19
Analética e o pensamento de fronteira: Reflexões sobre os aspectos fundamentais da decolonialidade Jean Michel Daros Hack * Resumo Longe de prender-se a um dogmatismo metodológico, o presente trabalho trata-se de um esforço por buscar “pôr à mesa” elementos do pensamento decolonial sob uma ótica marxista. Buscar-se-á, vislumbrar a realização ou o fio material de onde os discursos e as ideologias advém para se chegar a um ponto reflexivo crucial de transformação social. São das relações/experiências materiais dos indivíduos entre si e com a natureza que se constrói a história, subjetividade e seus significados. É a partir de tais premissas que segue um desenrolar crítico ao eurocentrismo, a colonialidade, ao capitalismo e a ortodoxia epistemológica que vislumbrou um processo de libertação do pensamento hegemônico e que ganhou “novos tons” especialmente após o colapso do bloco comunista e da onda neoliberal dos anos 1990. Entretanto, a fagulha que impulsionou o pensamento crítico decolonial ou o pensamento crítico marxista, é a mesma que alavanca essa pretensa contribuição crítica a estas epistemes, em um esforço dialético que tratará de examinar uma leitura comparativa de elementos da decolonialidade e das formulações marxianas. Não é questão de situar-se na fronteira, mas sim, de realizar um trabalho dialético, dinâmico; indo das minúcias à totalidade; das contradições “da reprodução do mesmo” à alteridade”. Palavras-chave: decolonialidade, epistemologia, alteridade Introdução: pensando a periferia global A deconialidadesurge como uma opção política, epistêmica e que não tem por razão a agenda do desenvolvimento liberal, tampouco as promessas envolta na narrativa do comunismo. A decolonialidade, portanto, é uma chave latino-americana para interpretar o mundo, uma terceira via “que não resulta de uma combinação das existentes, mas consiste * Graduando em Ciência Política e Sociologia na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), membro colaborador do Nucleo de Pesquisa de Política Externa Latino-Americana (NUEPLA).

Analética e o pensamento de fronteira: Reflexões sobre … · Resumo Longe de prender-se ... primero el ‘estaren-la-riqueza’, ... todas las naciones que hoy llamamos subdesarrolladas,

Embed Size (px)

Citation preview

Analética e o pensamento de fronteira: Reflexões sobre os aspectos fundamentais

da decolonialidade

Jean Michel Daros Hack*

Resumo

Longe de prender-se a um dogmatismo metodológico, o presente trabalho trata-se

de um esforço por buscar “pôr à mesa” elementos do pensamento decolonial sob uma ótica

marxista. Buscar-se-á, vislumbrar a realização ou o fio material de onde os discursos e as

ideologias advém para se chegar a um ponto reflexivo crucial de transformação social. São

das relações/experiências materiais dos indivíduos entre si e com a natureza que se

constrói a história, subjetividade e seus significados. É a partir de tais premissas que segue

um desenrolar crítico ao eurocentrismo, a colonialidade, ao capitalismo e a ortodoxia

epistemológica – que vislumbrou um processo de libertação do pensamento hegemônico e

que ganhou “novos tons” especialmente após o colapso do bloco comunista e da onda

neoliberal dos anos 1990. Entretanto, a fagulha que impulsionou o pensamento crítico

decolonial ou o pensamento crítico marxista, é a mesma que alavanca essa pretensa

contribuição crítica a estas epistemes, em um esforço dialético que tratará de examinar uma

leitura comparativa de elementos da decolonialidade e das formulações marxianas. Não é

questão de situar-se na fronteira, mas sim, de realizar um trabalho dialético, dinâmico; indo

das minúcias à totalidade; das contradições “da reprodução do mesmo” à alteridade”.

Palavras-chave: decolonialidade, epistemologia, alteridade

Introdução: pensando a periferia global

A deconialidadesurge como uma opção política, epistêmica e que não tem por razão

a agenda do desenvolvimento liberal, tampouco as promessas envolta na narrativa do

comunismo. A decolonialidade, portanto, é uma chave latino-americana para interpretar o

mundo, uma terceira via “que não resulta de uma combinação das existentes, mas consiste

* Graduando em Ciência Política e Sociologia na Universidade Federal da Integração Latino-Americana

(UNILA), membro colaborador do Nucleo de Pesquisa de Política Externa Latino-Americana (NUEPLA).

em desprender-se delas”1. As contribuições de Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Walter

Mignolo, em especial – dentre outros nomes – tomam partido não pela emancipação

burguesa ou marxista, mas por uma concepção de libertação latino-americana da matriz

colonial de poder, uma proposta de pensar a história e a realidade sob a perspectiva latino-

americana; de entender o mundo a partir da alteridade. Isso consiste em levar em conta a

“otredad del pueblo” e romper com o muro que oprime a periferia, como afirma Dussel

(1995): “es necesario primero destruir una máquina para construir una nueva y la filosofía

latinoamericana, por mucho tiempo todavía, tiene que ser destrucción del muro para que

por la brecha pueda pasar un proceso histórico”.

Levando em conta a ferramenta analítica que pensa desde essa alteridade,

propondo-se ir além dos horizontes da “totalidade do ser”, e a coexistência histórica de

distintas “ecumenes2” até a expansão da modernidade, também se pode sinalizar uma

observação a considerar determinações gerais abstratas, que, a partir dos processos

históricos globais, se transportam mais ou menos a todas as formas de sociedade3, isto é,

abstrações gerais do concreto que de forma alguma deve excluir a alteridade em suas

considerações.

Todavia, como planteava Karl Marx na Contribuição à crítica da Economia Política:

“O concreto é concreto, porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do

diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como

resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e,

portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX, 2008). Nesse

sentido, o comum parece vir a ser a história das contradições globais que se erguem por

sobre a história das contradições locais. Sendo assim, as questões postas pela

decolonialidade – fundadas nas noções de alteridade e no método analético – considerando

a supremacia global do capital, este trabalho se propõe a questionar quais são os

horizontes que essa Epistemologia do Sul por excelência apresenta para a América Latina,

a partir de reflexões críticas sobre tal proposta epistemológica e seus possíveis efeitos na

práxis latino-americana.

Assim, as linhas que se seguem tratam de realizar um pequeno apanhado de

1MIGNOLO, Walter. Desafios Decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, 2017. 2“No hay sino la expansión de "lo mismo", habiéndose avasallado la exterioridad de todas las otras culturas

u hombres que, hasta este momento, eran ecumenes externas, coexistentes”. (DUSSEL, 1995, p. 147) 3MARX, Karl. Contribuição à crítica da Economia Política. Expressão Popular, 2008.

categorias decoloniais – principalmente das concepções de Walter Mignolo edificadas

sobre a Filosofia da Libertação de Enrique Dussel. Se trata de uma breve reflexão sobre as

bases interpretativas e categóricas tratadas pela decolonialidade, tais como

desprendimento epistemológico; epistemologia fronteiriça, a própria matriz da

colonialidade.

1. Dussel e a Filosofia da Libertação

Para o exercício que esse trabalho propõe, segue-se necessária uma

contextualização da estrutura do pensamento decolonial de Mignolo. Essa contextualização

está dividida em alguns pontos que julguei como “chaves” para uma aproximação de tal

articulação epistemológica. Assim sendo, logo ficará claro o quanto do pensamento de

Mignolo está ligado aos de Enrique Dussel. Com esse olhar, as seguintes linhas trarão uma

pequena síntese de alguns aspectos da Filosofia da Libertação, sob a qual está assentado

grande parte do núcleo argumentativo de Mignolo e, a partir disso, serão desenvolvidas

algumas das categorias mais importantes trabalhadas pelo intelectual argentino: o

pensamento fronteiriço, desprendimento epistêmico e colonialidade do poder.

A compreensão da Filosofia da Libertação desenvolvida por Enrique Dussel passa

por alguns pontos analíticos de destaque que, a priori, podem causar a impressão de ser

uma explanação um tanto quanto abstrata do “ser” e da “ontologia” filosófica, entretanto, no

desenvolvimento do raciocínio ficarão claras as partes inicialmente demasiadas obscuras

desse pensamento. De maneira geral, pode-se dizer que a Filosofia da Libertação concorre

para duas categorias fundamentais: a emergência da alteridade e o método analético.

1.2 A crítica da totalidade e a emergência da alteridade

Em a “Introdução à Filosofia da Libertação” (1995), Dussel esboça uma alternativa

metodológica, um caminho que ele mesmo deixa claro, não é o único, mas uma

possibilidade do pensar.

A discussão do método Filosofia da Libertação passa pela tentativa de se chegar

sempre ao fundamento de uma época; um exercício de se conceber o fundamentalmente

ontológico, essencial do ser. Sem essa concepção se torna impossível compreender uma

determinada época e passa, indubitavelmente pela compreensão do fundamental do ser4

em suas particularidades, haja vista que diferentes culturas de diferentes épocas e lugares

“aplicam” diferentes significados/sentidos a diferentes entes/coisas do mundo.

Assim, a premissa inicial de onde parte a Filosofia da Libertação de Dussel é a de

que – definindo aqui de uma maneira bem sintética – que todo ser é portador de uma dada

compreensão de mundo e que essa compreensão, inicialmente, é delimitada pelos

horizontes da cotidianidade, ou compreensão do “eu no mundo” (de Heidegger e Husserl).

Em outras palavras, essa compreensão é atribuição de sentido ao mundo fundamentada

no “ser” com relação a esse mundo, uma espécie de concepção de uma totalidade5.

Essa totalidade – ou concepção de totalidade – indica que detrás de um ente está

fundamentado todo um projeto humano. Como afirma Dussel, “si tengo como fundamento

primero el ‘estaren-la-riqueza’, todo lo que esté en mi derredor lo consideraré sólo desde

allí”6. A compreensão existencial cotidiana que envolve o ser é a que lhe aparece como

importante, àquela que está por detrás do fundamento de um projeto humano, relativo à

uma determinada época; de um todo "ontológico, que se refiere al fundamento o al proyecto

de existencia del hombre, de una comunidad, de una época histórica y aun de la humanidad

como historia de todos los proyectos" (DUSSEL, 1995), como mais a frente o filósofo vai

expor não apenas como um “poder-ser” mas como um “compreender poder-ser”7,

carregado de sentidos dotados de valores8, mediação do projeto existencial humano, que

gera o interesse e, portanto, meio para a práxis (prática) constante do ser no mundo,

4DUSSEL, Enrique. "Introducción a la Filosofia de la Liberación", 1995 5"(...) De esta manera, el sol y todo en una cultura tiene un cierto sentido que se funda en el ser; una cierta

relación al fundamento originario desde el que se descubre el sentido de todos los entes que habitan el mundo. Para los griegos el fundamento era divino ("desde siempre" retornaba sobre sí mismo); mientras que para nosotros el fundamento ya no es eterno, no es divino, tampoco retorna eternamente sobre sí. Ha cambiado el sentido del ser, porque entre los griegos y nosotros está el medievo, está la modernidad y después, sólo después, viene América Latina". (DUSSEL, Enrique. "Introducción a la Filosofia de la Liberación", 1995).

6Ibd. p. 92. 7Ibd. p. 93. 8"No interpreto sino lo que es posibilidad "para" el proyecto existencial, y todo lo demás pasa desapercibido.

Esta es la fundamentación ontológica de la cuestión del interés. El interés es poner el foco de la conciencia o la atención sobre algo. Y, ¿por qué tengo interés en esto? Porque tiene valor. ¿Por qué algo tiene valor? Porque es una mediación para el proyecto. Es decir, es un medio, y de allí la palabra mediación, que hoy se usa con tanta frecuencia: lo que es medio en un proceso. (...) Por ejemplo, si la madera es "para" darme calor, al afirmar, esto, la estoy interpretando como leña; es decir que el "para" de algo, su finalidad, es el como que interpreto. Las mediaciones, las posibilidades, son las que estoy interpretando y valorando cotidianamente, porque son posibilidad "para el proyecto". Lo que no se integra al proyecto no me "interesa", no le presto "atención" no lo interpreto, no tiene valor. (Ibd. . p. 102-14).

compreendido por este9. Portanto, os entes, as coisas – como possibilidades valiosas – que

estão inseridas no mundo que abarca a existência do ser são compreendidas dentro da

totalidade desse mundo, daí a concepção de ontologia10.

Nesse momento, podemos nos encaminhar para o entendimento de Dussel quanto

a alteridade. Se para o compreender do ser, o horizonte da totalidade do mundo capturada

por este, onde se atribui valor (e significado) às coisas, aos entes, de acordo com projetos

existenciais, surge o questionamento: onde estaria a agência do Outro? Qual a

representação deste no mundo da totalidade? Aqui, Dussel começa a sua crítica às

correntes filosóficas eurocêntricas que, segundo ele, não conseguem romper com a

reprodução das relações de dominação justamente por não romperem com a ideia de

totalidade. Em outras palavras, no pensamento eurocêntrico não há lugar para pensar o

Outro como “algo mais além do meu mundo”, pelo contrário, se faz o exercício de inseri-lo

em uma concepção de mundo totalizada, apontando-o como “bárbaro”, “primitivo”, o “não-

ser”.

A lógica da totalidade, segundo Dussel, afirma que “el no ser no es, y de este modo

le permite al guerrero de la totalidad (griega o moderna), conquistador de América y de

todas las naciones que hoy llamamos subdesarrolladas, ir a la conquista del no-ser. Esta

lógica considera que los americanos no son hombres, no-son, y por ello, justamente, se les

hará el regalo de recibir el ser; al darles el ser se les dará la civilización y todo lo que está

vigente en lo que vamos a llamar después el "centro" (Europa, Estados Unidos, Rusia)”11 .

O Outro, então, “não é”. O que se encontra além da totalidade, que surge como um

questionamento externo desse horizonte totalizante, surge como esse não-ser, como

nada12.

Entendo a totalidade como a “lógica da imoralidade13” (que nega o Outro), Dussel

propõe a “lógica da alteridade”, que não tenta integrar o Outro em qualquer concepção de

totalidade, mas, pelo contrário, através do “cara-a-cara”, reconhece o Outro como outro.

Assim, por fim, nos cabe observar que Dussel coloca os povos periféricos ainda como parte

9Ibd. p. 106-107. 10Ibd. p. 109. 11Ibd. p. 128. 12Lo extramuros es lo bárbaro, la negatividad; la libertad del Otro es extra-muros, es negada. Quiere decir,

entonces, que solamente es afirmada en la totalidad como luz y como sentido. Y bien, esa luz, ese mundo y esa totalidad que muestra todo como fenómeno será la negación del Otro, será una ontología inmoral. (DUSSEL, 1995, p. 121)

13Ibd. p. 125

de uma totalidade dominadora justamente por não estarem “en el cara-a-cara” que escuta

o Outro. O paradoxo do dominador é fazer da totalidade algo natural e divino, faz dela

eterna e, portanto, insuperável, pois que, caso fosse superada, a dominação seria posta

em “xeque” – “porque si fuera superado moriría” 14.

A proposta da Filosofia da Libertação é, portanto, uma proposição de rompimento

com a dominação e com a negação do Outro – da “otredad” do povo, do eurocentrismo, da

lógica da totalidade. Além da libertação da América Latina o pensamento de Dussel se

coloca numa perspectiva a libertar os opressores de sua própria matriz de dominação; mais

ainda, a Europa só pode se libertar caso a alteridade venha interpelá-la. Dussel afirma

“nuestra filosofía irrumpe en Europa y le proclama: "Ustedes, con su ego cogito, nos han

totalizado como cosas dentro de su mundo; cuando nos respeten como otros, entonces,

solo entonces, ustedes mismos podrán ser libres". Dessa maneira prossegue, “no se va a

encontrar en Europa la salida de Europa, sino que son los oprimidos los que mostrarán

dicha salida. Seremos nosotros las naciones pobres. ¿Por qué? Porque las naciones

pobres son el futuro de la historia15 . Para tal empreitada é necessário meter-se no

pensamento europeu para “destruí-lo16” e construir um novo processo histórico a partir da

filosofia libertadora latino-americana.

Por fim, para Dussel, o “ethos da dominação” é um ethos que tem sua gênese no

ódio ao Outro, pela negação desse outro. Portanto, não prevê a libertação do Outro, pois

que o coloca como incapaz, “no confía en su palabra; cualquier cosa que diga el Otro, que

es el pobre, el pueblo, la tiene como inculta, como nada y por lo tanto no espera su

liberación. Esperar su liberación es firmar su certificado de muerte, porque es aprobar un

nuevo sistema. Es decir, es odio, es desconfianza y desesperanza del Otro”17. Assim, de

uma maneira sintética, podemos dizer que a Filosofia da Libertação propõe-se ver o Outro

como Outro, sem negá-lo ou reduzi-lo, mas sim, perceber a partir de uma ética libertadora

(seja a moralidade da práxis ou uma pedagogia libertadora) a agência do Outro para além

da totalidade existencial, seja cotidiana, seja epistêmica.

14Ibd. p. 136. 15Ibd. p. 138 16Ibd. p. 140. 17Ibd. p. 165.

1.3 O método analético

No método ontológico-dialético, a filosofia tenta chegar ao fundamento do mundo,

mesmo que seja potencial (futuro), porém, segundo Dussel, se detém perante o outro, como

“um rosto de mistério e liberdade, de história dis-tinta”. Assim, para a ele, a identidade se

diferencia nos entes, entretanto, tanto a identidade como a diferença são modos de

totalidade. A proposta é o uso de “distinto” ao invés de diferente, uma vez que o distinto é

aquele que nunca habitou a comunidade, que sempre será o Outro. E porque Dussel propõe

enfaticamente essa preservação do Outro como externo, fora da totalidade? O filósofo

argentino explica que na totalidade “não há história”. O que ocorre é sempre um retorno

para as mesmas categorias, dos mesmos fatos18. Dessa maneira, se o Outro é

compreendido como distinto, existe história, existe crise e contradição e “su palabra es ana-

lógica, en el sentido de que su lógos irrumpe interpelante desde más allá de mi

comprensión; viene a mi encuentro”19.

Portanto, a compreensão desse Outro além dos horizontes da totalidade passa pelo

método analético. Essa compreensão passa pela interpretação do Outro, exterior ao mundo

do sujeito – fundamentos, projeto existencial –, escapa do alcance histórico deste, pois o

Outro é outra história. A única maneira de interpretar essa história, então, seria a posteriori,

sob a crença na palavra do Outro20.

O filósofo latino-americano deve conhecer, em primeiro lugar o que é a sua

totalidade, perceber o viés ideológico dos sistemas de pensamento que lhe chegaram

desde os centros e negá-los. Só assim, ele pode chegar ao segundo passo que é, no

18"La totalidad es "lo mismo" y la estructura de la totalidad aunque sea analizada por el método estructuralista

no deja de ser por ello dominadora. El estructuralismo es el último estertor del pensamiento europeo, por el cual aún se nos esquematiza dentro del mundo europeo. Lo que voy a proponer es desestructurante o, si quieren, anti-estructuralista, porque es anti-totalidad opresora.

Como esa totalidad estructurada es "lo mismo", el único movimiento que le queda "es el eterno retorno de lo mismo" (Nietzsche). Vale decir: ¿qué otro movimiento le queda, sino repetirse?: la flor llega a ser fruto, se hace semilla y la semilla vuelve a comenzar el ciclo. Por eso el único movimiento que puede tener "lo mismo" (y esto es sostenido desde los griegos hasta Hegel y Nietzsche y aún hasta Heidegger que lo llama "la reiteración") es retorno. El retorno no se hace sobre el futuro nuevo, sino sobre el pasado; pero el pasado es "lo mismo" si hay eterno retorno. En este caso, si yo estoy en el presente, lo que yo haré en el futuro es pasado de mi presente; y lo que yo hice (que era mi pasado) es el futuro de lo que haré. No hay pasado, ni hay futuro, hay eterno devenir de "lo mismo". Esta repetición, ya lo verán ustedes, será el fundamento de la dominación de la mujer, de la dominación del hijo y de la dominación del hermano, es decir, de lo que en su momento será la alienación erótica, pedagógica y política, todas ellas cumpliéndose en América latina". Ibd. p. 121.

19Idb. p. 233. 20Ibd. p. 237.

silêncio, poder ouvir a voz do Outro, que vem da exterioridade da totalidade. “El filósofo, en

América latina, debe comenzar por ser discípulo del pueblo oprimido latinoamericano. En

la medida en que se compromete, aprenderá a pensar verdaderamente”. Desse modo, o

filósofo chega ao âmbito do Outro, pelo compromisso da palavra, do escutar e passa a

conviver com o Outro em seu mundo (o fim da negação deste, da dominação deste). Só

então, o filósofo pode retornar a sua totalidade – e retorna como crítico21.

Um último exemplo cabe ainda nessa explicação. O Outro é sempre o dominado, o

negado pela totalidade do dominador; portanto, a função do filósofo latino-americano é a

destruição dos grilhões do dominador, tem a função de ouvir o Outro analéticamente para

poder criticar essa totalidade e pensar a "ordem nova"22.

2. A colonialidade do poder e a gramática decolonial

Definidos os dois pontos-chave do pensamento de Dussel com os quais Mignolo

dialoga em seu trabalho, podemos nos deter na contextualização das categorias analíticas

decoloniais do nosso pensador argentino.

O primeiro ponto a se tratar no pensamento de Mignolo é a ideia de colonialidade.

No texto "Desafios Decoloniais hoje", o autor define a colonialidade como uma matriz ou

padrão de poder colonial, sendo está um complexo de relações que estão sob a retórica da

modernidade (ideia de salvação, progresso, felicidade, etc)23. Em "Desobediência

Epistêmica", Mignolo explica ainda que a colonialidade do poder é atravessada por

atividades e controles específicos dos mais diversos aspectos da vida, como a colonialidade

do saber, da maneira de ver, de fazer, do pensar e do ouvir, “en suma, la colonialidad del

poder remite a la compleja matriz o patrón de poder sustentado en dos pilares: el conocer

(epistemologia), entender o comprender (hermeneutica) y el sentir (aethesis)”24.

Dessa modo, a dominação do centro sobre a periferia, passa de maneira

fundamental pela legitimação empreendida pela colonialidade. Mignolo propõe a

decolonialidade como uma resposta necessária “tanto às falácias e ficções das promessas

21Ibd. p. 240 22DUSSEL, 1974, p. 79-81 23MIGNOLO, Walter. Desafios Decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, 2017. 24MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémíca : retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad,

gramática de la descolonialidad. - 1 ª ed.- Buenos Aíres: Del Signo, 2010.

de progresso e desenvolvimento que a modernidade contempla, como à violência da

colonialidade” (MIGNOLO, 2017). Essa resposta se dá a partir do entendimento que a

economia e a autoridade política dependem das bases do conhecer, compreender e sentir

coloniais. Em última instância, a colonialidade pode ser compreendida como uma rede de

crenças sobre as quais se atua e se racionaliza a ação do colonizado em proveito do

colonizador25.

Para Mignolo, a destruição da colonialidade não pode ser imaginada como uma

revolução global, pois esta estaria assentada sobre a própria lógica que sustenta a

colonialidade: a totalidade. A totalidade é entendida aqui como totalitária, universal, quando

a realidade é composta por uma heterogeneidade histórico-cultural que destrói a ideia linear

imperial – eurocêntrica. Ela é pluriversal. Então, o pensar decolonial deve ser pautado no

desprendimento epistêmico, levando em conta outras formas de conhecer26. E como isso

pode acontecer? A partir do método analético e da epistemologia de fronteira.

3. Pensamento fronteiriço

Outro aspecto central no pensamento decolonial é a ideia de pensamento fronteiriço.

Tal concepção parte justamente da noção de “Outro”, da alteridade. Vemos aqui, outra vez,

a convergência entre as categorias trabalhadas por Mignolo e Dussel. “Pensar habitando a

fronteira moderna/colonial, sendo consciente dessa situação, é a condição necessária do

pensar fronteiriço descolonial” (MIGNOLO, 2017). O pensar fronteiriço, sendo condição

necessária à decolonialidade, segundo Mignolo, tem sua genealogia em diferentes frentes,

desde Frantz Fanon à Enrique Dussel; Edward Said à Conferência de Bandung (1955),

onde o “Terceiro Mundo” se coloca em uma posição de fronteira, como uma terceira via;

optando – os decoloniais – pela sensibilidade de mundo, em detrimento da visão de mundo,

privilegiada na epistemologia ocidental.

Nesse sentindo, discutindo sobre os desafios decoloniais, Mignolo tece os

parâmetros que diferem a pensar decolonial dos esquemas da modernidade e da pós-

modernidade. Para ele, a grande diferença se encontra no fato de que a epistemologia

ocidental representada nessas duas categorias de análise (modernidade e pós-

25Ibd. p. 12. 26Ibd. p. 17.

modernidade) incorrem no mesmo erro: têm a pretensão totalizante de tornar um

conhecimento provinciano em um conhecimento global, ontológico. Isso, segundo Mignolo,

assim como também são as opções epistêmicas pelas modernidades subalternas,

alternativas ou periféricas, implicam em uma negação ou na tentativa de impedimento do

desenvolvimento do pensamento fronteiriço e da opção decolonial27.

Em outras palavras, a epistemologia fronteiriça é o desprendimento epistemológico.

Não se trata da emancipação, mas da libertação – nos termos de Dussel – da matriz colonial

eurocêntrica. De acordo com a perspectiva analética e a epistemologia de fronteira, o

desprendimento epistemológico é um pensar desde a alteridade, um destruir a dominação

colonial dos saberes coloniais; uma negação – interpelação – das narrativas ontológicas

modernas. Assim, Mignolo afirma que o desprendimento pressupõe um pensamento

fronteiriço no sentido de que o pensamento ocidental, fundacional da modernidade, é

inevitável – e aqui podemos ver outra vez a relação com Dussel no que diz respeito de

pensar a totalidade ocidental por dentro, ouvir o outro, e tornar-se crítico “exterior-interior”

dessa totalidade –, entretanto, limitada e perigosa28. A decolonialidade, portanto, consiste

em mudar os termos e não apenas o conteúdo da conversa (MIGNOLO, 2017).

4. Crítica ao marxismo

Walter Mignolo tece sua crítica ao marxismo no sentido, como já fora exposto acima,

em que compreende que este estaria envolto na ideia da totalidade. Mignolo afirma que o

marxismo não oferece ferramentes para pensar (n)a exterioridade, pois se trata de uma

invenção europeia que surgiu para enfrentar o capitalismo na Europa. O pensamento

marxista resultaria limitado no mundo não-moderno porque se mantém dentro da matriz

colonial do poder que cria exterioridades no espaço e no tempo (bárbaros, primitivos e

subdesenvolvidos) e, pela mesma razão, só serviria de “ajuda limitada a quem imigra do

mundo não-europeu a Europa e Estados Unidos. Pensar (n)a exterioridade exige uma

epistemologia fronteiriça” (MIGNOLO, 2017, p. 29).

27MIGNOLO, 2017. p. 26. 28MIGNOLO, 2010, p. 29.

Mignolo segue discorrendo no sentido de que a decolonialidade é justamente a

insubmissão epistêmica aos processos de discussão da realidade ocidentais. Sendo a

decolonialidade a "terceira via", ele atribuí o processo histórico de descolonização durante

a Guerra Fria à perspectivas decoloniais, refutando o comunismo – marxismo – de tal

processo histórico.

A sociedade política que emerge mundialmente (e inclui todo projeto de libertação

da colonialidade do saber, do poder e do ser), inclui tanto as lutas dos imigrantes

que rechaçam ser assimilados e promovem a descolonização, como a Via

Campesina, organização alimentar mundial para a soberania alimentar, estas e

tantas outras continuam o legado da Conferência de Bandung, já não a nível do

Estado, mas precisamente da sociedade política auto-organizada. Se a

descolonização, durante a Guerra Fria, não foi nem comunista nem capitalista, a

princípios do século XXI não é nem reocidentalização nem desocidentalização, mas

decolonialidade. A decolonialidade requer desobediência epistêmica, porque o

pensamento fronteiriço é por definição pensar na exterioridade, nos espaços e

tempos que a auto-narrativa da modernidade inventou como seu exterior para

legitimar sua própria lógica de colonialidade (MIGNOLO, 2017, p. 30).

Melhor fundamentada, mas ainda sobre a temática da totalidade excludente, Enrique

Dussel coloca em termo a análise de Marx da totalidade social capitalista europeia –

deixando fora o horizonte do Outro – em outras palavras, Marx teria desconsiderado o papel

das colônias em sua análise do ser explicado por meio da categoria do trabalho.

Al fin la ontología dialéctica sigue rigiendo y el proceso dialéctico es formalmente,

como para Hegel, el despliegue creciente con salto cualitativo (porque cuantitativo)

del ser, ahora como trabajo. Desde Descartes hasta Hegel el ser se confundió con

el pensar; en Feuerbach con lo sensible o la sensibilidad; en Marx el ser es la

laboriosidad o el trabajo como tal. Con esto hemos superado la religiosidad etérea

de Schelling, pero hemos perdido la exterioridad al ser: la libertad del otro que puede

revelar desde más allá, que puede trabajar desde más allá de la totalidad burguesa,

por ejemplo desde Latinoamérica, Africa, China, India. Marx ha dado un inmenso

paso que permite implementar al proceso concreto creciente de los pueblos, pero

no logra superar ni la totalidad como categoría última ni el país o la nación como

horizonte de su análisis (de hecho, y aunque en sus último años fue vislumbrando

la realidad del tercer mundo). Es verdad que habló de «la división internacional del

trabajo» pero no llegó a pensar dialécticamente la totalidad como un mercado

mundial, y por ello no pudo concluir igualmente la plusvalía del nivel colonial. Tales

hechos le hubieran exigido una corrección del método mismo, ya que la exterioridad

histórica de las colonias, no como colonias sino como culturas dis-tintas a la

europea, le hubiera exigido contar con el momento exterior del sistema capitalista

para comprender el despliegue de la nueva totalidad analógica que se está hoy

constituyendo en el mundo. (DUSSEL, 1974, p.147-148).

5. Pontos para reflexão: “Tudo que é sólido evapora no ar”

Alguns pontos dessa crítica decolonial ao marxismo merecem uma atenção

diferenciada. Entre elas, iremos nos deter nesse esboço na crítica à concepção de

totalidade no pensamento, que atribui ao marxismo uma reprodução do eurocentrismo; e

na afirmativa de Mignolo que coloca as lutas libertação colonial como processos que não

foram nem capitalistas, nem comunistas. Um terceiro ponto que será tratado é o próprio

entendimento de Mignolo sobre a sustentação da matriz colonial.

Totalidade

Primeiramente, se faz necessário ressaltar que o método materialista histórico não

está assentada em uma explicação meramente economicista, monocausalista. José Paulo

Netto em uma obra didática, “Introdução ao método de Marx”, explica que

“Tal concepção reducionista, que nada tem a ver com o pensamento de Marx, é

compartilhada também por muitos dos adversários teóricos de Marx. Weber, por

exemplo, criticou, na "concepção materialista da história", as explicações

"monocausalistas" dos processos sociais, isto é, explicações que pretendiam

esclarecer tudo a partir de uma única causa (ou "fator"); a crítica é procedente se

relacionada a teorias efetivamente "monocausalistas", mas é inteiramente inepta se

referida a Marx, uma vez que, como realçou um de seus mais qualificados

estudiosos, "é o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas

econômicas na explicação da história que distingue de forma decisiva o marxismo

da ciência burguesa" (Lukács, 1974, p. 14)”. (PAULO NETO, 2011, p. 14).

O debate que Marx faz está centrado na compreensão da sociedade burguesa.

Estas, dadas as particularidades, com o processo de colonização, não são exclusividade

europeia, em outras palavras, hoje vemos um capital que, apesar de ter uma manifestação

primeira na Europa, toma outras bandeiras (China, Japão, Rússia, Brasil, Arábia Saudita,

etc.), entretanto, em sua categoria mais simples, isto é, o trabalho, ainda temos um padrão

não confrontado pelas revoluções nacionais: a propriedade privada dos meios de produção

e a apropriação da mais-valia, trocando em miúdos, o modo de produção capitalista. Assim,

“o concreto é concreto, porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do

diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como processo de síntese, como

resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e,

portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação” (MARX, 2008). A

totalidade em Marx não pode ser interpretado como algo excludente, homogêneo ou

restrito. Evidentemente que uma leitura ortodoxa, não crítica do pensamento de Marx

implica em anacronismos e subserviência às doutrinas eurocêntricas. Nesse caso, faz-se

necessário compreender que Marx escreve desde a sua “totalidade” - para usar Dussel –

mas seus mecanismos de análise, que servem para a análise da estrutura da sociedade

burguesa, servem como ferramentas excepcionais na atualidade e em outras regiões.

Como exemplo, podemos citar os extraordinários trabalhos de José Carlos Mariátegui

(Peru), Ruy Mauro Marini (Brasil), Oscar Creydt (Paraguai), entre tantos outros que

souberam utilizar as ferramentas do pensamento marxista para explicar a realidade, que

sendo outro ainda é parte de um todo concreto, dialético, síntese de muitas determinações,

unidade do diverso. Trabalhando com o colonizado (Outro) que só é colonizado por que

existe um colonizador.

Em “Peles Negras, Máscaras Brancas”, Frantz Fanon (eminente pensador Pós-

Colonial) afirma que a inferiorização do negro (do Outro) passa por um processo de

dominação econômica e depois pela inferiorização racial:

No entanto, permanece que a verdadeira desalienação do negro implica numa

súbita tinada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo

de inferioridade após um duplo processo: inicialmente econômico; em seguida pela

interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa inferioridade (FANON, 2008,

p. 28)

Fanon, como menciona o próprio Mignolo, afirma que o processo de libertação é

necessidade de descolonizar não apenas o colonizado, mas também o colonizador – uma

vez que é com este último que reside o controle da economia e da política mundial – em

outras palavras, um movimento que não pode ser definido em outros termos que não

dialéticos.

Revoluções no Terceiro Mundo e imperialismo

Pois bem, Mignolo afirma que a descolonização, durante a Guerra Fria, não foi nem

comunista nem capitalista. Por mais que os elementos que compuseram as lutas de

independência desses países foram carregados de elementos locais – e o não-alinhamento

do Terceiro Mundo vem a confirmar isso – os processos de independência das nações

africanas e asiáticas após a Segunda Guerra Mundial tiveram importante claramente a

infusão elementos capitalistas e comunistas. Basta nos atermos aos processos de

independência e revolução em países como Coreia do Norte, Vietnã, Angola, Nicarágua

(do lado comunista); Líbia, Índia, e a maior parte dos países africanos (que tão logo se

tornaram independentes, se “integraram” ao mundo capitalista – alinhados politicamente ou

não). Por fim, podemos citar nomes como Fidel Castro, Che Guevara, Ho-Chi-Min ou Mao

Tse-Tung que participaram ou ao menos tiveram influência nos movimentos insurgentes em

todo o mundo29. Dessa maneira, nos parece um tanto quanto “ufanismo decolonial” a

maneira como Mignolo trata os processos de descolonização em seu texto “Desafios

Decoloniais hoje”.

Podemos ver também, nesse sentido, que se por um lado as ideias marxistas-

leninistas influenciaram a resistência dos povos colonizados, por outro, temos um processo

de manutenção do imperialismo desde os centros para a periferia. István Mézáros faz uma

observação importante do comportamento imperialista no século XXI e suas contradições:

“O imperialismo, por sua vez, e o concomitante necessário do impulso incansável

do capital em direção ao monopólio, e as diferentes fases do imperialismo

corporificam e afetam de modo mais ou menos direto as mudanças da evolução

histórica atual Com relação à fase presente do imperialismo, dois aspectos

intimamente relacionados têm importância fundamental. O primeiro é ser a

29ver. Hobsbawn, A ERA DOS EXTREMOS, 1995: Capítulo 15, “Terceiro Mundo e Revolução”

tendência material e econômica mais recente do capital a integração global que,

entretanto, não pode ser assegurada no plano político, por ter sido em grande parte

articulada ao longo da história sob a forma de uma multiplicidade de Estados

nacionais divididos e antagonicamente opostos. Sob este aspecto, nem mesmo as

mais violentas colisões imperialistas do passado seriam capazes de produzir um

resultado duradouro. O segundo aspecto do problema, que também é o outro lado

da mesma moeda, é que, apesar de todos os esforços visando a completa

dominação, o capital foi incapaz de produzir o estado do sistema do capital como

tal. Esta continua a ser a mais grave das complicações, apesar de toda a conversa

sobre "globalização". O imperialismo hegemônico global dominado pelos Estados

Unidos é uma tentativa condenada de se impor a todos os outros estados

recalcitrantes como o Estado "internacional" do sistema do capital como tal.

(MÉZÁROS, 2003, p. 6).

A exportação de capitais, que Lênin já descrevia em “Imperialismo: o estágio superior

do capitalismo”, que provocou a transformação que o capitalismo experimentou no final do

século XIX e início do século XX, fez com que as grandes potências viessem a conflagração

na Primeira Guerra Mundial. Entretanto, a análise de Lênin permanece atual no que diz

respeito a confluência do capital produtivo com o capital financeiro30 (influenciando

diretamente o Estado) em outras palavras, o controle exercido pelos bancos da economia

mundial, devido a concentração de capital aumenta a cada nova crise internacional. Esses

bancos são majoritariamente dos países centrais e, quando não são, têm grande parte de

seu capital controlado por eles31 - tornando, por exemplo, áreas como a Teoria Marxista da

Dependência necessárias para compreender o papel da subordinação e exploração dos

povos latino-americanos. E assim, podemos passar ao nosso terceiro e último tópico.

Matriz colonial sustentada no conhecer e compreender

Em "Desobediência Epistêmica", Mignolo afirma que a colonialidade do poder é

30"A união pessoal dos bancos com a indústria completa-se com a união pessoal de umas e outras sociedades

com o governo. “Lugares nos conselhosde administração - escreve Jeidels - são confiados voluntariamentea personalidades dc renome, bem como a antigos funcionários do Estado, os quais podem facilitar (ll) em grau considerável as relações com as autoridades... No conselho de administração de um banco importante encontramos geralmente algum membro do Parlamento ou da vereação de Berlim" (LÊNIN, 2008, P. 42)

31"O que caracterizava o velho capitalismo, no qual dominava plenamente a livre concorrência, era a

exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação del capital" (Ibd. p. 61).

permeada por certos mecanismos de controle específicos. Uma delas, é a colonialidade do

saber. Esta se trata, em suma, do poder que remete “a la compleja matriz o patrón de poder

sustentado en dos pilares: el conocer (epistemologia), entender o comprender

(hermeneutica) y el sentir (aethesis)”.

Podemos encarar esses pilares – que Mignolo afirma sustentar a matriz colonial –

como saberes eurocêntricos permeados em seu âmago por ideologia. Marx afirma em “A

Ideologia Alemã”:

“A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas

de consciência a elas correspondentes, são privadas, aqui, da aparência de

autonomia que até então possuíam. Não têm história, nem desenvolvimento; mas

os homens, ao desenvolverem sua produção e seus intercâmbios materiais,

transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu

pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a

consciência. No primeiro modo de considerar as coisas, parte-se da consciência

como do indivíduo vivo; no segundo, que corresponde à vida real, parte-se dos

próprios indivíduos reais, vivos, e se considera a consciência apenas como sua

consciência”. (MARX, 2007, p. 91)

Dessa maneira, por mais que a ideologia possua materialização (em ações,

instituições e saberes, por exemplo), ela é, em última instância, sustentada pelo modo como

os humanos lidam materialmente com o mundo. Lembrando que não é a ideia que define a

realidade, mas é a partir da realidade concreta é que se define a ideia (apreensão de

significados). Então, a manutenção de um modo de produção capitalista implica na

manutenção da hegemonia dos saberes eurocêntricos, da colonialidade do poder. O

rompimento com essa lógica passa pela via revolucionária. E a revolução não pode ser de

outra maneira, senão dialética: econômica e cultural.

O capitalismo com suas crises acentua cada vez mais as contradições internacionais

e locais. Não se trata de tão somente de uma violência simbólica ou de uma dominação

financeira, mas o imperialismo, como estágio do capitalismo, se atualiza e aliena; mata e

age perversamente em todos os cantos do globo. Mézáros traz alguns aspectos desse

recorrido histórico do capitalismo:

“A história do imperialismo mostra três fases distintas: 1. O primeiro imperialismo

colonial moderno construtor de impérios, criado pela expansão de alguns países

europeus em algumas partes facilmente penetráveis do mundo; 2. Imperialismo

"redistributivista" antagonisticamente contestado pelas principais potências em

favor de suas empresas quase-monopolistas, chamado por Lênin de "estágio

supremo do capitalismo", que envolvia um pequeno número de contendores, e

alguns pequenos sobreviventes do passado, agarrados aos restos da antiga riqueza

que chegou ao fim logo após o final da Segunda Guerra Mundial; e 3. Imperialismo

global hegemônico, em que os Estados Unidos são a força dominante, prenunciado

pela versão de Roosevelt da "Política de Porta Aberta", com sua fingida igualdade

democrática, que se tornou bem pronunciada com a eclosão da crise estrutural do

sistema do capital - apesar de ter se consolidado pouco depois do final da Segunda

Guerra Mundial - que trouxe o imperativo de constituir uma estrutura de comando

abrangente do capital sob um "governo global" presidido pelo país globalmente

dominante. Os que tiveram a ilusão de que o "neocolonialismo" do pós-guerra havia

criado um sistema estável, em que a dominação política e militar havia sido

substituída pela dominação econômica direta, tenderam a atribuir um peso

excessivo à permanência do poder dos antigos senhores imperialistas depois da

dissolução formal de seus impérios, subestimando ao mesmo tempo as aspirações

exclusivistas de dominação hegemônica global dos Estados Unidos e as causas

que lhes davam sustentação”. (MÉZAROS, 2003, p. 33)

Portanto, a práxis de libertação latino-americana não deve negar a narrativa

marxista, muito pelo contrário, o que se deve ser refutado – com veemência – são os

dogmatismos e as reproduções ideológicas do ethos burguês, branco, heterossexual,

machista e eurocêntrico. O que deve ser negado não é a dialética, o materialismo histórico,

mas sim, o capital. Não existe libertação da América Latina ou dos povos subalternos de

qualquer parte do mundo sem o rompimento com a opressão material e ideológica do

capital. Assim, toda disputa pelos significados locais, se não for acompanhada por uma

ação direta no modo como sujeitos se relacionam com a natureza, em outras palavras, se

não houver uma ressignificação do trabalho, todo intento de liberación, ainda que

sustentado discursivamente de maneira sólida, estará fadado a desmanchar-se no ar.

Bibliografia ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença, 1970. ARENDT, Hannah. Da Revolução. São Paulo: Editora Ática, 1988. DUSSEL, Enrique. Introducción a la Filosofia de la Liberación. Bogotá: Editorial Nueva América, 1995.

DUSSEL, Enrique. Método para una Filosofia de la Liberación: Superación analéctica de la dialéctica hegeliana. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1974.

FANON, Frantz. Peles Negras, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA: 2008.

HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 2ª Ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Imperialismo: fase superior do capitalismo. 4ª Ed. - São Paulo: Centauro, 2008. MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª ed. - São Paulo: Editora Expressão Popular, 2008 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. ________. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998. MÉZÁROS, István. O Século XXI: socialismo ou bárbarie? São Paulo: Boitempo, 2003. MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémíca : retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad, gramática de la descolonIalidad. - 1 ª ed.- Buenos Aíres: Del Signo, 2010.

________. Desafios Decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, 2017.

PAULO NETTO, José. Introdução ao estudo do método de Marx. 1ª Ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2011.