando momento. Dessa forma,
contrariando os poderes governamentais e ressaltando a submissão da
população quanto aos comandos de seus superiores.
Por esse viés, a literatura comparada permitiu que os fatos que
interligavam ambas obras aparecessem com o auxílio da intertextualidade
literária. Sendo assim, foi possível condecorar os aspectos relevantes na
comparação entre os dois materiais da literatura e que de certa forma podem
contribuir com os estudos da disciplina de literatura comparada.
REFERÊNCIAS
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CARVALHAL, T. F. Literatura Comparada. São Paulo: Editora Ática, 2007.
BASSNETT, Susan. Comparative Literature: A Critical Introduction. Oxford UK & Cambridge USA: Blackwell Publishers, 1993.
BECKER, Caroline Valada. Inscrições distópicas no romance português do século XXI. Porto alegre: Programa de Pós-graduação em Letras, 2017.
GYARD, Marius François. Objeto e Método da Literatura comparada. IN: COUTINHO, E. F. (org) Literatura Comparada: Textos fundadores. Rio de Janeiro: Roco, 1994.
HUXLEY, A. Admirável mundo novo. Tradução Lino Vallandro e Vidal Serrano. São Paulo: Globo, 2001.
LEONE, Larissa. Admirável Chip Novo. Deckdisc, 2003. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/pitty/admiravel-chip-novo/>. Acesso em: 03 de setembro de 2018.
MORAIS, Irany Novah; AMATO, Alexandre Campos Moraes. Metodologia da pesquisa científica. São Paulo: Editora Roca LTD, 2007.
NITRINI, S. Literatura Comparada: Teoria e critica, (2° ed.). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 63
PONE, P. F. M. O momento histórico das distopias (uma leitura de The Handmaid’s tale, de Margaret Atwood, e Never let me go, de Kazuo Ishiguro, através do conceito de forças produtivas). Revista Virtual de Letras, 2014
REMAK, Henry H. Literatura comparada: definição e função. IN: COUTINHO, E. F. (org) Literatura Comparada: Textos fundadores. Rio de Janeiro: Roco, 1994.
WELLEK, René. A crise da Literatura Comparada. IN: COUTINHO, E. F. (org) Literatura Comparada: Textos fundadores. Rio de Janeiro.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 64
A importância da compreensão da intertextualidade na música “Além do
espelho”, de João Nogueira
The importance of the understanding of intertextuality in the song “Além do
Espelho”, by João Nogueira
Rafael Augusto Moraes Monteiro (UENP/CCP – G)
Lívia Maria Turra Bassetto (UENP/CCP – PQ)
RESUMO: Este trabalho tem como principal objetivo analisar a intertextualidade entre as obras “Espelho” e “Além do espelho”, de João Nogueira, observando como essa relação entre texto e intertexto contribui para a compreensão dos sentidos construídos no texto, seja ele verbal, não-verbal ou multimodal. A metodologia utilizada foi baseada na visão da Linguística Textual, tendo como alicerce os conceitos de linguistas renomados como Beaugrande & Dressler (1983), Koch (1997; 2009), Bentes & Leite (2010), entre outros. Nessa perspectiva, a intertextualidade é conceituada como uma influência de enunciados já preexistentes, sendo eles proferidos através da referência direta ou indireta, explícita ou implícita, que se correlacionam com outros intertextos, colaborando com novas interpretações das premissas, favorecendo diferentes sentidos para o texto. Considerando tal aparato teórico, este trabalho contempla a intertextualidade, o conhecimento prévio e a contextualização como essenciais para a melhor compreensão do texto e sua relação com o intertexto. No caso do corpus utilizado para a realização deste trabalho, se o leitor não tiver uma instrução preliminar de interpretação da música “Além do Espelho”, de João Nogueira, sua compreensão se torna restrita somente às palavras/ àquele texto, não conseguindo estabelecer a conexão intertextual e contextual que há com “Espelho”, do mesmo autor, o que prejudicaria a compreensão de referências intertextuais das canções que abordam o mesmo tema e ritmo. PALAVRAS-CHAVE: Linguística textual. Intertextualidade. Música.
INTRODUÇÃO
A linguística textual teve sua eclosão na Europa, em resposta ao
desconforto das teorias utilizadas nas análises de textos da época, visando
primeiramente o estudo dos mecanismos interfrásticos que são parte do sistema
gramatical da língua, conforme destaca Koch (2009).
Sua progressão foi de forma heterogênea, como cita Bentes (2006), tal
que houve três fases independentes: análise interfrásticas (ligações de frases
coerentes para formar um texto, como exemplo as metarregras de Michael
Charolles), gramática de texto (verificando a legitimidade daquele “amontoado
de frase” ser um texto, observando os recursos linguísticos utilizados e
diferenciando-os em suas características, fornecendo melhor base para o estudo
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 65
do texto e da conversação) e a teoria do texto (indo além da abordagem sintático-
semântica, dando alusão à comunicação e interação humana – os textos deixam
de ser vistos como produtos acabados e passam a ser elementos constitutivos
de uma atividade complexa conforme afirma Heinemann (apud KOCH, 2009).
Portanto, partindo de uma elucidação meramente superficial, ao “final”, temos
uma disciplina com forte tendência sócio-cognitivista (KOCH, 2002),
instaurando-se uma nova concepção de texto, contexto e textualidade.
Ou seja, anteriormente, as análises realizadas pela Linguística Textual
limitavam-se ao nível da frase, porém, com o desenvolvimento da área, esta
passou a olhar para o texto numa perspectiva interacional, visto que o uso da
língua se dá na interação social, em um determinado contexto, envolvendo
sujeitos que se valem da língua para agir e interagir na sociedade. De acordo
com Koch (2004, p. 11):
A Linguística Textual toma, pois como objeto particular de investigação não mais a palavra ou a frase isolada, mas o texto, considerado a unidade básica de manifestação da linguagem, visto que o homem se comunica por meio de textos e que existem diversos fenômenos linguísticos que só podem ser explicados no interior do texto. O texto é muito mais que a simples soma das frases (e palavras) que o compõem: a diferença entre frase e texto não é meramente de ordem quantitativa; é sim, de ordem qualitativa. (KOCH, 2004, p. 11)
Assim, passa-se a abordar também a definição de língua e texto na
perspectiva sociocognitivo-interacionista, definindo-os a partir do envolvimento
dos conhecimentos (cognição) linguísticos, de mundo e interlocucional, ou seja,
o texto e a língua são trabalhados como formas de interação social,
considerando-se fatores sociais, culturais e históricos. O texto, portanto, é a
materialização linguística, um ato comunicacional por meio do qual os sujeitos
interagem com outros e com o mundo. Diante desse olhar sobre o texto, a análise
textual vai além das questões estruturais da língua, mas envolve também
aspectos semânticos, lexicais, pragmáticos.
Intrínsecos às perspectivas citadas, a Linguística Textual passa a
considerar como elemento relevante de seus estudos a textualidade, como um
dos principais fatores de entendimento do texto. A esse respeito, Beaugrande &
Dressler (1983) destaca como elementos fundamentais os fatores de
textualidade: coesão, coerência, situacionalidade, informatividade,
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 66
intencionalidade, aceitabilidade e intertextualidade, estando as duas primeiras
mais relacionadas ao cotexto e as demais, ao contexto.
Embora todos os fatores de textualidade sejam importantes para a análise
textual, neste trabalho, destacaremos a intertextualidade, foco da pesquisa.
INTERTEXTUALIDADE
Dentre os sete critérios estabelecidos por Beaugrande & Dressler (1983)
– coesão, coerência, situcionalidade, informatividade, intertextualidade,
intencionalidade e aceitabilidade –, este trabalho tem como ênfase a
intertextualidade em sentido amplo, restrito (implícito e explícito), temático e
estilístico, na perspectiva apresentada por Koch et al. (2008).
Para se compreender melhor o conceito de intertextualidade, é preciso
recuperar algumas definições de estudiosos da Linguística Textual. Koch e
Travaglia (1995), ao tratar desse fator de textualidade, destacam:
Conforme Beaugrande e Dressler, a intertextualidade compreende as diversas maneiras pelas quais a produção e recepção de dado texto depende do conhecimento de outros textos por parte dos interlocutores, isto é, diz respeito aos fatores que tornam a utilização de um texto dependente de um ou mais textos previamente existentes. (KOCH; TRAVAGLIA, 1995, p. 88).
Ou seja, para melhor compreender um texto no qual a intertextualidade
foi empregada, é necessário que se recupere o texto que lhe serviu de base, de
modo que, assim, se possa estabelecer relações de sentido entre eles.
A respeito da intertextualidade em sentido amplo, considera-se todo
intertexto um texto, sendo ele um componente decisivo das condições de
produção, já que “um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas
constrói-se através de um já-dito em relação ao qual toma posição”
(MAINGUENEAU, 1976, apud KOCH, 1997), ou seja, nenhum texto surge de
forma espontânea e, sim, como fruto de uma miscelânea e transformação de
intertextos.
Já sobre a intertextualidade em sentido restrito, Koch et al. (2008) definem
como a relação de um texto com outros textos já escritos, podendo-a ter caráter
explícito, quando há, de forma clara a citação da referência, ou implícito, quando
esta se dá de forma que a referência ocorra sem citação, ou seja, este recurso
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 67
força o leitor a retomar conceitos na memória para construir o sentido do texto,
como ocorre também com as paráfrases. Tanto a intertextualidade explícita
quanto a implícita são, segundo Koch e Travaglia (1995), de suma importância
para a construção da coerência textual.
A intertextualidade estilística ocorre quando o autor parodia, imita ou faz
alusão a certo intertexto, ou seja, reinventa um texto pré-existente, utilizando de
uma afirmação prévia. Koch, Bentes e Cavalcante (2008) caracterizam este tipo
de intertextualidade como stricto sensu, isto é, quando o autor recorre e elucida
a um intertexto já escrito.
Quanto à intertextualidade temática, esta ocorre quando há o uso de
termos concisos e marcantes de gêneros de uma mesma esfera, sendo,
geralmente, o fator determinante o vocabulário utilizado. As autoras, já citadas
previamente, definem como intertextualidade temática, quando dois ou mais
textos mantêm diálogos entre si, na forma de partilhar um mesmo tema. Citam-
se, como exemplo, os diferentes textos encontrados na esfera jornalística.
METODOLOGIA
Justifica-se a utilização das músicas “Espelho” e “Além do Espelho”, de
João Nogueira, devido à notória presença da intertextualidade, de modo que o
autor dialoga com seu texto, recuperando-o em seu novo texto, o que leva com
que o leitor resgate, muitas vezes, o conhecimento de mundo e o conhecimento
das próprias autorias do compositor.
Para análise desses textos, este trabalho tem como amparo a Linguística
Textual, com definições majoritariamente elaboradas por autores como Koch
(1997; 2009) e Bentes & Leite (2010), a fim de elaborar uma análise das canções
e incentivar o leitor a sempre buscar informações extratextuais, e não se prender
somente ao que está escrito superficialmente.
Portanto, este trabalho é fruto de uma pesquisa qualitativa, que, por meio
de interpretações e análises textuais, chegou-se à presente conclusão, na
tentativa de esclarecer, ao máximo, todos os detalhes do processo estudado.
ANÁLISE DO CORPUS
João Nogueira (1941-2000) foi um cantor e compositor brasileiro que ficou
famoso principalmente pela sua voz sui generis, ou seja, totalmente singular e
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única – uma peculiaridade da família Nogueira –, tendo em sua carreira diversas
composições, como a música “Espelho”, lançada em 1977. A letra desta canção
pode ser considerada como autobiográfica e se constitui, sumariamente, de
declarações de afeto que o compositor faz para seu progenitor, protagonista
nesta obra, podendo ser atribuída a João Batista Nogueira.
Nos primeiros versos, o autor retrata o seu nascimento “nos melhores
dias”, utilizando-se da intertextualidade para aludir ao ano de 1941, período em
que o defensor do nacionalismo, Getúlio Vargas, era presidente do Brasil – o
cantor chegou a ser considerado simpatizante com a tese ideológica, onde no
início dos anos 70 ficou famoso pela obra “Das 200 milhas pra lá” de tom
nacionalista. João retoma também sua infância, chegando a mencionar seu pai,
que além de advogado, era também instrumentista e violonista.
Nascido no subúrbio nos melhores dias Com votos da família de vida feliz Andar e pilotar um pássaro de aço Sonhava ao fim do dia ao me descer cansaço Com as fardas mais bonitas desse meu país O pai de anel no dedo e dedo na viola Sorria e parecia mesmo ser feliz
Logo mais adiante, o refrão é consignado, e nele o protagonista tem um
sentimento de nostalgia, retomando como a infância com seu pai era aprazível,
chegando a repetir “E de fazer canções como as que fez meu pai” três vezes,
para reforçar a proposição do nome da canção.
Eh, vida boa Quanto tempo faz Que felicidade! E que vontade de tocar viola de verdade E de fazer canções como as que fez meu pai (Bis)
Na terceira estrofe, é relatada a morte de João Batista Nogueira - que o
compositor perdera aos dez anos de idade - através de um eufemismo suave,
de forma estratégica, para não impactar o ouvinte de forma negativa. O músico
retoma novamente o sentimento de saudade e nostalgia, registrando o seu
sonho, que era ser jogador de futebol, mas acabou frustrando-se por uma
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 69
contusão e seu progenitor não estava lá para atenuar sua angústia (“Foi mais
uma vontade que ficou pra trás”).
Num dia de tristeza me faltou o velho E falta lhe confesso que ainda hoje faz E me abracei na bola e pensei ser um dia Um craque da pelota ao me tornar rapaz Um dia chutei mal e machuquei o dedo E sem ter mais o velho pra tirar o medo Foi mais uma vontade que ficou pra trás
Na quarta estrofe, o refrão é recitado novamente, dessa vez com
alterações, já que seu pai estava finado. João expõe sua inquietude e
melancolia, enunciando que, ainda quando criança, culpou Deus por levar seu
mentor. Novamente, no último verso do refrão, o compositor repete, dessa vez,
“Troquei de mal com Deus por me levar meu pai” três vezes, assim como na
primeira ocorrência do refrão.
Eh, vida à toa Vai no tempo vai E eu sem ter maldade Na inocência de criança de tão pouca idade Troquei de mal com Deus por me levar meu pai (Bis)
Nesta penúltima estrofe, João já adulto e independente, de forma
inconsciente se personifica em seu pai: se torna músico, tem filhos e pretende
que eles se tornem o espelho do espelho que ele foi.
E assim crescendo eu fui me criando sozinho Aprendendo na rua, na escola e no lar Um dia eu me tornei o bambambã da esquina Em toda brincadeira, em briga, em namorar Até que um dia eu tive que largar o estudo E trabalhar na rua sustentando tudo Assim sem perceber eu era adulto já
Nos versos finais, é retomado o refrão, novamente de forma adaptada.
João reconhece que a vida passou rápida e a saudade do pai perdurou, e
confessa que seu maior medo é se um dia ele se frustrar – “Eu temo se um dia
me machuca o verso”, ou seja, ele teme que seus filhos não sigam os caminhos
do pai. “E o meu medo maior é o espelho se quebrar” é a última frase da música,
dando ênfase mais uma vez no propósito contextual da música.
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Eh, vida voa Vai no tempo, vai Ai, mas que saudade Mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade E orgulho de seu filho ser igual seu pai Pois me beijaram a boca e me tornei poeta Mas tão habituado com o adverso Eu temo se um dia me machuca o verso E o meu medo maior é o espelho se quebrar (Bis)
Em 1992, João Nogueira lança a música “Além do Espelho”, já nos anos
finais de sua carreira. Esta canção, em suma, tem como protagonista João
Nogueira na posição de pai, tendo como alvo de seus versos, os filhos. O nome
da música se inter-relaciona com a anterior, podendo-se caracterizar através da
intertextualidade estilística (KOCH et al., 2008), já que ambas se estabelecem
semelhanças logo nos nomes das canções, e mais adiante, no contexto.
Também é possível constatar a presença da intertextualidade temática, já
que o vocabulário é bastante semelhante e muitas vezes se inferem o mesmo
significado, como é o caso do vocábulo “espelho” presente em ambas, sendo o
mesmo tema e contexto. Verifica-se também a afinidade rítmica entre “Espelho”
(1977) e “Além do Espelho” (1992), sendo ambas tocadas em “tom G”, e como
característico do samba-canção de Nogueira, é sempre estendida a última
palavra das frases contidas nos versos.
Nos primeiros versos de “Além do Espelho” (1992), João retoma o
falecimento de seu pai, por meio de versos maviosos para suavizar a expressão
“morte”, Inter textualizando-se de forma restrita e implícita com a terceira estrofe
de “Espelho” – em que foi utilizada a figura de linguagem eufemismo. No trecho
“Assim como meu olho dá conselho”, o compositor personifica a si próprio no
órgão, tornando-se reflexo e exemplo do que seu pai foi.
Quando eu olho o meu olho além do espelho Tem alguém que me olha e não sou eu Vive dentro do meu olho vermelho É o olhar de meu pai que já morreu O meu olho parece um aparelho De quem sempre me olhou e protegeu Assim como meu olho dá conselho Quando eu olho no olhar de um filho meu
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 71
Na segunda estrofe, é consignado o refrão, assim como na música
“Espelho”, Inter textualizando-se novamente de forma estilística e implícita,
porém dessa vez o refrão permanece o mesmo até o final da canção. Nesses
versos, João enfatiza que a vida é uma missão, ou seja, existe uma obrigação a
ser cumprida: passar os valores e a honestidade para os filhos – “Pois quando o
espelho é bom / Ninguém jamais morreu”, ou seja, quando o exemplo bom é
pregresso, ninguém se desvirtua.
A vida é mesmo uma missão A morte uma ilusão Só sabe quem viveu Pois quando o espelho é bom Ninguém jamais morreu
Na terceira estrofe, o compositor vale-se da intertextualidade novamente
com os versos da terceira estrofe da música “Espelho”, retomando o sentimento
de saudade e nostalgia e utilizando-se do eufemismo para evitar impactar de
forma negativa o ouvinte. Nesses versos, João retoma a lembrança que tem de
seu pai quando ele olha para seu filho – percebe que seu filho está sendo o
espelho do espelho que ele é, e de forma indireta João Nogueira Batista ainda
“vive”, através dos princípios morais repassados de geração em geração.
Sempre que um filho meu me dá um beijo Sei que o amor de meu pai não se perdeu Só de olhar seu olhar sei seu desejo Assim como meu pai sabia o meu Mas meu pai foi-se embora no cortejo E eu no espelho chorei porque doeu Só que vendo meu filho agora eu vejo Ele é o espelho do espelho que sou eu A vida é mesmo uma missão A morte uma ilusão Só sabe quem viveu Pois quando o espelho é bom Ninguém jamais morreu
Nessa estrofe, o compositor exprime que todas as pessoas carregam
algum costume ou valor consigo proveniente de seu antecessor. Posteriormente
retoma o pesar e a saudade que tem de seu pai, afirmando que ele era um molde
a ser seguido, e que fez um bom “trabalho”, e que, dessa vez, João quer que
seus filhos sigam seu exemplo – dando alusão novamente à música “Espelho”.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 72
Toda imagem no espelho refletida Tem mil faces que o tempo ali prendeu Todos têm qualquer coisa repetida Um pedaço de quem nos concebeu A missão de meu pai já foi cumprida Vou cumprir a missão que Deus me deu Se meu pai foi o espelho em minha vida Quero ser pro meu filho espelho seu A vida é sempre uma missão A morte uma ilusão Só sabe quem viveu Pois quando o espelho é bom Ninguém jamais morreu
Por fim, o músico repete o estribilho “E o meu medo maior é o espelho se
quebrar” quatro vezes - finalizando com a mesma frase que terminou a canção
“Espelho” - ou seja, seu maior medo é se frustrar e que seus filhos se desvirtuem,
tendo como intertextualidade no trecho “Eu temo se um dia me machuca o verso”
na música “Espelho”.
Portanto, conclui-se que há uma clara relação intertextual entre as
canções, que abordam o mesmo tema e retratam uma mesma mensagem: que
os filhos sigam o espelho que seus pais foram. É notória a bagagem de
sentimentos que ambas músicas conduzem, sendo através da utilização da
intertextualidade, que João consegue resgatar pensamentos e valores sublimes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Caracteriza-se como intertextualidade qualquer influência de um texto
sobre o outro, podendo ser através da referência direta ou indireta, utilizando o
texto já escrito como ponto de partida, como definem Koch et al. (2008).
Portanto, para uma melhor compreensão da música é necessário o
conhecimento prévio de “Espelho” (1977), caso contrário, a canção ficará mais
vaga, ou, pelo menos, sem a compreensão profunda de todas as suas
referências.
Através da análise qualitativa que foi feita no corpus deste trabalho,
chega-se à conclusão de que os textos estão intrinsicamente ligados, tendo
como início logo em seus títulos, em que “Espelho” é escrito com a letra
maiúscula. Mais adiante, aplicam-se as diversas teorias de intertextualidade
elaboradas por escritores como Koch, Bentes e Cavalcante, que, no decorrer
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 73
das canções, são perceptíveis. Por fim, verifica-se também a semelhança
rítmica, fundamental para o estudo.
A capacidade de retomar os intertextos torna essencial para melhor
fluidez de muitos conteúdos, por isso a importância da intertextualidade e sua
compreensão. Assim sendo, o fenômeno intertextualidade é fundamental para
compreensão textual, visto que só é capaz entender o intertexto se
relacionarmos com o contexto.
REFERÊNCIAS
BEAUGRANDE, R. A.; DRESSLER, W. U. Introduction to text linguistics. London: Longman, 1983.
BENTES, A. C. Linguística Textual. In: MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2006.
BENTES, A. C. & LEITE, M. Q (org). Linguística de texto e análise da conversação: panorama das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010.
KOCH, I. G. V. A coesão textual. 19. ed. São Paulo: Contexto, 2004.
______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Contexto, 2002.
______. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. 2.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
______. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1997.
KOCH, I. G. V., BENTES, A. C., CAVALCANTE, M. M. Intertextualidade: Diálogos Possíveis. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2008.
KOCH, I.V. & TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. São Paulo, Contexto, 1995.
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Inclusão de alunos com necessidades especiais: problemáticas em torno do
processo de ensino-aprendizagem
Inclusion of special needs students: problematic around the teaching-learning
process
Gabriela Martins Mafra (UNICENTRO - PG)
Aparecida de Fátima Martins Mafra (EFM)
RESUMO: A inclusão de alunos com necessidades especiais é uma realidade, está presente em praticamente todas as escolas do ensino fundamental, é lei (BRASIL, 1996). Todavia, ainda é preciso discutir algumas problemáticas relacionadas à educação especial para que ela não seja uma utopia. Há fatores básicos que influenciam diretamente o desenvolvimento desses alunos, dentre eles: a infraestrutura escolar, a formação profissional, o compromisso profissional e o compromisso familiar. Este trabalho objetiva discutir essas problemáticas por meio de uma análise linguística (BEZERRA; REINALDO, 2013) de dois instrumentos de geração de dados: um questionário escrito e uma entrevista oral com um professor da educação básica que atua há 12 anos na educação especial. A pesquisa é de natureza qualitativa (COHEN; MANION; MORRISON, 2007) e enquadra-se como um estudo de caso (JOHNSON, 1992). Os resultados demostram que essas problemáticas estão presentes no processo de inclusão do aluno com necessidades especiais. Constata-se com a pesquisa que esses fatores precisam ser pensados por todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem: pais, profissionais da escola e sociedade em geral. Almeja-se, assim, contribuir com pesquisas relacionas ao sentimento de pertencimento ao ambiente escolar, de alunos com necessidades especiais. PALAVRAS-CHAVE: Educação especial. Inclusão. Profissionais da educação.
INTRODUÇÃO
Este trabalho advém de estudos desenvolvidos no Programa de Pós-
graduação em Educação Especial Inclusiva, ofertado pela Faculdade São Braz.
Nele discute-se problemáticas envoltas na inclusão de alunos especiais. A
relevância desse tema está em discutir problemas reais da educação especial
(DUARTE, 2016).
O objetivo deste artigo é analisar quais são as problemáticas envolvidas no
trabalho com a educação especial inclusiva, principalmente, com alunos dos anos
iniciais do ensino fundamental.
Primeiramente, por meio de uma entrevista exploratória, elenca-se as
principais problemáticas envoltas na inclusão de alunos especiais, em seguida
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 75
realiza-se uma pesquisa bibliográfica sobre essas problemáticas e, assim,
trazem-se fundamentações que discutem esses pontos, a diante expõe-se uma
entrevista oral e um questionário escrito com as mesmas perguntas, a fim de
comparar as respostas e complementar as ideias, por fim analisa-se tanto o
questionário quanto e, principalmente, a entrevista. Nesse sentido, a metodologia
utilizada para elaborar este artigo foi um estudo de caso (JOHNSON, 1992), de
natureza qualitativa (COHEN; MANION; MORRISON, 2007).
Além desta introdução, das Considerações finais e das Referências, o
artigo está organizado em quatro partes principais. Na primeira, traz-se
documentos que tratam da educação especial inclusiva. Na segunda parte, a
partir de uma pesquisa exploratória apresenta-se problemáticas envolvidas no
trabalho com a educação especial inclusiva, na educação básica. Na terceira
parte, é exposto o contexto empírico da pesquisa, bem como seu sujeito de
pesquisa. Por fim, na quarta, e última, parte é discutido essas problemáticas por
meio de uma análise linguística (BEZERRA; REINALDO, 2013) tendo como
instrumento para a análise as entrevistas orais e escritas realizadas com o sujeito
de pesquisa.
EDUCAÇÃO ESPECIAL INCLUSIVA
Primeiramente, cabe compreender o papel da educação especial
inclusiva e quais as prescrições em relação a ela. Sabe-se que a educação
especial inclusiva é garantida pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência, lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Ela é destinada a assegurar e a
promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades
fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e
cidadania (BRASIL, 2015, art. 1).
Outra lei que rege a educação, inclusive a educação especial é a lei
9394/96 “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”. No Art. 58 assegura
que aos alunos com deficiência devem frequentar, preferencialmente, a rede
regular de ensino, com professores capacitados em condições adequadas, com
currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específica para
atender suas necessidades (BRASIL, 1996).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 76
A Declaração de Salamanca é outro documento importantíssimo. Foi
elaborada por 88 governantes de países do mundo, os quais se reuniram em
Salamanca, na Espanha, e assinaram um documento se comprometendo em
assegurar às pessoas com deficiência melhorias no acesso à educação, escolas
eficazes, combate ao preconceito, garantia de capacitação ao professor. Além
disso, muitas outras leis foram elaboradas, votadas e sancionadas para garantir
à pessoa portadora de necessidades especiais um ensino de qualidade ao ser
inserido na rede regular de ensino. Nesta perspectiva, questiona-se o que impede
que isso ocorra?, Quais mecanismos precisam ser acionados para que estas leis,
que foram citadas, e tantas outras existentes saiam do papel e possibilitem a
esses educandos um direito que já lhes pertence?
FATORES INFLUENTES NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM
Neste tópico, encontra-se uma pesquisa bibliográfica em relação a fatores
determinantes no trabalho com a educação especial inclusiva.
INFRAESTRUTURA ESCOLAR
Pensar em inclusão escolar é pensar em uma gama de transformações
que precisam acontecer em diferentes segmentos, entre eles a acessibilidade do
educando em todos os ambientes da escola. Não há inclusão se o aluno não
tiver acesso a todo espaço físico da escola. Segundo Lopes e Capellini (2015, p.
93),
A acessibilidade física consiste na remoção de barreiras de um determinado espaço para que todos tenham acesso a ele. As condições de acessibilidade física nas escolas são precárias, principalmente, quanto à presença de barreiras arquitetônicas, visto que muitas construções são antigas, construídas quando o paradigma da inclusão ainda não existia. Além disso, não se considerava a presença dos alunos com deficiência, em classes regulares.
Nesta perspectiva, pode-se entender que a inclusão não acontece de
forma completa e total, seria necessário que as escolas fossem adaptadas para
depois oferecer a inclusão. A adaptação vai desde construir rampas de acesso,
ambientes claros e arejados, banheiros adaptados ou salas completamente
escuras, entre tantas outras necessidades que um aluno incluso precise para se
sentir confortável e pertencente ao ambiente escolar.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 77
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
A formação profissional vai desde os cursos técnicos na área de ensino,
a licenciatura, a pós-graduação até os constantes cursos de aperfeiçoamento.
Segundo a lei nº 12.056, de 13 de outubro de 2009, no art. 62, em seu primeiro
inciso “a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, em regime de
colaboração, deverão promover a formação inicial, a continuada e a capacitação
dos profissionais de magistério”. Nesse sentido, pode-se observar que é dever
dos órgãos públicos assegurar a formação adequada aos profissionais da
Educação. De acordo com Lopes e Capellini (2015, p. 95),
O professor por sua vez, com esse novo quadro [de inclusão], precisa estar preparado para trabalhar, pedagogicamente, com as necessidades e diferenças dos alunos. Nesse sentido, emerge o princípio de que os professores devem trabalhar em equipe e não sozinhos. Equipe está que se caracteriza pela colaboração e cooperação, além da busca por um objetivo comum atrelado ao oferecimento de uma educação de qualidade para todos os alunos.
Infelizmente, isso não é algo comum às escolas, pois não oferecem uma
equipe multidisciplinar. O professor acaba tendo que tomar todas as decisões
relativas às aprendizagens dos alunos. O que é um problema, pois ele não
possui tempo hábil para isso, e tão pouco capacitação suficiente. Segundo a
Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994, p.9),
Para crianças com necessidades educacionais especiais uma rede contínua de apoio deveria ser providenciada, com variação desde a ajuda mínima na classe regular até programas adicionais de apoio à aprendizagem dentro da escola e expandindo, conforme necessário, à provisão de assistência dada por professores especializados e pessoal de apoio externo
.
COMPROMISSO PROFISSIONAL
Pensar em educação é pensar em compromisso, ética e
responsabilidade, tudo isso implica em tomadas de decisões. Nesse sentido,
Há que se levar em conta as escolhas do professor para ensinar e as do aluno para aprender. Essas escolhas não são espontâneas, aleatórias, mas demandam decisão, seleção de um caminho de aprendizagem, de uma metodologia de ensino, do uso de recursos didáticos pedagógicos. Da parte do aluno, essa escolha é mais limitada, pois o professor, por mais que seja aberto e acessível ao modo de aprender do aluno, não está ensinando individualmente, mas desenvolvendo um trabalho pedagógico coletivamente organizado,
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 78
que tem limites para essas diferenças (BATISTA; MANTOAN, 2006, p.7).
Dessa forma, os objetivos escolares devem estar muito claros, tanto para
os alunos quanto para todos os profissionais da escola, com metas pré-
estabelecidas, planejamentos diferenciados e capazes de atender as
necessidades educacionais do aluno incluso.
O processo de ensino e aprendizagem dos alunos é diferenciado, cada
um tem um tempo de aprendizagem, sempre temos facilidades em algumas
disciplinas e dificuldades em outras, o mesmo ocorre com o aluno incluso, ao
professor cabe ter um olhar, ética e respeito por cada aluno e por suas
particularidades.
Batista e Mantoan (2006, p.12) salientam que,
O caráter elitista, meritocrático, homogeneizador e competitivo dessas escolas oprimem o professor e o reduz a uma situação de isolamento e impotência, principalmente frente aos seus alunos com deficiência mental, pois são aqueles que mais amarram o desenvolvimento do processo escolar, em todos os seus níveis e séries. Diante disso, a saída encontrada pela maioria desses professores é desvencilhar-se desses alunos que não acompanham as turmas, encaminhados para qualquer outro lugar que supostamente entenda como ensiná-los.
Por se sentir só, nesse processo, sem equipe multidisciplinar, com
gestores que, muitas vezes, não são especializados e não compreendem o
processo de ensino e aprendizagem, o professor opta por escolher uma sala
onde não há inclusão, deixando, assim, para os professores com menor tempo
de serviço e pouca experiência o papel assumir esse trabalho. De acordo com
Sant’Ana (2005, p. 228),
Na inclusão educacional, torna-se necessário o envolvimento de todos os membros da equipe escolar no planejamento de ações e programas voltados à temática. Docentes, diretores e funcionários apresentam papéis específicos, mas precisam agir coletivamente para que a
inclusão escolar seja efetivada nas escolas.
Sant’Ana (2005) também acrescenta que é essencial que esses
profissionais continuem seu desenvolvimento profissional, que aprofundem seus
estudos tendo como objetivo uma melhoria no sistema educacional.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 79
COMPROMISSO FAMILIAR
Para a família é muito difícil internalizar que tem um filho portador de
necessidades especiais. Conscientizar a família das dificuldades dos filhos não
é tarefa fácil, mas é extremamente necessária, pois a escola precisa desta
parceria para ser bem-sucedida. Quando inconscientes os pais tendem a ser
superprotetores dificultando, muitas vezes, o processo. Dessa forma, precisa
existir uma parceria entre escola e família, pois essa relação interfere no
desenvolvimento da criança. Existem muitas informações a respeito da criança
que os professores precisam compartilhar com os pais, tais como:
medicamentos, alergias, atividades extraclasse, dentre outro.
De acordo com Silva (2015, p.14249), “a ligação da família com a escola
potencializa o processo de ensino e aprendizagem do educando, na etapa
educacional. A escola complementa as ações da família e vice-versa”.
CONTEXTO EMPÍRICO DA PESQUISA
O tipo de estudo qualitativo que esta pesquisa segue é o estudo de caso
(COHEN; MANION; MORRISON, 2007), pois ele tem por objetivo proporcionar
vivência da realidade por meio da discussão, análise e tentativa de solução de
um problema extraído da vida real, estabelecendo relação entre a teoria e a
prática. O pesquisador pode levar outros professores, leitores dos relatórios dos
estudos de caso a reflexões sobre seus próprios contextos de trabalho
(JOHNSON, 1992).
Para analisar como os fatores: infraestrutura escolar, formação
profissional, compromisso profissional e compromisso familiar influenciam na
educação especial inclusiva utilizamos dois instrumentos de coleta de dados: um
questionário escrito (cf. quadro 1) e uma entrevista oral (cerca de 18 minutos).
Ambos possuem os mesmos questionamentos, em relação às problemáticas, e
foram realizados com uma professora da rede municipal da cidade de Santa
Amélia. Traremos, adiante, o questionário escrito e trechos transcritos da
entrevista oral com marcação do período de fala.
A análise linguística, refere-se ao, “ato de descrever e explicar ou
interpretar aspectos da língua” (BEZERRA e REINALDO, 2013, p.21). As
análises linguísticas podem ser constituídas de “análises semânticas de
substantivos, verbos, adjetivos e preposições, enfatizando seus semas e suas
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 80
relações sintáticas na frase” (LOBATO et al., 1975 apud BEZERRA; REINALDO,
2013, p.22).
A professora, sujeito da pesquisa, atua desde o ano de 1993 na educação
básica, é pedagoga e especialista em Educação Especial, além disso, tem
formação em Direção supervisão e orientação educacional, Gestão e educação
ambiental, Psicopedagogia institucional e clínica. Trabalha, há 12 anos, na
educação especial. O contexto a ser analisado é a “Escola Municipal Prefeito
Francisco Da Silva Leal” - Ensino Fundamental, que atente aproximadamente
490 alunos nos períodos matutino, vespertino e noturno, localizada na cidade de
Santa Amélia.
ANÁLISE DAS PROBLEMÁTICAS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL INCLUSIVA
NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Traz-se, a seguir, um quadro com as perguntas e respostas realizadas
com a professora em estudo, a qual denominamos de A.M, optou-se por não
expor o nome do sujeito de pesquisa para protegê-lo, conforme orientam
Gonçalves, Silva e Góis, (2014).
As respostas ao questionário preservam a escrita da professora. Nesse
sentido, não houve nenhuma intervenção no dizer dela. Também se utiliza para
a análise trechos da entrevista oral, os quais sofreram pequenas supressões,
algumas exclusões de repetições para tornar mais objetivo o texto e facilitar o
entendimento da mensagem.
Quadro 1 – Fatores que influenciam no ensino-aprendizagem de alunos com necessidades especiais
Infraestrutura escolar Na sua visão, as escolas municipais que você atuou estão aptas para incluir os alunos com necessidades especiais?
As escolas não estão aptas a receber todos os alunos por diversas razões entre elas: falta de adaptação estrutural, ausência de equipe multidisciplinar, profissionais despreparados para a inclusão.
Formação profissional Na sua concepção a formação dos profissionais da educação especial inclusiva é adequada? Dê exemplos de situações que comprovam sua tese?
Não são adequados, os cursos de capacitação oferecidos pela secretaria de educação, dificilmente, são dirigidos à educação especial, quando a secretaria oferece é em outros municípios, e os professores, dificilmente, se dispõem a participar, mesmo porque são aos sábados ou à noite, dificultando assim uma formação eficaz,
Compromisso familiar Em que medida as famílias são conscientes em relação à condição especial de seus filhos? E qual o grau de comprometimento no
Com a falta da equipe multidisciplinar, os pais não recebem acompanhamento adequado, não sabendo ou não compreendendo corretamente o problema de seus filhos, sendo
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processo de ensino-aprendizagem de seus filhos?
assim não são participativos no processo de ensino e aprendizagem de seus filhos, aparecem no final do ano e ficam muito decepcionados quando são reprovados, não há um acompanhamento eficaz.
Compromisso profissional Com base na sua vivência profissional e no seu coletivo de trabalho, você acredita que as ações desenvolvidas pelos professores dão condições para a aprendizagem de alunos portadores de necessidades especiais?
Na maioria dos casos não, os professores não tem apoio de equipe pedagógica e multidisciplinar, não há com quem partilhar suas dúvidas e anseios, assim fazem o possível dentro de suas possibilidades, mas esse possível está muito longe da inclusão ideal.
Fonte: as autoras.
Na primeira pergunta, os substantivos “falta” e “ausência” marcam a
definição da professora em relação à infraestrutura escolar. Segundo o Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa, falta é “1. Ato ou efeito de faltar; 2. Ausência de
coisa precisa, útil ou agradável; 3. Privação, carência [...]”. Sabe-se que a
infraestrutura é útil e necessária até essencial para o aluno da educação especial
e pode tornar-se agradável e possibilitar o ensino-aprendizagem dependendo do
ambiente. Segundo a professora, “vamos falar da estrutura física, a escola tem
muitas escadas, muitos paredões, oferece muito risco para a criança. A criança
pode cair e se machucar” (entrevista oral, trecho 02:00 - 02:21).
Percebe-se que o muito adquire função de um adjetivo: “muitas escadas”;
“muitos paredões”; “muito risco” que se referem a substantivos e concordam em
gênero e número. Essa repetição do adjetivo mostra como a escola tem muitos
problemas arquitetônicos (LOPES; CAPELLINI, 2015), na visão de A.M. O que
se comprova com os trechos seguintes de fala: “as salas de aula não têm [a]
menor adaptação, os banheiros não são adaptados, [em] todos banheiros as
crianças têm que subir escadas para ela ir ao banheiro. Então, no caso de criança
cadeirante e criança cega ela estaria impossibilitada de ir ao banheiro” (entrevista
oral, trecho 02:30 – 02:55). A docente exemplifica como o ambiente e a
infraestrutura prejudicam a aprendizagem da criança. Segundo a professora,
para “a criança que é cega, o ambiente tem que ser um ambiente estático,
porque nessa sala, a partir dos passos dela ela sabe onde estão os armários,
ela sabe onde é a mesa do professor, onde é a mesa dela e nessa sala todo dia
é revirada a sala, ou um dia a mesa do professor está no fim da sala, outro dia
está no começo. Então ela não tem condições” (entrevista oral, trecho 04:10 -
04:40). Compreende-se pela expressão “ela sabe”, a visão de ator, dotando de
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 82
capacidades, motivos e intenções, que a professora tem dos alunos
(BRONCKART, 2008).
Em relação à formação profissional, a professora responde no questionário
que não há formação adequada e suficiente. Mas na entrevista oral comenta que
“durante esses 24 anos que estou trabalhando, nós já tivemos vários cursos.
Todos os anos nós temos, no início e no meio do ano temos capacitação. Na
capacitação há fóruns relacionados à educação especial. Fora isso, se tiver um
curso nas faculdades, por exemplo, em Jacarezinho, em Cornélio Procópio
relacionado à educação especial, que o professor se interessar a secretaria de
educação paga esse curso, dá transporte, dá lanche para os professores
poderem se deslocar. Inclusive eu já fiz um em Jacarezinho de 40 horas e fiz
outro em Cornélio Procópio também de 40 horas” (entrevista oral, trecho 05:50 –
06:39). Percebe-se que o município que o sujeito de pesquisa atua é bem flexível
e dá oportunidade para a formação. O problema está na disponibilidade dos
professores de participarem, conforme pode ser observado no quadro 1.
A constatação da professora é que “existe uma falta de comprometimento
profissional muito grande, porque nas cidades pequenas a política estraga muito”
(entrevista oral, trecho 07:16 – 07:26). Percebe-se, que nesse trecho, a
professora justifica a falta de compromisso por causa da política. Em seguida,
argumenta que “independente de política, de gostar ou não gostar da gestão,
você, o professor tem um compromisso ético com o aluno. O Aluno tem direito ao
melhor ensino, a um ensino de qualidade. Todos os alunos, inclusive, e,
principalmente, os alunos especiais” (entrevista oral, trecho 07:54 – 08:16). A
professora apresenta durante a entrevista marcas dialógicas/conversacionais,
como, por exemplo, o uso de “você” querendo trazer o entrevistado para a
conversa. A escolha do pronome de tratamento “você” marca a informalidade de
tratamento entre entrevistador e entrevistado, assim como indica o papel social
do entrevistador (professor). Já o advérbio “inclusive” é utilizado no sentido de
com inclusão dos alunos especiais e é reforçado pela repetição de outro advérbio,
o “principalmente” que acrescenta valor a frase. Ele demostra que para essa
professora os alunos especiais têm direitos, assim como os outros, a uma
educação de qualidade e principalmente eles, pois esse direito é muitas vezes
desrespeitado.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 83
A docente também comenta que “o professor não tem apoio da direção, não
tem apoio da coordenação, o professor se vê sozinho em um maremoto, sem ter
onde se apegar” (entrevista oral, trecho 08:52 – 09:35).
Nesse sentido, a professora expõe que não tem apoio do seu coletivo de
trabalho, Lopes e Capellini (2015) apontam como é importante que os
professores trabalhem em equipe.
Compreende-se que o compromisso profissional deve estender-se a todos
os funcionários da escola, segundo a professora, na escola “não tem
psicopedagoga, não tem fonoaudióloga, não tem psicóloga, ninguém. O professor
se vê sozinho. A escola não tem profissional suficiente, a pedagoga vive em sala
de aula substituindo, pois não tem substituta. Então a pedagoga nem olha, nem
sabe o que está trabalhando e o que não está. Então o que importa é que os
alunos são aprovados no final do ano. E que a diretora seja bem tratada”
(entrevista oral, trecho 11:09 – 11:48). Esse trecho demostra um grande
descontentamento marcado pela repetição do “não” e da contradição o que
importa não é a aprendizagem dos alunos, mas que um funcionário que está no
papel de superior seja bem tratado, pois ele tem o poder de mandar ou prejudicar
os demais.
A professora aponta, no quadro 1, que a falta de uma esquipe
multidisciplinar afeta a conscientização das famílias e, consequentemente, o
compromisso familiar. De acordo com a professora “como não existe uma equipe
multidisciplinar, faltam profissionais para direcionar e conscientizar essas
famílias. Mostrar para elas a deficiência do filho. Como não existe isso, os pais
chegam na escola, matriculam os filhos e largam lá. Chega no final do ano eles
vão ver se os filhos foram aprovados. Eles não sabem que o filho tem grau
elevadíssimo de dificuldade” (entrevista oral, trecho 12:12 – 12:53).
O confronto entre as respostas do questionário e as respostas da entrevista
oral permitem compreender de forma mais abrangente a visão da professora e
das problemáticas da inclusão escolar. O objetivo não é construir uma denúncia,
mas sim uma reflexão dessas problemáticas. Por fim, com objetivo de propor
mudanças, nesse contexto analisado, é questionado, na entrevista oral: quais as
mudanças que deveriam ser feitas para que houvesse a inclusão de alunos
especiais? A professora comenta que “acha que deveria ter uma rede de
proteção sobre o aluno especial. Todos os olhares da escola deveriam ser
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voltados para esse aluno”. Nesse sentido, o sujeito de pesquisa acredita em um
trabalho coletivo/colaborativo. Segundo ela “esse olhar começa da cantineira
que, muitas vezes, dá três vezes a refeição para a criança, porque a criança
especial não tem noção que chegou a hora dela parar de comer. A diretora não
tem esse olhar, pois ela não é especialista. O professor não tem esse olhar,
porque, muitas vezes, quem pega classe especial são professores que querem
um suplementar. Muitos deles estão visando apenas o financeiro. Não se
preocupam se estão aptas para trabalhar com esses alunos (entrevista oral,
trecho 14:55 – 15:49).
Além de esse olhar coletivo para o aluno tanto dos funcionários da escola
quanto da família, a docente sugere que deveria ter um “mecanismo que,
realmente, comprovasse e acompanhasse a aprendizagem do aluno. Por
exemplo, uma escola que tem aluno incluso, tem que ter uma psicopedagoga,
uma psicóloga acompanhando diariamente esse aluno. O que você trabalhou?
Quanto tempo o aluno levou para realizar? O que ele conseguiu realizar? O que
ele não realizou? Por que ele não realizou? Onde foi a dificuldade dele em
realizar? (Entrevista oral, trecho 15:50 – 16:28). Percebe-se que o uso da
expressão “tem que ter” mostra uma ordem, uma necessidade como se isso
fosse essencial para a professor.
Observa-se que a situação de ensino nas escolas públicas é
desanimadora, professores sem uma formação adequada para lidar com esses
alunos, a falta de adequação dos ambientes escolares, ausência de materiais
didáticos específicos para suprir as suas necessidades e inúmeros outros
problemas existentes que limitam a prática da educação inclusiva (RODRIGUES,
2006 apud DUARTE; SILVA; PINTO, 2014, p.2).
Não cabe, nesse sentido, culpar apenas o professor ou o governo pelos
problemas no ensino. Assim como propõe a professora argumenta-se, nesse
texto, a necessidade de uma rede colaborativa, na qual todos cooperem para a
melhoria na educação e na inclusão de alunos especiais. É possível observar
que “a cultura relacionada à exclusão das pessoas que não se enquadravam a
um padrão de normalidade, imposto socialmente, perpetuou-se e consolidou-se,
historicamente” (LOPES; CAPELLINI, 2015, p.92). E, infelizmente, ainda impera,
dessa forma, é necessário empenho dessa rede colaborativa para que o aluno
se sinta incluso.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da entrevista oferece-se um relado em relação à infraestrutura
das escolas que, infelizmente, não são projetadas para receber todos os alunos,
também se discute a formação profissional que é ineficiente e insuficiente que
somada com a falta de compromisso do educador – o qual sofre de falta de
incentivo, e de necessidades financeiras – em nada contribuem para uma
inclusão eficaz e para completar essa situação tem-se a ausência de
comprometimento familiar gerada, muitas vezes, pela falta de informação e
conscientização.
Essa pesquisa permite compreender como essas problemáticas:
infraestrutura, formação profissional, compromisso profissional e compromisso
familiar são importantes pontos de discussão e geram várias implicações na
inclusão e no processo de ensino-aprendizagem de alunos especiais. A análise
retrata a realidade de uma escola do Paraná e demostra a necessidade de
pesquisas tanto sincrônicas quanto diacrônicas (SAUSSURE, 1993) sobre o
tema.
Por fim, compreende-se que falta muito trabalho e comprometimento de
todos para que o aluno incluso não se sinta um sozinho no ninho, para que todo
educando sinta-se pertencer ao ambiente escolar, onde os profissionais saibam
onde querem chegar e como chegar, onde os ambientes escolares sejam
adaptados e acessíveis a todos e que os materiais didáticos e pedagógicos
sejam voltados para cada necessidade. Um ambiente que atenda o coletivo, mas
que permita focar no individual.
Cabe, nesse sentido, lutar e buscar novas possibilidades, seja enquanto
família, profissionais da educação ou sociedade. Sendo assim, existe um
aparato de providências a tomar antes de colocar o aluno dentro de uma sala do
ensino regular e dizer que ele está incluso, afinal não basta garantir o acesso é
preciso garantir a permanência e o sucesso.
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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 88
Formação de educadores para o trabalho em sala de aula com base na oralidade letrada
The training of educators for classroom work based on orality
literacy Gesmilher de Almeida Lopes (EFM)
RESUMO: A pesquisa apresenta uma abordagem referente ao estudo da oralidade e sua importância em sala de aula nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Com o decorrer das últimas décadas, começa-se a discutir sobre a importância de ensinar a oralidade letrada aos estudantes em diferentes situações comunicativas. Neste contexto, entende-se que no primeiro ano do Ensino Fundamental, os estudantes estão em processo de aquisição da leitura e da escrita, deste modo, tem-se a necessidade do contato com a oralidade letrada e suas situações comunicativas, para que posteriormente inicia-se à aquisição da escrita e da leitura. Igualmente, emerge a necessidade do trabalho com a oralidade letrada dos professores alfabetizadores, para que seja possível oferecer subsídios aos discentes na construção da alfabetização e do letramento. Assim, em conformidade com as pesquisas, apresenta-se que na formação inicial dos professores, não são apresentados e discutidos com ênfase o tema oralidade letrada e sua prática em sala de aula. E neste sentido, o presente grafado tem como objetivo principal a formação continuada dos educadores com base a oralidade letrada, para o trabalho em sala de aula. O método da pesquisa é de cunho bibliográfico, que pauta-se em autores como: Magalhães (2008); Kleiman (2002) e Marcuschi (2007). Pretende-se com a pesquisa a valorização da fala letrada em sala de aula, e seu uso por educadores e estudantes, que estão inseridos em situações comunicativas e de aprendizagem. Com isso, os professores possam aprimorar suas práticas de ensino e aprendizagem. PALAVRAS-CHAVE: Formação Continuada. Oralidade Letrada. Ensino.
INTRODUÇÃO
O aludido escrito tem por intuito estudar a importância de trabalhar a
oralidade letrada dos discentes e dos docentes do Ensino Fundamental I, em
especial com o 1° ano do Ensino Fundamental. Esta premissa parte de estudos
realizados por Marcuschi (2007) e Kleiman (2002), em que descrevem o trabalho
com a oralidade em sala de aula e que somente após esta etapa trabalhar a
escrita, desse modo, a escola fomenta seus discentes a desenvolver habilidades
linguísticas para desempenhar seu papel social. E nessa compreensão ocorre
que, ao deparar-se com o uso social da linguagem o discente encontra
dificuldades, principalmente com o uso da linguagem formal, em meio ao corpo
social ou acadêmico.
Dessa maneira, percebe-se a necessidade de ser trabalhado com a
oralidade letrada em sala de aula, desde a educação infantil e principalmente
nas séries de alfabetização, para que ao entrar em contato com as diferentes
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 89
situações comunicativas, no ambiente escolar ou fora dele o indivíduo possa
fazer o seu uso adequado conforme cada ocasião.
Partindo deste contexto, a escola tem que proporcionar e realizar um
trabalho que crie diferentes situações comunicativas aos estudantes. O trabalho
com os Gêneros Textuais Orais pode proporcionar diferentes experiências com
o uso da oralidade letrada, ao tratar-se do 1° ano do Ensino Fundamental, e
neste sentido o trabalho com histórias infantis e seu reconto, abrange uma
grande oportunidade de desenvolvimento da linguagem oral dos discentes.
Nesta perspectiva, o presente estudo relata sobre a importância do uso
da oralidade em sala de aula, para construir situações comunicativas que leve o
estudante a criar um pensamento crítico e reflexivo, desse modo, apresenta-se
como auxilio na construção de sua aprendizagem e seu convívio social.
De semelhante modo, para que o trabalho com a oralidade ocorra de maneira
condizente com os materiais norteadores da educação, faz-se necessário o
investimento em formações continuadas dos professores alfabetizadores, para
que desenvolvam suas aulas práticas orais letradas com seus discentes. E neste
sentido, proporcionar uma educação social. O trabalho com a oralidade em sala
de aula é de suma importância para que as crianças se apropriem da
alfabetização e do letramento de maneira integral.
ORALIDADE E SUA IMPORTÂNCIA EM SALA DE AULA
Encontra-se, a necessidade de trabalhar com a oralidade desde a
Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, para que a criança
tenha contato com a mesma, como defende Milanez (1993) e Kleiman (2002),
para que isso ocorra é necessária uma consciência crítica e reflexiva do
educador, assim, possa fazer uso da oralidade como meio de construção e
significação para o aluno. E para tanto, é necessária a interação entre ambos,
educador e educando, deste modo, constroem competências comunicativas ao
uso da linguagem e inicia-se o processo de ensino e de aprendizagem.
Nesta perspectiva, o uso da oralidade letrada em sala de aula é de
extrema importância, sendo que, as aulas, as explicações são transmitidas por
meio da oralidade, como ressalta Marcuschi (2002), que as situações discursivas
vivenciadas em sala de aula estão situadas no campo da oralidade. Porém,
alguns educadores não percebem a importância da oralidade no cotidiano dos
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 90
estudantes. Sabe-se que a linguagem oral na escola contribui para a transmissão
de informações e interações humanísticas, porém, a escola não avalia o
estudante por meio da oralidade, mas por meio da escrita. Desde modo,
necessita uma reflexão sobre o uso da avaliação na linguagem, para que haja
práticas cotidianas que ampliem o conhecimento dos estudantes e impulsiona-
os a serem críticos e humanísticos para que assim possam romper as barreiras
culturais.
Ao referir-se nas séries de alfabetização, a linguagem oral, cria mais
ênfase e importância, por saber que “no início da escolarização a fala exerce
influência sobre a escrita” (MARCUSCHI, 1996, p.3). A criança, primeiro se
apropria da linguagem oral, para após passar para a escrita. Sendo que a escrita
é a representação da fala. Com isso, o professor que trabalha em sala de aula
com a oralidade, seus alunos passam a apresentar maiores embasamentos para
apropriarem da escrita de maneira prazerosa e correta. O uso da oralidade
letrada pelo professor alfabetizador é de suma importância para o estudante
como afirma Kleiman (2002, p.23),
O processo de ensino da língua materna e de introdução e inserção do aluno nas práticas sociais de uso da escrita sustenta-se na oralidade letrada do professor alfabetizador. O elemento central, então, dos eventos de letramento no contexto escolar é a prática oral do professor, uma vez que os gêneros complexos da escrita são ensinados, na aula, via interação oral face a face.
Com isso percebe-se a importância do professor alfabetizador, utilizar
com consciência e objetividade a oralidade letrada em sala de aula. Sendo que,
a escola “é a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com
o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento,
a alfabetização” (KLEIMAN, 1995 p. 20). Com isso, a necessidade de construir
na escola uma consciência crítica sobre o uso da oralidade letrada em sala de
aula, como ferramenta auxiliadora para a alfabetização e o letramento como
defende Soares (2004).
O uso da oralidade em sala de aula é além do simples fato de falar, mas,
de interpretar, compreender e trazer para a realidade dos estudantes, desse
modo, elabora embasamentos sólidos para a construção de sua aprendizagem.
O ensino da oralidade letrada proporciona aos discentes experiências únicas que
futuramente irão utilizar em sua vida social, dessa maneira, saberão se
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 91
manifestar em diferentes situações comunicativas seja nas universidades, no
mercado de trabalho e na sua vida social, como relata Marcuschi (2007).
Neste contexto, surge-se a necessidade do trabalho com a oralidade
letrada, por educadores, não apenas os quais trabalham com a alfabetização,
mas por todos que estão envolvidos no processo de educação, desde a
Educação Básica até a Superior. Com isso, dá-se a necessidade da utilização
de situações comunicativas na escola e em sala de aula, por meio de diálogos
construtivos e intencionais, para a formação dos seres humanos, de maneira
integral e humanística.
SITUAÇÕES COMUNICATIVAS NA ESCOLA
A escola tem um papel fundamental na construção do indivíduo, ao tratar-
se de linguagem oral, Dolz e Schneuwly (2004) ressaltam que ela é o meio pelo
qual o estudante apropria-se da linguagem oral, e consegue fazer seu uso em
situações formais. Neste contexto, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
trazem que
Ensinar língua oral deve significar para a escola possibilitar acesso aos usos da linguagem mais formalizados e convencionais, que exijam controle mais consciente e voluntário da enunciação, tendo em vista a importância que o domínio da palavra pública tem no exercício da cidadania (BRASIL, 1997, p.67).
Desta maneira, percebe-se a necessidade da escola proporcionar
situações comunicativas para os estudantes, assim, possam desenvolver suas
capacidades argumentativas, de expressão oral e fazer o uso delas em seus
diversos contextos, porém é necessário que apresente um caráter intencional e
não apenas comprimentos das leis existentes no que se refere à linguagem oral.
Com isso, existem diferentes atividades que podem proporcionar
situações comunicativas em sala de aula, desde a Educação Infantil a Superior,
cada uma com seu grau de dificuldade. Neste caso, a pesquisa trata-se do
primeiro ano do Ensino Fundamental, as crianças nesta faixa etárias algumas
não conseguirão ainda apropriar-se o sistema de escrita e de leitura, deste modo,
o professor, realiza os procedimentos de leitura a elas, e inicia-se a construção
da aquisição da leitura e escrita, como Soares (2004) explica. O trabalho do
educador baseia-se na oralidade, neste contexto dá-se a importância do uso da
oralidade letrada em sala de aula por parte do educador e dos educando, para
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 92
que possam aprimorar seu aprendizado na língua materna, já se tem a
necessidade de apresentar diferentes situações comunicativas aos estudantes.
O trabalho como os contos e histórias são situações comunicativas em
sala de aula. Sendo atividades prazerosas e lúdicas, em que os estudantes se
envolvem, assim, proporciona diferentes reflexões sobre as histórias e os contos,
com isso, o educador trabalha com a oralidade dos estudantes e modela a
linguagem conforme o propósito da aula. Porém, para que isso ocorra é
necessário que o educador esteja envolvido e com os objetivos claros e
definidos, para a sua aula. Desse modo, fazer as intervenções necessárias para
que os estudantes possam adquirir conhecimentos prévios sobre o diferente uso
da língua falada e suas situações comunicativas em contextos escolares e não
escolares.
Outra atividade que pode ser realizado com as crianças de 1° ano é o
trabalho com pequenos debates, com assuntos do cotidiano das mesmas, dessa
maneira, o educador consegue proporcionar situações comunicativas e
construtivas. Sendo trabalhado com um grau de dificuldade menor, centrado no
desenvolvimento de competências comunicativas e argumentativas dos
estudantes, desse modo, desenvolvendo prática discursiva em sala de aula
como defende Bakhtin (1992).
Entretanto, por meio de diversas pesquisas na área, percebe-se uma
resistência do uso da língua falada como ferramenta de ensino e aprendizagem,
por parte dos professores, que permanecem ensinando por meio de textos
escritos os gêneros orais, assim distancia da realidade do estudante a
importância dos gêneros orais em sua vida social, como cita Galvão e Azevedo
(2015, p.262),
Todavia, no que se refere à transposição didática dos saberes sobre a oralidade, observamos que o trabalho com os textos permanece, parcialmente, distanciado das práticas pedagógicas realizadas no contexto das salas de aula, haja vista que muitos professores têm apresentado dificuldades para implementar estratégias metodológicas firmadas no objetivo de desenvolver a competência linguística da oralidade em seus alunos. Isso nos revela que, talvez, os docentes estejam perdendo de vista o perfil do aluno, a concepção interacional da linguagem, o objeto de ensino (textos orais e escritos), como também uma metodologia que permita a formação do cidadão crítico idealizado nas orientações contidas na proposta oficial vigente.
Assim, corrobora que à necessidade de trabalho com situações
comunicativas em sala de aula, para que o trabalho do educador seja condizente
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 93
aos documentos oficiais que norteiam a educação brasileira. Nos Parâmetros
Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental (1997), a
importância do desenvolvimento da linguagem oral para que “o avanço no
conhecimento das áreas afins torna possível a compreensão do papel da escola
no desenvolvimento de uma aprendizagem que tem lugar fora dela” (BRASIL,
1997). Nesse intuito tem se a necessidade do docente desenvolver habilidades
dos seus discentes no trabalho com gêneros textuais orais, para que possa dar
subsídios aos estudantes como o “domínio ativo do discurso nas diversas
situações comunicativas, sobretudo nas instâncias públicas de uso da
linguagem” (BUENO e COSTA-HÜBES, p. 198, 2015).
Neste intuito, há necessidade de formações continuadas dos docentes
para o trabalho com a oralidade letrada em sala de aula e sua importância para
o pleno desenvolvimento do estudante.
FORMAÇÃO CONTINUADA DOS PROFESSORES ALFABETIZADORES
PARA O TRABALHO COM A ORALIDADE LETRADA
No decorrer das últimas décadas, cada vez mais é tratado e discutido
sobre a necessidade de formações continuadas para professores que já atuam
em sala de aula, assim, visa-se a melhoria do ensino e das aulas propostas por
eles. Com isso, elaboraram-se políticas públicas para a formação continuada dos
educadores, tanto que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996)
relata sobre a formação continuada dos professores, em que o governo, estado
e municípios terão que promover esta formação.
Ao tratar-se de formação continuada para o trabalho com oralidade
letrada, quase não ouve falar sobre a temática. Sendo que os PCNs (1998)
trazem sobre a importância do trabalho com a oralidade desde a educação
infantil até o ensino médio. Portanto, para que isso ocorra há necessidade de
uma formação continuada para que os educadores possam assimilar e entender
sobre o uso da oralidade letrada nos anos iniciais e nas classes de alfabetização.
Soares (2005) salienta que as series de alfabetização o uso da oralidade é
indispensável, sendo que as crianças ainda não se apropriaram do sistema de
escrita alfabético, deste modo o educador realiza grande parte do seu trabalho
por meio da oralidade. Mas, ele não dá a ênfase necessária para a oralidade de
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 94
seus discentes, para que possam fazer o uso social da língua e ampliar suas
capacidades discursivas como defende Marcuschi (2007).
Em pesquisa de campo realizada em uma Escola Municipal, na cidade de
Guapirama-PR, percebe-se a necessidade do trabalho com o uso da oralidade
letrada. Entretanto, há necessidade de formação continuada dos professores
alfabetizadores, sendo que em relatos realizados pelas professoras de
alfabetização do 1° ano e do 2° ano, elas nunca tiveram uma formação, seja
inicial ou continuada que abrangesse o trabalho com a oralidade letrada, como
uma ferramenta de ensino e aprendizagem, que proporcione aos seus discentes
um letramento e não apenas uma alfabetização, como defende Soares (2004),
aborda que letramento é diferente de ser alfabetizado, sendo que a sociedade
necessita de pessoas letradas, em que possam compreender o sistema de
leitura e escrita que envolve o mundo e seu meio social, já alfabetizado apenas
codifica de decodifica códigos, não compreende a função social da leitura e da
escrita, Marcuschi (2007, p. 33) refere-se à alfabetização e letramento desta
maneira:
Letramento - processo mais geral que designa as habilidades de ler e escrever diretamente envolvidas no uso da escrita como tal. É a prática da escrita desde um mínimo a um máximo. Diz respeito a fenômenos relativos à escrita como prática social. Alfabetização - processo de letramento em contextos formais de ensino, ou seja, por um processo de escolarização mantido pelo governo ou pelo setor privado. Mas organizado em séries e sistematizado.
Percebe-se que tanto Soares como Marcuschi, compartilham a ideia de
letramento e alfabetização. E neste sentido, os educadores têm que proporcionar
as discentes diferentes experiências para que possam atuar de maneira
autônoma e reflexiva no seu meio social.
Neste contexto, emerge a necessidade de uma formação continuada
para que ocorra a inserção do trabalho com oralidade nos anos iniciais do ensino
fundamental, para que assim possa instigar o interesse dos educadores, para
que adotem em sua prática cotidiana e o uso da oralidade letrada em sala de
aula, como ferramenta de ensino e aprendizagem, como defende Braga (2008),
que as práticas orais e escritas têm a mesma importância, sendo que o ensino
da oralidade letrada colabora para mostrar aos estudantes que os dialetos são
diversificados e existem diferentes tipos de oralidade desde a mais informal a
mais formal.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 95
Neste contexto, percebe-se que as formações continuadas dos
professores de alfabetização no que refere se à oralidade e o trabalho com
gêneros orais, merecem ter um olhar com maior carinho e atenção, para que
assim, consigam mudar suas práticas pedagógicas em sala de aula e auxiliar
seus discentes no processo de aquisição da leitura e da escrita, para que possa
ser letrados, de modo a apresentar que a oralidade tem grande importância em
sala de aula para as crianças ser alfabetizadas e letradas.
As formações continuadas são de suma importância para que ocorra um
trabalho pedagógico conforme as normativas existentes, os professores
necessitam estar em constante transformação para que aprimorem suas práticas
cotidianas, sendo que eles possuem papel fundamental na sociedade atual,
como corrobora Araujo e Reis (2014, p.4),
formação continuada [...] o professor alfabetizador, que precisa cada vez mais aprimorar sua prática, pensando‐a coletivamente para o
conhecimento de metodologias adequadas para a alfabetização e o letramento e os diversos fenômenos que ocorrem na escola, impedindo que esse processo concretize‐se. Em razão da nossa sociedade
vigente, capitalista, o papel do professor é fundamental, no sentido de buscar a emancipação social, ou seja, a não alienação do sujeito frente à dominação e exploração da maioria da classe (dominada). Essa condição de sujeito só é possível por meio do conhecimento que é ofertado pela escola, ou seja, transmitido pelo professor.
Ao analisar este contexto, o professor tem o papel fundamental na
emancipação de seus discentes, mas para que isso ocorra tem-se a necessidade
do educador estar em constante busca de aprimoramento em sua jornada
docente.
Sabe-se que a escola tem o papel fundamental de fomentar o uso da
linguagem como prática social, porém para que isto ocorra é necessário que
elaborem maneiras de valorizar a oralidade de seus estudantes e professores,
para que possa desenvolver o aluno de maneira integral para o convívio em
sociedade. Moraes e Ramos (2009, p. 2) relatam que
valorizar a fala na sala de aula é assumir um novo entendimento sobre como os alunos aprendem. É entender que se aprende por permanente reconstrução de conhecimentos já anteriormente adquiridos, por adição de mais significados a partir do intenso envolvimento em situações desafiadoras relacionadas aos temas trabalhados, sobre os quais os alunos são solicitados a falar.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 96
Como ressalta os autores, as crianças necessitam de passar por
situações comunicativas para que possam apropriar dos conhecimentos
propostos a elas, e desse modo, ocorra à aprendizagem. Com isso, percebe-se
que, cada vez mais surge a necessidade do trabalho com a oralidade em sala
de aula. Mas para que este trabalho seja condizente com a realidade social, é
necessário que o educador tenha uma formação adequada para realizar as
atividades de oralidade junto aos discentes.
Contudo, também há a necessidade de grupos de estudos nas escolas
para que os educadores possam fazer as trocas de experiências vivenciadas em
sala de aula, desse modo, evoluir e aprimorar a sua prática docente, como
destaca Tardif (2012), que o saber docente é plural, e dá-se por meio das
interações pessoais dos educadores. Com o grupo de estudo voltado para os
professores alfabetizadores, conseguiram partilhar suas práticas pedagógicas
vivenciadas em sala de aula, e fazer uma análise sobre seu trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o presente estudo, pode-se observar a necessidade da valorização
da oralidade em sala de aula. Não apenas a fala cotidiana, mas o trabalho com
esta fala, a necessidade de ajudar os discentes a desenvolver pensamento
críticos e reflexivos a partir da oralidade usada em sala de aula.
Sabe-se que o educador tem o papel fundamental na construção da
oralidade letrada dos alunos, mas há necessidade de desenvolver competências
nos professores para que possam trabalhar de maneira adequada sobre a
temática com a sua classe.
Desta maneira, oferecer uma profunda análise de que a oralidade vai além
de simples fala, mas sim profundas interpretações e compreensões onde
envolvam e apresentam junto à realidade dos estudantes. E assim, possam
usufruir em seu cotidiano, tanto na vida social como acadêmica. Porém, grande
sucesso somente é possível com o envolvimento de todos da educação e não
somente com os envolvidos na alfabetização dos discentes.
Desta maneira, surge nas escolas a oportunidade de apresentar e treinar
os indivíduos da sociedade para a prática da linguagem oral, a qual será de
grande valia em sua vida futura, usando as em suas comunicações formais, em
que está é endereçada por meio dos canais de comunicação existentes no
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 97
organograma social. E desta maneira, a mensagem é transmitida e recebida
dentro dos canais formalmente estabelecidos pelo corpo social na sua estrutura
organizacional.
Igualmente, neste sentido a escola tende apresentar e exercitar os
estudantes por diferentes meios didáticos para seu melhor aperfeiçoamento,
como a escrita e leitura, contos e histórias, debates, entre tantos outros meios
utilizados quais objetivam a mesma finalidade, quais seja, a prática da oralidade
letrada.
Contudo, mesmo comprovado a eficácia por meio de diversos estudos
existentes, destes modos didáticos de ensinos é comum a resistência de
educadores em aplicá-los no dia a dia da educação, onde optam por sistemas
arcaicos de ensinar oralidade e gêneros orais por meios de textos escritos, em
que conduz os discentes a vertentes distintas da realidade social, motiva-se o
desinteresse em aprendizado oral.
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Leitura linguístico-textual de um apólogo: trabalhando com a literatura infanto-juvenil
Letícia Jovelina Storto (UENP - PQ)
Karen Alves de Andrade Moscardini (IFPR - PQ)
Solange Aparecida de Souza Monteiro (IFSP - PQ)
RESUMO: Este estudo tem como objetivo realizar uma leitura textual-discursiva do texto “O pneu vaidoso”, de Diléa Frate. Trata-se de um apólogo que faz parte do livro “Histórias para acordar”, publicado em 1996 pela editora Companhia das Letrinhas, a qual se volta ao público infanto-juvenil. Na década em que a obra livro foi publicada, as tecnologias de informação e a globalização já exerciam grande influência, o que gera a alta valorização do produto externo ou internacional. O texto em análise conta a história de dois pneus, um americano e um brasileiro, que discutiam a respeito da preferência que os brasileiros dão a tudo o que é de fora. Trata-se de um texto da ordem do narrar, cujos elementos colaboram para a construção de um texto coerente que busca criar um contexto lúdico e descontraído. PALAVRAS-CHAVE: Gênero textual. Apólogo. Análise linguístico-discursiva.
INTRODUÇÃO
Partimos do pressuposto de que “um texto não é simplesmente uma
sequência de frases isoladas, mas uma unidade linguística com propriedades
estruturais específicas” (KOCH, 1996, p.11). Segundo os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN), “quando se pensa no trabalho com textos, outro
conceito indissociável diz respeito aos gêneros em que eles se materializam,
tomando-se como pilares seus aspectos temático, composicional e estilístico”
(BRASIL, 1998, p.77). Por isso, o nosso objetivo é realizar uma análise
linguístico-textual do apólogo “O pneu vaidoso” (FRATE, 1996), a partir do
levantamento de suas marcas linguístico-enunciativas e de suas condições de
produção (suporte, interlocutores, finalidade e local de circulação) e de seu
arranjo textual, com o intuito de discutir seus possíveis efeitos de sentido e
contribuir com uma proposta de organização didática de análise linguística do
gênero textual em questão. Como metodologia de trabalho, propomos uma
análise linguístico-textual com foco nas marcas da oralidade e nos elementos
linguísticos relacionados à coerência, à coesão e ao humor do texto em análise.
Trata-se de um apólogo que foi publicado em 1996 no livro Histórias para
acordar, da editora infanto-juvenil Companhia das Letrinhas. A autora é contista,
jornalista, consultora de programas de televisão e idealizadora de páginas
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 100
eletrônicas a respeito de ciência, educação, meio ambiente, esporte, cultura,
entre outros, mostrando estar bastante “antenada” e ter uma visão ampla e
crítica.
Com uma linguagem de fácil acesso, o texto narra a história de dois
pneus, um americano e um brasileiro, que discutem a respeito da preferência
que os brasileiros têm pelo que é importado de outros países em relação aos
produtos nacionais. O pneu americano se exalta tanto que, em certo ponto da
narrativa, começa a inflar, até que explode, de modo que o outro pneu segue seu
caminho tranquilamente. O assunto é interessante, porque as tecnologias de
informação e a globalização exercem grande influência na vida social, o que gera
a alta valorização dos produtos importados.
Inicialmente, o texto atrai a atenção dos alunos por ser construído de um
único parágrafo e por apresentar uma imagem ilustrativa. Em seguida, por meio
de um tom descontraído, favorece a discussão crítica e a postura reflexiva em
relação a comportamentos sociais. Por ser curto, favorece um trabalho de
análise mais profunda, em que discussões possam ser mediadas pelo professor,
a fim de aprofundar o debate a respeito de globalização, importação cultural,
preconceitos e outros.
ANÁLISE LINGUÍSTICO-TEXTUAL DO APÓLOGO
O PNEU VAIDOSO (Diléa Frate)
O pneu usado americano estava numa discussão com o pneu novo nacional: “(sotaque americano) Eu sou muito melhor que você. Andei toda Nova York, sou viajado, estou acostumado com o Primeiro Mundo”. O brasileiro (e caipira) respondeu: “Pior procê, que é velho e usado, e não vai güentar toda essa buraqueira daqui, sô!”. O americano, então, disse: “Eu não sou velho, sou balanceado, aqui todos me preferem, porque as pessoas preferem as coisas de fora. Tênis, por exemplo, que é a pneu do pé do menino: todos preferem os importados. Entre uma tênis usado americano e um novo nacional, a preferência é o americano, mesmo com aquele cheirinho de... como é mesmo aquele palavra de vocês para isso?”. “Chinelo!”, disse o pneu caipira sacaneando... “Isto mesmo, cheirinha de chinelo, mais ou menos como a cheirinho de vocês, pneus nacionais.” Aí o caipira se queimou: “E ocê, que estava sendo jogado fora? Ocê é lixo: lixo importado, mas lixo!”. A discussão continuou, até que o pneu americano, que não parava de contar vantagens, começou a inflar, inflar, e... ploft!, explodiu! Impressionado, o brasileiro pensou: “A vaidade é um perigo!”, e seguiu, humilde, por uma estrada cheia de buracos.
Para melhor compreensão do texto, faz-se necessário verificar alguns
aspectos no apólogo, tais como marcas relacionadas ao gênero apólogo, à
oralidade e a marcas linguísticas, de subjetividade e outros.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 101
O GÊNERO TEXTUAL APÓLOGO
O texto “O pneu vaidoso” pode ser considerado como sendo do tipo
narrativo pertencente ao gênero apólogo. Para Barbosa e Amaral (1994, p.58):
“Narrar é contar. Relacionar situações e personagens. Narrar é uma das
atividades de linguagem mais presentes em nossa vida. Temos, quase sempre,
paixão por contar e por ouvir histórias”.
Para narrar, é preciso apresentar personagem(ns), que deve(m) estar
situado(s) em um tempo e espaço. Além disso, outros elementos importantes
são: o narrador (quem conta a história) e o enredo (a história em si). O texto em
análise apresenta dois personagens centrais, um pneu americano e um pneu
brasileiro. O espaço físico e o tempo não são explicitados no texto.
O apólogo consiste em uma narrativa que ilustra uma lição de sabedoria,
utilizando, para isso, personagens de índole diversa, no caso objetos
personificados. Além disso, como todos os apólogos, “O pneu vaidoso” tem por
objetivo interferir de alguma forma no comportamento social e moral dos
homens, de modo a modificá-lo pelo exemplo. Assim, mostra-nos que a
presunção exacerbada pode ser prejudicial ao homem, que deve ser humilde
para poder “güentar toda essa buraqueira” dos caminhos que percorrerá na vida,
afinal “a vaidade é um perigo!”.
MARCAS DA ORALIDADE
É importante notar que oralidade e escrita são práticas comunicativas (ou
sociais) distintas, com peculiaridades próprias, mas não são estanques, pois não
formam uma dicotomia, mas se agrupam em um mesmo sistema linguístico.
Acerca do sistema linguístico, Marcuschi (2006, p.62) afirma que “tanto na
produção oral como na escrita o sistema linguístico [discursivo] é o mesmo para
a construção das frases, mas as regras de sua efetivação, bem como os meios
empregados são diversos e específicos, o que acaba por evidenciar produtos
linguísticos diferenciados”.
Além disso, oralidade e escrita possibilitam a construção de textos
coerentes e coesos, formais e informais, com variações de diversos níveis
(estilística, social, geográfica etc.) de acordo com as especificidades contextuais
de cada texto (MARCUSCHI, 2007; FÁVERO, 2001). Ainda segundo Marcuschi
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 102
(2007, p.17), “as limitações e os alcances de cada uma estão dados pelo
potencial do meio básico de sua realização: som de um lado e grafia de outro,
embora elas não se limitem a som e grafia”, porque muitos outros elementos
estão inseridos, ampliando suas semioses.
O apólogo em análise apresenta marcas de oralidade, que são
empregadas com o objetivo de aproximar o leitor do texto, remetendo-o a uma
possível situação semelhante. Isso contribui para que o leitor vivifique a história
no momento em que é lida. Os fragmentos que seguem ilustram essas marcas:
inserções parentéticas para comentar ou explicar, emprego de marcador
conversacional, marcas da intersubjetividade, repetição, entre outros.
O locutor textual busca estabelecer um diálogo com seu leitor, de modo a
deixar marcada a intersubjetividade do texto. Isso pode ser verificado na fala
“Mas que muitos meninos fazem isso, fazem”. Nesse trecho, nota-se que o
enunciador comenta a situação, como se ele premeditasse a concordância do
enunciatário (que, em textos escritos, é muitas vezes virtual) com a expressão
valorativa “Que nojo!”.
Em “Caco, para quem você está dando cola?”, o emprego forma coloquial
permite que o aluno identifique-se com a cena. Além disso, o ato de “colar” em
provas é, em muitos momentos, utilizado por alguns discentes a fim de conseguir
uma nota maior, o que o aproxima do personagem. Ao citar que Caco “tinha até
uma tática para tirar meleca sem ninguém perceber”, o autor desperta ainda mais
o interesse do aluno, que pode ter a intenção em aprendê-la, para também se
camuflar ou descobrir quando alguém estiver praticando-a.
Segundo Burgo, Storto e Galembeck (2013, p.297), “os marcadores
conversacionais apresentam-se como elementos independentes sintaticamente
do verbo, formados por um ou mais itens ou expressões lexicais, que corroboram
o monitoramento da conversação e a organização do texto”. Esses elementos,
segundo os autores, “são extremamente relevantes na manutenção da
interação”. No apólogo em análise, encontramos dois marcadores, aí e sô!: “Aí
o caipira se queimou” e “[...] não vai güentar toda essa buraqueira daqui, sô!”.
No texto, o aí pode ser facilmente substituído por “nesse momento”, e o sô! pode
ser apagado sem prejuízo. Tais marcadores têm a função de colaborar na
construção da coerência e coesão textuais, de modo a contribuir com a conexão
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 103
entre os enunciados. Além disso, o sô! tem o papel de contribuir para a
construção da imagem do pneu brasileiro como sendo caipira.
Além dos marcadores, o texto apresenta as repetições como estratégias
discursivas. Esses elementos, típicos da língua falada, servem para dar mais
ludicidade ao apólogo, aproximando sua linguagem daquela utilizada pelas
crianças, interlocutor prévio do livro em que o texto foi publicado. A repetição tem
também outra função: prolongar a ação expressa pelo verbo no infinitivo,
indicando uma progressão:
Excerto 1
“A discussão continuou, até que o pneu americano, que não parava de contar vantagens, começou a inflar, inflar, e ... ploft!, explodiu!”.
Tem-se também uma “coisificação”, o pneu americano afirma que tudo,
qualquer coisa que venha de fora é melhor que um produto brasileiro. A
expressão coisa, muito usada na oralidade e na linguagem informal, tem o papel
generalizante, o que dá a ideia de que por mais insignificante que seja um
produto americano, ele sempre será melhor que o do Brasil: “as pessoas
preferem as coisas de fora”.
Todos esses elementos, enfim, intensificam a participação dos
interlocutores, de modo a envolvê-los e a aproximá-los do texto.
COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAIS
Os elementos coesivos são os principais responsáveis para concatenação
dos itens linguísticos nos textos. Assim, se os elementos de coesão são inseridos
de forma inadequada, o texto torna-se desarticulado, o que dificulta sua leitura e
compreensão, já que o leitor torna-se confuso e desorientado, sem boa
compreensão do que é dito (KOCH, 2001; 2005). Segundo Koch (2001, p.35), a
coesão textual é “o fenômeno que diz respeito ao modo como os elementos
lingüísticos presentes na superfície textual se encontram interligados, por meio
de recursos também lingüísticos, formando seqüências veiculadoras de
sentidos”.
Como mecanismos coesivos mais frequentes têm-se: a) coesão
referencial: anáfora, catáfora, substituição e elipse; b) coesão lexical: reiteração
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 104
e colocação; c) coesão sequencial: tempos verbais; conectivos (conjunções,
preposições, pronomes relativos).
Enquanto a coesão é linguística, sintática, a coerência é semântica,
cognitiva (KOCH, 2004). Por isso, “nunca se percebe num texto sua coerência,
até o momento em que ela é perdida. Qualquer incoerência se sobressai, ao
passo que uma série de elementos bem ajustados e harmônicos muitas vezes
não são notados, dando a impressão de que construir a unidade de um texto é
algo automático, que vem com a simples escolha das palavras” (FURTADO;
CONTANI 2001, p.50).
A coerência é, segundo os autores, condição mínima e essencial para
existência do texto, é “não cair em contradição”. Sendo assim, seu conceito está
relacionado à existência de conexão, de nexo entre as situações,
acontecimentos ou ideias num dado texto. Por fim, um aspecto essencial da
construção da coerência é a capacidade de relacionar corretamente as ideias de
um texto. A relação entre as ideias pode ser feita por meio de mecanismos de
coesão sequencial que ajudem o leitor a compreender o que se pretende dizer.
A fim de se analisar esses mecanismos, faz-se necessário verificar os
elementos linguísticos do conto, tais como tempos verbais, pronomes, adjetivos,
advérbios e conjunções como elementos do processo coesivo.
Tempos verbais como elementos de coesão
Por meio do modo verbal, o falante interage marcando o tipo de relação
que o une ao interlocutor ou ainda, transmite o grau de seu envolvimento
emocional com relação ao fato enunciado. A história é narrada na terceira
pessoa. Os verbos são marcados pelo pretérito perfeito do indicativo, o qual
indica fatos ocorridos no passado, ações iniciadas e concluídas em tempo
anterior ao tempo em que a história é narrada:
Excerto 2
“A discussão continuou, até que o pneu americano, que não parava de contar vantagens, começou a inflar, inflar, e ... ploft!, explodiu! Impressionado, o brasileiro pensou: “A vaidade é um perigo!”, e seguiu, humilde, por uma estrada cheia de buracos”.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 105
Esses verbos inscrevem-se no mundo narrado, o qual, segundo Koch
(2004), diz respeito ao relato. Essa nomenclatura, assim como a de mundo
comentado, é criação do alemão Harald Weinrich. Koch (2004, p.54) postula que,
“no mundo narrado, a atitude do locutor é distensa, ‘relaxada’: ele se distancia
do seu discurso, não se compromete com relação ao dito: simplesmente relata
fatos, sem interferência direta” (grifos da autora). Desse modo, o narrador
descreveu a ação de forma a não se envolver, ou seja, sem comentá-la, sem
fazer juízos de valor.
De igual forma, há o presente do indicativo, o qual é utilizado no discurso
direto, ou seja, nas falas dos personagens:
Excerto 3
“Eu sou muito melhor que você. Andei toda Nova York, sou viajado, estou acostumado com o Primeiro Mundo”.
Segundo Koch (2011), o tempo zero do mundo comentado é o presente.
Para a autora (2004, p.55), “o discurso (estilo) direto pertence ao mundo
comentado”, o que corrobora o distanciamento do locutor diante do fato
apresentado. Ao empregar os verbos no presente para se qualificar, o pneu
americano, implicitamente, afirma que essas características lhe são próprias,
indicando que é e permanecerá sendo viajado, balanceado e outros.
O apólogo apresenta, ainda, verbos no pretérito imperfeito do indicativo.
O emprego desse tempo verbal aponta para dois sentidos principais no texto
analisado: a) reitera a “autoapreciação” do pneu americano, que, repetidas
vezes, vangloriou-se: “o pneu americano, que não parava de contar vantagens”;
b) aponta certa imprecisão ou a incerteza do início da discussão: “o pneu usado
americano estava numa discussão com o pneu novo nacional”. Com isso, o
locutor implicitamente coloca para o leitor que o fato havia se iniciado antes
daquilo que a narrativa apresenta. Em oposição, o término do debate é
claramente marcado por verbos no pretérito perfeito do indicativo (vide Excerto
2).
Além disso, cumpre comentar o emprego do gerúndio em:
Excerto 4
“‘Chinelo!’, disse o pneu caipira sacaneando...”.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 106
Nesse caso, a forma nominal do verbo evidencia a simultaneidade e o
prolongamento da ação. Enfim, essas formas verbais indicam, na narrativa, a
progressão temporal dos acontecimentos.
Adjetivos como recurso argumentativo
Os adjetivos são os elementos gramaticais mais afetivos, eles
demonstram a relação subjetiva entre o locutor e o referente e o interlocutor,
marca também o engajamento afetivo do locutor (julgamento ou apreciação) em
relação ao que enuncia. Os “adjetivos representam as qualidades em si (algo
intangível) ou qualificam um objeto representado por um nome” (CARVALHO,
1996, p.39). Além disso, de acordo com Oliveira e Souza (1993, p.428), “o
adjetivo expressa uma relação subjetiva entre ele e o substantivo caracterizado
que permite que se avalie a expressividade do texto, dando uma orientação
argumentativa ao enunciado, e conduzindo o destinatário à direção almejada
pelo locutor”.
De acordo com Benites (2001), a adjetivação é uma das marcas
discursivas mais salientes do posicionamento do locutor-enunciador ante o
mundo; seu emprego envolve inteiramente a pessoa do locutor, uma vez que ele
se presta a caracterizar, expressando atitudes de estabelecimento de valores,
ou seja, o adjetivo é a palavra que modifica o substantivo, atribuindo-lhe um
estado, qualidade ou característica.
O texto “O pneu vaidoso” apresenta vários adjetivos, os quais qualificam
os dois personagens da história, o pneu americano e o pneu brasileiro, que se
diferenciam justamente por meio de um adjetivo. Para aquele, os adjetivos
utilizados são: usado, americano, viajado, velho, balanceado, importado, lixo.
Para esse: novo, nacional, caipira, humilde. Relacionando alguns desses
elementos, notamos a construção de um discurso das diferenças ou de
oposições, em que as características de um pneu diferenciam-se, de modo
dispare, das do outro pneu. Logo, temos:
PNEU BRASILEIRO VS. PNEU AMERICANO
Usado, Velho, Lixo Importado
Viajado Balanceado
Novo Nacional Caipira Humilde
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No segundo período do texto, há um numeral de valor adjetivo (primeiro)
cuja função é qualificar os países desenvolvidos, como os Estados Unidos, como
aqueles pertencentes ao “Primeiro Mundo”. Implicitamente, o leitor pode
compreender isso como nação de melhor qualidade, superior, que está no ápice
da civilização, da tecnologia e da globalização.
Marcas de subjetividade
A subjetividade é um recurso argumentativo que diz respeito à inscrição
do sujeito no discurso e ao estabelecimento da relação com o outro, ou seja, às
marcas (sempre existentes) da presença dos interlocutores no enunciado, o qual
parte de alguém para outro alguém. Assim, toda subjetividade é uma
intersubjetividade, já que o sujeito não existe por si só, ele só se define em face
do outro. Pode-se, logo, afirmar que todo texto/discurso é subjetivo e
intersubjetivo, “por que as palavras são recortes do mundo referencial e lhe
impõem uma forma particular de conteúdo” (CARVALHO, 1996, p.36). Desse
modo,
A subjetividade é [...] ‘a capacidade do locutor se propor como sujeito’. Trata-se da emergência do eu no seio da linguagem, ou seja. [...]. O eu fundamenta a consciência de si e esta, como se viu, dá-se no contraste com o tu. Assim, a subjetividade nasce no seio da intersubjetividade. Esses aspectos vão se tornar relevantes no tratamento do texto quando se observar o funcionamento dos dêiticos (este, aqui, agora, hoje etc.) sejam de lugar, tempo, pessoa ou mesmo a modalidade e os tempos verbais (MARCUSCHI, 2008, p.71).
A subjetividade divide-se em dêitica e afetiva (ou avaliativa). Segundo
Marcuschi (2008), os dêiticos, podem ser pessoais, temporais ou espaciais. Os
primeiros referem-se às marcas de pessoas do texto, o locutor e o interlocutor,
utilizando, para isso, dos pronomes de primeira e segunda pessoa (eu, tu, você),
dos pronomes possessivos (meu, teu, seu etc.) e dos verbos de primeira pessoa
(andei, cantei, comi etc.). Os segundos, por sua vez, referem-se às marcas de
tempo, empregadas nos verbos e nos advérbios (ontem, hoje, amanhã, agora,
mais tarde e muitos outros). Já os últimos, com o uso de advérbios de lugar (aqui,
lá, embaixo etc.) e de pronomes demonstrativos (esse, essa, isso e variações),
referem-se às marcas de lugar no enunciado (e na enunciação).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 108
Benites (2001) afirma que o advérbio, quando nominal, reflete a mesma
subjetividade do adjetivo; quando pronominal, faz menção ao tempo e ao lugar
da enunciação, ambos definidos e delimitados pelo sujeito do discurso. Assim,
os advérbios marcam a subjetividade dêitica do texto.
Os advérbios consistem em uma palavra que, basicamente, modifica o
verbo, o adjetivo ou outro advérbio, acrescentando-lhes uma circunstância. No
conto, há várias ocorrências de advérbios. Exemplo disso é o enunciado
“...devagarinho, punha o polegar dentro do nariz...”, em que há um advérbio de
lugar, dentro. Em “...grudou a meleca embaixo da carteira”, a expressão
adverbial “embaixo da carteira” agrega circunstância de lugar ao enunciado,
revelando a localidade onde Caco colou sua secreção.
Também, no texto, encontram-se locuções adverbiais que nada mais são
que duas ou mais palavras, as quais juntas têm o mesmo valor de um advérbio:
“o que você está fazendo com essa mão na frente do rosto?” - na frente é uma
locução adverbial que indica onde estavam as mãos de Caco.
Os pronomes também são marcas da subjetividade dêitica, pois apontam
as pessoas do discurso. Segundo Braz (2006, p.42), “as marcas de subjetividade
e intersubjetividade são representadas por meio de verbos e pronomes na
primeira e segunda pessoa do discurso, tanto no singular quanto no plural, e
também por meio de marcadores conversacionais”.
Gramaticalmente, o pronome é a palavra que substitui ou acompanha o
substantivo, indicando sua posição em relação às pessoas do discurso ou
mesmo situando-o no espaço e no tempo. Cabe lembrar que as pessoas do
discurso são: primeira pessoa: emissor (que fala); segunda pessoa (com quem
se fala): receptor e terceira pessoa: referente (de quem se fala). No texto, é
possível observar a colocação de alguns pronomes: eu, você, essa, a, ninguém.
Segundo Koch (2004), a coesão referencial retoma elementos linguísticos
da superfície textual; constitui, assim, uma atividade discursiva. Os processos de
referenciação são escolhas do sujeito em função do que se quer dizer. Enquanto
operação básica, ocorre a seguinte estratégia de referenciação: Reconstrução:
um nódulo já presente na memória discursiva é reintroduzido na memória
operacional, por meio de uma forma referencial, de modo que o objeto de
discurso permanece saliente (anáfora): “a enfiava na boca”; “...se aproximou...”;
“a professora viu essa manobra”, entre outros.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 109
Por meio dos elementos anafóricos, um mesmo assunto ou nome, pode
ser retomado durante todo um texto sem que seja repetido de uma mesma
maneira, de forma a manter, assim, a coesão textual do início ao fim.
A subjetividade afetiva (ou avaliativa), por seu turno, é aquela na qual o
enunciador coloca a sua avaliação pessoal, expressa os seus sentimentos, pois
“nenhum falante descreve a natureza com imparcialidade absoluta; mesmo que
se imagine neutro, é obrigado de alguma forma a imprimir sua interpretação”
(CARVALHO, 1996, p.36).
A subjetividade afetiva pode se refletir no emprego de adjetivos,
modalizadores, interrogação, exclamação, diminutivos, entre outros.
Os adjetivos são os elementos gramaticais mais afetivos que verificamos;
eles demonstram a relação subjetiva entre o locutor e o referente e o
engajamento afetivo do locutor (julgamento ou apreciação). Para Oliveira e
Souza (1993, p.428), “o adjetivo expressa uma relação subjetiva entre ele e o
substantivo caracterizado que permite que se avalie a expressividade do texto,
dando uma orientação argumentativa ao enunciado, e conduzindo o destinatário
à direção almejada pelo locutor”. O adjetivo é, pois, essencial à expressividade
de um texto.
De acordo com Benites (2001), a adjetivação é uma das marcas
discursivas mais salientes do posicionamento do locutor-enunciador ante o
mundo; seu emprego envolve inteiramente a pessoa do locutor, uma vez que ele
se presta a caracterizar, expressando atitudes de estabelecimento de valores,
ou seja, o adjetivo é a palavra que modifica o substantivo, atribuindo-lhe um
estado, qualidade ou característica: “Caco era um menino quietinho...” aqui, o
adjetivo quietinho modifica o substantivo menino, não é um menino qualquer é
um menino muito quieto. Ademais, o adjetivo “quieto” na forma diminutiva
colabora para que consigamos imaginar a personalidade do sujeito, como
alguém comportado, contido, que possui bons modos e que posteriormente
contradiz com o que se segue “mas gostava de comer meleca”. Isso tudo dá um
caráter afetivo ao que é dito.
O adjetivo nervoso em “...foi ficando nervoso com aquela meleca na mão”
indica como Caco se sentia irritado sem saber o quê fazer com a “meleca”. “Eu
estou meio enjoado”, meio enjoado indica o possível estado do “eu”, modificando
este substantivo.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 110
Já os modalizadores são formados por advérbios, em especial os de
modo. Em geral, os advérbios são afetivos (exceção: advérbios de tempo e de
espaço, pois são dêiticos). Modalizar é igual a avaliar; assim, o enunciador ao
empregá-los insere-se no texto, marca seu ponto de vista de maneira
argumentativa. No enunciado “...devagarinho, punha o polegar dentro do
nariz...”, o advérbio de modo devagar modifica o verbo pôr, indicando a maneira
modo como Caco colocava o dedo no nariz. Em “...respirou aliviado”, o advérbio
de modo modifica o verbo respirar, indicando a forma modo como foi a respiração
de Caco após ter colocado a “meleca” na boca.
“Botava a mão na frente da boca e, devagarinho, punha o polegar dentro
do nariz, que saía já com a melequinha enroladinha, e a enfiava na boca”: o uso
de “devagarinho”, um advérbio de modo no diminutivo, serve para caracterizar o
cuidado dos movimentos de Caco para não ser percebido. Em “Melequinha
enroladinha”, há continuação dos comentários a respeito dos cuidados do
personagem, o qual tenta ser discreto, para isso buscar deixar a sujeira bem
pequena para que não seja percebida.
Há também, no texto, muitas exclamações e interrogações. Aquelas
apresentam o sentimento do locutor diante de algo, servindo para indicar
emoções/estados emocionais. Verifica-se um exemplo claro disso em “Que
nojo!”, em que o enunciador enfatiza o que sente.
Todos esses elementos, enfim, servem para engendrar a argumentação
do texto e para construir um diálogo entre texto e leitor, texto e produtor.
Operadores argumentativos
Gramaticalmente, entende-se por conjunção a palavra invariável que
serve para ligar (relacionar, unir) duas orações ou dois termos semelhantes - de
mesma função sintática - da mesma oração. Textualmente, pode-se dizer que
conjunção é o conectivo oracional, isto é, é a palavra que liga orações; dessa
forma ela funciona como um elemento coesivo, como um operador
argumentativo. Segundo Oliveira (1999, p.100), “Ducrot, ao formular os
princípios básicos da Semântica Argumentativa, chamou de operadores
argumentativos a um grupo de elementos da gramática, cujo objetivo
fundamental é revelar a argumentatividade inerente a determinados enunciados
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 111
e direcioná-los a uma conclusão específica de acordo com as condições de uso”.
Enfim, eles têm a função de orientar a argumentação dentro do texto.
Apresentam-se, a seguir, alguns operadores argumentativos
encontrados no conto: i) “...mas gostava de comer meleca” a conjunção mas é
adversativa, pois se espera que um menino quieto possua modos considerados
bons pela nossa sociedade. ii) “...viu essa manobra e perguntou...” e é uma
conjunção aditiva, acrescenta outra atitude da professora à primeira; acontece
pelo menos mais quatro vezes no decorrer do texto. iii) Conjunção integrante,
utilizada para iniciar oração subordinada substantiva: “Foi aí que ele grudou...”.
iv) “Se você não estivesse...” e “E se ela visse aquilo? Se é conjunção
condicional, exprime a condição para a atitude consequente da professora”; v)
“...até uma tática para tirar a meleca...” para conjunção final, que indica a
finalidade da tática que Caco havia desenvolvido.
Pontuação
As aspas, presentes em todo o texto (ex.: “Chinelo!”; “A vaidade é um
perigo!”) , servem para demarcar os discursos diretos, de forma que os mesmos
não sejam delimitados pelo parágrafo e travessão, o que mantêm, em todo o
texto, um único parágrafo.
Os dois-pontos foram, também, usados para marcar os discursos diretos,
com a mesma finalidade das aspas. Os dois-pontos demarcam, também, um
aposto pronunciado pelo pneu brasileiro: “Ocê é lixo: lixo importado, mas lixo!”.
Percebe-se o uso de reticências, que significariam o implícito textual. No
seguinte trecho do apólogo temos: “mesmo com aquele cheirinho de...”, neste
excerto percebe-se que as reticências serviram para demonstrar o esquecimento
do pneu americano, isso pode-se confirmar quando, no próximo enunciado o
pneu pergunta ao outro: “como é mesmo aquele palavra de vocês para isso?”.
As reticências também mostram o tom do narrador, a posição dele perante a
discussão: “disse o pneu caipira sacaneando...”; neste mesmo enunciado, as
reticências nos dão tanto a ideia de um riso, implícito, do narrador e do pneu
caipira, quanto à intenção deste, que pretendia ridicularizar o pneu americano
por não conseguir se expressar perfeitamente em português. Nas reticências
usadas quando o pneu americano estoura parece que elas querem dizer que o
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 112
pneu inflou muito, ficando enorme até que ele explodiu: “começou a inflar, inflar,
e ... ploft!, explodiu!”.
Os parênteses estão contêm um termo explicativo – o pneu brasileiro fala
daquele jeito porque é caipira: “o brasileiro (e caipira) respondeu: “Pior procê”.
Contêm, também, um momento no qual o narrador se coloca, como que se
pedisse que na leitura fosse dada ênfase a uma entonação especial: “(sotaque
americano) Eu sou muito melhor que você”.
Outro sinal de pontuação que chama a atenção dos leitores são as
exclamações, que representam, no texto, o estado de espírito irônico e a
simplicidade do pneu nacional: “Pior procê, que é velho e usado, e não vai
güentar toda essa buraqueira daqui, sô!”; “Chinelo!”; “A vaidade é um perigo!”. A
exclamação marcou, também, a onomatopeia, que representa o barulho que o
pneu americano fez ao explodir: “ploft!”. Por fim, para dar entonação à fala do
narrador que ficou surpreso com o que aconteceu com o pneu americano:
“explodiu!”.
Reiteração
O pneu americano reitera algumas vezes, no quinto, sexto e sétimo
período do texto, a preferência que os brasileiros dão a tudo o que é importado:
“e aqui todos me preferem, porque as pessoas preferem as coisas de fora. Tênis,
por exemplo, que é a pneu do pé do menino: todos preferem os importados.
Entre uma tênis usado americano e um novo nacional, a preferência é o
americano”.
Este recurso foi utilizado com o fim de marcar a preferência brasileira por
tudo o que é de fora, de maneira a criticar essa atitude das pessoas.
A reiteração está presente na fala do pneu brasileiro para enfatizar a
insignificância e a inutilidade do pneu americano, comparado ao lixo: “ocê é lixo:
lixo importado, mas lixo!”.
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
Dentre os recursos linguísticos empregados o que se sobressai é o da
variação linguística, representada pelos sotaques americano e caipira.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 113
A fala do americano, no momento em que não consegue concordar
nominalmente os termos em português vem demarcado com itálico, como que
para mostrar ao leitor, que é uma variante linguística, que o americano tem
dificuldade para fazer as concordâncias em nossa língua, o autor usa do itálico,
pois não tem como mostrar na escrita, da mesma forma que na fala, o sotaque
americano: “entre uma tênis usado americano e um novo nacional, a preferência
é o americano, mesmo com aquele cheirinho de... como é mesmo aquele palavra
de vocês para isso?”; “isto mesmo, cheirinha de chinelo”.
Já o sotaque caipira vem demarcado pela oralidade, informalidade e pela
economia linguística, posto que ele exclui na pronuncia algumas vogais e/ou
consoantes, com o fim de alcançar uma linguagem mais rápida e tranquila, o que
caracteriza o jeito sossegado do caipira: “e ocê, que estava sendo jogado fora?”;
“pior procê, que é velho e usado, e não vai güentar toda essa buraqueira daqui,
sô!”.
Além dessas marcas, percebe-se a oralidade (procê, ocê, sô) e a
informalidade em outros enunciados, que apresentam, até mesmo, gírias: “o
caipira se queimou”, “o pneu caipira sacaneando”. Esses recursos são
empregados para aproximar o leitor do texto, para entrar no espaço adolescente.
OUTROS RECURSOS
A aproximação de dois advérbios (mais/menos), no caso do texto, deu
uma inexatidão à comparação que o pneu americano fez sobre o cheiro do
chinelo com o do pneu brasileiro, como se os cheiros não fossem iguais, mas
parecidos: “cheirinha de chinelo, mais ou menos como a cheirinho de vocês”.
No enunciado “cheirinha de chinelo, mais ou menos como a cheirinho de
vocês”, o diminutivo deu um caráter pejorativo ao cheiro tanto do chinelo quanto
do pneu brasileiro.
A supervalorização de países considerados desenvolvidos, pois o pneu
americano andou por Nova York nos Estados Unidos, não andou por qualquer
lugar: “andei toda Nova York”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo gramatical contextualizado realizado por meio da tríade “leitura,
análise linguística e produção textual”, utilizando-se de textos humorísticos,
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 114
torna-se mais prazeroso e interessante, favorecendo a produtividade do aluno.
Por meio da leitura e da análise, o aluno simplesmente não “decora”, porém
aprende, adquire um novo conhecimento que, obtido por meio da prática, passa
a ser algo “concreto” para ele. Algo que não será lembrado e estudado apenas
na hora da avaliação, mas fará parte de seu aprendizado.
Em cada análise, agregam-se gradativamente novos conteúdos sem que
o discente perceba, o conhecimento tornar-se um processo cumulativo. Por meio
deste breve estudo, buscou-se mostrar que, em “O pneu vaidoso”, critica-se o
fato de os americanos se sentirem superiores aos brasileiros, a supervalorização
do povo brasileiro por aquilo que é estrangeiro e a vaidade exagerada,
causadora de males à sociedade, às relações sociais e ao homem.
REFERÊNCIAS
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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 116
O cardápio na perspectiva do Interacionismo Sociodiscursivo
The menu from the perspective of Sociodiscursive Interactionism
Franciele Andriane da Costa (UENP-G) Rafaela Zenovello (UENP-G)
Marilúcia dos Santos Domingos Striquer (UENP-PQ) RESUMO: Os gêneros discursivos/textuais participam da nossa vida diária organizando nossas interações sociais, e, na maioria das vezes não nos damos conta do porquê e para que os gêneros existem. Nesse sentido, interessamo-nos em conhecer os elementos que caracterizam o gênero discursivo/textual cardápio, o qual circula em diferentes lugares, como em lanchonetes, restaurantes, eventos como casamentos, aniversários e jantares, escolas, hospitais, entre muitos outros lugares. E por essa diversidade, elegemos como objeto de estudo apenas os cardápios que circulam em estabelecimentos comerciais como as lanchonetes. A base teórica que sustenta nossa pesquisa se norteia pelas definições de gêneros do discurso de Bakhtin (2003), e de estudiosos brasileiros como Rojo e Barbosa (2015), e, como ferramenta de análise, utilizamos o Dispositivo didático de gêneros, elaborado por Barros (2012). Os resultados demonstram alguns dos elementos que formam o conteúdo temático, a construção composicional e o estilo do gênero, bem como que o cardápio é, aparentemente, simples, contudo, como um gênero secundário é constituído por uma complexidade que o torna um cartão de visitas do comerciante/lanchonete, é uma ferramenta de marketing. Estando bem organizado e sendo criativo na apresentação dos produtos pode ajudar o comerciante a atrair seus clientes/consumidores. PALAVRAS-CHAVE: Gêneros discursivos/textuais. Cardápio. Dispositivo didático de gênero. ABSTRACT: In Bakhtin's view that discursive/textual genres organize social interactions and are so present in people's lives that sometimes we do not realize why and for what a genre exists, so we are interested in knowing the elements that characterize the menu. Specifically, the menu circulating in snack bars, because they are so integrated in that context that often do not cause reflections on their social and structural constitution. For this, we used as a guiding tool, the analysis process didactic device developed by Barros (2012). The results showed some socio-communicative, discursive and linguistic characteristics that form the menu in its representativeness in the communicative situation. KEYWORDS: Discursives/Textuais Genres. Menu. Didactic device of the genre.
INTRODUÇÃO
De acordo com Rojo e Barbosa (2015), os gêneros discursivos/textuais, a
partir da definição bakhtiniana, “permeiam nossa vida diária e organizam nossa
comunicação” (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 17), por isso fazem parte de nosso
convívio social e estão presentes em todas as atividades desenvolvidas no
decorrer do dia das pessoas, desde o “bom-dia” ao vizinho até a produção da
ata da reunião no escritório. Portanto, em todas as nossas atividades, a
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 117
linguagem é instrumento de interação que está sempre organizada, estruturada
em diferentes e diversos gêneros discursivos/textuais.
É sob essa perspectiva que nos interessamos em conhecer um gênero
muito presente no cotidiano das pessoas: o cardápio. Dessa forma, nosso
objetivo, neste trabalho, é compreender as especificidades que caracterizam o
gênero discursivo/textual cardápio, o qual circula em diferentes lugares, como
em lanchonetes, restaurantes, jantares, inseridos em eventos de casamento,
aniversários, escolas, hospitais, entre muitos outros lugares. E por essa
diversidade, elegemos como objeto de estudo apenas os cardápios que circulam
em estabelecimentos comerciais onde se fabricam e/ou vendem-se lanches,
sanduíches, refeições rápidas e bebidas, como as lanchonetes4.
De acordo com Bakhtin (2003), os gêneros refletem os campos/esferas
da atividade humana da qual participam. Por exemplo, o cardápio escolar, em
decorrência da finalidade da interação na qual está inserido, do papel social que
assume seu produtor e de quem são os destinatários, pode receber uma
estrutura linguística diferente do cardápio de lanchonete. Logo, para uma
delimitação, nosso foco recai sobre os cardápios das chamadas lanchonetes.
A base teórica que sustenta nossa pesquisa se norteia pelas definições
de gêneros do discurso, de Bakhtin (2003), e de gêneros discursivos/textuais, de
Rojo e Barbosa (2015), e, como ferramenta de análise, utilizamos o Dispositivo
didático de gêneros, elaborado por Barros (2012).
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O conceito de gêneros inicia-se, conforme explicam Rojo e Barbosa
(2015), com as discussões de Platão e Aristóteles, em uma classificação dos
gêneros literários em: épico, lírico e dramático. A partir disso, Aristóteles realiza
também uma classificação de diversos outros gêneros sob a perspectiva de que
são “grupo[s] que engloba[m] várias espécies de substâncias individuais”
(ROJO; BARBOSA, 2015, p. 36 – grifo nosso). Contudo, foi o filósofo Bakhtin, no
século XX, quem elaborou a definição de gênero da qual as múltiplas áreas do
estudo da linguagem passaram a fazerem uso. A definição de Bakthin (2003)
tomou grande proporção quando eles realizaram estudos e discussões sobre os
4Estabelecimento comercial onde se faz refeições rápidas. Sinônimo: bar. DICIONÁRIO informal. Disponível em: <https://www.dicionarioinformal.com.br>. Acesso em: 02 fev. 2017.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 118
gêneros poéticos, e logo expandiram seus olhares para todas as produções
discursivas existentes, compreendendo que gêneros são “tipos relativamente
estáveis de enunciados”. (BAKHTIN, 2003, p.262).
O conceito de relativamente estável é porque, segundo o autor, os
gêneros mudam de acordo com as diferentes culturas, transformam-se
historicamente no tempo e são flexíveis para concretizações enunciativas
(ROJO; BARBOSA, 2015). Isso ocorre porque, todo e qualquer gênero está
inserido, conforme Bakhtin (2003), em um campo da atividade humana, que são
espaços organizados de desenvolvimento das práticas humanas. Isto é, os
campos são as situações comunicativas nas quais os gêneros nascem e se
estabelecem. Nesse sentido, o entendimento é o de que os gêneros estão
presentes no dia a dia de todas as pessoas, embora muitas não conheçam ou
não percebam conscientemente que eles existam. Como é o caso do cardápio
de lanchonetes. O cardápio é um gênero tão comum nesses locais que, por
vezes, é possível que as pessoas que o utilizam nem percebam a
especificidades e que não tenham consciência da importância de sua função
sócio-comunicativa. Essas especificidades e funções desse gênero são as
características que pretendemos abordar neste trabalho.
Para compreender o que são os gêneros, conforme Bakhtin (2003), é
preciso ter ciência de que todo e qualquer gênero é formado por três elementos:
o conteúdo temático, a construção composicional e o estilo. Tais elementos são
inseparáveis, porém cada um apresenta uma definição. Conforme Rojo e
Barbosa (2015), a construção ou forma composicional é a estrutura do texto, a
qual organiza o conteúdo temático e sua progressão. Por exemplo, a estrutura
básica de um cardápio é formada pela apresentação dos produtos em forma de
tópicos/seções: a seção de exposição dos alimentos, das bebidas, cada uma
acompanhada da descrição e do preço, expostos em listas. Às vezes, cada
produto é acompanhado de uma imagem, sinalizando ainda de forma mais
detalhada como é e quais são os ingredientes do produto.
O estilo trata dos recursos linguísticos empregados na construção do
texto: o léxico, a linguagem em uma modalidade mais informal ou formal, os
mecanismos coesivos, etc. Os recursos linguísticos utilizados em uma ata de
reunião, por exemplo, não serão os mesmos utilizados em uma conversa pelo
WhatsApp. A ata tem uma linguagem mais formal e técnica, com a construção
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 119
de períodos curtos. Já nas redes sociais, o léxico e a formalidade na linguagem
vão variar conforme o destinatário da interação, podendo ser formada por fotos,
desenhos.
O conteúdo temático é o elemento mais importante na constituição de um
gênero. Segundo Rojo e Barbosa (2015, p. 87 – grifos nossos), “o tema é o
conteúdo inferido com base na apreciação de valor, na avaliação, no acento
valorativo que o locutor (falante ou autor) lhe dá”. Compreendemos então que o
tema é o assunto central abordado no gênero, organizado segundo o juízo de
valor que seu autor lhe dá, considerando ainda quem são seus destinatários, o
objetivo da interação, o momento histórico e o lugar em que o texto é produzido.
Uma tirinha de jornal, por exemplo, pode ter, como tema, uma crítica à política,
com apontamentos de seu autor, que pode ser permeado de humor, ironia,
figuras de linguagem, etc.
Além desses elementos que estão “indissoluvelmente ligados ao todo do
enunciado” (BAKHTIN, 2003, p. 87), para Bakhtin (2003), os gêneros se dividem
em dois grupos: os gêneros primários e os secundários. Os primários são os que
pertencem às atividades cotidianas, estão presentes e são usados pelas
pessoas de forma mais simples, como um bilhete. Os gêneros secundários são
os mais complexos e elaborados, por exemplo: relatórios, atas ou formulários.
Os gêneros secundários, muitas vezes, agregam os primários, como o romance
que é secundário, mas comporta diálogos cotidianos de seus personagens,
sendo o diálogo um gênero primário.
Apresentadas as definições básicas de gênero, a seguir abordamos a
proposta de Barros (2012) para a análise de gêneros.
OS PROCEDIMENTOS PARA ANÁLISE DE GÊNEROS
De acordo com Barros (2012), os pesquisadores do Interacionismo
Sociodiscursivo (ISD), corrente teórica que tem como suporte teórico, entre
outras teorias, a definição de gêneros do discurso de Bakhtin (2003), sugerem
que para que um gênero possa ser conhecido, é preciso a análise dos elementos
que o constituem. De forma geral, analisam-se a esfera da qual participa o
gênero, a intenção comunicativa dos envolvidos na interação, os elementos que
formam o contexto de produção e a infraestrutura textual do gênero.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 120
Tomando os procedimentos sugeridos pelo ISD para análise de gêneros,
Barros (2012) elaborou um dispositivo denominado de Dispositivo didático de
gênero, visando didatizar os passos sugeridos pelo ISD. O Dispositivo é
constituído de perguntas direcionadoras para que o analista tenha condições de
conhecer as principais características de um gênero. No entanto, apesar do
dispositivo se intitular didático, é possível atender, com essa ferramenta, a outros
objetivos que não apenas conhecer as especificidades de um gênero para que
ele possa ser transformado em objeto de ensino escolar. Sendo assim, é
possível, via esse dispositivo, conhecer o nosso objeto de estudo – o cardápio –
em seu ambiente típico, verificando sua função na situação comunicativa e sua
estrutura formal.
A seguir reproduzimos o Dispositivo didático de gêneros, de Barros
(2012), com adaptações que este trabalho requer5.
Quadro 1 - Dispositivo didático
Elementos que formam o contexto de produção do gênero A qual prática social o gênero está vinculado? É um gênero oral ou escrito? A qual esfera de comunicação pertence (jornalística, religiosa, publicitária, etc.)? Quem produz esse gênero (emissor)? Para quem se dirige (destinatário)? Qual o papel discursivo do emissor? Qual o papel discursivo do destinatário? Com que finalidade/objetivo produz o texto? Qual é a relação estabelecida entre o produtor e o destinatário? Comercial? Afetiva? Qual o valor desse gênero na sociedade? Qual o suporte? Qual o meio de circulação (onde o gênero circula)? Elementos discursivos que formam o gênero Qual o tipo de discurso? Do expor? Do narrar? É um expor interativo (escrito em primeira pessoa, se reporta explicitamente ao interlocutor, tenta manter um diálogo mais próximo com o interlocutor, explicita o tempo/espaço da produção)? É um expor teórico (não deixa marcas de quem fala, para quem fala, de onde e quando fala)? É um narrar ficcional? É um narrar acontecimentos vividos (relato)? Como é a estrutura geral do texto? Tem título/subtítulo? É assinado? Qual sua extensão aproximada? Acompanha fotos/figuras? Como são organizados os conteúdos no texto? Em forma de lista? Versos? Prosa? Qual o tipo de sequência predominante? Sequencia narrativa? Descritiva? Explicativa? Argumentativa? Dialogal? Injuntiva? Elementos linguístico-discursivo que formam o gênero Como são feitas as retomadas textuais? Quais os tempos verbais usados? E os tipos de verbo: ação? Estado?
5 Optamos em não apresentar todas as perguntas que formam o Dispositivo, elegendo apenas as que estão
relacionadas ao gênero cardápio.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 121
Quais os tipos de conectivos usados: lógico (mas, portanto, assim, dessa forma, etc.)? Temporal (era uma vez, um dia, depois, amanhã, etc.)? Espacial (lá, aqui, no bosque, etc.)? Qual a variedade linguística privilegiada? Mais formal? Mais informal? Coloquial? Estereotipada? Respeita a norma culta da língua? Usa gírias? Como se verifica isso no texto? Pelo vocabulário empregado? Pela sintaxe? Como são mobilizados os sinais de pontuação no texto? Quais os mais usados? E com qual finalidade? Que vozes são frequentes no texto? Do autor? Sociais? De personagens? De que instâncias advêm essas vozes? Do poder público? Do senso comum? De autoridades científicas? Há a mobilização de elementos paratextuais (quadros, imagens, cores...) ou supratextuais (títulos, subtítulos, sublinhados...)? Como eles agem na construção dos sentidos do texto? Observe, caso o texto possibilite, a forma de grafar as palavras, as cores, a expressão gestual, a forma das imagens, a entonação, as pausas, etc.
Fonte: Barros (2012) - com adaptações das pesquisadoras.
O GÊNERO CARDÁPIO
Para conhecer o gênero cardápio, partimos dos princípios sugeridos por
Barros (2012). Assim, nossa primeira ação foi reunir um conjunto de exemplares
do gênero, a fim de formar nosso corpus, sendo ele, portanto: 04 exemplares:
um cardárpio impresso no pub6 Tenete Pimenta, estabelecimento localizado na
cidade de Ouro Preto - MG; o segundo cardápio é online, disponivel nas redes
sociais da lanchonete delivery Foodflix, localizada em Montes Claros - MG; o
terceiro é impresso e de uma franquia da esfiharia Casa da Sfihaa, da cidade de
Siqueira Campos - PR; e o quarto da cidade de Jacarezinho - PR, é o cardápio
da pizzaria La Favorita, também impresso.
Nossa intenção em selecionar exemplares de diferentes lugares do país
foi para entender se essa questão pode, de alguma forma, influenciar na
regularidade dos elementos que formam o gênero, ou se esse é um gênero mais
estável em seus componentes estruturais, dentro do que Bakhtin (2003) define
como relativamente estável.
6Pub (pronuncia-se pâb) é uma abreviação do inglês public house, cujo significado é casa pública, e designa um. tipo de bar muito popular no Reino Unido, República da Irlanda e outros países de influência britânica, como Austrália ou Nova Zelândia, onde são servidas bebidas (principalmente alcoólicas) e comida ligeira. Um pub tem especial significado para os britânicos. Distingue-se de outros bares por manter o estilo medieval com pouca iluminação, o que o transforma num ambiente muito acolhedor. É o local ideal para beber uma cerveja após o trabalho ou ponto de encontro de amigos. Em alguns pubs é possível ouvir música ao vivo, assistir a jogos de futebol ou jogar sinuca, por exemplo. A cerveja é a bebida mais consumida num pub, tendo sempre disponível uma grande variedade de cervejas de pressão, onde fazem questão de possuir as melhores cervejas regionais. Esse estilo de bar tem tido bastante sucesso, sendo cada vez mais frequente encontrá-los em diversas cidades pelo mundo afora. SIGNIFICADOS. Disponível em: <https://www.significados.com.br/pub/>. Acesso em: 12 fev. 2018.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 122
Antes ainda de partimos para a apresentação das respostas às perguntas
que formam o dispositivo, apresentamos pesquisas realizadas sobre a definição
teórica do cardápio, conforme estabelece Barros (2012).
A definição de cardápio no Dicionário de gêneros, de Costa (2008, p. 48-
49) é:
Cardápio (v. CARTA, LISTA, MENU, RELAÇÃO): nos restaurantes e afins, relação/ lista (v.) das iguarias, bebidas e sobremesas disponíveis para consumo, quase sempre seguida dos seus preços, colocados à direita, e, muitas vezes, com a descrição sucinta e telegráfica da sua composição, abaixo de cada item da lista. Em banquetes, jantares de gala e afins, apenas consta a relação (às vezes a descrição da composição) das iguarias, bebidas e sobremesas a serem servidas.
Logo, o cardápio é visto por Costa (2008) como uma relação de alimentos,
bebidas, etc., estruturada em: nome do produto, detalhamento e preço.
Entretanto, é importante ressaltar que, para Costa (2008), o cardápio “quase
sempre” tem a referida formatação. Isto é, o gênero é mais livre na constituição
de sua construção composicional e seu estilo, caracterizando-se como o
relativamente estável, o que vai ao encontro da definição de Bakhtin (2003).
Também ressaltamos o fato de Costa (2008, p. 49) expor que “em
banquetes, jantares de gala e afins”, o cardápio pode ganhar nova estrutura, uma
vez que não faz sentido a apresentação de preços. Assim, como explica Bakhtin
(2003), o gênero se estrutura conforme sua função comunicativa e reflete o
campo da atividade humana no qual está inserido.
Diferente de Costa (2008), Barreto7 (2001 apud LINASSI, 2009, p. 13)
define esse gênero não tão pautado em seus aspectos composicionais, mas na
função sócio-comunicativa:
O cardápio tem por base vender os produtos ofertados pelo restaurante, sendo ele o seu maior instrumento de vendas, o cartão de visitas da casa. Seu papel principal é informar, devendo ter para isso: grafia e layout corretos, atendendo as expectativas do cliente tanto na alimentação, quanto em seu formato, cor e organização. O menu, como também é chamado, é inconscientemente avaliado pelo público, que com isso já firma sua primeira impressão sobre o restaurante.
Logo, é a intenção comunicativa, o campo da ativdade humana, o
conteúdo temático que definem a construção composicional e o estilo do gênero,
7 BARRETO, Ronaldo L. P. Passaporte para o sabor: tecnologia para elaboração de cardápios. São Paulo: Senac, 2001.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 123
assim como defende Bakhtin (2003). Objetivando vender seus produtos, o
estabelecimento oferece ao cliente o cardápio, a fim de que os produtos possam
ser conhecidos e escolhidos diante da vontade ou necessidade do consumidor.
A apresentação dos produtos está ligada à exposição da organização do
ambiente, por isso, o cardárpio “faz parte do marketing do restaurante e deve
estar voltado a atingir o segmento de mercado proposto” (BARRETO, 2001 apud
LINASSI, 2009, p. 13). Assim, muito mais do que só um expositor dos produtos
comercializados, o gênero é uma ferramenta de marketing. Definição que
demonstra o valor do gênero na sociedade (ROJO; BARBOSA, 2015; BARROS,
2012), para aqueles que interagem dentro de uma situação comunicativa por
meio do cardápio.
A partir disso, entende-se o cardápio como um gênero da modalidade
escrita, de forma impressa ou virtual, que configura-se como um gênero
secundário8, pela complexidade que envolve a elaboração do texto.
A seguir, apresentamos os resultados de nossas análises, a partir do
dispositivo de Barros (2012). A primeira questão é: “a qual prática social o gênero
está vinculado?”. Nossos exemplares estão vinculados à prática social, ou ao
que Bakhtin (2003) define como atividade humana, de apresentação de produtos
que são ofertados por estabelecimentos comerciais de consumo de alimentos e
bebidas, a fim de auxiliar os consumidores na escolha dos produtos, dos
ingredientes que compõe os produtos e os preços. Sendo uma forma de
apresentação do referido estabelecimento, pertence à esfera social comercial de
consumo de alimentos/bebidas. E, em decorrência da prática social da qual
emerge o gênero, a relação entre o produtor e o destinatário do cardápio pode
ser classificada como comercial.
Sobre os elementos que formam o contexto de produção, o produtor e seu
papel discursivo (BARROS, 2012), o autor do texto pode ser o próprio dono do
estabelecimento, que pode elaborar, produzir e imprimir ele mesmo o cardápio,
de forma mais artesanal. Ou ele pode contratar uma empresa especializada, uma
gráfica para as referidas ações, repassando à empresa as instruções que julgue
necessárias e os detalhes que gostaria que constassem em seu cardápio, sendo
o layout realizado pelo profissional contratado. Nesse sentido, o emissor/autor
8 Sobre diferença entre gênero primário e secundários, cf. Bakhtin, 2003.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 124
do cardápio não precisa ter uma formação acadêmica ou profissional específica
para produzir o referido gênero. Diferente, por exemplo, de um editorial de jornal
que é produzido pelo jornalista-chefe ou pelo editor responsável pela mídia, ou
seja, que requer uma autoridade do autor para a produção textual.
Logo, muitas vezes, não é possível determinar quem é exatamente o autor
de nossos exemplares: o cardápio da delivery Foodflix não apresenta nomes ou
logomarcas de nenhuma gráfica ou empresa do ramo que o possa ter
confeccionado, poderia, então, ter sido produzido pelo responsável pelo
estabelecimento. É o mesmo que acontece com o cardápio do pub Tenente
Pimenta. Já no cardápio da pizzaria La Favorita existe uma logomarca de uma
empresa, com nome e telefone, marcando, assim, a produção do texto por uma
instituição especializada em desenvolvimentos gráficos e impressões. E, a Casa
da Esfihaa também não deixa marcas do produtor de seu cardápio.
Sobre o destinatário do gênero, ele caracteriza-se por ser o
cliente/consumidor do local onde circula os cardápios e seu papel discursivo é o
de comprar/consumir os produtos ofertados, conhecendo, pelo cardápio, o
estabelecimento. Contudo, é fundamental destacar que ao planejar e produzir o
cardápio, o produtor sabe ou presume quem possa ser seus
destinatários/consumidores. Por isso, a forma de apresentação do gênero é
direcionada e diferenciada conforme o segmento da empresa e dos possíveis
clientes. Por exemplo, no cardápio do pub Tenente Pimenta as comidas e
bebidas estão organizadas em seções intituladas de forma criativa e bem-
humorada, orientadas para um público jovem e adulto, uma vez que esse tipo de
estabelecimento não tem como público alvo menores de idade, funcionando,
geralmente, mais ao entardecer e durante a noite. Para abonar nossa afirmação,
a respeito de uma construção mais criativa, transcrevemos alguns títulos de
algumas das seções que formam o cardápio do pub: “Pros Brutos” - lista os
lanches, que provavelmente tenham esse nome porque os lanches são
alimentos mais ricos em gorduras e carboidratos; “Pra beliscar” - seção das
porções; “...Do rio...do mar” - seção de peixes e frutos do mar; “Pros carnívoros”
- porções e pratos compostos por carnes vermelhas; “Gordices” - lista as
sobremesas; “Pros animados” - bebidas alcoólicas/drinks com destilados; “Pra
matar a sede” - cervejas, vinhos, espumantes, doses e refrigerantes.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 125
No caso da empresa Foodflix, sendo uma lanchonete delivery, ou seja,
que só trabalha com entrega a domicílio, o estabelecimento tem como
destinatário/público-alvo pessoas que gostam ou têm a necessidade de ficar
mais em casa, público este também vislumbrado pela empresa Netflix – uma
plataforma privada, que existe em muitos países, que oferece a custo financeiro
filmes e séries de streaming9 para que os telespectadores possam assistir em
casa: na televisão, em smartfones, em tabletes ou IPhones. Assim, a lanchonete
cria o nome do estabelecimento fazendo referência aos lanches (food) que
podem ser consumidos em casa, assistindo a um filme ou série (flix – de Netflix).
Também os nomes dos lanches seguem essa proposta: todos eles fazem
referência direta aos programas e às séries transmitidas pela Netflix, e por outros
canais pagos de televisão. Por exemplo, o sanduíche “Frango Anathomy” que
referencia a série “Grey’s Anathomy”, disponível na Netflix; o lanche “Game of
Fomes”, que faz referência à série “Game of Thrones”, do canal de televisão
HBO. As fontes, estilo de letras e cores usadas para criar o logotipo do cardápio
e os nomes dos lanches também fazem referência às logomarcas das séries.
Tendo, em decorrência, filmes e séries como ponto de criação para os
nomes dos lanches, como pode ser visto na FIG. 1, podemos compreender que
os destinatários do cardápio da Foodflix, seu público consumidor alvo, é formado
por jovens e adultos, em uma faixa etária provável que se inicia em 16 anos,
seguindo, assim, o sistema de classificação de filmes e séries.
9 Streaming é uma tecnologia que envia informações multimídia, através da transferência de dados, utilizando redes de computadores, especialmente a Internet, e foi criada para tornar as conexões mais rápidas. Um grande exemplo de streaming é o site Youtube, que utiliza essa tecnologia para transmitir vídeos em tempo real. Em inglês, a palavra stream significa córrego ou riacho, e por isso a palavra streaming remete para o fluxo, sendo que no âmbito da tecnologia, indica um fluxo de dados ou conteúdos multimídia. Muitas pessoas assistem filmes, seriados ou jogos de futebol em streaming. O live streaming permite que o utilizador veja um programa que está sendo transmitido ao vivo. Existem também a possibilidade de transmitir um evento através do live streaming, para que pessoas que estão longe possam assistir. Quando a ligação de uma rede é banda larga, a velocidade de transmissão da informação é muito maior, dando a sensação ao usuário de que o áudio e o vídeo são transmitidos em tempo real. Atualmente, emissoras de televisão, bem como rádios FM e AM, além de várias empresas que realizam eventos, utilizam esta tecnologia para interação digital com seus ouvintes e clientes. O streaming possibilita que um usuário reproduza mídia, como vídeos, que são sempre protegidos por direitos autorais, de modo que não viole nenhum desses direitos, tornando-se bastante parecido com o rádio ou a televisão aberta. A tecnologia é também muito usada em jogos online, em sites que armazenam arquivos, ou em qualquer serviço onde o carregamento de arquivos é bastante rápido. SIGNIFICADOS. Disponível em: <https://www.significados.com.br/streaming/>. Acesso em: 14 fev. 2018.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 126
Figura 1 - Cardápio Foodflix
Fonte: Facebook (2017).
No caso do cardápio da esfirraria, na primeira página estão descritos os
dias e horários de atendimento, assim, considerando horário, nossa
interpretação é de que o público consumidor pretendido não tem uma idade
específica. A empresa pretende atender desde crianças a idosos. Funciona de
quarta a sábado e segunda das 17h às 00h, e domingos e feriados das 18h às
00h30. Também a pizzaria recebe um público variado, sem restrição de idade,
por isso, o destinatário do cardápio também não tem distinção entre idade.
Sobre o veículo que divulga o gênero, podem ser panfletos impressos,
redes sociais e aplicativos de celulares. O cardápio da Foodflix, como
mencionado, é veiculado pelas redes sociais Facebook e Instagram e pelos
aplicativos de mensagens como o Whatsapp e o Messenger. Os cardápios da
Casa da Esfiha, pizzaria La Favorita e do pub são veiculados em panfletos
impressos.
Seguindo para a investigação dos elementos discursivos, nossos
exemplares caracterizam-se pelo discurso denominado de expor teórico
(BARROS, 2012). Em busca de uma linguagem que seja adequada a expor de
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 127
forma objetiva os produtos, o texto apresenta-se de forma técnica: o produto, a
descrição do produto e o preço. Como exemplificação, reproduzimos o cardárpio
da pizzaria:
Figura 2 - Cardápio La Favorita
Fonte: Arquivo pessoal (2018).
Nas páginas centrais do cardápio, como é possível visualizar na FIG. 2,
há uma divisão por seções ou tópicos na exposição dos produtos: o que é
alimento e o que é bebida, com subdivisões de pizzas, lanches, pratos, esfirras,
alimentos salgados e doces, sucos, refrigerantes, bebidas alcóolicas.
Já a respeito de “como é a estrutura geral do texto?” (BARROS, 2012), o
cardápio é estruturado por um número de páginas adequados a quantidade de
alimentos e bebidas que o estabelecimento oferece. Portanto, não há como
definir o texto como de longa ou curta extensão. Geralmente, são poucas
páginas, sem um formato padrão característico. A empresa pode apresentar um
cardápio formado por capa – com o nome do estabelecimento, logradouro,
telefone, horário de funcionamento, um slogan e outras páginas com a exposição
do produtos, como é o caso da esfirraria (FIG. 3) e da pizzaria, ou apenas de
uma única página, como é o da Foodflix, na FIG. 1.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 128
Figura 3 - cardápio da Casa da Esfihaa
Fonte: Arquivo pessoal (2018).
Os títulos que as seções recebem estão relacionados ao destinatário,
conforme abordado, ao estilo e segmento que atende o estabelecimento. Por
exemplo, a pizzaria e a esfirraria que atendem a público geral, sem definição de
idade, têm uma estrutura mais tradicional (seções: Esfirras salgadas, Esfirras
especiais, Esfirras doces, Pastéis arabes, Pastéis doces, Sucos naturais,
Refrigerantes diversos, etc.); e no caso do cardápio do pub Tenente Pimenta,
como mencionado, as seções recebem nomes bem criativos, por exemplo, as
porções mais tradicionais são listadas na seção “Pra beliscar”; as porções
destinadas a vegetarianos e veganos: “Pros Lights”; as sobremesas: “Gordices”;
para os que não digerem bebidas alcoolicas: “Pros sóbrios”, entre outras.
Portanto, a estrutura de apresentação do formato não é estável, ela pode
ser determinada por cada estabelecimento, de acordo com a intenção
comunicativa da empresa. No cardápio da Foodflix, é possível notar que os
lanches estão dispostos lado a lado, mas ainda seguem o modelo de apresentar
o nome do produto em letras grandes, seguindo de sua composição em letras
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 129
menores e, logo após, seu valor. O cardápio da La Favorita segue a exposição
dos produtos em uma ordem alfabética, com os produtos listados um abaixo do
outro com letras grandes, seguindo de sua composição em letras menores e logo
após seu valor, assim como é na esfirraria.
Os produtos são expostos por meio da sequência descritiva, organizada
em frases curtas, com tamanho de letra menor do que o nome do produto,
detalhando o que compõem os alimentos e as bebidas quando drinks e o preço
do produto. Por exemplo, lanche: “Tenete pimenta, 26 [pão australiano/burger
grelhado recheado com gorgonzola 180g/ rúcula/ bacon/ queijo prato/ Onion
crispy/ acompanhado de rustic potatoes, molho Teneten Pimenta e barbecue]”
(cardápio do Tenete Pimenta).
Em relação aos elementos linguístico-discursivos que formam o gênero
discursivo/textual cardápio (BARROS, 2012), verificamos que não estão
presentes mecanismos que promovam retomadas textuais, nem conectivos
lógicos, temporais e espaciais, e a densidade verbal é nula, isso pelo fato de o
texto ser formado pela sequência descritiva. O mecanismo de conexão textual
se estabelece na estrutura na distribuição de alimentos por seções. A variedade
linguística empregada depende também do segmento do estabelecimento e de
quem são seus destinatários/clientes: pode ser formada por neologismos, como
é o caso do Foodflix; pode ser uma linguagem mais informal, como o pub Tenete
Pimenta, e com uma formalidade coloquial, como nos cardápios da pizzaria e da
esfirraria. Contudo, em todos os casos, as regras da gramática da língua
portuguesa são consideradas no uso de vírgulas, de letra maiúscula em nomes
próprios ou início de frases, do cifrão que representa o real para exposição dos
valores dos alimentos.
A maioria dos exemplares analisados, como mencionado, não identifica
quem foi o produtor do texto, sendo assim, a única voz identificável, é a voz
empírica do narrador.
Nos exemplares há uma grande mobilização de elementos paratextuais,
por exemplo, no cardápio da pizzaria são expostas imagens de pizzas e de
esfirras para ilustração do texto (FIG. 2). No cardápio da Casa da Esfiha, em
cada tópico é encontrada a imagem de esfirras. Enquanto no pub as
encontramos imagens nos tópicos, “Pros brutos”, que tem um homem forte
malhando; “Pros carnívoros”, um espeto de churrasco e “Pros animados”, taças
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 130
de drinks. Também foram colocadas imagens de pimentas na frente dos pratos
que são mais picantes, e imagens de balãozinho nos pratos mais novos. O
cardápio da lanchonete Foodflix tem uma imagem de um motoqueiro no rodapé
do cardápio, pois a lanchonete serve apenas em delivery.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o objetivo de compreender as especificidades do cardápio de
lanchonete, um gênero discursivo/textual tão presente no cotidiano dos
frequentadores desse tipo de estabelecimento comercial que, geralmente, as
pessoas não se preocupam em querer conhecer por que e para que esse texto
existe, analisamos um conjunto de exemplares do gênero, tendo como princípio
a definição de gênero discursivo de Bakhtin (2003) e como ferramenta
norteadora da investigação o Dispositivo Didático, elaborado por Barros (2012).
A partir dos resultados das análises, podemos afirmar que o cardápio é,
aparentemente, um gênero simples, principalmente por sua função sócio-
comunicativa ser a de apresentar os produtos, alimentos e bebidas, que a
lanchonete oferece. Contudo, como um gênero secundário (BAKHTIN, 2003), é
constituído por uma complexidade que o torna um cartão de visitas do lugar, uma
ferramenta de Marketing. Estando bem organizado e criativo, pode ajudar a atrair
os consumidores.
Pode não se modificar diante da região do país em que está, como
inicialmente acreditamos, as modificações se instauram diante do contexto de
produção: de quem o produz, e, principalmente, para qual público se destinam
os produtos vendidos na lanchonete. Em decorrência, o estilo vai variar para
atender as questões contextuais, mas a estrutura é relativamente estável: uma
listagem dos produtos, seus ingredientes e preços.
Enfim, o que consideramos mais importante destacar com os resultados
desta pesquisa é que, com ela, pudemos compreender os preceitos de Bakhtin
(2003) na prática, isto é, como os gêneros realmente estão e porque estão em
nossa vida diária, organizando nossas interações sociais.
REFERÊNCIAS BAKHTIN, Michail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 131
BARROS, Eliana Merlin Deganutti de. Transposição didática externa: a modelização do gênero na pesquisa colaborativa. Raído, Dourados (MS), v. 6, n. 11, p. 11 - 35, jan./jun., 2012. COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. LINASSI, Rossano. Engenharia de cardápios e custeio baseado em atividades: uma aplicação em restaurante oriental. 2009. 261 f. Dissertação (Mestrado em Turismo e Hotelaria) – Universidade do Vale do Itajaí, Balneário Camboriú (SC), 2009. Disponível em: http://siaibib01.univali.br/pdf/rossano%20linassi.pdf . Acesso em: 30 jan. 2018. ROJO, Roxane; BARBOSA, Jaqueline P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos. São Paulo: Parábola, 2015.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 132
Uma análise textual dos discursos instituídos em “O patinho feio” de Andersen
(RE)THINK THE RELATIONS BETWEEN CONTEXT, CONTEXT AND TEXT(S): THE PERSPECTIVES OF THE DISCOURSES' TEXTUAL ANALYSIS
Aline Regina Lemes de Sene (UENP – PG) Marilúcia dos Santos Domingos Striquer (UENP – PQ)
Resumo: Este trabalho, resultado de pesquisa desenvolvida na disciplina Texto e ensino, no Profletras da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), tem o objetivo de apresentar uma análise realizada sobre o conto “O patinho feio”, de Hans Christian Andersen, em obra organizada por Sandroni (2007), tendo como princípio (re)pensar as relações entre contexto, contexto e texto, a partir dos preceitos teóricos de Adam (2011) sobre a Análise textual dos discursos e da proposta de Antunes (2010) de análises centradas em elementos determinantes da textualidade e da função interacional de um texto. A premissa inicial foi a de que os estudos em questão poderiam contribuir para a compreensão dos elementos que constituem o referido conto, e, em decorrência, nos instrumentalizar para que pudéssemos toma-los como eixo organizador das práticas de leitura e produção de textos em salas de aula da educação básica. Os resultados demonstraram que o entrelaçamento das propostas teórico-metodológicas dos dois referidos autores é profícuo, os elementos que formam o conto foram detalhadamente conhecidos, nos permitindo assim toma-los, como conteúdo escolar. Palavras-chave: Conto maravilhoso; Análise textual dos discursos; Ensino da língua portuguesa.
Abstract: This work aims to present an analysis of Hans Christian Andersen's tale "The Ugly
Duckling", in a work organized by Sandroni (2007), having as principle (re)think the relations between context, context and text, from the theoretical precepts of Adam (2011) about the Textual analysis of the discourses and the Antunes’ (2010) proposal of analyzes centered on elements that determine textuality and the interactional function of a text. The initial premise was that the studies in question could contribute to the understanding of the elements that make up this tale, and, as a result, instrumentalize us so that we could take them as the organizing axis of the practices of reading and producing texts in classrooms of basic education. The results showed that the interweaving of the theoretical and methodological proposals of the two authors is profitable, the elements that make up the tale were thoroughly known, allowing us to take them as school content. Keywords: Wonderful tale; Textual analysis of the discourses; Teaching of Portuguese language.
INTRODUÇÃO
Prescreve a Base Nacional Comum Curricular (2017) que entre as
competências específicas a serem desenvolvidas pelo aluno na disciplina de
língua portuguesa, no ensino fundamental II, está a de “reconhecer o texto como
lugar de manifestação e negociação de sentidos, valores e ideologias”,
desenvolvimento possível, diante de nossa experiência como docentes da
educação básica, quando o texto é tomado como objeto de ensino e
aprendizagem em todos os seus aspectos: linguísticos, contextuais e cognitivos.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 133
Contudo, ainda é possível constatar a presença de atividades de análise
linguística em livros didáticos desconectadas, ou seja, atividades que podem ser
realizadas pelo aluno com a leitura apenas do enunciado do exercício. Bem
como, persistem na prática da sala de aula propostas pedagógicas de
professores que concebem a linguagem como expressão do pensamento, que
oferecem a seus alunos exercícios de classificação gramatical, por exemplo,
atividades para que o aluno retire ou identifique em um texto as palavras que
podem ser classificadas como adjetivos.
Levar o aluno a interagir nas mais diferentes situações comunicativas
existentes na sociedade, produzindo e interpretando textos, orais, escritos,
multisemióticos, negociando sentidos, (re)conhecendo valores e ideologias é
tarefa que requer muitas ações pedagógicas, nas quais o docente deve ocupar
o papel de mediador, no sentido que Leontiev (2004) apresenta. Conforme o
autor, para que o aluno aprenda os conteúdos escolares,
Para fazer deles as suas aptidões, 'os órgãos da sua individualidade', a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através doutros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança 'aprende' a atividade adequada. Pela sua função, este processo e, portanto, um processo de 'educação' (p. 272 - grifos do autor).
Estes “doutros” são os professores mediadores que já se apropriaram dos
objetos materiais e intelectuais e que já dominam ações e operações e podem,
então, auxiliar os discentes. Nesse sentido, sempre preocupados em nossa
formação enquanto mediadores, no anseio de podermos colaborar para
mudança das situações destacadas, e, em decorrência, poder cumprir o
prescrito pelos documentos orientadores das práticas docentes, realizamos
estudos, reflexões, pesquisas, das quais, destacamos neste trabalho uma
análise realizada a partir do entrelaçamento dos preceitos teóricos de Adam
(2011) sobre a Análise textual dos discursos (p. 13), e da proposta de Antunes
(2010) de “como se pode fazer análises de textos centradas em elementos que,
de fato, são determinantes para construção de sua textualidade e de sua função
interacional” (p. 13 – grifos da autora). A intenção é sempre aprimorar os
conhecimentos teóricos que sustentam nossa prática e buscar diferentes
metodologias que possibilitem compreender os fenômenos do mundo
circundante que se materializam em texto, para que por conhecer os elementos
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 134
que formam um texto tenhamos condições de tomá-los como objeto de ensino e
aprendizagem escolar.
Logo, nosso objetivo, neste trabalho, resultado de pesquisa desenvolvida
na disciplina Texto e ensino, no Profletras da Universidade Estadual do Norte do
Paraná (UENP), é apresentar uma análise realizada do conto O patinho feio de
Hans Christian Andersen (SANDRONI, 2007), tendo como princípio (re)pensar
as relações entre contexto, contexto e texto que podem contribuir para que
possamos tomar esse texto como eixo organizador das práticas de leitura e
produção de textos em salas de aula da educação básica.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
De acordo com Adam (2011), apesar da linguística de texto e a análise do
discurso terem origem epistemológica e historicidade diferentes é possível, e é
exatamente essa a proposta teórico-metodológica do autor, situar a “linguística
textual no quadro mais amplo da análise do discurso” (p. 24). Sob essa
perspectiva, destaca o autor, que um texto deve sempre ser visto a partir do
gênero do discurso que o materializa e o estabiliza social e normativamente, uma
vez que um gênero reflete a situação comunicativa ou formação discursiva da
qual faz parte, reflete e se concretiza de acordo com a ação de linguagem
pretendida, promovendo, assim, interação social entre os sujeitos. Dito de outra
forma, um sujeito inserido em uma formação discursiva, em uma prática social
de linguagem, de acordo com seu objetivo, elege um gênero já existente/um
interdiscurso e interage na sociedade realizando as adaptações sociais e
discursivo-linguísticas necessárias na organização da textualidade do texto.
Por esse entendimento, é possível que a linguística textual seja definida
como um subdomínio da análise das práticas discursivas (ADAM, 2011). Para
tanto, conceitos e ações precisam ser ampliados. Um deles, segundo Adam
(2011, p. 52), é a definição de contexto, “o contexto entra na construção do
sentido do enunciado”, não é apenas formado por elementos que estão no
cotexto, os quais levam às situações extralinguísticas. Nesse sentido, a
denominação dada pelo autor é a de co(n)texto, porque na interpretação de um
texto misturam-se os dados linguísticos e os dados da situação extralinguística.
O contexto não é um dado objetivo, pronto e concreto, ele é reconstruído pelo
leitor/ouvinte/analista, a partir dos conhecimentos de mundo que tem o sujeito.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 135
Esse sujeito vai interpretar o texto apoiando-se na (re)construção de outros
enunciados que estão à esquerda e/ou à direita daquele texto que está sendo
lido/ouvido/analisado. Assim, o co(n)texto de um enunciado é sempre formado
por outros que o antecederam, pelos aspectos que formam o texto propriamente
dito, pelos enunciados que se relacionam com aquele texto no momento da
interação, e outros possíveis de serem construídos. Essa é a justificativa para a
assertiva de Adam (2011, p.56) de que “o contexto está ligado à memória
intertextual” dos sujeitos (ADAM, 2011, p. 56).
Nesse ponto, é possível compreender que os níveis ou planos da análise
textual estão em dependência com os níveis ou planos da análise do discurso:
um sujeito que está dentro de uma formação sociodiscursiva, a partir da ação
linguageira pretendida, ou seja, de sua intenção comunicativa, formula um
discurso, por meio de interdiscursos que constituem sua memória, discurso que
se molda em um gênero, que por sua vez é materializado em um texto. Esse
texto então estrutura o ato ilocucionário, a responsabilidade enunciativa que
assume o produtor, os sentidos pretendidos, por meio da organização de um
plano geral, de sequências tipológicas, de proposições, de períodos, da escolha
lexical.
Essa perspectiva da análise textual dos discursos apresentada já
apresentada por Adam, inicialmente em 1999 e depois em 200810 é retomada
por Marcuschi (2008) em seus estudos sobre a importância de se instaurar e de
como fazer a articulação entre o plano discursivo e textual no estudo dos textos.
Norteado pelos preceitos de Adam, explica Marcuschi (2008) que, na referida
perspectiva, o texto é “um objeto concreto, material e empírico resultante de um
ato de enunciação. Com isto, chega à articulação do discursivo com o textual e
a distinção entre ambos dilui-se de modo sensível” (p. 83). Assim, a separação
do textual e do discursivo é apenas metodológica, pois na essência da
construção de sentidos de um texto tal separação anula-se, uma vez que o que
ocorre é:
Na realidade, se observarmos como agimos nas nossas decisões na vida diária, dá-se o seguinte: primeiramente, tenho uma atividade a ser
10 A obra de 1999 é: ADAM, J.M. Linguistique textuelle. Des genres de discours aux textes. Paris: Nathan,
1999. E a obra de 2008 é: ADAM, J.M. La linguistique textuelle. Introdução à I’analyse textelle des
discursos. Paris, 2008 – a qual foi traduzida para o português e a que utilizamos como referência teórica
neste trabalho, em sua segunda edição revista e aumentada:2011.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 136
desenvolvida e para a qual cabe um discurso característico. Esse discurso inicia com a escolha do gênero que por sua vez condiciona uma esquematização textual. (MARCUSCHI, 2008, p. 85).
Não exatamente seguindo os pressupostos de Adam (2011) e Marcuschi
(2008), mas comungando com eles, Antunes (2010) apresenta na obra Análise
de textos: fundamentos e práticas uma proposta de análise de textos. A intenção
da autora é a de apresentar alguns exemplos de como professores, estudantes,
estudiosos sobre o ensino e aprendizagem de língua podem fazer análises de
textos centradas em “elementos de sua construção, de sua relevância
comunicativa e de como se pode ultrapassar, nas atividades de análise, a
simples identificação de elementos de sua superfície” (p. 15). Para tanto, elege
três grandes blocos de elementos para o processo de análise: 1) os aspectos
globais do texto; 2) os aspectos da construção do texto; 3) os aspectos da
adequação vocabular. Explica a autora que apenas didaticamente esses
aspectos podem ser isolados. Um texto só existe e por isso só pode ser
investigado levando todos os elementos que o constituem de forma unificada.
De acordo com Antunes (2011), o primeiro passo para análise de um
texto é orientar-se para apreensão de seus aspectos globais (1), isto é, para o
entendimento dos elementos que definem o sentido e os propósitos globais do
texto. Alguns desses elementos seriam: Quanto ao universo de referência: 1.a)
o texto pertence, faz referência a um mundo real ou ficcional; em decorrência
disso, 1;b) o texto se insere em qual campo social-discursivo (formação
discursiva, conforme Adam (2011)); Por que um texto assume níveis de
formalidade, formatos para determinados suportes em dependência com as
“normais sociais e discursivas, que decorrem do universo de referência e o
campo social em que o evento comunicativo se insere e vai circular” (ANTUNES,
2010, p. 66), é preciso conhecer como se realiza a: 1.c) adequação contextual
do texto; e: 1.d) os destinatários previstos. Quanto a unidade semântica: 1.e) de
qual tema trata o texto; 1.f) o ponto de vista a partir do qual o autor trata o tema.
Quanto a progressão do tema: 1.g) como se organiza o tema, ou seja, o plano
de progressão do tema. Quanto o propósito comunicativo: 1.h) o texto acontece
sempre a partir de uma intenção comunicativa, de uma atividade de linguagem.
Quanto aos esquemas de composição: tipos e gêneros: “Os textos obedecem a
padrões regulares de organização, em decorrência do tipo e, sobretudo, do
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 137
gênero que materializam” (ANTUNES, 2010, p. 70), por isso é importante
conhecer: 1.i) qual gênero o texto materializa; 1.j) qual o tipo de texto
predominante. Quanto a relevância informativa: 1.k) a relevância informativa.
Quanto as relações com outros textos; 1.l) a intertextualidade.
Sobre os elementos que formam os aspectos da construção do texto (2)
também denominados por Antunes (2011) de aspectos mais pontuais. Segundo
a autora é impossível esgotar a totalidade desses elementos em uma análise,
conforme o gênero materializado pelo texto, alguns desses aspectos são mais
relevantes investigar, outros podem ser até mesmo ser dispensados. Mas, de
uma forma geral, os elencados por Antunes (2010) são a coesão e a coerência,
de acordo com Antunes (2010, p. 117) “ a íntima ligação da coesão com a
coerência decorre do fato de ambas estarem a serviço do caráter semântico do
texto, de sua relevância comunicativa e interacional”, e tal ligação pode se
instituir da seguinte forma: os tipos de nexos textuais (2.a): (2.a.i) os nexos de
equivalência; (2.a.ii) os nexos de contiguidade; (2.a.iii) os nexos de associação;
(2.a.iv) os nexos de conexão ou sequenciação. Quanto aos recursos de
constituição dos nexos textuais (2.b): (2.b.i) a repetição de palavras; (2.b.ii) a
paráfrase; (2.b.iii) o paralelismo; (2.b.iv) a substituição de unidades do léxico;
(2.b.v) a substituição pronominal; (2.b.vi) a associação semântica entre palavras;
(2.b.vii) o uso de expressões conectivas.
O terceiro grupo é formado pelos aspectos de adequação vocabular,
segundo Antunes (2010, p. 178), “um repertório vocabular amplo e diversificado
é condição de uma atuação comunicativa socialmente participativa, funcional e
relevante”. Assim, o léxico empregado no texto (3.1) colabora,
fundamentalmente, para a coerência e para a unidade semântica.
OS ASPECTOS GLOBAIS E PONTUAIS DO CONTO O PATINHO FEIO
Partindo da proposta para análises de texto apresentada por Antunes
(2010), analisamos o conto “O patinho feio”, de Hans Christian Andersen,
publicado na obra As melhores histórias de Andersen, organizada por Laura
Sandroni (2007). A obra é integrante do acervo do Programa Nacional Biblioteca
da Escola (PNBE), do ano de 2010, recomendada para o público infanto-juvenil.
Nesse sentido, buscando analisar o texto para que a partir de conhecidos os
elementos que o formam ter condições de tomá-lo como eixo organizador das
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práticas de ensino da língua portuguesa em salas de aula da educação básica,
(re)destacando o fato da obra ser recomendada para esse fim.
Iniciando nossa investigação com vistas à apreensão dos aspectos
globais (1) do conto, a primeira constatação, apoiado no agrupamento de
gêneros proposto por Dolz e Schnewuly (2004), é a de que o universo de
referência (1.a) do qual o texto está vinculado é o ficcional. Segundo os autores,
o conto pertence à “cultura literária ficcional”, ou seja, o campo do qual participa
o conto (1.b) é o literário. O que pode ser constatado ainda nas palavras de
Sandroni (2007), na apresentação da referida obra, conforme a autora, “O
patinho feio” é um legítimo representante da literatura universal, junto aos demais
contos que participam da coletânea. A literatura é, portanto, a formação
discursiva (ADAM, 2011) da qual o conto faz parte.
De forma mais específica, situamos o texto “O patinho feio” como a
materialização (conforme Adam, 2011 e Marcuschi, 2008) do gênero textual
conto maravilhoso (1.i). O maravilhoso, segundo Chiampi (1980), confere aos
acontecimentos extraordinários, aos espaços imaginários, aos personagens
sobrenaturais e ao tempo fictício uma legitimidade à priori; narra acontecimentos
inadmissíveis à realidade empírica, sem ao menos considerar o despropósito
dos fatos narrados. Nessas narrativas a problemática entre o entre o real e o
imaginário é desconsiderada, devido à fata de comprometimento com a
verossimilhança. A história se instala no irreal sem qualquer estranhamento. O
imaginário subverte a ordem convencional e situa os acontecimentos no plano
fictício, sem possibilidade de transposição ao mundo material. De acordo com
Coelho (1984),
No início dos tempos, o maravilhoso foi a fonte de misteriosa e privilegiada de onde nasceu a Literatura. Desse maravilhoso nasceram personagens que possuem poderes sobrenaturais; deslocam-se, contrariando as leis da gravidade; sofrem metamorfoses contínuas; defrontam-se com forças do Bem e do Mal, personificadas; sofrem profecias que se cumprem; são beneficiadas com milagres; assistem fenômenos que desafiam as leis da lógica, etc. (p. 122).
Como exemplo, transcrevemos um trecho do conto, onde o maravilhoso
se estabelece a partir dos personagens, que são animais que falam, que expõem
sentimentos:
- Puxa! Como tudo aqui fora á grande! Que mundo enorme! – diziam os patinhos, olhos arregalados. (SANDRONI, 2007, p. 09).
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Além da presença do maravilhoso (CHIAMPI, 1980; COELHO, 1984), é
possível identificar no texto outras características de gêneros que participam do
campo literário. Como explica Cândido (2011), a literatura possui um papel
humanizador, por possibilitar nos indivíduos o exercício da reflexão e da
percepção da complexidade do mundo, das relações sociais que os circundam.
Logo, esse papel pode ser apontado como a intenção comunicativa (1.h) do
conto em análise. A problemática das relações sociais é abordada de forma mais
específica no “O patinho feio” sob a temática (1.e) do preconceito sobre o
diferente, das humilhações que sofrem aqueles que são considerados fora dos
padrões estáticos estabelecidos por uma sociedade. Exemplos:
Era maior e mais magro que os outros. A mãe olhou-o desconfiada, e pensou: “Como é feio! É tão grande! Não pode ser meu filho e nem de meu marido! Não se parece nada com os outros! Será mesmo filhote de peru? Vou jogá-lo logo na água para saber a verdade”. (SANDRONI, 2007, p. 10). Um dos patos velhos ficou tão zangado que avançou para o patinho feio e lhe deu uma picada no pescoço, e resmungou: - Ainda por cima essa geração é feia! Olha este! Que feiura! (p. 11). Nem os irmãos o poupavam: - O gato bem que podia comê-lo! Você nos envergonha! E assim o tempo passou, o patinho feio sendo bicado por todas as aves e chutado pela menina que cuidava delas. Ninguém queria saber dele, ninguém! E ele vivia sozinho e triste. (p. 12).
O patinho era diferente dos demais, por isso sofreu com a rejeição e as
humilhações. No início da história a própria mãe o rejeita, e durante todo o
enredo, sofre com o que os irmãos e os demais personagens da história fazem
a ele, o julgando, o apontando, o “bicando”.
Não característica regular do gênero, mas uma particularidade desse
conto é a de que, de acordo com Brum (s/d), “para os estudiosos, O Patinho
Feio é o conto de Hans Christian Andersen que mais se aproxima de sua
biografia. Assim como o personagem principal do conto, Andersen sofreu
opressão diante da sociedade e humilhações por causa de suas origens sociais”.
O mesmo defende Sandroni (2007, p. 7): “O patinho feio parece contar a própria
vida de Andersen, já que ele era muito pobre e feito, sentindo-se rejeitado até
tornar-se, com seu talento e esforço, um belíssimo cisne admirado por todos”
(SANDRONI, 2007, p. 7). Baseados nessas afirmativas, o ponto de vista sobre
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o qual o autor trata do tema (1.f) tem relação com a vida real dele. Em
decorrência disso, em uma leitura superficial, poderíamos entender que a ideia
central do O patinho feio seria propor reflexões a respeito da problemática social
do preconceito, mas considerando a relação da história com o mundo ordinário
do produtor do texto, em uma perspectiva ampliada pelo discurso (ADAM, 2011;
ANTUNES, 2010), podemos chegar ao nível da interpretação de que esse conto
pode ser uma autobiografia de Hans Cristian Andersen.
Portanto, o propósito comunicativo (1.h) do texto em questão é fazer seu
destinatário refletir sobre a complexidade do mundo e das relações sociais que
os circundam (CANDIDO, 2011). Contudo, quando nos referimos à reflexão
sobre relações humanas propostas pelo conto, não podemos deixar de
considerar o conhecimento que deverá ser mobilizado pelo leitor para que possa
perceber as metáforas subjacentes. Para construir sentidos ao “O patinho feio”
é necessário que seu destinatário compreenda, no mínimo, as relações
familiares abordadas no texto, em especial a relação mãe e filho; a crítica ao fato
de que todos devem ser iguais, se participam de uma mesma família; o
preconceito que vivem os diferentes, a submissão instaurada na sociedade
diante dos integrantes das classes economicamente ou socialmente privilegiada;
além do leitor precisar conhecer as simbologias instituída nos animais que se
relacionam às características e às práticas dos serem humanos. Sob essa égide
está a relevância informativa do texto (1.k), por meio de um conto maravilhoso
aborda-se um conteúdo tão sério.
Para exemplificar as relações que apontamos, trazemos um trecho do
conto em que a mãe-pata está ensinado seus filhotes como devem se
comportarem diante dos outros patos:
Aprendam a andar direito. Movam só os pés, avancem firmes e balancem a cabeça para cumprimentar. Principalmente aquele velho pato. É de raça espanhola e muito importante. Estão vendo a fita vermelha amarrada na perna dele? É o sinal da alta posição social que tem. Por causa daquela fita, todos – homens e animais - o reconhecem e o respeitam. (SANDRONI, 2007, p.11)
Se são patos, devem nadar, mas nadar direito, isto é, de um jeito que
caracterize a espécie em questão. Também é preciso cumprimentar e respeitar
os mais velhos e, principalmente, os de alta posição social. Não importa quem é
essa pessoa, o que importa é que ela é de uma classe social mais alta e por
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esse motivo deve ser respeitada. Todos os conhecimentos mobilizados pelo
leitor na construção de sentidos de um texto fazem parte do que Antunes (2010)
chama de “intertextualidade ampla” (1.l).
A respeito de quem são os destinatários previstos do texto (1.d), como
mencionado por Sandroni (2007), na apresentação da coletânea, Andersen é o
patrono da literatura infantil e “a data de seu nascimento – 2 de abril – é
considerada em todo mundo como o Dia internacional do livro infantil” (p. 7). E,
considerando ainda o fato da obra de Sandroni (2007) fazer parte do PNBE,
como destinada ao público infanto-juvenil, nesse sentido, os destinatários são o
público infantil e juvenil.
E, em conformidade com o gênero, o conto maravilhoso, o conteúdo
temático é organizado pela predominância da narração (1.j), a qual desenvolve-
se a partir de uma sequência de fatos que garantem a progressão do tema. De
acordo com os preceitos de (ADAM, 2011, p. 225),
Em sentido amplo, toda narrativa pode ser considerada como a exposição de ‘fatos’ reais ou imaginários, mas essa designação geral de ‘fatos’ abrange duas realidades distintas: eventos e ações. A ação se caracteriza pela presença de um agente – ator humano ou antropomórfico – que provoca ou tenta evitar uma mudança. O evento acontece sob o efeito de causas, sem intervenção intencional de um agente. (p. 225 – grifos do autor)
No “O patinho feio”, a ação caracteriza-se pela presença do patinho feio
que provoca uma mudança na vida da família de patos, pois era diferente dos
integrantes dessa família, não se parecia nem com a mãe-pata, nem com o pai
e nem com os irmãos, tampouco com os demais animais da fazenda: os outros
patos, o peru, os passarinhos, etc. E o evento acontece no decorrer das
situações e humilhações pelas quais o patinho passa.
Sobre a estrutura hierárquica, clássica, da narração, de acordo com Adam
(2011) ela é formada por cinco momentos: a situação inicial, o nó
(desencadeador), a re-ação ou avaliação, o desenlace (resolução) e a situação
final. No “O patinho feio” a estrutura se apresenta da seguinte forma:
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Quadro 1: Estrutura da narração
Momentos do processo narrativo
“O patinho feio”
Situação inicial Era verão. Árvores verdes rodeavam os campos de trigo, os lagos e as estradas. A vida no campo era uma delícia. No quintal da grande fazenda, uma pata escolheu um recanto segura e calmo para fazer seu ninho. Ficou muitos dias em cima dos ovos, à espera de que os patinhos quebrassem a casca. Já começava a se sentir cansada quando os ovos foram rompendo um a um: crac! Crac!... e as cabecinhas vivas apareceram. [...]
Nó (desencadeador)
Voltou ao ninho para verificar se ainda restava algum ovo. E lá estava um, o maior deles. - Menino, o que é isto? O que você está esperando! Deixa de preguiça, filho! Todos os seus irmãos já saíram! Anda!... já estou cansada de chocar. [...] Afinal a casca rompeu e o novo patinho da ninhada apareceu, piando, piandp: - Piu! Piu! Piu! Era maior e mais magro que os outros. A mãe olhou-o desconfiada, e pensou:
Re-ação “Como é feio! E tão grande! Não pode ser meu filho nem de meu marido! Não se parece nada com os outros! Será mesmo filhote de peru? Vou jogá-lo na água para saber logo a verdade”. [...] - Bonita ninhada, minha senhora, Parabéns!... mas aquele ali é mesmo...vamos dizer... não muito bonito. Seria bom a senhora chocá-lo outra vez. É apenas uma sugestão, minha senhora, não se zangue. [...] E assim o tempo passou, o patinho feio sendo bicado por todas as aves e chutado pela menina que cuidava delas. Ninguém queria saber dele, ninguém! E ele vivia sozinho e triste. [...] Vivendo entre os caniços, quase morrendo de fome e de frio, o patinho feio passou todo o inverno. Ao chegar a primavera, apesar dos sofrimentos, o patinho se sentiu mais crescido e forte. Suas asas cortavam o ar com mais força, levando-o mais rapidamente.
Desenlace (resolução)
Resolveu fazer uma grande viagem. Voou durante muito tempo, a uma grande altura, até ver um lindo jardim cheio de macieiras floridas, contornando um lago. [...]. Viu três cisnes lindos e brancos nadando no lago. [...] Pousou no lago e nadou na direção dos cisnes brancos. Quando baixou a cabeça, viu sua imagem refletida na água azul e calma do lago e – imaginem! – era a imagem de um lindo cisne branco! A mãe-pata chocara um ovo de cisne e dele saíra o nosso patinho feio.
Situação final Os cisnes brancos nadaram a seu lado e o acariciaram, aceitando-0 como um irmão recém-chegado. [...] -Nosso novo companheiro é o mais bonito de nós todos! O antigo patinho feio, sem saber o que fazer, encabulado, escondeu a cabeça entre as asas. Estava feliz, mas não orgulhoso. Fora tão perseguido e sofrera tanto! Bateu as asas, esticou o pescoço gracioso e deu um grito de alegria, que vinha do mais fundo de seu coração: - Nunca sonhei em ser tão feliz no tempo em que eu era o patinho feio!
Fonte: as pesquisadoras.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 143
Gancho (2002) ainda defende como elementos constituintes da narrativa:
o enredo, personagens, tempo, espaço e narrador. No caso do enredo, ele seria
o encadeamento de ações/eventos que compõem a história, os quais já expomos
no quadro 1. Os personagens são os responsáveis pelo desenvolvimento do
enredo (GANCHO, 2002) e são caracterizados por suas ações, falas e pelo
julgamento que fazem deles o narrador e os outros personagens. No “O patinho
feio” o protagonista, o patinho feio, é apresentado como o feio: “Como é feio!” –
disse a mãe-pata (SANDRONI, 2007, p. 10) ; “Olha este! Que feiura” (p.11) -
disse um dos patos velhos; “...vamos dizer...não muito bonito” – disse o pato
velho de fita vermelha na perna (p. 11); “-Bico feio, grandalhão” – disseram os
pintos (p. 12); “- Puxa! Você é feio demais!” (p. 13) – disseram os patos-
selvagens; “- Escute, bicho, você é tão feio...” – disseram os dois gansos.
Contudo, a repetição da palavra feio (nexo textual (2.b.i)) não caracteriza o
personagem como sendo esteticamente feio, tendo uma aparência feia, o
mecanismo marca a concentração temática do texto, a de que por ser diferente
dos demais de um lugar específico, o personagem é discriminado, humilhado,
não aceito.
Sobre o tempo e o espaço, é comum os contos não apresentá-los
definidos, a fim de garantir a atemporalidade e universalidade de alguns gêneros
literários. No conto analisado, em consonância com a sequência da narração em
predominância, os verbos são conjugados no pretérito, exemplo: “A vida no
campo era uma delícia” (p. 9); “Vivendo entre os caniços, quase morrendo de
fome e de frio, o patinho feio passou todo o inverno” (p. 15). Mas não há como
identificar precisamente se a história acontece em um passado remoto ou
recente, a passagem do tempo da narrativa é construída mais pelas referências
às estações do ano, um dos fatores que garante a coesão e coerência (2.a) ao
texto. A história inicia-se com a expressão “Era verão...” (p. 09) – momento em
que o patinho feio estava ainda dentro do ovo e quando ele nasce. Logo,
aparecem as expressões: “E assim o tempo passou...” (p. 12); “Um dia...”(p. 12);
“Dias depois...” (p. 13); “Três semanas se passaram...” (p. 14) – as quais
sequenciam as ações e os eventos vivenciados pelo protagonista nos diferentes
momentos da narração (ADAM, 2011). Chega então outra estação do ano: “O
inverno chegou e com ele o frio” (p. 15) – que simboliza a passagem do tempo e
principalmente a fase de total abandono e tristeza: “Vivendo entre caniços, quase
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morrendo de fome e de frio, o patinho feio passou todo o inverno” (p.15). Já a
chegada da primavera marca a metamorfose que o patinho sofreu: “Ao chegar a
primavera, apesar dos sofrimentos, o patinho se sentiu mais crescido e forte” (p.
15).
Quanto ao espaço, como mencionado, ele não é bem definido, a história
aconteceu, primeiramente, no quintal da grande fazenda; depois o patinho feio
fugiu para um brejo; depois foi para em uma choupana; até chegar em um jardim
onde encontrou os outros cisnes. Tais lugares são apresentados por breves
sequências descritivas (ADAM, 2011). Exemplos: “Era verão. Árvores verdes
rodeavam os campos de trigo, os lagos e as estradas” (p. 9); “A choupana era
velha e estragada; só ainda não caíra porque não sabia para que lado tombar”
(p. 13).
Também dá progressão ao conteúdo temático a sequência dialogal (1.j),
por ela as informações mais relevantes sobre os julgamentos que recebe o
protagonista podem ser conhecidas. Isto é, na fala dos personagens é que
melhor o autor aborda a temática do conflito social, a questão da humilhação
pela qual passa o protagonista. Exemplo: “- Puxa! Você é feio demais! O melhor
é ir embora, antes que se apaixone por uma das nossas meninas!” (p. 13).
Ainda sobre a sequência dialogal, apresentamos algumas observações
sobre alguns fatos gramaticais verificados no “O patinho feito”: as marcas da
transcrição do discurso direto com a utilização de travessões e de verbos do
dizer. Exemplo: “[...]. E todos lhe diziam: - Bicho feio, grandalhão!” (p. 12); e o
uso de aspas para marcar o momento em que o personagem pensa, sem
oralizar. ““Minha feiura assusta até os passarinhos!” – pensou ele” (p. 12); o
emprego do sinal de exclamação que usualmente é utilizado para expressar
emoção, surpresa, admiração, indignação, raiva, espanto, susto, exaltação,
entusiasmo, dentre outros. Exemplos: “- O mundo é assim mesmo!” (p. 11); “-
Absurdo!” (p. 11); “- Puxa! Você é feio demais!” (p. 13).
Sobre os aspectos mais pontuais que formam o conto, os quais, de acordo
com Antunes (2010), alicerçam e sustentam a construção dos sentidos do texto,
destacamos a forma como a coesão e a coerência articulam e fazem progredir o
conteúdo temático. Os nexos de equivalência (2.a.i), fazem a ligação das partes
do texto no âmbito da referenciação. Esses nexos podem ser identificados nos
momentos em que o mesmo objeto de discurso voltou a ser referenciado. Por
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 145
exemplo: Assim que o protagonista sai do ovo, a mãe-pata diz: “Como ele é feio!”
(p. 10), a partir daí o personagem é chamado de “patinho feio” até o
encerramento da história, mais especificamente esta é a última palavra do texto:
“-Nunca sonhei em ser tão feliz no tempo em que eu era o patinho feio!” (p.17).
Assim, a equivalência referencial acontece por meio de nexos textuais (2.b), com
o emprego da repetição (2.b.i), da palavra feio, que é uma marca da
concentração temática do texto, como já explorado. A progressão temática
também se concretiza por meio do emprego da substituição pronominal (2.b.v):
“-Mas ele é feio demais” (p. 12) – o referente de ele é o patinho feio; “E ele vivia
sozinho e triste” (p. 12) – ele, o patinho feio; “Mas ele não estava pensando em
namorar ninguém, queria apenas dormir em paz, beber e comer, e que
gostassem dele um pouquinho” (p. 13) – ele, o patinho feio; dele- do patinho feio.
Os nexos de equivalência (2.1.i) são importantes elementos nesse texto
promover que o leitor reflita sobre a temática das humilhações que sobrem os
que são considerados fora dos padrões estéticos estabelecidos por uma
sociedade. O uso da palavra feio se repete (2.b.1) na fala de quase todos os
personagens, a começar pela mãe, logo que o personagem principal sai do
ninho, a mãe diz é: “Como é feio!” (p. 10); assim, o nome estabelecido para o
personagem foi: o patinho feio; um dos patos velhos: “- Mas ele é feio demais!”
(p. 12); os pintos: “- Bicho feio, grandalhão!” (p. 12); os patos-selvagens: “-
Escute bilho, você é tão feio...” (p. 13); mesmo quando o patinho descobre-se
um cisne, a expressão ainda é repetida para marcar o preconceito: “O antigo
patinho feio, sem saber o que fazer, encabulado, escondeu a cabeça entre as
asas” (p. 17), ou seja, nem no final feliz a caracterização é modificada, ele não é
cisne, é o antigo patinho feio.
A referida temática é abordada também diante do subentendido de que
alguns podem até se colocar como não preconceituosos, mas o preconceito
acaba se revelando de alguma forma. O pato velho de fita vermelha é
apresentado como alguém importante, que deve até mesmo ser chamado de
“excelência”: “...é de raça espanhola e muito importante. [...] é de alta posição
social” (p. 11). Contudo, o que ele diz ao encontrar-se com o patinho feio é: “-
Bonita ninhada, minha senhora. Parabéns!... mas aquele ali é mesmo...vamos
dizer... não muito bonito” (p. 10). A expressão em destaque organizada pelo
emprego de nexo de associação (2.a.iii) semântica (2.b. vi) revela que mesmo
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sendo mais polido, mais importante, assim apresentado na história, do que os
demais animais, o pato velho de fita vermelha também discrimina o diferente. De
acordo com o conhecimento de mundo do leitor, necessário para essa
interpretação, não muito bonito pode ser compreendido como feio em
associação semântica. A rejeição velada pode ser vista ainda no momento em o
pato velho diz à mãe: “Seria bom a senhora chocá-lo outra vez. É apenas uma
sugestão, minha senhora, não se zangue” (p. 12). Isto é, para ele, o patinho feio
teria que nascer novamente para ser condições de ser mais bonito.
A relação afetiva, o amor incondicional na relação de maternidade é
também tematizada no texto, o que pode ser percebido pelo uso de nexos
textuais por substituição de unidades do léxico (2.b.iv), no caso, na substituição
de uma expressão por outra equivalente contextualmente. A mãe, antes ainda
do ovo se romper conversa com o filho: “- Menino, o que é isto? O que você está
esperando! Deixa de preguiça, filho!” (p. 10). Mas quando um dos patos ataca o
patinho, a substituição é feita por uma palavra que representa a aproximação, o
afeto: “- Pare com isso! – protestou a mãe-pata – Não se atreva a repetir! Meu
filhinho não está aqui para apanhar de ninguém” (p. 12). E a mãe-pata continua
na defesa de seu filho, que para ela tem qualidades que sobressaem a feiura:
“Mas se ele é feio, é muito bonzinho: obediente, educado, respeitador” (p. 12). A
utilização do recurso da substituição promove a elevação do teor da informação,
conforme postula Antunes (2010). O leitor é conduzido a percepção de que a
mãe de início pode ter rejeitado o filho por ser diferente, mas aceitou-o, assim
como os demais, e não deixa que o maltrate, que ele seja humilhado.
Essa relação de afetividade maternal também pode ser identificada na
organização do texto por meio de nexo de conexão ou sequênciação (2.a.iv), no
trecho: “- Menino, o que é isto? O que você está esperando! Deixa de preguiça,
filho! Todos os seus irmãos já saíram! Anda! ... já estou cansada de chocar. Mas
ainda assim, mãe-pata se deitou de novo no ninho” (p.10). O emprego da
conjunção adversativa “mas”, indica que mesmo já irritada, dando bronca no
filho, a mãe não desiste dele, ela ainda continuando chocando.
Vale ressaltar ainda a função coesiva do termo “assim”, como um
elemento de substituição pronominal (2.b.v), no trecho de fala do patinho feio:
“Prefiro arriscar ser morto por elas a continuar vivendo como tenho vivido, bicado
pelos patos e galinhas, expulso de toda parte. Antes morrer do que continuar
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assim! ” (p.15). O termo retomar a situação descrita em todos os períodos
anteriores do texto quanto a força da temática: da situação vivenciada pelo
personagem desde o seu nascimento, sobretudo, marca a passagem para um
novo período de sua vida. Nesse caso, como aponta Antunes (2010, p. 132), “o
pronome não funciona apenas como ‘palavras de retomada textual’; isto é, o
pronome não funciona apenas sob a forma de uma expressão que retoma outro
antecedente. [...] O pronome também pode referir um elemento da situação
extralinguística”.
Com a mesma configuração, com o recurso da substituição pronominal
(2.b.v), destacamos o emprego do pronome “nosso” no início do fechamento da
história, na situação final (ADAM, 2011), em: “A mãe-pata chocara um ovo de
cisne e dele saíra o nosso patinho feio” (p. 15). O sentimento de inadequação e
distanciamento com que o personagem é tratado no decorrer do conto, sempre
referido pelo narrador como “o patinho feio”, dá lugar à ideia de pertencimento
expressa pela utilização do pronome possessivo nosso, a partir do momento em
que o personagem se identifica como um cisne ao ver sua imagem refletida na
água. Bem como, o pronome refere-se a um elemento da situação
extralinguística, o patinho passa a pertencer aos leitores, os quais se
compadeceram dos sofrimentos, e agora, ao final, podem se alegrar porque o
patinho encontrou os seus iguais, não mais sofrerá.
Sobre o aspecto da adequação vocabular (3.1), diante do gênero textual
conto maravilhoso materializado no texto “O patinho feio”, destacamos a escolha
de um léxico bem próximo ao nível coloquial, adequado no sentido de ser tratar
da contação de uma história ficcional que pretende provocar reflexões nos
leitores sobre situações que acontecem no dia a dia da sociedade do mundo
real. Os personagens animais falam de acordo com que falam os seres humanos
no cotidiano, exemplo: “- Graças a Deus! Minha feiura me ajudou pela primeira
vez! Ele não me matou!” (p. 13). As personagens utilizam-se de expressões
característica da modalidade oral da língua: “Deixe-me ver este seu ovo! Ih! É
mesmo ovo de perua...” (p. 10); “- Puxa! Você é feio demais!” (p. 13). Contudo,
também podem ser identificadas construções mais comuns em contextos
formais, exemplos: “A mãe olhou-o desconfiada, e penseu:” (p. 10); “Vou jogá-lo
na água para saber logo a verdade” (p. 10); “O patinho mostrava-se o mais
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educado possível, cumprimentando todos tal como sua mãe lhe ensinara” (p.
13).
O uso do diminutivo marcando a afetividade característica da
maternidade: “filhinho” (p.12) – usado pela mãe-pata; “diabinho” (p. 10) – usado
por uma pata-velha (que também já tinha tido filhotes). O emprego de
expressões para caracterizar socialmente quem são os personagens na história:
“Esta gente moça não faz nada direito!” – disse um dos patos velhos; “- Bonita
ninhada, minha senhora” (p. 12) – disse de forma polida o pato velho de fita
vermelha; “- Impossível, Excelência” (p. 12) – pronome de tratamento utilizado
pela mãe-pata para o pato velho de fita vermelha uma vez que ele foi
apresentado no texto como importante, de raça; “- Escute, bicho, você é tão feio
que estou simpatizando com sua cara” (p. 13) – disse um dos gansos, marcando
a entrada de outros animais na história, que não os patos. E o emprego de
onomatopeias que também identificam quem são os personagens na história: os
patinhos recém-nascidos fazem: “piu, piu, piu” (p. 9); a mãe-pata: “Cuá! Cuá!
Cuá!”; o peru: “glu!glu!glu”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como mencionado, sempre preocupados no desenvolvimento de nossa
ação docente e em busca de tornarmo-nos mediadores entre os conhecimentos
científicos e os alunos, como postula Leontiev (2004), bem como de transpor
didaticamente o que prescreve a Base Nacional Comum Curricular para à área
de língua portuguesa na educação básica, analisamos o conto “O patinho feio”,
de Hans Christian Andersen (SANDRONI, 2007), tendo como princípio os
preceitos da análise textual dos discursos. Os resultados de nossas análises
apontaram os aspectos globais, os pontuais e os da adequação vocabular
elencados por Antunes (2010) que formam o conto. Nesse sentido, conhecidos
tais elementos que podem ser tomados como objeto de ensino e aprendizagem
escolar, pretendemos organizar, em uma segunda etapa deste trabalho,
sequências didáticas para ensino da língua portuguesa tendo o “O patinho feio”
como eixo organizador do trabalho destinado ao ensino fundamental.
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 149
REFERÊNCIAS ADAM, J.M. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. Revisão técnica João Gomes da Silva Neto. 2. Ed. Revista e aumentada. São Paulo: Cortez, 2011.
ANTUNES, Irandé. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.p.45-176.
BRASÍLIA. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Brasília, 2017.
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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 150
Uma contribuição para o ensino da língua portuguesa: tratando o gênero causo
A contribution to the teaching of the portuguese language: treating the
gender caused
Luciane Cristina Benites Pereira (UENP - PG) RESUMO: O presente trabalho direciona um olhar para as necessidades de aprendizagem da língua portuguesa em consonância com as diretrizes curriculares, tendo em vista a concepção de linguagem como discurso que se efetiva nas diferentes práticas sociais, buscando empregar a língua oral em diferentes situações de uso, saber adequá-la a cada contexto e interlocutor, reconhecer as intenções implícitas nos discursos do cotidiano e propiciar a possibilidade de um posicionamento diante deles. Contemplando a leitura, produção textual e análise linguística de forma interligada, considera-se que, quanto maior for o contato do aluno com variedades de linguagens, melhores serão suas possibilidades de entender e interpretar o texto, seus sentidos, suas intenções e visões de mundo. Tem como ponto de partida os pressupostos de Bakhtin, que privilegia “(i) a concepção dialógica da linguagem; (ii) os textos enquanto enunciados concretos, pertencentes a diferentes gêneros [...] (iii) os aspectos dialógicos presentes nos enunciados [... ]”, e prioriza o estudo além da gramática com enfoque no uso social da linguagem (ANTUNES, 2007; 2010) contemplando a oralidade, produção textual e análise linguística contextualizada, que além de melhorar aspectos do ensino da língua portuguesa busca valorizar o patrimônio sociocultural brasileiro. Os PCN (BRASIL, 1998) afirmam que o gênero causo posssibilita o trabalho com a leitura e a escrita. Entende-se a fala como representação fônica da língua e a escrita como representação gráfica. PALAVRAS CHAVE: Língua Portuguesa. Linguagem. Gênero textual.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa a contribuição para a aprendizagem da
Língua Portuguesa em consonância com as Diretrizes Curriculares, tendo em
vista a concepção de linguagem como discurso que se efetiva nas diferentes
práticas sociais, buscando:
Empregar a língua oral em diferentes situações de uso, saber adequá-la a cada contexto e interlocutor, reconhecer as intenções implícitas nos discursos do cotidiano e propiciar a possibilidade de um posicionamento diante deles; desenvolver o uso da língua escrita em situações discursivas por meio de práticas sociais que considerem os interlocutores, seus objetivos, o assunto tratado, além do contexto de produção; analisar os textos produzidos, lidos e/ou ouvidos, possibilitando que o aluno amplie seus conhecimentos linguístico-discursivos etc (PARANÁ, 2008, p. 54).
Por meio da leitura, produção textual e análise linguística de
forma interligada, considerando que, quanto maior for o contato do aluno com
variedades de linguagens, melhores serão suas possibilidades de entender e
interpretar o texto, seus sentidos, suas intenções e visões de mundo. Parte dos
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 151
pressupostos de Bakhtin, que privilegia “(i) a concepção dialógica da linguagem;
(ii) os textos enquanto enunciados concretos, pertencentes a diferentes gêneros
[...] (iii) os aspectos dialógicos presentes nos enunciados [... ]” (NANTES, 2014,
p. 70).
Também prioriza o estudo além da gramática com enfoque no
uso social da linguagem (ANTUNES, 2007; 2010) contemplando a oralidade,
produção textual e análise linguística contextualizada, que além de melhorar
aspectos do ensino da Língua Portuguesa busca valorizar o maior patrimônio
sociocultural brasileiro, sua História. Os PCN (BRASIL, 1998) afirmam que o
gênero causo posssibilita o trabalho com a leitura e a escrita entendendo a fala
como representação fônica da língua e a escrita como a representação gráfica
da mesma.
Contradições permearam, e ainda permeiam a história da
humanidade tomada em seus diferentes aspectos. No Brasil, o viés da educação
formal, inicialmente de caráter elitista e privado, é contemplado na Constituição
Federal de 1998 – Capítulo III, Seção I, nos artigos 205 e 206. Tais prescrições
ganharam legitimidade nas Leis de Diretrizes e Bases Educacionais até então
formuladas, bem como na atual, a Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, mas
infelizmente o cumprimento dela tem sido um desafio para muitos, e ignorado
por outros.
Sinteticamente, na redação do capítulo III lê-se que a educação
é direito de todos, um dever do Estado e da família, tendo em vista o
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e
qualificação para o trabalho. O texto destaca ainda os princípios da igualdade de
condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender,
ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de
ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e
privadas de ensino.
Se por um lado o texto legal define um modelo adequado,
mecanismos de avaliação do ensino apontam para a fragilidade da educação
institucionalizada, tanto na rede pública, quanto privada, isso porque Avaliações
Institucionais para o Ensino Fundamental – Séries Finais no Ensino da Língua
Portuguesa – como a Prova Brasil e Sistema de Avaliação da Educação Básica
do Paraná (SAEP), revelam baixo índice de acerto nas questões que envolveram
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 152
domínios básicos de Língua Portuguesa.
Estas avaliações dão destaque à interpretação e produção
textual, evidenciando a permanência de um ensino nem sempre articulado e
contextualizado, que prioriza o texto em sua vertente sociodiscursiva, ou seja, o
texto tomado em sua totalidade, produzido por um autor com uma intenção, que
traz vozes sociais e lacunas a serem preenchidas e pontuadas, bem como
silêncios a serem analisados e compreendidos e, por fim, e não menos
importante, um destinatário, ou seja, um leitor.
PROBLEMÁTICA
É visível, hoje, a necessidade de formação de leitores que
tenham competência para, a partir da leitura crítica, produzir conhecimento
relevante para atuar na sociedade e especificamente no campo educacional,
seja o indivíduo, estudante ou professor e, mediado por ela, melhorar a prática
da escrita.
De acordo com os dados da pesquisa “Retratos da Leitura no
Brasil (2015)”, 44% da população brasileira não é leitora. A leitura é uma
habilidade adquirida, treinada e aperfeiçoada para que possa ser praticada com
autonomia e prazer quando a pessoa possui competência para tal.
A problemática está relacionada à alfabetização e à falta de
mediação entre o “leitor” experiente e o “leitor” leigo. É necessária, além do
contato com a linguagem escrita, a propiciação de outras possibilidades, como
a fantasia, por exemplo (VIOTTO, 2016).
Nas palavras de Nóvoa (1995) as condições precárias da escola
em suas instalações, recursos, formas de atendimento ao aluno, persistem dado
o caráter autoritário e centralizador da organização técnica-administrativa e
acentuada omissão nas questões pedagógicas.
Acrescente-se ainda as atividades docentes desqualificadas
com consequências na motivação, satisfação e produtividade no trabalho
confirmando os altos índices de analfabetismo no Brasil que ainda se mostra
bem perverso (NÓVOA, 1995), sem deixar de considerar que todo este quadro
perpassa pelas políticas públicas.
Diante do exposto, em busca de alternativas positivas, o
presente projeto se propõe pela revisão bibliográfica, à luz das obras de Koch e
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 153
Elias (2006; 2015) e Marcuschi (2008), entre outros, abordar sobre o gênero
textual ‘causo’ primeiramente na sua forma oral, na sequência realizar a análise
linguística11 textual deste gênero com alunos de 5º ano do Ensino Fundamental
I, valorizando o texto oral e escrito em seus aspectos formais e enunciativos,
apontando novas possibilidades de ressignificação dos cuidados que a prática
da escrita exige.
OBJETIVOS
Gerais
1)Contribuir para o ensino e aprendizagem da Língua Portuguesa;
2)Valorizar os aspectos da cultura dos alunos a fim de favorecer a produção
escrita mais aprimorada.
Específicos
1)Promover a análise linguística textual de ‘causos orais’ com ênfase nos seus
aspectos formais e enunciativos;
2)Favorecer a prática da escrita pela utilização de tecnologias da informação e
comunicação acessíveis aos alunos.
CATEGORIZAÇÃO DO GÊNERO
Dentro da esfera literária, o “causo” aparece vinculado a outros
gêneros indicados para o trabalho com a linguagem oral, sendo referidos como:
gênero cordel, causos e similares; textos dramáticos e canção (BRASIL, 1998).
O produto define-se como sequência de atividades, tendo como
suporte a Sequência Didática de Gêneros (SDG) calcada em J-P Bronckart, J.
Dolz e B. Schneuwly, que descende do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD),
enquadrado na categoria 1 de acordo com as normas da CAPES.
REFERENCIAL TEÓRICO
O causo é um gênero da esfera literária que privilegia a cultura
popular, de origem oral (primário); após ser transferido para modalidade escrita
11 Inclui tanto o trabalho das questões tradicionais da gramática quanto questões amplas a propósito do texto, como: coesão e coerência; análise de recursos expressivos; organização e inclusão de informações etc (GERALDI, 1984, NANTES, 2014).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 154
(texto) toma corpo de gênero secundário com certo “apagamento” das marcas
da oralidade. É entendido por Perroni (1992) como um texto aproximado às
narrativas infantis – manifestação popular de estórias extraordinárias, não raro
de assombração, porém o “causo” tem toda uma aparência de verdade que
contém invariavelmente elementos do sobrenatural desligado do compromisso
com o real.
Alguns brasileiros contadores de causos: Cornélio Pires,
Geraldinho, Rolando Boldrin e Chico Lorota. Na figura abaixo, as informações
que subjazem à enunciação de um texto visto como enunciado concreto do
gênero causo retextualizado, que o diferencia do conto ou lenda:
Figura 1
Fonte: Nantes (2014).
A estrutura dos causos orais mostra-se eficaz como
instrumentos de análise uma vez que, segundo Oliveira (2008), constitui um
gênero próprio, com características temático/discursivas definidas e estruturas
semiolinguísticas específicas e suficientes para a constituição de quatro
categorias: lúdica que explora o riso; crítica, que se sustenta na ironia; revide,
que evidencia a vingança; e aterrorizante, que desperta o medo. Trata-se de
uma forma particular de se contar um tipo de história, forma de falar o já dito, de
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 155
recriar o mundo em histórias.
Nas palavras de Pimenta (1999) partindo da teoria dos gêneros,
é produtivo o trabalho com o causo o cotidiano, como referência ao vivo e ao
vivido, ao que está, por assim dizer, fora dos muros da escola. Esse tema permite
ao aluno ressignificar sua visão sobre suas atividades corriqueiras, porque o leva
a adotar uma “atitude responsiva ativa” frente a suas ações diárias, tornando co-
autor de narrativas.
Em outras palavras, otimiza-se a capacidade leitora, e escritora
desse aluno, o que contribui para o desenvolvimento de seus letramentos
escolar, social, político, cultural, apoiando-se, como já apresentado, na
mediação dos recursos tecnológicos a que tem acesso.
O ensino da Língua Portuguesa no Brasil, em seu início foi
permeado pelos ideais jesuíticos, postulando que a escrita era a reprodução da
fala “[...] pensava-se, segundo uma concepção filosófica intelectualista, que a
linguagem se constituía no interior da mente e sua materialização fônica revelava
o pensamento” (PARANÁ, 2008, p. 39).
Posteriormente, em 1971, a disciplina de Língua Portuguesa se pautou
“[...] na concepção de linguagem como meio de comunicação (cujo objeto é a
língua vista como código), com um viés mais pragmático e utilitário em
detrimento do aprimoramento das capacidades linguísticas do falante”
(PARANÁ, 2008, p. 44).
A partir dos anos 80, várias foram as críticas quanto ao ensino normativo,
desencadeando um esforço de revisão dessas práticas, na direção da
ressignificação da noção de erro, e admissão das variedades linguísticas
próprias dos alunos. [...] “um projeto educativo comprometido com a
democratização social e cultural atribui à escola a função e a responsabilidade
de contribuir para garantir a todos os alunos o acesso aos saberes linguísticos
necessários para o exercício da cidadania” (PCN, 1998, p. 19). Após vários
debates, hoje as DCEs priorizam:
[...] a proposta que dá ênfase à língua viva, dialógica, em constante movimentação, permanentemente reflexiva e produtiva. Tal ênfase traduz-se na adoção das práticas de linguagem como ponto central do trabalho pedagógico [...] (p. 48).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 156
No entanto, ainda hoje,o trabalho com a palavra escrita na escola tem se
utilizado de uma metodologia ultrapassada, uma vez que prevalece a
valorização de um trabalho conceitual baseado na tipologia textual clássica, qual
sejam, narração, descrição e dissertação.
No entanto, nos últimos dois séculos, as novas tecnologias, em especial
as ligadas à área da comunicação, propiciaram o surgimento de uma variedade
de gêneros textuais. Por certo, não são propriamente as tecnologias que
originam os gêneros e sim a intensidade dos usos dessas tecnologias e suas
interferências nas atividades comunicativas diárias (MARCUSCHI, 2008).
Assim, continua Marcuschi (2008), os grandes suportes tecnológicos da
comunicação tais como o rádio, a televisão, o jornal, a revista, a internet, por
terem uma presença marcante e grande centralidade nas atividades
comunicativas da realidade social que ajudam a criar, vão por sua vez
propiciando e abrigando gêneros novos bastante característicos. Daí surgem
formas discursivas novas, no entanto não há como desconsiderar outros gêneros
de igual valor histórico-social que pemanecem no cotidiano de muitos, cujo
acesso à tecnologia ainda é ínfimo.
A simples exposição aos meios de comunicação não é o suficiente para
construir saberes, se assim fosse, pela gama de informações disponíveis nos
meios de comunicação, e o contato direto das pessoas com essa, a produção
escrita escolar seria proficiente. Aí entra o grande papel da escola (e dos
professores) na mediação entre a sociedade da informação e os alunos, no
sentido de possibilitar-lhes, por meio da reflexão, adquirirem a sabedoria
necessária à permanente construção do humano, no caso desta pesquisa, a
formação de leitores e produtores de texto.
Corroborando com a ideia de que, conhecer não se reduz a informar,
Pimenta (1999) e Morin (1993) evidenciam que a informação é o primeiro estágio
do conhecimento, o segundo seria a análise profícua dessa no âmbito da
contextualização, e o terceiro estágio “tem a ver com a inteligência, a consciência
ou a sabedoria [...] arte de vincular conhecimento de maneira útil e pertinente
[...]” (p. 20/21). Confirma-se aqui a importância da reestruturação de textos à luz
da análise linguística, como caminho possível.
Marcuschi (2008, p. 51) postula que são variadas as formas de se
trabalhar texto na intenção de explorar problemas linguísticos, tais como: as
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 157
relações entre as diversas variantes linguísticas, as relações entre fala e escrita
no uso real da língua, o funcionamento e a definição de categorias gramaticais.
Oralidade e escrita são funções distintas da língua, por isso a dificuldade
da criança em “passar para o papel” aquilo que pronuncia, empregando em suas
produções os recursos da língua falada. É papel do professor, intervir contínua
e pacientemente na direção de construir o texto escrito (KOCH e ELIAS, 2015).
As DCEs (PARANÁ, 2008) apresentam, de forma sistematizada,
sugestões de gêneros para serem trabalhados, a partir de um agrupamento por
esferas sociais: cotidiana, literária/artística, científica, escolar, imprensa,
publicitária, política, jurídica, produção de consumo e midiática e por isso
deveriam estar sempre à mão de profissionais atentos.
Assim sendo, o gênero discursivo da esfera literária, o “causo”, pode ser
inserido no ensino, principalmente por tratar-se de enunciados concretos que
expressam a cultura de um povo, manifestando em suas narrativas, um dos
maiores patrimônios da humanidade – sua História (NANTES, 2014; CÂNDIDO,
1981).
Este trabalho ganha importância à medida que contribui para a melhora
da produção escrita mediada pela leitura e pela oralidade com trabalho
colaborativo entre o estudante, o professor e a pesquisadora, no esforço de
chegarem à construção do conhecimento linguístico e textual, utilizando como
fonte de motivação na análise de textos, aparato tecnológico acessível a estes
protagonistas.
ASPECTOS METODOLÓGICOS
A presente proposta inscreve-se na área da linguística aplicada, de
caráter qualitativo/interpretativo, definido por Cruz (2010) como aquela que
busca entender um fenômeno específico em profundidade, a partir de
descrições, interpretações e atribuição de significados.
Pode ser realizada por meio de análise de informações, fatos ou
ocorrências que normalmente não são expressas por números (MARTINS;
THEÓPHILO, 2007; CRUZ, 2010); e de cunho etnográfico, porque surge da
preocupação com o uso da linguagem nas esferas sociais distintas (NANTES,
2014).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 158
A figura abaixo mostra a visão pluri/multi/interdisciplinar de Celani (1998)
adaptada por Nantes (2014).
Figura 2: Visão pluri/multi/interdisciplinar (integração)
A proposta terá um viés aproximado da Pedagogia Histórico-
crítica de Demerval Saviani (2008): a) prática social inicial – o que os alunos
sabem sobre o tema; b) problematização – reflexão junto aos alunos de como
será conduzido o trabalho; c) instrumentalização – ações didático-pedagógicas;
d) catarse – novas formas de “enxergar” o tema; e) prática social final – proposta
de ação/intervenção a partir do conteúdo sistematizado.
A partir da aplicação de uma sequência de atividades com o
gênero “causo escrito” da esfera literária, captados junto aos familiares de alunos
–– de modo a favorecer a produção textual e análise linguística, no sentido de
criar condições para que os alunos percebam os diferentes gêneros como
práticas sociais, acatadas e aceitas, mas com características particulares.
Inicialmente será pedido aos alunos que investiguem em suas
famílias ‘causos reais ou do imaginário’ e que sejam gravados em imagem e/ou
áudio. Estes causos serão transcritos ou reproduzidos e, na totalidade ou
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 159
fragmentados, serão analisados apontando para as marcas discursivas,
enunciativas e linguísticas para que percebam as peculiaridades do texto oral e
do escrito.
A análise linguística será baseada no estudo de Antunes (2007),
Nantes (2014) e seus colaboradores de forma a superar o modelo superficial do
ensino de gramática, considerando-se: as marcas linguísticas do (gênero) e
enunciativas (do autor), a temática, o arranjo composicional e o contexto de
produção, por meio de leitura e produção/refacção textual, levando em conta a
dimensão social do gênero discursivo.
Após o processo de captação, transcrição, reprodução, análise
linguística, ilustração, os mesmos serão digitados e organizados em um caderno
(livro) a ser disponibilizado na forma impressa, em meio eletrônico.
Paralelamente serão apresentados, com os devidos cuidados de
exposição de material disponibilizados em redes sociais, pequenos textos, ou
apenas fragmentos, que mostrem características de textos orais, mas que são
‘inadequadas’ na escrita, apenas com o intuito de aproximar os gêneros,
priorizando o trabalho com a escrita.
POSSÍVEIS LIMITAÇÕES
Para melhor entender as limitações de trabalhar o “causo” na
escola de hoje, lançamos um olhar sobre a geração Z: formada pelos nativos
digitais, nascidos entre 1992 e 2010, no contexto da democratização da
comunicação impulsionada pela internet e redes sociais, que são fortes
instrumentos mediadores formadores de opinião, bem como atrativos para o
jovem de hoje.
O trabalho teria uma maior aceitação se fosse realizado há duas
ou três décadas atrás, quando as famílias ainda se reuníam para conversar e
contar histórias. Vê-se assim um “apagamento” dessa prática social. Sob a ótica
da atualidade o gênero causo estaria ultrapassado nas relações sociais, por
outro lado o estudo surge como um possível resgate da cultura e de valores.
POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES
Melhora da produção escrita mediada pela leitura e pela
oralidade com trabalho colaborativo entre o estudante e o professor, no esforço
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 160
de chegarem à construção do conhecimento linguístico e textual, utilizando como
fonte de motivação na análise de textos e aparato tecnológico acessível aos
participantes da pesquisa/ação.
Espera-se que os estudantes sintam-se atraídos pela proposta
de forma que enriqueçam seu estudo sobre os variados aspectos da linguagem,
sejam eles a oralidade, escrita, produção e refacção textual no intuito de
melhorar a aprendizagem de Língua Portuguesa tomando como suporte
textos/enunciados concretos que retratam o maior patrimônio cultural brasileiro:
sua História.
Em consonância a isso resgata a cultura oral mostrando
aspectos regionais e históricos. Até 1970 a maioria do povo brasileiro residia nas
zonas rurais e apresentavam com maior frequência o “dialeto caipira”, após essa
data, com o êxodo rural essa forma cultural de fala foi sendo aos poucos
suprimida pela “fala padrão” da norma culta.
Pois pensou-se que o dialeto caipira era erro de linguagem;
posteriormente estudos mostraram que não se trata de erro de linguagem, mas
sim de variante linguística, sendo que só pode ser considerada como errada
quando a fala compromete o entendimento da mensagem.
Como consta Barzotto (2004), respeitar as características da
regionalidade já se tornou aspecto legal amparado pela CF de 1988:
Título I – Dos princípios Fundamentais, Art. 3º.Parágrafo IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, é preciso fazer soar óbvia a necessidade de respeitar o outro (p. 94).
A utilização deste material por outros profissionais da área que
tiverem interesse também poderá ser uma contribuição para o campo
educacional.
POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS
Por apresentar aracterísticas aproximadas, pode desdobrar-se
para lenda e conto, conforme algumas características apontadas:
Causo: história que passa de geração a geração (de boca a
boca), apontando a marca da oralidade, uso informal da língua e retrata a história
do antepassado, passa a ser considerada como verdade, por ser afirmada com
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 161
frequência por pessoas idôneas (NANTES, 2014).
Lenda: utiliza fantasia ou ficção, faz parte da tradição oral e
cultural, fornece explicações aos fatos que não são explicáveis pela ciência ou
pela lógica, conforme apontado por Araújo:
São narrativas transmitidas oralmente pelas pessoas com o objetivo de explicar acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Para isso há uma mistura de fatos reais com imaginários. Misturam a história e a fantasia. As lendas vão sendo contadas ao longo do tempo e modificadas através da imaginação do povo. Ao se tornarem conhecidas, são registradas na linguagem escrita [...] histórias que falam sobre a tradição de um povo e que fazem parte de sua cultura (INFOESCOLA, 2018, p. 01).
Conto: remonta aos tempos antigos, representado pelas
narrativas orais dos antigos povos nas noites de luar. É categorizado conforme
o gênero, como: conto maravilhoso, policial, de amor, ficção científica, fantástico,
de terror, mistério, dentre outras classificações, apresentados de forma
condensada centrada em um único conflito. Nas palavras de Duarte, o conto é:
[...] um texto narrativo centrado em um relato referente a um fato ou determinado acontecimento. Sendo que este pode ser real, como é o caso de uma notícia jornalística, um evento esportivo, dentre outros. Podendo também ser fictício, ou seja, algo resultante de uma invenção (BRASILESCOLA, 2018, p. 01).
Diante do exposto, percebe-se que os três tipos de texto
apresentam proximidades consideráveis que possibilitam o trabalho interligado
entre ambos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizando, acredita-se que esta proposta terá pertinência na
ampliação da aprendizagem da Língua Portuguesa. E o professor que estará
aplicando a proposta irá perceber a utilidade da mesma bem como a
necessidade de adaptação conforme nível acadêmico e aceitação por parte de
sua comunidade de estudantes, considerando que o professor é aquele que
aprende enquanto ensina.
REFERÊNCIAS
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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 162
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ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 163
Uma perspectiva sociolinguística sobre identidade e esteriótipo no discurso
humorístico stand up comedy
A sociolinguistic perspective about identity and stereotype in the humoristic
discourse of stand up comedy
Angélica Prestes Rosas (UENP – G)
Beatriz dos Santos da Silva (UENP – G)
Naraiane Taís da Silva (UENP – G)
Bruna Carolini Barbosa (UENP – PQ)
RESUMO: Levando em consideração os pressupostos sociolinguísticos (GÖRSKI et al, 2010; COELHO, 2015; CASSELLA, 2016), entende-se que a variação linguística é um traço natural e constitutivo de qualquer falante, devido às questões sociais e aos aspectos internos da própria língua. Não há, portanto, homogeneidade: toda língua é essencialmente heterogênea - pertinentemente provida a partir de um relacionamento social que determina a identidade de cada falante (HALL, 2006). Partindo dessas considerações iniciais, este trabalho tem como objeto de análise o gênero oral Stand-up Comedy. O corpus desta pesquisa é composto pelo vídeo “Sotaque” do humorista brasileiro Fernando Caruso, publicado em 2011, disponível na plataforma de vídeos do Youtube. Objetivamos demonstrar que certos discursos acabam criando formas estereotipadas de determinadas comunidades de fala, conferindo, assim, uma identidade distante do real cultural e linguístico que de fato constituem esses grupos. Portanto, os resultados revelam que parte do discurso do humorista reproduzem e reforçam esses traços estereotipados sobre as variantes linguísticas e seus falantes, e que grande parte da audiência corrobora com a discriminação de sotaques ou dialetos que compõem o tecido linguístico brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística. Variação linguística. Preconceito linguístico. Stand-up Comedy.
INTRODUÇÃO
Apesar dos gêneros do humor não serem comumente estudados pelos
acadêmicos, eles possuem grande visibilidade em nossa sociedade devido a sua
abrangência, pois os discursos humorísticos são disseminados pelos mais
diversos meio de comunicação, principalmente, a internet.
Tendo em vista a concepção de Soares (2014), de que o humor adaptou-
se ao ciberespaço e compreendo que os gêneros humorísticos por intermédio
de seu discurso acabam atraindo os mais diversos tipos de públicos, esse
estudioso, então, estabelece as sete formas de humor que possuem mais
evidência na internet brasileira que no caso são: os blogs de humor, o humor no
estilo stand up comedy, os vlogs, a rede social de microblogs Tumblr (lê-se
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 164
“tâmbler”), os provocadores, são aqueles que normalmente criam perfis falsos
nas redes sociais para criticar pessoas e opiniões, o humor nerd e os memes,
concepções que se disseminam rapidamente, tornando-se um viral.
Portanto, conclui-se com essa afirmação de Soares (2014), que um dos
gêneros do humor que ganharam força na internet é Stand Up Comedy. Com
isso, pretendemos analisar esse gênero oral que possui inúmeros seguidores
nas redes sociais, o que propícia a propagação de sua ideologia para a
população, criando, dessa forma, valores e crenças.
Assim, incialmente, discorreremos a respeito de alguns conceitos da
sociolinguística, além de trazermos algumas percepções sobre as variações
linguísticas e as relações entre identidade e estereótipo que acabam
ocasionando o preconceito linguístico e a exclusão social. E, por fim,
analisaremos o Stand Up do humorista Fernando Caruso, coletado da página
eletrônica do Youtube, denominado “Fernando Caruso – Sotaque”.
SOCIOLINGUÍSTICA
A sociolinguística surge na década de 60 como uma reação ao
estruturalismo e ao gerativismo, visto que essas abordagens não consideravam
os fatores sociais e externos (história, sociais, ideológicos) da língua (GÖRSKI
et al, 2010). Desse modo, compreende-se que essa é uma área da linguística
que objetiva analisar a relação entre a língua e a sociedade, visando explicar
como a língua pode modificar-se dentro de determinado contexto social, inserido
em uma comunidade. Por conseguinte, a concepção de língua apresentada por
esse método de estudo, compreende-a com uma forma capaz de modificar-se
com o tempo e espaço, ou seja, ela está suscetível a variação e a mudança
linguística (COELHO, 2015).
Ademais, a sociolinguística visa analisar a fala de um indivíduo ou de um
grupo social, denominado de comunidade de fala (doravante CF). Diante disso,
cada CF possui traços linguísticos característicos, possuindo duas funções:
Fornece, em primeiro lugar, uma base fundamentada para explicar a distribuição social de semelhanças e diferenças linguísticas, a razão porque certos grupos de falantes compartilham traços linguísticos que os distinguem de outros grupos de falantes. Em segundo lugar, a noção de comunidade de fala fornece uma justificativa teórica para unir os idioletos de falantes individuais (que são os únicos objetos linguísticos cuja existência se pode realmente observar), em objetos maiores, as
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línguas (que são, na verdade, construções abstratas). (GUY, 2000, p. 18)
Assim, para os sociolinguistas, em toda CF são constantes as formas
linguísticas em variação e “a essas formas em variação dá-se o nome de
variantes. Variantes linguísticas são diversas maneiras de se dizer a mesma
coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade. A um conjunto
de variantes dá-se o nome de variável linguística” (TARALLO, 1997).
Além disso, a sociolinguística considera a heterogeneidade da língua,
pois, de acordo com a perspectiva de Labov (apud GÖRSKI et al, 2010), não
existe CF homogênea, já que “existe variação inerente à comunidade fala - não
há dois falantes que se expressam do mesmo modo, nem mesmo um falante
que se expresse da mesma maneira em diferentes situações de comunicação”.
Assim, conclui-se que a língua é constituída por um conjunto de variedades,
sendo possível defini-las segundo as mudanças linguísticas que ocorrem por
diversos fatores, como, por exemplo, escolaridade, idade, gênero, entre outros
aspectos.
No entanto, essa heterogeneidade da língua é estruturada, possuindo
regras variáveis, que são permitidas em certos contextos linguísticos e sociais,
ou seja, em determinados lugares falamos de uma forma e, em outras situações,
nos comunicamos de outro modo.
[...] O aparato teórico e metodológico da sociolinguística surgiu, e até hoje vem sendo construído para que, com cada vez mais precisão, essa realidade até então posta de lado nos estudos linguísticos seja compreendida, levando-se em conta a influência não só dos elementos internos da língua, mas dos elementos externos a ela [...]. (GÖRSKI et
al, 2010, p.24)
Por fim, embora cada CF possua traços linguísticos característico e
regras variáveis, isso não impossibilita que indivíduos de CF diferentes possam
comunicar-se, pois a língua é um sistema organizado, fazendo com que os
falantes de determinadas regiões compreendam-se mesmo que haja a
diversidade linguística.
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
Para os propósitos de análise neste artigo, compreendeu-se como
necessário determinar os tipos de variação linguística, focalizando,
exclusivamente, os fatores extralinguísticos. Ainda, salientamos que estes
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 166
recortes serão realizados para efeito de estudo científico, visto que “a variação
não atinge somente um nível da língua e nem se dá a partir de um só aspecto,
externo ou interno” (CASSELLA, 2016).
Deste modo, é possível afirmar, com um bom grau de acerto, que a variação se manifesta no nível fonético-fonológico, no morfológico, no sintático, no semântico, no lexical e no pragmático. Podemos estudar a variação em cada um destes níveis isoladamente, mas ela não ocorre assim. Os fenômenos de variação podem ocorrer – e efetivamente ocorrem – atingindo dois, três ou vários níveis ao mesmo tempo. É o que acontece, por exemplo, com a marcação do plural somente no primeiro item de um sintagma, como em “as casaØ bonitaØ” por “as casas bonitas”, em que há variação sintática na concordância e variação morfológica na ausência do morfema {-s}. (CASSELLA, 2016, p.88)
Já as variações externas da língua são catalogadas como regional ou
diatópica; social ou diastrática; estilística ou diafásica; na fala ou na escrita ou
diamésica, portanto, iremos dividi-las e classificá-las, visando a concepção
proposta por Görski et al (2010) no livro Sociolinguística.
A variação regional ou diatópica permiti-nos identificar, às vezes com
precisão, a origem de um sujeito por meio de seu modo de falar, por exemplo,
saber quando um falante é gaúcho, mineiro ou nordestino. Logo, esse tipo de
análise pode ocorrer entre unidades espaciais diferentes, já que pode acontecer
variação regional entre Brasil e Portugal, entre Paraná e Santa Catarina, etc.
Assim, para exemplificarmos melhor esse tipo de variação apontamos a
pronúncia de vogais /e/ e /o/ pré-tônicas, como nas palavras ‘peteca’ e ‘moderno’,
que no dialeto nordestino são pronunciadas abertas (p[ℇ]teca – m[ɔ]derno, já no
dialeto do sudeste são pronunciadas fechadas (m[o]derno e p[e]teca). (GÖRSKI
et al, 2010).
Já em relação a variação social ou diastrática, considera-se que as
diferentes características sociais do falante refletem na sua maneira de
comunicar-se. Desse modo, os principais fatores que interferem nesse processo
são o grau de escolaridade, o nível socioeconômico, o sexo/gênero, a faixa etária
e a profissão. Diante disso, falantes que possuem maior nível de escolaridade
costumam marcar o plural nos elementos de um sintagma nominal como ‘as
meninas bonitas’, assinalando o plural em todos os elementos, diferentemente
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 167
de uma comunidade menos letrada que marcaria o plural somente em um
sintagma ‘as menina bonita’, por exemplo.
A variação estilística ou diafásica corresponde as diferentes formas
linguísticas utilizadas por um falante em determinado contexto, tendo como
exemplo a maneira como falamos em casa não é o mesmo modo de falar que
empregamos no nosso emprego. Por conseguinte, “o que está em jogo aí são
os diferentes “domínios sociais”: na escola, na igreja, no trabalho, em casa, como
os amigos etc. Os papéis sociais que desempenhamos vão se alternando em
conformidade com as situações comunicativas [...]” (GÖRSKI et al, 2010).
Em sequência, temos a variação na fala e na escrita ou diamésica, que
segundo Casella (2016), é a comparação entre a língua falada e a língua escrita
e ao grau de monitoramento do falante, ou seja, no proferimento de uma palestra,
o texto falado é uma atividade espontânea, “improvisada e suscetível a variação
nos mais diversos níveis” (GÖRSKI et al, 2010). Em compensação, a escrita
estabelece-se como artificial, ensaiada, já que existe nela a possibilidade de
planejamento, revisões e reformulações, sendo um pouco menos variável, pois
“está vinculada à produção de gêneros sobre os quais há mais regras e maior
monitoramento” (GÖRSKI et al 2010).
Apesar de Görski et al (2010) não apresentar a variação diacrônica,
julgamos necessário discorrer sobre ela, já que a sociolinguística compreende
que as mudanças linguísticas ocorrem durante o tempo e o contexto social. Logo,
essa abordagem entende que a língua é afetada conforme a passagem do
tempo, por exemplo, ‘vossa mercê’ transformou-se atualmente em ‘você
(CASELLA, 2016).
UMA PERSPECTIVA SOCIOLINGUÍSTICA SOBRE A IDENTIDADE
A identidade desenvolve-se de diferentes formas, dando-se de modo
complexo, já que nesse processo interferem diversos fatores: sociológicos,
psicológicos, cognitivos e culturais (SEVERO, 2007). Assim, a formação da
identidade acontece ao longo do tempo por meio de processos inconscientes e
não imediatos, que são permeados desde o nascimento.
Desse modo, durante a formação identitária a língua desenvolve um
papel primordial, já que os indivíduos são formados na e pela linguagem.
Ademais, Scherre (2005 apud OLIVEIRA; BARONA, 2011) salienta que “um
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 168
povo se individualiza, se afirma e é identificado em função de sua língua”, além
de ser necessário a interação com outro, pois é por intermédio da fala que “o
sujeito se compõe, estabelecendo as diversas relações sociais e retratando o
conhecimento de si próprio e do mundo, ou seja, seus valores ideológicos e
visões de mundo”.
Para a sociolinguística certas construções linguísticas determinam a
identidade do falante, possibilitando, assim, constatar os diversos fatores como
o profissional, o pessoal e até mesmo as regiões de cada país (SEVERO, 2007).
Além disso, quando utilizamos a língua para produzirmos significados, traremos
à tona nossos posicionamos de acordo com as regras linguística, levando em
consideração a nossa cultura, pois a língua é um sistema social e não um
sistema unitário (HALL, 2006).
Ao recortarmos o termo “identidade”, carregamos, ainda assim, o “cultural”. Podemos, aqui, fazer um paralelo com a sociolinguística laboviana: assim como na perspectiva sociolinguística, o termo identidade traz consigo a ideia de social, na perspectiva sociológica acima descrita, o termo identidade traz a ideia de cultural. Dessa forma, em ambas as perspectivas os termos ‘social’ e ‘cultural’ carregam o mesmo teor de transposição da identidade do sujeito. (LACERDA, 2013, p.43)
Assim, entende-se que a língua, em práticas sociais e culturais, é
empregada, muitas vezes, como um modo de expressão da identidade. Por
conseguinte, observamos que a língua parece estar “intrinsecamente”
relacionada a cultura de um povo, nacional e regionalmente, tendo a língua como
meio para um povo representar suas ideologias, sua existência social e sua
percepção de nação (LACERDA, 2013).
[...] o falante “somente” se apresenta como “real” no momento em que se estabelece no seu meio social. É a partir dessa socialização que o indivíduo passa a ter uma estreita relação com sua comunidade de fala. Inserido em sua comunidade, agora ele é um dos elementos da interação e do processo social da existência. Pensando nisso, é importante lembrar que o contexto tem uma participação muito importante na construção da identidade linguística, pois muitas vezes ele vai ditar o que é e o que não é dito. Essa concepção de contexto atravessa diversas práticas linguísticas do falante, não apenas fixa sua identidade como usuário de uma língua, mas também marca a identidade, a depender do contexto, do seu interlocutor. Nessa perspectiva, a mensagem poderá ter seu significado determinado e, assim, refletir a identidade dos indivíduos envolvidos. (RAJAGOPALAN, 1998 apud LACERDA, 2013)
Tendo como base a concepção de Rajagoplan (1998 apud LACERDA,
2013), salienta-se que as formações discursivas são modeladas conforme a fala
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 169
do sujeito em ação, pois as palavras são ditas conforme o uso do discurso, já
que é por intermédio dos gêneros do discurso que nos comunicamos, devendo
tê-los, então, como uma forma de interação, “um meio de produção de
enunciados específicos”. Portanto, é a partir do enunciado que podemos
perceber as diversas significações trazidas durante o discurso, como: o
posicionamento do sujeito, seus conhecimentos, sentimentos, etc (MACHADO;
OLIVEIRA, 2013).
Além disso, devemos considerar que um discurso formula-se por meio
da existência de interlocutores e enunciadores, além de ocorrer por meio de uma
interação em um contexto linguístico específico. Diante dessa afirmação,
compreende-se que “o indivíduo é determinado pela socialização, é também
determinado pelas memórias que agrega e altera no decorrer de seu convívio
social” (LOPEZ; DITTRICH, 2005, apud LACERDA, 2013).
Diante desse convívio social, ao qual estamos expostos, e por meio
dessas interações ocorridas em comunidade, que as memorais individuais
acabam sofrendo alterações, produzindo “mudanças nas crenças e nos valores
identitários do indivíduo. Essas possibilidades nos mostram que o falante não é
apenas um mero observador, ele é, também, um agente social de sua identidade
(LACERDA, 2013).
Partindo dessa perspectiva, existem alguns discursos, em nossa
sociedade, que são propagados pelas mídias tradicionais (TV, jornais, rádios) ou
pelo ciberespaço (internet) que acabam fomentando alguns tipos de julgamentos
errôneos sobre determinados assuntos, alimentando a concepção de que certos
valores ou crenças são melhores que a de um grupo ou classe social ou criando
tipos de estereótipo.
Desse modo, baseando-nos no conceito de Labov (apud GÖRSKI et al,
2010), o qual aponta que no nível de consciência, que o falante possui sobre
determinada variável, podemos distinguir três traços distintivos: os estereótipos,
os marcadores e os indicadores.
Os Estereótipos são traços conscientes que conduzem as mudanças
linguísticas rápidas e a extinção das formas censuradas, podendo ser
consideradas positivas ou negativas, como, por exemplo, o fonema /e/ átono final
pronunciado como [i], como em ‘leite quente’ ou o fonema /l/ de encontro
consonantais pronunciados /r/ como em ‘craro’, ‘Craúdia’. Ainda, segundo Görski
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 170
et al (2010) os Estereótipos são usados, normalmente, de forma exagerada, “na
composição de personagens de programas humorísticos, em piadas, e mesmo
em novelas e em filmes”.
Dessa maneira, torna-se preciso distinguir identidade de estereótipo.
Segundo Carvalho (2011, p. 47):
[...] a identidade é considerada social, imaginária e representada, assumida pelo grupo que a construiu, mas isto não significa que ela não tenha origem em uma realidade. O estereótipo também é tido como social, imaginário e construído, e normalmente está associado a uma imagem negativa. Assim, o estereótipo utilizaria de uma representação que um determinado grupo, a princípio, não assume, mas que lhe é atribuída pelo outro. Portanto, percebe-se que a identidade é assumida pelo grupo que a criou, já o estereótipo não.
Em contrapartida, os Marcadores são usados, muitas vezes, de maneira
inconsciente, apesar de muitos falantes diagnosticarem esse ato de linguagem
como "feio" ou "errado", fazendo uso deles sem perceber. Por exemplo, o
emprego do ‘tu’ (utilizado para referir-se a um interlocutor íntimo) e ‘você’
(quando o interlocutor é desconhecido ou mais velho). Embora esses usos não
sejam estigmatizados, eles são correlacionados as variáveis estilísticas (grau de
intimidade) e sociais (como a faixa etária dos falantes) (GÖRSKI et al, 2010).
Os Indicadores são traços linguísticos que apresentam uma divisão
organizada em grupos socioeconômicos, étnicos, etários, “utilizados por cada
indivíduo mais ou menos do mesmo modo em qualquer contexto; são traços
socialmente estratificados, mas não sujeitos à variação estilística, com pouca
força avaliativa e com julgamentos sociais inconscientes” (LACERDA, 2013). Para exemplificar, podemos citar a monotongação dos ditongos /ey/ e /ow/ em
palavras como peixe/pexe, feijão/fejão, couve/cove, couro/coro. Essas variáveis
são ferramentas relevantes para os sociolinguistas, auxiliando-os a compreender
o processo das mudanças linguísticas. Com isso, os estudos e as pesquisas
sociolinguísticas, ajudam a compreender melhor o preconceito linguístico.
Assim, uma das maiores contribuições da sociolinguística está
direcionada para o combate da disseminação das ideias que propagam a
existência de uma língua superior a outras, procurando combater o preconceito
linguístico na sociedade, já que muitas pessoas sofrem constrangimentos ou até
mesmo são humilhadas, quando são considerados falantes linguisticamente
inferiores, pois não utilizam a norma padrão da língua (FARACO, 2005).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 171
Portanto, de acordo com Görski et al (2010), muitos estudiosos e
gramáticos, até membros da comunidade mais letrada da sociedade,
argumentam que existe, em uma língua, “construções corretas e incorretas,
melhores e piores, e que os falantes que “erram” em suas escolhas ao falar ao
escrever são consequentemente imperfeitos [...]”, considerando-os, além disso,
inferiores cognitivamente.
Para solucionar esse problema social que envolve o preconceito
linguístico, Bagno (2004, p. 115) propõe:
[...] a primeira campanha a ser feita, por todos na sociedade, é a favor da mudança de atitude. Cada um de nós, professor ou não, precisa elevar o grau da própria autoestima linguística: recusar com veemência os velhos argumentos que visem menosprezar o saber linguístico individual de cada um de nós. Temos de nos impor como falantes competentes de nossa língua materna. Parar de acreditar que “brasileiro não sabe português”, que “português é muito difícil”, que os habitantes da zona rural ou das classes sociais mais baixas “falam tudo errado”. Acionar nosso senso crítico toda vez que nos depararmos com um comando paragramatical e saber filtrar as informações realmente úteis, deixando de lado (e denunciando, de preferência) as informações preconceituosas, autoritárias e intolerantes. (BAGNO, 2004, p. 115).
Embora muitos livros de gramática e estudiosos perpetuarem vários
mitos (o português é muito difícil; as pessoas sem instrução falam errado; a
língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente; o
certo é falar assim porque se escreve assim; é preciso saber gramática para falar
e escrever bem etc), eles são facilmente desmitificados, como foi realizado no
livro Preconceito linguístico: o que é, como se faz do estudioso Bagno (2004).
Ademais, nessa obra, o autor critica a valorização da língua escrita sobre a
língua falada, argumentando que “infelizmente, existe uma tendência (mais um
preconceito!) muito forte no ensino da língua de querer obrigar o aluno a
pronunciar “do jeito que se escreve”, como se essa fosse a única maneira “certa”
de falar português”.
Em suma, o preconceito linguístico auxilia a discriminação de classes
mais baixas que não possuem acesso à norma padrão da língua, disseminando
uma ideologia que prega a exclusão social, portanto, torna-se necessário trazer
esse problema para superfície para que possa ser combatido com práticas de
inclusão (PELINSON; SILVA; RIBEIRO, 2014).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 172
STAND UP COMEDY: UM GÊNERO ORAL Andrade (2017) salienta que para um gênero ser considerado oral é
preciso possuir como suporte a voz humana, além de ser elaborado visando ter
uma realização oral. Assim, somente são vistos como gêneros orais aqueles que
foram redigidos com a finalidade de ser oralizado, como: “conferências; peças
teatrais; novelas e filmes; notícias faladas em telejornais e no rádio etc”
(TRAVAGLIA et al, 2013). Portanto, se o gênero foi realizado para ser efetuado
oralmente, mesmo possuindo uma versão escrita, ele será considerado oral.
Segundo a perspectiva de Travaglia et al (2013), para caracterizar um
gênero como oral somente pela sua realização falada é uma tarefa complexa,
pois, como o romance, o conto, o artigo científico, podem ser lidos, porém não
foram efetuados para serem oralizados. Entretanto, os filmes, as novelas, os
esquetes humorísticos, o Stand Up Comedy (doravante SUC), foram produzidos
para serem proferidos oralmente e, por essa razão, são concebidos como
gêneros orais. Além disso, há outros gêneros que são originariamente orais e
“são transcritos como os casos/causos, as piadas, e outros que são sempre orais
e se mantêm assim, ou seja, não possuem versão escrita como os leilões”
(ANDRADE, 2017).
Ademais, Dolz e Schneuwly (2004) conceitua “o termo oral” como “tudo que
concerne à boca ou a tudo aquilo que se transmite pela boca. Em oposição ao
escrito, o oral reporta-se à linguagem falada, realizada graças ao aparelho fonador
humano [...]”, além dos autores caracterizarem duas práticas que são pertencentes
aos gêneros orais: o oral espontâneo e a escrita oralizada. O primeiro, oral
espontâneo, é a fala improvisada em um contexto de comunicação, sendo
considerada fragmentada, descontínua, porém possui uma estabilidade. Já o
segundo, escrita oralizada, está relacionado aos trabalhos orais, naturais da escrita,
sendo referido as produções lidas ou recitadas.
Embora o SUC seja produzido originalmente na escrita, não podemos
considerá-lo como um gênero oral previsível, pois “a apresentação é feita com base
no improviso, de forma que a plateia só toma conhecimento do conteúdo durante a
apresentação. Os textos devem ser inéditos; é “proibida”, conforme as regras do
stand up, a apresentação de, por exemplo, piadas prontas” (ANDRADE, 2017).
Desse modo, o SUC aborda em seus shows assuntos polêmicos, como:
o aborto, religião, sexualidade etc, fazendo com que o esse material linguístico
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 173
evidencie ideologias e, consequentemente, impasses e discordâncias, por
exemplo. Assuntos relacionados a substituição de termos considerados
preconceituosos são, frequentemente, pauta de discussão entre os que adotam
uma perspectiva politicamente correta do humor e os que acreditam que o humor
é um campo discursivo em que não há limites.
Portanto, objetivamos analisar o discurso humorístico Stand Up
Comedy, utilizando os conceitos encontrados na variação linguística diatópica,
para mostrarmos que determinadas CF ganharam uma caracterização da fala
estereotipada devido ao modo como ela é perpetuada pela mídia, criando um
tipo de identidade para essas CF. Além disso, o discurso usado pelo comediante
acaba disseminando a concepção de que existem línguas superiores e, portanto,
ocasionando o preconceito linguístico.
ANÁLISE E DISCUSSÃO
Para fins de análise, optamos por um corpus coletado da página
eletrônica do Youtube, denominado “Fernando Caruso – Sotaque”, sendo esse
vídeo um fragmento retirado do DVD da companhia de Humor, Comédia em pé,
gravado em 2008 e postado, posteriormente, em 2011, nessa rede social. Assim,
nesse SUC, o humorista discorre sobre os diferentes modos de falar de cada
região, criando uma identidade estereotipada. Segue de exemplo, o seguinte
excerto:
Quando eu fui para Curitiba fazer show, em Curitiba fazer apresentação lá de humor. É verdade os boatos que existem em Curitiba. Eu sempre ouvi isso e é verdade que tem muita gente bonita. Todo mundo é bonito em Curitiba. Mulher é bonita, homem é bonito, cachorro é bonito, todo mundo é bonito (plateia ri). Eu estava me sentindo muito deslocado (Plateia ri alto). As pessoas me perguntavam: “Você não é daqui não, né?”. Eu falava: “não, como você sabe? Sotaque?” _ “Sotaque não! É outra parada, deixa quieto” (Plateia ri/ Humorista vira-se representando sentir-se envergonhado).
O comediante caracteriza os curitibanos, de forma geral, construindo
uma identidade, pois considera que os indivíduos daquela região possuem uma
beleza estética privilegiada (Todo mundo é bonito em Curitiba). Conferindo um
senso que baseado no comum, já que afirma: “é verdade os boatos que existem
em Curitiba. Eu sempre ouvi isso e é verdade que tem muita gente bonita”.
No entanto, quando o humorista refere-se ao sotaque carioca, percebe-
se uma certa aversão:
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 174
O carioca ele é meio que por definição meio marrento. Não tem como a gente fugir. Você vai pedir, por exemplo, uma informação para um carioca “Onde é que fica a rua Aristides Spínola?” e o carioca responde: _ “Porra, brother! Sei não!” (imitando o sotaque carioca) (plateia ri alto). Sabe... parece que a rua é escrota. (plateia continua rindo). “Nada a ver aí!” (sotaque carioca). (CARUSO, 2008)
Caruso caracteriza o sotaque carioca como marrento, dando a
impressão de não ser um povo acolhedor devido ao seu modo de falar e isso
causa certa aversão ao humorista, pois afirma que a maneira como esse falante
comunica-se parece-lhe “escroto”. Com isso, percebemos a concepção do
comediante em relação a região em que mora, expondo seu posicionamento e
sentimento. Assim, nota-se que quando o profissional do humor utiliza essa
percepção sobre os cariocas, obtemos um ponto de vista estereotipado sobre
essa CF, colocando todos os indivíduos como “marrentos”, conferindo-lhes uma
identidade. Em seguida, o humorista volta-se para o sotaque mineiro:
Uma vez a gente fez uma apresentação em minas também e veio uma senhora toda simpática, toda solista. Falando como uma câmera na mão (gesticula fazendo que está com uma câmera na mão). “O senhor dá licença?” [pausa] (Sotaque mineiro/plateia ri). “Será que o senhor se incomoda?” (plateia ri baixo) [pausa] _ “De eu tirar uma fotinha com o senhor?” (plateia ri). Vou fazer o quê? Vai se foder velha escrota? (plateia ri alto). Não tem como, eu sou trouxa pelo sotaque mineiro, sério, eu sou... Sei lá, eu caio no sotaque mineiro. Eu acho se aquela senhorinha me pedisse qualquer coisa eu... que eu ia sei lá... “o Senhor me dá licença?” (sotaque mineiro). “Será que o senhor se incomoda?” (sotaque mineiro) (plateia ri baixo). _ “De eu enfiar o dedo no cú do Senhor?” (sotaque mineiro) (Plateia ri alto) “Só um dedinho só?” (sotaque mineiro/gesticula o dedo mindinho/risos e aplausos). [pausa]. Imagina, que isso, minha senhora, para que fazer cerimônia? (vira a bunda para a plateia). (humorista ri). “Senhor da licença?” (sotaque mineiro). (plateia ri). “Será que o senhor se incomoda de eu cerrar sua perna com a serra elétrica?” (sotaque mineiro/ plateia ri). (CARUSO, 2008)
Percebe-se nesse excerto que o comediante concebe o povo mineiro
como solícito, pois deixa transparecer essa característica com seu modo de falar,
compreendendo que a identidade que o humorista cria dessa CF é baseada em
uma perspectiva estereotipada. Como afirma Guida e Evangelista (2005), os
mineiros possuem a característica comumente associada a um “bom sujeito”. No
entanto, muitas vezes, possuem uma personalidade opostas, “como o desconfiado
e o astuto, o tímido e acolhedor. Essa construção discursiva pauta-se na harmonia
coletiva e no consenso de que tais características são típicas desse povo.” (GUIDA;
EVANGELISTA, 2005, p. 1).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 175
Além disso, nota-se que a forma relatada pelo humorista sobre o sotaque
utilizado pelos falantes do Rio de Janeiro traz consigo o preconceito linguístico, já
que o profissional do humor critica o modo de falar dessa região. Os traços
socialmente estereotipados pelos falantes, que estão sujeitos a variação linguística,
recebem julgamentos de cunho avaliativo que também são acarretados pelo nosso
sistema inconsciente (LACERDA, 2013). E, isso ocorre quando o comediante retrata
os falantes do Rio de Janeiro: “Onde é que fica a rua Aristides Spínola?” e o
carioca responde: _ “Porra, brother! Sei não!” (imitando o sotaque carioca)
(plateia ri alto). Sabe... parece que a rua é escrota. (plateia continua rindo). “Nada
a ver aí!” (sotaque carioca). [...]” (CARUSO, 2008).
De fato, as pessoas com diferentes estilos de linguagem são acometidas
com diversos tipos de discriminações, além de serem humilhadas e rotuladas como
seres inferiores em relação a linguagem (FARACO, 2005). Para a sociolinguística,
esses diferentes estados de linguagem são providos pela variação linguística
diatópica que é ocasionada pelas regiões encontradas em determinado país ou
região. Isto é, as regiões nordestinas ou regiões do sudoeste do Brasil, por exemplo,
possibilitam os diferentes sotaques, já que a mudança linguística é permeada por
fatores internos e externos e com isso grande parte dos sotaques surgem como
estratégia de comunicação (CASELLA, 2016).
Por essa razão, é incorreto afirmar que os diversos tipos de variações
linguísticas são um erro linguístico. A variação ocorre por vários fatores como faixa
etária e escolaridade, principalmente quando se trata das regiões brasileiras que
são subdesenvolvidas. Nesse quesito, a sociolinguística entende que deve haver
um sistema de inclusão quanto aos diferentes falantes de uma língua padrão
(PELINSON; SILVA; RIBEIRO, 2014).
Ademais, a aceitação do público em relação ao humorista, deixa claro a
posição dos presentes, já que seus ouvintes concordam com a visão do locutor
sobre as diferenças linguísticas, o que acarreta a exclusão social de um determinado
grupo de falantes regionais e isso torna-se visível devido a reação da plateia que
ocorrem de forma gradativa:
Diferente por exemplo do sotaque mineiro, por que o sotaque mineiro ao contrário do carioca ele é absolutamente solícito. Não tem como se você para para pensar, você fica puto com o mineiro (plateia ri baixo). “Cê” imagina o mineiro virando para você falando “aaou”._Por que você não vai se fodê uai?! (sotaque mineiro) (Plateia ri alto) [pausa]. Ué, tá bom! (plateia aplaude). (CARUSO, 2008).
ANAIS DO SIDIALE: TEXTOS COMPLETOS | 176
Embora a fala do locutor possa ser compreendida pelo receptor, ali existiu
uma quebra linguística quanto a norma padrão da língua, visto que o humorista
utiliza uma linguagem coloquial que o aproxima de seu público. Portanto, independe
do sotaque apresentado pelo humorista, a comunicação ocorreu de forma efetiva.
Assim, apesar das diversas formas variacionais ocorrerem ou não, elas cumprem
funções essenciais para a interação, logo, a variação não se torna subalterna as
demais línguas padrões (CAMACHO, 2010).
Dessa forma, conclui-se que é por meio de discursos como este que criam-
se identidades baseadas em conceitos estereotipados em relação ao sotaque, além
de acarretar o preconceito linguístico. Inclusive, nota-se que a concepção de
sotaque do comediante é baseada em uma visão disseminada pelos meios de
comunicação, pois representa o mineiro com o sotaque similar ao “caipira” e isso
ocorre devido a representação que a mídia, mais necessariamente, as novelas
propagam.
A mídia é formadora de opiniões, e ditadora de modelos a serem seguidos. Portanto, os conteúdos veiculados podem vir a resultar em uma estereotipagem de massa. [...] o mundo que vemos na televisão, por exemplo, é aquele filtrado e ressignificado pelos meios de comunicação. Há uma interação entre as crenças e valores dos indivíduos com os conteúdos e estrutura dos programas televisivos, como as novelas. (STEINBERG, 1972 apud PELINSON; SILVA; RIBEIRO, 2014, p.4),
No entanto, os diversos usos da linguagem têm sido aceito pelos meios
de comunicação, incorporando, nas mais diversas variações linguísticas, os
registros linguísticos informais e as diferentes classes sociais. Por conseguinte,
é possível notar esse fenômeno pelo modo de falar dos apresentadores que
“constroem um estilo para que o telespectador/ouvinte se identifique. Também
nas novelas, que buscam dar verossimilhança às personagens fazendo-as
aparentar naturalidade” (PELINSON; SILVA; RIBEIRO, 2014).
Em compensação, de acordo com Pelinson, Silva e Ribeiro (2014), há
veículos que ainda mantém uma postura que defende o português falado
conforme a norma padrão, baseado nas gramaticas tradicionais, o que
demonstra o preconceito com as variedades regionais e/ou populares. Embora
utilizem as formas coloquiais em determinados contextos, ainda, percebe-se a
tendência de priorizar a ideologia normativista e a existência de um português
“correto” e “incorreto”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo como base nos apontamento feitos sobre sociolinguística e
compreendendo que a língua é heterogênea devido as variações linguísticas,
observamos, então, que as mudanças ocorridas na língua prevalecem por diversos
elementos quando regem o âmbito social, pois sua transformação é ditada pelo
contexto em que o indivíduo é inserido, ou seja, dentro de uma comunidade de fala.
Diante dessa concepção, conclui-se que as variantes funcionam como uma
estratégia linguística entre os falantes de uma determinada localidade e certos
estereótipos são criados, pois alguns meios de comunicação e, inclusive, o discurso
humorístico com seu exagero ao representar a fala de algumas regiões, tendo como
objetivo de provocar o riso, baseiam-se em identidades que não condizem com a
realidade, o que acaba fomentando o preconceito linguístico e a exclusão social
dessas pessoas.
Levando isso em consideração, o humorista Fernando Caruso, em seu
Stand Up Comedy, enfatizou alguns tipos de variações regionais e essas foram
baseadas em um senso comum, advindo, principalmente, de uma concepção
generalizada sobre as localidades retratadas em seu show de humor, conferindo
uma identidade que não condiz com o verdadeiro sotaque mineiro, carioca e
curitibano.
Por conseguinte, percebe-se que a forma como essas CF foram retratadas
pelo comediante são provenientes do mito que é perpetuado por alguns falantes e
estudiosos que acreditam na existência de uma variante superior as outras. De fato,
isso corrobora com a falsa idealização de uma língua pura que por sinal não é
vivenciada nas camadas sociais. E, o não apreço constado pelo humorista em
relação ao sotaque carioca, nos faz induzir que há uma superioridade identitária e
linguística, pois o profissional do humor considera que o curitibano e o mineiro se
sobressaem sobre essa CF.
Dessa forma, a sociolinguística intensifica que essas construções
ideológicas sobre a língua devem ser estudadas como meio de diminuir o
preconceito e a exclusão social que é disseminada pelos meios de comunicação,
por certos humoristas e alguns estudiosos e adeptos da gramática normativa. Além
disso, essa ideia de “certo” e “errado” que são perpetuados ainda em nossa
sociedade, advém de um modo de dominação estabelecido, tendo como objetivo
fazer com que as minorias de nossa sociedade, que não possuem um grau de
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escolaridade ou nível econômico privilegiado, sintam-se inferiores e sejam
submetidos as ideologias que são propostas pelas elites da população.
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