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ANAIS ELETRÔNICOS DO X COLÓQUIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: DIÁLOGOS E PERSPECTIVAS
SILVA, JACICARLA S.; BRANDINI, LAURA T. (ORGS.)
LONDRINA, 20 E 21 DE JUNHO DE 2017.
ISSN: 2446-5488 p.294-307
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A LEITURA DE ROMANCES NO SÉCULO XIX: UMA ANÁLISE DE A ABADIA DE
NORTHANGER, DE JANE AUSTEN
Letícia de Oliveira Galvão1
Resumo: Durante o fim do século XVIII e início do XIX, a Inglaterra foi palco para a
construção dos romances de Jane Austen, autora que apresenta em suas personagens,
mulheres instruídas, com forte personalidade e com identidade própria, requisitos que não
eram considerados femininos para a época. Neste caso, este artigo procura analisar de que
maneira a leitura e a leitora de romances é representada na obra A abadia de Northanger
através da personagem principal Catherine Morland, uma jovem que faz dos livros alicerce
para suas fantasias. A análise será promovida a partir dos estudos de Ian Watt e Antônio
Candido, grandes autores que tratam da situação do romance desde seus primórdios. Procura-
se também problematizar a questão da mulher escritora provinda dos mesmos séculos a partir
de Austen e de sua personagem Catherine, observando o impasse vivido pelas moças na
sociedade patriarcal inglesa.
Palavras-chave: A abadia de Northanger; Jane Austen; Romance.
1. Introdução
Enraizado na História da Humanidade encontra-se o poder da Literatura em
transformá-la. Desde o século V a. C. a arte poética ganhou estatuto e nome e os gêneros
elencados por Aristóteles foram imortalizados no decorrer dos anos que se seguiram. Em
volta destes gêneros já intrínsecos no meio literário europeu, o romance surgiu sem muitas
expectativas por parte dos grandes críticos da época.
O fortalecimento dele surgiu em meados do séc. XVIII e a todos surpreendeu, pois
acabou por provocar uma “desordem” entre o pensamento dos chamados especialistas e da
população que tanto se interessou pelas não tão belas histórias que apareciam no decorrer das
páginas de um romance.
Destes os grandes autores que apareceram e se tornaram importantes dentro dos
estudos literários, este artigo procurará apresentar ao leitor uma nova percepção sobre a
1 Estudante de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
E-mail: [email protected]
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escritora Jane Austen. Neste caso, as reflexões aqui apresentadas atentam-se em verificar de
que forma o pensamento de Austen sobre o romance se consolida através da obra A abadia de
Northanger, buscando observar desde o contexto histórico em que ela vivia, até mesmo, suas
experiências de vida que a fizeram escrever este livro.
Para tanto, este artigo está construído em três partes, trazendo no primeiro tópico “O
romance: Influenciador e imoral” uma breve discussão sobre a trajetória do gênero, sua
presença afirmada como negativa e a sua ascensão. Posteriormente, no tópico “Austen: A
leitora e escritora” o interesse foca-se em observar a vida de Austen até se tornar uma das
maiores escritoras inglesas reconhecida até na atualidade, levamos em conta neste momento o
posicionamento da autora sobre a literatura e sobre os leitores. Por fim, como subtópico, que
temos sob o nome de “Catherine Morland, a leitora influenciável” analisaremos a personagem
principal de A abadia de Northanger, onde será percebida a construção da crítica da autora
sobre a leitura e leitora de romances em sua própria época.
Espera-se que a análise mostrada neste artigo possa mostrar ao leitor que Austen não
era uma escritora alheia aos acontecimentos a sua volta, pois ela trazia em seus textos a
própria opinião sobre sua época que, muitas vezes, não eram opiniões esperadas por nós na
atualidade, mas que podem nos fazer repensar a própria literatura.
2. O romance: Influenciador e imoral
Acostumados com os gêneros épico e trágico, o surgimento do romance trouxe
grandes mudanças na perspectiva de leitor e leitura a partir do século XVII. Por um lado, a
tragédia e epopeia remetiam aos importantes heróis gregos e retratavam sua trajetória de
ascensão ou queda, por outro veem-se situações cotidianas com personagens sem grandeza e
pobres com pouco ou nenhum critério moral representadas em prosa por autores ainda
desconhecidos.
Dos aspectos mais curiosos, o que mais chamava a atenção da crítica era o
desconhecimento pela própria estrutura romanesca, pois como se apresentava como gênero
novo, não havia ainda critérios estabelecidos para analisá-lo. Por isso,
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Uma coisa, com efeito, era encontrar razões justificativas para a epopeia ou a
tragédia, a ode ou a sátira, ungidas por uma tradição venerável e beneficiando
dos grandes exemplos da Antiguidade, restaurados então em toda a sua força;
outra coisa era abonar a pacotilha duvidosa das narrações romanescas, que
deviam parecer aos intelectuais o que hoje parecerá a fotonovela. Tratava-se,
portanto, de uma dupla justificativa: com relação aos escritos religiosos e
filosóficos, enquanto literatura; e com relação à literatura, enquanto
subliteratura. (CANDIDO, 1987, p. 2)
Desta forma, a avaliação do novo gênero foi proposta a partir da moralidade, isto é, o
romance só poderia ser positivo se estivesse intimamente ligado aos valores morais
incentivados pela igreja, devendo aprimorar o espírito através de uma leitura repleta de
virtudes. Por consequência, as restrições que permeavam o romance acabaram incitando a
população a buscar cada vez mais o gênero, pois as belas-letras já não traziam interesse para a
população pobre e trabalhadora dos países europeus, as estórias já eram conhecidas e a
necessidade de um gênero novo, próximo a realidade e que se remetia ao espaço-tempo vívido
pela sociedade da época.
As teorias da literatura existentes durante este momento não completavam o novo
gênero e desmotivam sua escrita e sua leitura, isto é,
Quando estavam em jogo os gêneros por assim dizer oficiais, havia uma
espécie de acordo tácito, mediante o qual a ficção, embora inferior à verdade,
era aceita como fonte de elevação e prazer do espírito. Mas quando se tratava
daquele gênero duvidoso, tudo recomeçava e era preciso fazê-lo passar como
mercadoria suspeita. Em parte, talvez, porque enquanto a tragédia, a pastoral
ou a epopeia possuíam em alto grau traços distintivos específicos, o romance
podia parecer demais com a narrativa verídica; podia parecer uma modalidade
espúria de História e, deste modo, não deixava suficientemente clara a sua
natureza de produto da imaginação. (CANDIDO, 1987, p. 17)
O preconceito ao romance perpassa inclusive os seus próprios autores, havia certo
cuidado por grande parte deles de se manterem no anonimato para não prejudicarem suas
vidas cotidianas e até mesmo suas vidas pessoais, devido a isso, mulheres romancistas
começaram a surgir e se fortalecer através do público leitor feminino, que se interessava
principalmente por estórias de amor. Um desses autores que acabaram por fazer sucesso
através do desconhecimento dos outros sobre si foi Jane Austen, a qual escreveu obras
renomadas durante o fim do século XVIII e XIX como Orgulho e Preconceito (1813), Razão
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e Sensibilidade (1811), Emma (1815) e A abadia de Northanger (primeira publicação em
1817) sendo, este último, tema do próximo capítulo.
A principal discussão sobre o gênero é a sua percepção das experiências humanas. O
realismo pré-estabelecido durante as páginas de um romance normalmente traduzia questões
do dia-a-dia da população leitora, como angústias, situações constrangedoras, amores
inalcançáveis, entre outros. Este “realismo” é explicado por Ian Watt em sua obra A ascensão
do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding, como algo que na época perpetuou-
se como algo negativo. Segundo ele:
A palavra “realismo” passou a ser usada basicamente como antônimo de
“idealismo” e nesse sentido — que na verdade reflete a posição dos inimigos
dos realistas franceses — permeou boa parte dos estudos críticos e históricos
do romance. Comumente se considera a pré-história do gênero apenas uma
questão de traçar a continuidade entre toda a ficção anterior que retratava a
vida vulgar: a história da matrona de Éfeso é “realista” porque mostra que o
apetite sexual supera a tristeza de esposa; e o fabliau ou a picaresca são
“realistas” porque, ao apresentar o comportamento humano, privilegiam
motivos econômicos ou carnais. De acordo com a mesma premissa, considera-
se que o auge dessa tradição está nos romancistas ingleses do século XVIII e
nos franceses Furetière, Scarron e Lesage: o “realismo” dos romances de
Defoe, Richardson e Fielding é intimamente associado ao fato de Moll
Flanders ser ladra, Pamela ser hipócrita e Tom Jones ser fornicador. (WATT,
2010, p. 10-11)
Ao trazer personagens como estes, foi difícil para o romance não ser relacionado a
condutas consideradas impróprias pela sociedade, desse modo, a partir do século XVIII até
meados do século XIX ainda se notava que a população acreditava que ele tinha “o poder de
manipular e influenciar”, pois “Os detratores do gênero alardeavam que, ao tomar contato
com as situações reprováveis apresentadas pelas narrativas, o leitor corria o risco de deixar-se
seduzir e vir a praticar atos semelhantes” (MÜLLER, 2012, p. 33). Em consequência deste
pensamento, teóricos que defendiam-no buscavam incumbi-lo de tais afirmações, para eles as
imoralidades apresentadas em tais obras serviam, não para denegrir e sim para corrigir
comportamentos reprováveis.
A grande aceitação do romance pela sociedade, principalmente, a partir do século
XIX, fez com que outro grave problema viesse à tona: as mulheres leitoras. A Igreja muito
reprovou a leitura dessas obras reprováveis que acabavam por retirar a atenção das suas fiéis
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aos livros religiosos, isto é, não se imaginava que uma mulher, permeada de pureza,
inocência, dotada de bons princípios, conhecedora dos afazeres doméstico e fortemente
influenciável por qualquer tipo de fantasia, leria romances.
Aqui no Brasil, os romances trazidos da França e da Inglaterra também causavam
alarde a este tipo de "atentado" contra a educação da mulher. Através do jornal pernambucano
O Carapuceiro (1832-1842), o padre Miguel do Sacramento Lopes da Gama, reprovava
qualquer tipo de contato feminino com os romances e advertia os homens a fim de que eles
cuidassem para que suas esposas e filhas façam o mesmo:
Eu não conheço coisa mais perniciosa aos primeiros anos do que entreter a
imaginação com as lições quase sempre eróticas de que estão cheias as tais
novelas. Ninguém ignora o império da fantasia na mocidade, mormente no
belo sexo. [...] Eu só excetuo os contos morais de Marmontel. Pais de família
atentem muito para este conselho que muito vos devem importar. Se tendes
mulher, e filhas moças, duas coisas devem acautelar que não entrem em casa,
que são as novelas e certas fúrias arrepiadas que andam oferecendo rendas
para vender. (GAMA, 1883, p. 43)
Curiosamente, há vários comentários de Lopes da Gama, neste mesmo jornal, que
criticavam a capacidade dada à mulher de saber ler e escrever, além disso, o padre procura
apresentar a mulher como um ente que deve ser moldado pelo homem, pois ela não nasce com
a capacidade de ser virtuosa, isso é feito pelo seu pai e marido durante toda a vida. Graças a
estes tipos de comentários, “Lopes Gama e O Carapuceiro receberam centenas de críticas por
parte dos periódicos da época e das leitoras, que por meio do expediente de correspondências,
denunciavam o caráter sexista do jornal” (SANTANNA; PERIOTTO, 2012, p. 4).
Na Europa, a escrita e a leitura, além da educação formal, foi promovida para as
classes mais baixas a partir do fim do século XVIII e início do século XIX, apesar de que
antes desta época já se havia um grande número de leitores, principalmente, leitores de
romances, incluindo mulheres, entretanto “o que se exigia ou oferecia era boas prendas,
civilidade e religião, ler e escrever [...] para este fim dissociava-se a preparação literária”
(VASCONCELOS, 2004, p. 35).
É interesse destacar que em grande parte dos homens pobres da época buscavam o
ensino através da religião, neste caso, os jovens eram enviados para serem educados em
seminários em busca de, posteriormente espalharem a fé.
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Foi neste período que, no interior da Inglaterra, uma jovem leitora chamada Jane
Austen começou a escrever seus romances e é sobre ela e sua história que falaremos neste
momento.
3. Austen: A leitora e escritora
No fim de 1775, na cidade de Steventon, Hampshire, Inglaterra nasceu Jane, filha de
George e Cassandra Austen. Dentre mais sete irmãos, a segunda menina da família causaria
tantos prejuízos quanto a primeira se caso não obtivesse um casamento vantajoso quando
ficasse mais velha. Filha de um pároco e tutor de baixa renda que obteve sua educação através
dos estudos na Igreja, Jane cresceu vendo seu pai ensinar crianças da região a lerem e
escreverem para sustentar a todos, com poucas percepções de um bom futuro financeiro:
A família da escritora pertencia à classe denominada Gentry (classe média ou
baixa aristocracia), com uma renda anual de cerca de 300 libras. Além desses
rendimentos, a família Austen precisava de outros recursos provenientes da
escola que o patriarca Rev. George Austen (1731-1805) mantinha em sua casa.
Apesar disso, o pai de Austen teve certas dificuldades financeiras que o
impossibilitou de deixar recursos para suas filhas sobreviverem no futuro,
deixando-as à mercê da ajuda dos irmãos. (ZARDINI, 2011, p. 2)
O início de sua instrução veio a partir de Sra. Cawloy, dona de uma escola de meninas
provinda da aristocracia da cidade de Oxford. Juntamente com sua irmã mais velha,
Cassandra, Jane foi enviada para ser educada e aprender bons modos desde cedo. Neste tipo
de local, “as meninas aprendiam um pouco de gramática e geografia, mas a maior parte do
tempo era dedicada à prática de caligrafia e outras habilidades femininas” (REEF, 2014,
p.40). Entretanto, ambas contraíram Tifo, uma doença muito comum neste país durante do
século XVIII. E, com isso, acabaram voltando para casa.
Após a melhora das duas irmãs, elas foram enviadas ao internato da Madame La
Tournelle, onde permaneceram também por pouco tempo. Foi lá que elas receberam educação
formal e aprenderam a ler, escrever e bordar, assim, quando voltaram para casa em 1786,
eram consideradas moças muito bem instruídas, sendo incentivadas às artes e à leitura pelo
seu pai até o dia de sua morte. Com o interesse pela literatura, Austen buscava cada vez mais
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romances ao invés dos gêneros canônicos e através de cartas enviadas para seus familiares,
principalmente para sua irmã Cassandra quando ela viajara, ela apresenta seus gostos por
autores como “Fanny Burney, Anne Lennox, Richardson, Scott, Cowper, Crabbe, Goldsmith,
Pope, Byron e uma infinidade de outros nomes aparecem e reaparecem ao longo das cartas”
(COLASANTE, 2005, p.13).
Austen viveu em um período propício para a leitura, o romance se popularizava e a
educação começou a fazer parte das massas,
Os romances ainda eram uma forma nova de literatura, popularizada na
Inglaterra por escritores como Daniel Defoe e Henry Fielding. Em 1719,
Defoe escreveu sobre o sobrevivente deum naufrágio vivendo numa ilha em
Robinson Crusoé. Em 1749, Fielding entreve leitores com as aventuras
cômicas e audaciosas de Tom Jones, um jovem forçado a abrir seu próprio
caminho no mundo. No início do século XIX, Sir Walter Scott recorre à
história para escrever livros emocionantes, como Ivanhoé e Rob Roy, repletos
de romance, torneios e assaltos a castelos. (REEF, 2014, p. 19)
Através deste gênero ela pode observar o mundo sob outras lentes e notar que
as verdades absolutas sobre a vida ditadas pela população não eram as que ela gostaria de
seguir. E trazendo todas estas leituras para dentro de seus textos é que ela acabou elaborando
romances que perpassam séculos. É interessante perceber que, apesar de Austen não trazer
romances de ação e nem de terror, como eram os mais comuns, ela procurava sempre colocar
referências a autores pelos quais se interessava em suas novelas como, por exemplo, o
interesse da personagem principal de sua obra Mansfield Park (1814), nos poemas de Walter
Scott e a elaboração da obra Orgulho e preconceito (1813), nome retirado do livro Cecília
(1782), de Fanny Burney. Além de ser um dos livros mais conhecidos de Austen, Orgulho e
Preconceito (1813) retrata a vida de Elisabeth, uma leitora assídua de romances e que os
prefere ao invés da companhia dos homens.
As estórias de Jane, diferente das que faziam sucesso na época, como as góticas,
buscavam representar acontecimentos e lugares que fizeram parte da vida da autora. A
aristocracia, a vida na fazenda e o interesse financeiro eram temas que permeavam os textos
dela e que procuravam retratar outras visões sobre suas personagens, elas não eram mocinhas
que deveriam ser salvas, elas eram suas próprias heroínas e agiam como tal, porém diferente
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do que acontecia com mulheres assim na realidade, as heroínas de Austen sempre tinham um
final feliz:
A cada geração, os jovens desejam entrar de cabeça na vida enquanto os mais
velhos pedem prudência, como em Persuasão. Mulheres e homens se
encantam por pessoas bonitas que irão partir seus corações, como em Razão e
Sensibilidade. Em Emma, a personagem se descobre imatura ainda na idade
adulta e compreende que sabia menos do que imagina. (REEF, 2014, p. 216)]
Os romances de Austen e sua vida ainda levantam muitos questionamentos que
possivelmente ficarão sem resolução. Ela nos deixou como legado um emaranhado de
problemas que ela acreditava que deveriam ser solucionados. Da necessidade do feminismo,
ela trouxe mulheres fortes que lutavam contra a ditadura masculina de sua época, onde a
mulher tinha a obrigação de casar e se submeter ao marido. Do romance, ela apresentou uma
nova forma de se pensar de forma mais real nas situações vividas pelas minorias e se refletir
sobre seu cotidiano. E como legado nos revela que as maiores conquistas são a maturidade e a
integridade.
Muito pouco acontece em seus livros, mas mesmo assim, quando você chega
ao fim das páginas, mal pode esperar para virá-la e descobrir o que virá em
seguida. Muito pouco acontece, mas você novamente mal pode esperar para
virar a página [...] o escritor que possui esse poder é o dono do mais precioso
talento que um escritor pode ter. (REEF, 2012, p. 217)
A autora ficou conhecida por ser uma mulher muito crítica sobre si e sobre a literatura
e ironizava a construção dos romances, principalmente os góticos, ela os considerava
influenciadores e, as pessoas que se deixavam influenciar eram a base do preconceito que
ainda persistia sobre este gênero. Jane Austen nunca se casou e acabou por falecer aos 41 anos
de idade de tuberculose, em Winchester, Inglaterra, sem ter uma fotografia sequer para que
pudéssemos vislumbrá-la.
A partir desta breve explanação sobre a vida dela focaremos agora na análise da
personagem Catherine, a leitora de romances que surge no romance A abadia de Northanger,
uma obra muito peculiar dentro do conjunto da autora, logo lhes mostrarei o motivo.
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4. Catherine Morland, a leitora influenciável
A abadia de Northanger foi o primeiro romance escrito pela autora Jane Austen.
Acredita-se que ela o tenha escrito ainda muito jovem, porém ele acabou sendo publicado
somente após a sua morte, em 1817. Tendo como interesse observar de que forma a
influência da leitura de romances pode prejudicar a vida das jovens de classe média na
Inglaterra, Austen verificou que o romance gótico estava sendo muito lido pelas mulheres de
sua época.
Trazendo para seu texto com uma problemática, a autora trouxe através de sua
personagem e as situações vividas por ela uma crítica interposta no enredo às características
do que ela acreditava ser uma má leitora de romances.
Como já comentado durante a construção deste artigo, mesmo passados dois séculos, o
romance ainda era visto por uma parte da sociedade com maus olhos, ele era imoral e deveria
ser proibido, além disso, havia nele outro grave problema: ele influenciava. O romance,
Apesar de cada vez mais difundido, ainda era um gênero sob suspeita.
Autoridades e críticos literários temiam de modo particular a leitura de
romances por mulheres, jovens e membros das camadas populares. Essas
parcelas da população eram consideradas mais vulneráveis à influência da
literatura; representavam, aos olhos dos que ocupavam posições de poder, um
perigo maior se se deixassem influenciar pelo que liam. (MÜLLER, 2013, p.
106-107)
Jane Austen conviveu com romances durante toda a sua vida e condenou os leitores
influenciáveis por este preconceito contra a leitura, para tanto, ocupou-se em escrever um
romance totalmente irônico para representar como uma leitora, que foi facilmente
influenciada pela leitura se comporta de forma negativa na sociedade.
Catherine Morland era uma jovem sem muitas habilidades e sequer parecida uma
heroína de romances de Austen, mas tinha um desejo ávido por eles que ansiava vivê-los,
“dos 15 aos 17 anos, ela estava em treinamento para se tornar uma heroína. Leu todos os
livros que as heroínas deveriam ler para fornecer em suas memórias aquelas citações que
eram tão úteis e tranquilizantes durante as vicissitudes de suas agitadas vidas.” (AUSTEN,
2012, p.14).
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Dos autores que tinha por interesse e surgiram durante a obra, como Shakespeare,
Pope, Thompson, a sua preferida era Ann Radcliffe. Segundo Catherine Reefe (2014),
Radcliffe “escrevia romances góticos, repletos de castelos em ruínas, tochas fantasmagóricas
e heroínas em perigo, prendendo a atenção das jovens leitores da classe alta e média,
impedindo-as de pegar no sono à noite” (REEF, 2014, p. 48).
Ann Radcliffe e seus livros perpassam todo o enredo de A abadia de Northanger e são
eles que comprometem os comportamentos de Catherine e a fazem ter pensamentos
fantasiosos, obtendo uma atenção muito especial pela obra Os mistérios de Udolpho (1794) da
autora já mencionada. Este romance,
Tornou-se muito renomado graças a vários fatores. Em primeiro lugar, era a
descrição do vilão Montoni. Apesar de sua crueldade, Montoni tinha
profundidade do caráter e o humanismo – uma feição não típica para as
personagens negativas da época, que não tinham nada de positivo em sua
personalidade. A segunda novidade era que o romance introduziu foi a
sensibilidade da heroína Emily St. Aubert, que criava premissas psicológicas e
realistas para motivação dos acontecimentos extraordinários. (PETROVA,
2016, p.30)
A vida da personagem Catherine centra-se em sua estadia na cidade Bath, Inglaterra, a
garota que morava no campo passa alguns dias neste local, onde as interferências desta estória
e de algumas outras acabam por colocá-la em diversas enrascadas.
Apesar de ser chamadas por vezes de “heroína” dentro da obra, nota-se que esta seria
uma percepção dela, como se ela estivesse se enquadrando nas narrativas que lê. O narrador
procura ironizar o comportamento da personagem chamando-a desta maneira.
Além disso, nota-se que este mesmo narrador procura incentivar o leitor a se atentar a
certos comportamentos de Morland e de outras pessoas fundamentais para a obra. Como
exemplo disso, pode-se citar a análise elaborada pelo narrador sobre a tia de Catherine, a qual
a leva para Bath, local que mudará totalmente a vida da garota:
Agora é adequado fornecer alguma descrição da senhora Allen, para que o
leitor possa julgar de que maneira suas ações irão, doravante, inclinar-se em
promover a desgraça de todos os acontecimentos, e como ela provavelmente
contribuirá para submeter a pobre Catherine à infelicidade e ao desespero –
fazendo com que uma nova obra fosse necessária. (AUSTEN, 2012, p. 18)
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Em Bath, as percepções trazidas por ela sobre os romances que lia foram
desconstruindo-se em tom de retirar dela a inocência da heroína gótica e trazê-la para
realidade. O contato com Isabella, noiva de seu irmão, e Henry Tilney são essenciais para que
isto ocorra. Com Isabella, Catherine lê romances, com Henry ela observa que a vida não é
como eles.
Durante o capítulo cinco, o leitor pode perceber que o pensamento sobre os leitores e
escritores do gênero romanesco elaborado por Jane Austen torna-se cada vez mais persistente,
chegando ao ápice quando o narrador para interrompe a estória de sua personagem e dá a sua
própria opinião sobre o assunto através das palavras de Austen, dentre seu discurso, ele
comenta que “parece haver um desejo quase geral em desprezar a capacidade e em
desvalorizar o trabalho do novelista, e diminuir os trabalhos que têm apenas um gênio,
espírito e gosto para recomendá-los.” (AUSTEN, 2012, p. 31).
A autora procura defender o romance e criticar seus detratores, ela acredita que o
preconceito perpassa até mesmo o leitor e o escritor e isso é o que faz ele ser considerado um
gênero menor e, como afirma Candido (1987, p. 1),
A literatura quase nunca tenha consciência tranqüila e manifeste instabilidades
e dilaceramentos, como tudo que é reprimido ou contestado: tem dramas
morais, renuncia, agride, exagera a própria dignidade, bate no peito e se
justifica sem parar. Não é raro ver os escritores envergonhados do que fazem,
como se estivessem praticando um ato reprovável ou desertando de função
mais digna. Então, enxertam na sua obra um máximo de não-literatura.
Estes escritores, segundo o discurso de Austen, sentem vergonha de chamarem a si
próprios de romancistas por medo da maneira com que isso pode ser entendido pela sociedade
em que vivem.
Já os leitores, como Catherine Morland, que se deixam influenciar devem ser trazidos
para a lucidez, como ocorre em A abadia de Northanger. Para tanto, o ápice da desconstrução
da ilusão feita pela personagem acontece durante sua visita à abadia, juntamente com Henry e
sua irmã Eleanor,
Northanger resultava em uma abadia, e ela deveria ser sua habitante. Suas
passagens compridas e úmidas, suas celas estreitas e sua capela arruinada
deveriam estar sob seu alcance diário, e ela não podia subjugar inteiramente a
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esperança de algumas lendas tradicionais, algumas memórias pavorosas de
uma freira ferida e malfadada. (AUSTEN, 2012, p. 106)
Com este pensamento Catherine é levada à Abadia de Northanger, um lugar que para
ela deveria ser desvendado. É interessante destacar que durante a ida para este lugar, a jovem,
que está sentada ao lado de Henry é incentivada a imaginar que haveria mistérios por ali.
Citando passagens do romance O castelo de Otranto (1764), escrito por Ann
Radcliffe, Morland repreende Henry várias vezes, entretanto, seus pensamentos sobre esta
obra acabam por levá-la a cometer um sério erro. Curiosa pelo aspecto do local, Morland
trazia em sua imaginação os cenários de terror apresentados por Radcliffe, entretanto,
novamente a heroína acaba por ser engana por suas leituras e o narrador ironicamente
comenta que a moça observou a abadia “sem sentir um terrível mau presságio ou um minuto
de suspeita de quaisquer cenas antigas de horror que se passassem dentro do solene edifício.
A brisa não parecia soprar os suspiros dos assassinados até ela” (AUSTEN, 2012, 120).
Ao entrar, suas fantasias fizeram-na imaginar que o pai de Henry e Eleanor teria
matado sua esposa, o que lhe causou grandes problemas. Henry, seu par romântico, fica
transtornado com tais comportamentos e invenções da menina, porém a perdoa por ser
inocente demais e acreditar nas estórias góticas, já seu pai descobre que fora enganado sobre
uma possível herança de Morland e manda-a embora da abadia no meio da noite.
Como todo romance de Jane Austen, o casal acabou por fim se casando no final e
Catherine foi perdoada por sua imaginação fértil.
Nota-se, por fim, que o romance acabou por influenciar a personagem Catherine
Morland, uma jovem inocente e com pouca educação, o que é trazido como possíveis motivos
desde o início da obra. Morland acaba aprendendo através de suas experiências que na
verdade, os romances são para ser lidos e não vividos.
5. Conclusão
Os conteúdos aqui apresentados procuraram trazer ao leitor de que forma o romance
era tratado entre séculos XVII a XIX. Para tanto, analisou-se as percepções sobre o gênero
como influenciador e imoral a partir da História no primeiro capítulo, o efeito delas na vida da
ANAIS ELETRÔNICOS DO X COLÓQUIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: DIÁLOGOS E PERSPECTIVAS
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autora Jane Austen, no capítulo seguinte e, por fim, como que eles surgem na obra A abadia
de Northanger, primeiro romance escrito da autora.
Dessa forma, espera-se que através das considerações aqui trazidas tenha sido
compreendido que havia diversas perspectivas e expectativas ao que se refere ao gênero
Romance durante os séculos apresentados. Observa-se a posição de Austen frente à critica
moralizante enfrentada pela prosa ficcional durante sua criação. Em A abadia de Northanger
a ironia produzia um sentimento de reprovação tanto do autor quanto do leitor deste gênero,
pois ambos, para ela, eram responsáveis pelo preconceito que girava em torno do romance.
Curiosamente, o escritor que se envergonhava de escrever romances e o leitor
influenciável, são temas que ainda surgem nos dias de hoje, afinal, quem nunca ouviu falar de
romances assinados com pseudônimos? Ou leitores que almejavam viver na narrativa de seus
livros e agiam como os personagens? Entretanto, diferente do que se comentava na época,
parece que menos expectativas do firmamento ilusório da estória romanesca, nesse caso, o
leitor tem consciência do que é real e o que é imaginário.
Mas será que naquela época a influência era tão perceptível? Ler livros sobre a época
nos traz a ideia errônea de que podemos compreender como a leitura era no passado,
entretanto, acredito que seja difícil dizer se o romance realmente influenciaria seus leitores.
Para Jane Austen, a influência acontecia em determinadas pessoas como Catherine,
que não estudadas o suficiente, das ironias de sua obra a autora nos trouxe um vislumbre
sobre sua época e seu modo de pensar.
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