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Análise Criminal e o Planejamento Operacional

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A Anlise CriminAl e o PlAnejAmento oPerACionAl

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Este livro foi produzido por meio de convnio firmado entre o Instituto de Segurana Pblica e o Programa de Apoio Institucional s Ouvidorias de Polcia e Policiamento Comunitrio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, financiado pela Unio Europia. O contedo desta obra de responsabilidade exclusiva dos autores e do Instituto de Segurana Pblica.

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Projeto Curso de Capacitao em Tcnicas Quantitativas e Anlise Criminal

Volume 1

A Anlise CriminAl e o PlAnejAmento oPerACionAl

2008 Rio de JAneiRo 1 edio

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Coleo instituto de segurana Pblica Coordenador Mrio Srgio de Brito Duarte Srie Anlise Criminal Organizadores Andria Soares Pinto e Ludmila Mendona Lopes Ribeiro Volume 1 A Anlise Criminal e o Planejamento operacional Autores Ana Paula Mendes de Miranda IPP / Simoni Lahud Guedes UFF / Doriam Borges IUPERJ / Cludio Beato UFMG Elenice de Souza UFMG / Paulo Augusto Souza Teixeira ISP 2006 by Instituto de Segurana Pblica Tiragem: 150 exemplares Impresso no Brasil permitida a reproduo, total ou parcial, e por qualquer meio, desde que citada a fonte.

Reviso Frederico Csar Girauta Maria Cludia Ajuz Goulart Carmem Lcia Teixeira Jochen Iara Cruz Fres da Silva Projeto Grfico Alexandre Lage da Gama Lima Thiago Venturotti Nunes Carneiro Diagramao Francisco Kelson Moreira de Sousa Organizadoras do volume Andria Soares Pinto Ludmila Mendona Lopes Ribeiro

Ficha Catalogrfica Johenir Vigas Elenice Glria Martins Pinheiro Coordenao Tcnica Ludmila Mendona Lopes Ribeiro Equipe tcnica Lucas Botino do Amaral Daniel Keidel Bou Haya Coordenao Administrativa Jos Motta de Souza Apoio Administrativo Alexandre Corval Florisvaldo Moro Jos Renato Biral Belarmino

A532a A Anlise Criminal e o Planejamento Operacional / Organizadoras Andria Soares Pinto e Ludmila Mendona Lopes Ribeiro; Coordenador Mrio Srgio de Brito Duarte; [autores] Ana Paula Mendes de Miranda ...[et al.]. Rio de Janeiro: Riosegurana, 2008. 116 p. (Srie Anlise Criminal, v. 1) ISBN 978-85-60502-32-5 1. Anlise Criminal manuais, guias, etc. I.Pinto, Andria Soares (Org.) II Ribeiro, Ludmila Mendona Lopes (Org.) III. Duarte, Mrio Srgio de Brito (Coord.) II. Ttulo. III. Srie. CDD: 362.12

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sUmrioAPRESENTAO (Mrio Srgio de Brito Duarte e Robson Rodrigues da Silva) .......................................

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INTRODUO (Ludmila Mendona Lopes Ribeiro e Andria Soares Pinto) .......................................... 10 INFORMAO, ANLISE CRIMINAL E SENTIMENTO DE (IN) SEGURANA: CONSIDERAES PARA A CONSTRUO DE POLTICAS PBLICAS DE SEGURANA (Ana Paula Mendes de Miranda) ............................................................................................... 14 COLETANDO E EXTRAINDO INFORMAES DOS BANCOS DE DADOS CRIMINAIS: A LGICA DAS ESTATSTICAS DAS ORGANIZAES POLICIAIS (Doriam Borges)................................................................................................................................ 42 O SISTEMA CLASSIFICATRIO DAS OCORRNCIAS NA POLCIA MILITAR DO RIO DE JANEIRO E A ORGANIZAO DA EXPERINCIA POLICIAL: UMA ANLISE PRELIMINAR (Simoni Lahud Guedes) ................................................................................................................. 53 PRODUO, USO DE INFORMAES E DIAGNSTICOS EM SEGURANA URBANA (Cludio Beato) ................................................................................................................................. 63 EXPLORANDO NOVOS DESAFIOS NA POLCIA: O PAPEL DO ANALISTA, O POLICIAMENTO ORIENTADO PARA O PROBLEMA E A METODOLOGIA IARA (Elenice de Souza) ........................................................................................................................... 92 OS CONSELHOS COMUNITRIOS DE SEGURANA E OS DADOS OFICIAIS (Paulo Augusto Souza Teixeira).................................................................................................. 105 PERFIL DOS ORGANIZADORES E AUTORES ........................................................................... 116

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APresentAoFoi por uma postura racional que, segundo Max Weber, a civilizao ocidental se distinguiu no cenrio mundial sustentada pelos pilares da cincia, do capitalismo e da democracia. Nesse sentido, a otimizao de recursos na busca de um lucro sempre renovvel, a organizao racional do trabalho e a cincia moderna, menos contemplativa e cada vez mais compromissada com o progresso tecnolgico, foram fatores decisivos para o surgimento do atual conceito de cidado e da moderna sociedade industrial. Em termos de Administrao Pblica, o conceito weberiano de lucro renovvel pode ser traduzido por uma gesto eficiente, eficaz e efetiva que utiliza a cincia para a alocao racional dos recursos pblicos, definindo objetivos, traando metas factveis e construindo indicadores adequados de avaliao e de produtividade. O chamado planejamento estratgico deve contemplar, portanto, um diagnstico adequado da realidade, dos recursos disponveis e dos bices que eventualmente dificultem a consecuo desses objetivos. No campo da segurana pblica, mais precisamente no que diz respeito ao controle da criminalidade e das violncias, funo que entendemos ser uma das premissas do Estado-nao, uma gesto que se pretenda moderna no deve abrir mo da Anlise Criminal como instrumento otimizador de suas aes, com todas as novidades que o progresso cientfico-tecnolgico pode hoje nos proporcionar. Um de seus objetivos o de habilitar profissionais na manipulao de softwares estatsticos e de geoprocessamento para a produo e anlise de informaes necessrias ao planejamento e execuo de polticas pblicas de segurana eficazes. O livro que ora temos o prazer de apresentar trata exatamente da Anlise Criminal e faz parte de um conjunto de estratgias desencadeadas pelo Instituto de Segurana Pblica, com vistas modernizao da segurana pblica estadual. Particularmente, objetiva familiarizar atores do chamado sistema de justia criminal (polcia, Ministrio Pblico, justia e presdios) com o instrumental cientfico-tecnolgico j - e o que est por ser construdo pelo Instituto para uma gesto racional da segurana pblica, tanto no plano estratgico, como no ttico-operacional. Ele foi elaborado por ocasio do Curso de Capacitao em Tcnica Quantitativas e Anlise Criminal, um dos

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projetos do convnio firmado com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos SEDH da Presidncia da Repblica e realizado pelo ISP com o financiamento da Unio Europia. Mesmo entendendo que a Anlise Criminal seja mais do que a coleta de dados quantitativos para a produo de uma estatstica criminal confivel, esta , sem dvida, sua primeira etapa. Assim, torna-se importante primeiramente a construo de bases de dados abrangendo informaes sobre as prticas dos atores do sistema de justia criminal, juntamente com um ferramental analtico adequado; depois, a sensibilizao desses prprios atores para que, por meio de uma postura moderna, possam de fato utilizar em toda sua plenitude esse instrumental posto a disposio pelo ISP, quer na projeo de cenrios, quer na elaborao de inferncias, ou quer no estabelecimento de padres e mapeamento de tendncias criminais. Evidentemente que estamos falando de um processo de modernizao que, como todo processo, apresenta uma ordem de etapas que precisa ser respeitada. Seguindo essa ordem, o ISP vem procurando cumprir sua vocao institucional de subsidiar a Secretaria de Estado de Segurana. Nesse sentido o estado do Rio de Janeiro j conta, desde 1999, com o Programa Delegacia Legal, dispondo de uma base de dados confivel das ocorrncias registradas em todo o territrio fluminense. A partir deles, o ISP produz a estatstica criminal do estado que divulgada mensalmente na pgina eletrnica do Instituto e no Dirio Oficial do estado. Por meio do mesmo convnio com a SEDH e a Unio Europia, o ISP tambm desenvolveu o projeto SIAD (Sistema de Integrao de Anlise de Dados), com o objetivo de integrar dados da Polcia Civil, da Polcia Militar e das Guardas Municipais; e desenvolveu, ainda, uma metodologia prpria para a realizao de pesquisas de vitimizao que visam trazer luzes ao fenmeno da sub-notificao criminal, mais comumente conhecida como cifra negra. Seu primeiro resultado foi a Pesquisa de Condies de Vida e de Vitimizao, realizada em 2006/2007 na Regio Metropolitana do estado do Rio de Janeiro e recentemente divulgada pelo ISP. Alis, foi aps a divulgao dos dados dessa pesquisa, que o prprio Secretrio de Estado de Segurana, Dr. Jos Mariano Beltrame, aventou a possibilidade de se iniciar uma srie histrica para a avaliao das cifras negras no estado, o que j foi providenciado no Planejamento Oramentrio para o prximo ano. Outro grande passo do ISP nesse processo foi a criao de um Observatrio Criminal no Ncleo de Pesquisas em Segurana Pblica e Justia Criminal - NUPESP/

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ISP, que possibilita o monitoramento espacializado das incidncias criminais no estado, com o georeferenciamento dos dados das ocorrncias policiais obtidas no Centro de Controle e Comando da Secretaria de Estado de Segurana - SESEG. Sabemos que ainda h muito caminho ainda para percorrer e, nesse aspecto, seria interessante contarmos tambm com dados sistematizados de outros atores do sistema de justia criminal, alm das polcias estaduais, problema que ser discutido ao longo do presente trabalho. No entanto, bom ressaltar que o sucesso do primeiro curso de anlise criminal j nos aponta alguns avanos nesse sentido. Dessa forma, o ISP resolveu oferecer uma verso mais curta do mesmo curso para policiais, jornalistas, pesquisadores e gestores de segurana pblica em geral, como uma capacitao a ser continuada neste e no prximo ano. E ainda no intuito da sensibilizao, foi estabelecido um dilogo com a Polcia Militar do estado do Rio de Janeiro para que o mesmo programa tambm seja oferecido na Academia de Polcia Militar D. Joo VI para Aspirantes recm-formados no Curso de Formao de Oficiais, o que atender Matriz Curricular proposta pela Secretaria Nacional de Segurana Pblica. Percebe-se, com isso, a imensa potencialidade que representa este trabalho que, inclusive, dever ser acrescido de outros artigos ou volumes, num futuro muito prximo.

MRIO SRGIO DE BRITO DUARTE Diretor-Presidente do Instituto de Segurana Pblica ROBSON RODRIGUES DA SILVA Vice-Presidente do Instituto de Segurana Pblica

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introdUoExiste hoje amplo reconhecimento de que nenhuma organizao pblica ou particular funciona bem sem recursos humanos capazes de desenvolver com eficcia, eficincia e efetividade as atividades que lhe so destinadas. No mbito das instituies que compem o sistema de justia criminal, esta afirmao tambm vlida, razo pela qual muito se tem discutido sobre quais habilidades devem ser consideradas indispensveis ao agente de segurana pblica, para que esteja de fato capacitado a traar aes de preveno da criminalidade, principalmente a violenta. Entre as habilidades requeridas para o agente de segurana pblica, encontrase a de empreender uma boa anlise criminal nos momentos que antecedem o planejamento das polticas pblicas e, em especial, aps a implementao dessas. Isto porque uma poltica pblica eficaz, eficiente e efetiva aquela que consegue no apenas prevenir o crime, mas, sobretudo, elevar a qualidade de vida dos cidados. As aes que antecedem a elaborao da poltica e apontam suas virtudes e vicissitudes tm como sustentculo as informaes produzidas em sua implementao. Em boa medida, estas se encontram armazenadas nas organizaes que compem o sistema de justia criminal na forma de dados quantitativos, os quais podem ter sua natureza e dinmica, compreendidas atravs das tcnicas de anlise estatstica. Da porque a estatstica criminal tem se revelado como um dos principais instrumentos no planejamento e avaliao das aes de segurana pblica. A anlise criminal entendida como um conjunto de processos sistemticos direcionados para o provimento de informao oportuna e pertinente sobre os padres do crime e suas correlaes de tendncias, de modo a apoiar as reas operacional e administrativa no planejamento e distribuio de recursos para preveno e supresso de atividades criminais. Contudo, este instrumento parece ainda no integrar o cotidiano das organizaes encarregadas da promoo da segurana pblica na realidade brasileira. Consciente deste fenmeno e pressionado pela demanda contnua de diversos policiais no que diz respeito capacitao em tcnicas quantitativas e anlise criminal,

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o Instituto de Segurana Pblica - ISP1 props a realizao do Curso de Capacitao em Tcnicas Quantitativas e Anlise Criminal para os agentes de segurana pblica do estado do Rio de Janeiro. A proposta de realizao do curso teve como sustentculo o fato de que vrios agentes de segurana pblica argumentavam que a no utilizao dos dados criminais produzidos pela delegacia legal e tratados pelo ISP se devia ao desconhecimento das ferramentas de anlise criminal. A partir do convnio entre a Secretaria Estadual de Segurana Pblica e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos do Governo Federal, com financiamento da Unio Europia, o ISP capacitou, entre os dias 7 de agosto e 11 de outubro de 2006, cinqenta e trs agentes de segurana pblica, atravs de um curso estruturado em trs mdulos. O primeiro ministrou disciplinas capazes de dar suporte terico compreenso dos mtodos quantitativos. Nesta etapa, portanto, foram abordados contedos relativos introduo estatstica e anlise de dados, bem como programas mais utilizados neste sentido, quais sejam EXCEL e SPSS. A segunda parte visou dar suporte aos alunos na utilizao dos dados de natureza criminal produzidos por cada uma das organizaes que compem o sistema de justia criminal quais sejam: Polcia Militar, Polcia Civil, Ministrio Pblico, Judicirio e Sistema Penitencirio. Este mdulo teve como finalidade familiariz-los com a utilizao desses dados durante o exerccio de sua atividade cotidiana. Por fim, o terceiro mdulo consistiu no compartilhamento de experincias de organizaes policiais militares de outros estados da federao brasileira no uso de dados quantitativos enquanto ferramenta auxiliar na consecuo do planejamento ttico e operacional da unidade policial. O Curso de Capacitao em Tcnicas Quantitativas e Anlise Criminal foi, portanto, um projeto de aperfeioamento dos agentes de segurana pblica atravs da introduo, na realidade prtica destes agentes, de ferramentas de anlise estatstica enquanto instrumento auxiliar na mensurao dos resultados das polticas pblicas implementadas e instrumento principal na elaborao de aes policiais preventivas eficazes. Alguns dos textos que integram o primeiro volume da srie anlise criminal foram produzidos pelos professores do curso ao longo das aulas. Ou seja, trata-se de1 O Instituto de Segurana Pblica do Estado do Rio de Janeiro uma autarquia ligada Secretaria de Segurana Pblica, que produz mensalmente estatsticas relativas ocorrncia de crimes no estado. Esses dados constituem uma gama de informaes que poderiam servir como ferramentas no planejamento e avaliao de polticas pblicas da rea de segurana

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trabalho construdo no apenas a partir dos princpios tericos e metodolgicos que orientam a anlise criminal, mas, sobretudo, a partir do dilogo com os principais usurios das ferramentas de informao e gesto que foram ensinadas no Curso de Capacitao em Tcnicas Quantitativas e Anlise Criminal. Assim, os estudos publicados neste volume representam uma tentativa de reunir as principais reflexes sobre anlise criminal e, desta forma, mudar o quadro de no uso das ferramentas estatsticas enquanto instrumento e avaliao das polticas de segurana em razo do desconhecimento destas. A estrutura da obra em cinco captulos reflete este propsito. O primeiro captulo analisa conceitualmente o papel da informao, em especial a estatstica, na seara da segurana pblica, e a forma como os dados criminais tm sido produzidos e utilizados no estado do Rio de Janeiro. Nele desenvolvido o instrumental terico acerca da importncia da informao no planejamento e avaliao das polticas de segurana pblica, utilizado nos captulos subseqentes. O segundo captulo apresenta uma discusso sobre os pressupostos da estatstica criminal, principalmente no que diz respeito s possibilidades de aplicao dessa metodologia a diversas bases de dados criminais (ou no) disponveis no Brasil. J o terceiro captulo parte de uma dessas bases de dados, com nfase na base construda pela Polcia Militar do Rio de Janeiro, para desenvolver a discusso sobre como foi montado e como hoje operado o sistema classificatrio das ocorrncias policiais. Os captulos 3 e 4 discutem a produo e o uso das informaes criminais na elaborao de aes e diagnsticos em segurana pblica. O primeiro deles parte do estudo de caso de Belo Horizonte e salienta que as diversas ferramentas estatsticas ensinadas no Curso de Capacitao em Tcnicas Quantitativas e Anlise Criminal, quando empregadas com o devido rigor metodolgico, viabilizam a reduo da incidncia criminal e, por conseguinte, a melhoria da qualidade de vida urbana. O outro captulo enfatiza as capacidades requeridas para o moderno policial na produo e no uso das informaes estatsticas e de como estas competncias so ativadas e dinamizadas atravs da metodologia IARA (metodologia orientada para a soluo de problemas composta por quatro etapas: Identificao, Anlise, Resposta e Avaliao - IARA). O ltimo captulo discute a transparncia dos dados na seara da segurana pblica a partir da anlise das aes desenvolvidas de forma integrada pelas polcias

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e pelas comunidades, e das informaes produzidas pelos Conselhos Comunitrios de Segurana do Rio de Janeiro. Com o primeiro volume da srie anlise criminal, desejamos suprimir uma lacuna na segurana pblica, propiciando ao leitor um instrumento de apoio e reflexo que possa contribuir efetivamente para a melhor aplicao dos contedos apreendidos durante o curso. Esperamos que a interao entre os diversos campos de conhecimento possibilite a percepo de que o trabalho policial no se esgota no atendimento e registro de ocorrncias, mas, uma atividade voltada para a identificao e resoluo de conflitos. Andria Soares Pinto Coordenadora responsvel pelo projeto Ludmila Mendona Lopes Ribeiro Coordenadora Tcnica

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inFormAo, Anlise CriminAl e sentimento de (in) seGUrAnA: ConsiderAes PArA A ConstrUo de PoltiCAs PBliCAs de seGUrAnA1Ana Paula Mendes de Miranda

A informao e a construo do conhecimento A informao considerada usualmente como um conjunto de fatos (acontecimentos) e/ou dados a respeito de algo, que constituiriam o ato de informar, entendido como um processo de interao do sujeito com o mundo exterior. De acordo com a teoria da informao, enunciar uma mensagem permite a reduo da incerteza sobre uma dada realidade. Nesse sentido, informar significa comunicar os fatos, tornando-os pblicos, e privilegiando uma viso dos fatos como coisas, cujo relato isento propiciaria a percepo da realidade como ela . Mas o que so dados? So elementos de informaes ou representaes de fatos que servem de base para a formao de uma anlise, cujo resultado ser influenciado por diversos fatores. O uso mais comum dos dados est relacionado estatstica. A criao da palavra Estatstica atribuda ao pesquisador alemo Gottfried Aschenwall (1719-1772) com o sentido de cincia do Estado, que permitiria aos governantes ter um diagnstico mais objetivo dos fatos concernentes aos seus domnios. Acreditava-se, ento, que as cifras trariam mais credibilidade e legitimidade do que as descries textuais. Tratou-se, portanto, de uma forma de conhecimento que surge como um dos elementos da teoria da arte de governar, relacionada ao desenvolvimento dos aparelhos administrativos do Estado, nos sculos XVII e XVIII.1 Uma primeira verso deste artigo foi apresentada no Painel Polticas Pblicas, Violncias e Discursos, durante o Simpsio da Rede Interdisciplinar de Estudos Comparativos (RIEC): Direito, Justia e Segurana Pblica - Isaac Joseph, o espao pblico e as polticas pblicas, no VIII Congresso LusoAfro Brasileiro de Cincias Sociais, em Coimbra, 2004.

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A busca pela objetividade e neutralidade algo j amplamente discutido na teoria do conhecimento2, tendo sido bem demonstrada por Foucault (1990), que analisou a complexa relao entre os saberes e o poder, ao afirmar que todo saber poltico, no apenas porque foi produzido pelo Estado, mas porque todo saber tem em sua origem relaes de poder. A estatstica entendida como cincia do Estado se constitui em um exemplo privilegiado dessa relao entre saberes e poderes, que vai desde a escolha dos temas a serem investigados at os conceitos, bem como outros aspectos metodolgicos da produo de estatsticas pblicas, tudo produto de escolhas feitas pelos analistas. Assim, as estatsticas no podem ser compreendidas como uma cpia da realidade, mas sim como snteses construdas a partir da observao das realidades. Conseqentemente, todo recorte estatstico constitudo por diferentes interpretaes de um mesmo fato, o que explica a existncia de um grau aceitvel e conhecido de erro, muito embora haja um discurso de que os nmeros sejam sempre exatos. A inexatido da informao estatstica tem sido comumente interpretada como uma forma de manipulao intencional, com o objetivo de obter os resultados que interessam aos governos. Esta prtica tradicionalmente chamada de maquiagem, como referncia ao hbito de utilizao de produtos de beleza para disfarar imperfeies e realar pontos positivos, bem como para produzir mscaras e fantasias. No h como negar que a metfora se aplica bem a diversas formas de governos, nacionais ou internacionais, mais ou menos democrticos, que ao longo da histria procuraram dissimular alguns fatos e exibir outros tantos. Porm, h que se problematizar mais a inexatido estatstica sob o risco de perdermos um instrumento de anlise necessrio para a construo de polticas pblicas. Primeiro, preciso se pensar para que servem os dados na segurana pblica? Servem para, principalmente, orientar a administrao quanto aos caminhos que deve seguir no planejamento, execuo e redirecionamento das aes do sistema policial. Servem, tambm, para a populao conhecer o que est acontecendo ao seu redor; e, depois, para que, conhecendo os dados e reas de incidncia, a populao e os diferentes setores da sociedade civil possam objetivar as demandas por providncias do Poder Pblico e contribuir para o esforo comunitrio contra a insegurana. O uso da informao estatstica possui um carter estratgico porque permite dar significado a infinidade de dados que inundam a administrao pblica. A sua2 Ver Kuhn (1974) e Morin (2005)

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importncia no est apenas na divulgao da informao, mas na transformao da informao bruta em algo que possa servir para orientar aes futuras. Portanto, o contexto que vai determinar o sentido dos dados. O processo de quantificao para que seja til interpretao da realidade deve ser complementado pelas informaes qualitativas, que fornecem mais detalhes sobre o fenmeno que se pretende estudar. A propsito da insegurana, cumpre sublinhar que os dados estatsticos das polcias do conta apenas do que se pode chamar de (in) segurana objetiva, o que tem a ver pura e simplesmente com a quantidade das ocorrncias criminais. No do conta da (in) segurana subjetiva, tambm conhecida como sentimento de insegurana (Roch, 1990 e 1998), que, independentemente dos dados objetivos, pode ser ampliada por inmeros fatores, mas principalmente pelo impacto emocional destas ou daquelas ocorrncias em funo de quem seja a vtima ou o local onde tenham ocorrido.

A informao como instrumento de polticas pblicas O Brasil uma repblica federativa, formada por 26 Estados, mais de 5.500 Municpios e um Distrito Federal, cuja Constituio em vigor estabelece as competncias relativas segurana pblica, no ttulo V (Da Defesa do Estado e das Instituies Democrticas), em seu art. 144, como sendo um dever do Estado e direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservao da ordem pblica e da incolumidade das pessoas e do patrimnio (Brasil, 2004) pelos seguintes rgos: polcia federal, polcia rodoviria federal, polcia ferroviria federal, polcia civil, polcia militar e corpo de bombeiros militares3. O Estado do Rio de Janeiro o nico do Brasil que publica mensalmente em Dirio Oficial os registros de ocorrncia em delegacias, de crimes ou outros eventos ocorridos em todo o seu territrio4. Enquanto a cobertura de registros de 100% no Rio de Janeiro, segundo a Secretaria Nacional de Segurana Pblica, a mdia nacional de 86%.3 Embora as Guardas Municipais sejam citadas nesse artigo no 8, no esto listadas entre os rgos responsveis pela gesto da segurana pblica. Por outro lado, a polcia ferroviria federal citada, mas sua funo apenas proteger o que sobrou do patrimnio da Rede Ferroviria Federal, em processo de liquidao. 4 Essas informaes esto disponveis na internet, no site www.institutodeseguranca.rj.gov.br.

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Este trabalho teve incio em 1999, como parte do Programa de Qualificao Estatstica e Relao com a Mdia. Participaram deste projeto diversos setores da sociedade, em especial, pesquisadores que estudam a temtica da violncia, criminalidade e segurana pblica (Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2000). Os objetivos principais foram dar transparncia aos dados; incorporar conhecimento especializado no tratamento das estatsticas, proveniente ou no de fontes policiais; e desagregar os dados por reas Integradas de Segurana Pblica (AISP)5, a fim de produzir mapas de risco com indicao de pontos de concentrao de ocorrncias de crimes. Em 2000, foi criado o Ncleo de Pesquisa em Justia Criminal e Segurana Pblica (NUPESP), vinculado ao Instituto de Segurana Pblica6, tendo como finalidades principais produzir os relatrios estatsticos sobre o sistema de segurana pblica estadual, alm de desenvolver e coordenar estudos sobre a justia criminal e segurana pblica, que possam contribuir para o aprimoramento profissional dos policiais. Trata-se de um rgo que pretende promover a integrao entre a metodologia acadmica de pesquisa e a avaliao institucional do trabalho policial. Tradicionalmente, a gesto dos recursos policiais e o planejamento das aes tm sido orientados apenas pela experincia e bom senso dos agentes (investigadores, inspetores e oficiais de cartrio) e autoridades policiais (delegados). Nesse sentido, considera-se que a realizao de diagnsticos, a definio de metas, critrios de avaliao e a elaborao de medidas de desempenho consistentes um trabalho que pode auxiliar tanto para avaliao da qualidade desse trabalho, quanto possibilitar o gerenciamento profissional da polcia, de forma a constituir-se numa poltica pblica de segurana. Juntamente com a divulgao no Dirio Oficial dos dados estatsticos sobre a criminalidade no Estado, o Instituto de Segurana Pblica (ISP) passou a publicar5 Trata-se da correspondncia geogrfica entre a rea de um batalho da Polcia Militar (responsvel pelo policiamento ostensivo e a preservao da ordem pblica) e uma ou mais circunscries de delegacias da Polcia Civil (exercendo as funes de polcia judiciria e apurao de infraes penais) 6 O Instituto de Segurana Pblica uma autarquia, criada em dezembro de 1999, para assegurar, gerenciar e executar a poltica de segurana do Estado do Rio de Janeiro, elaborando o planejamento da fora policial que mais atenda s necessidades da sociedade. O ISP est vinculado Secretaria de Estado de Segurana Pblica, mas tem receita prpria e gesto descentralizada.

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o Boletim Mensal de Monitoramento e Anlise7, a fim de dar conta populao no s do significado dos nmeros em relao s metas estabelecidas para o setor, como tambm do que eles representam em relao s sries histricas sobre os crimes que mais preocupam a populao. Os crimes analisados mais profundamente so: homicdio doloso, extorso mediante seqestro, roubo de carga, roubo e furto de veculos, roubo a banco, roubo a transeuntes, roubo a residncia, roubo em coletivo e latrocnio. Estes itens foram selecionados, pela Secretaria de Segurana Pblica, por atender aos seguintes critrios: Crimes violentos, assim considerados internacionalmente, principalmente o homicdio e o latrocnio; Crimes contra o patrimnio com o uso de violncia - popularmente chamadas de assaltos, tais como roubo a transeuntes, roubo em coletivos, roubo e furto de veculos; Crimes passveis de interveno mais direta do Poder Pblico, razo pela qual, por exemplo, o estupro, embora merea ateno especial, no esteja includo entre estes crimes8. Paralelamente, outras formas de anlise so realizadas e encaminhadas s polcias, de modo a mapear as reas e horrios com maior concentrao de ocorrncias registradas. Essas informaes no so divulgadas para no prejudicar as atividades policiais, j que so utilizadas para planejar as aes operacionais das polcias. Dando continuidade ao Programa de Qualificao Estatstica foi lanada a Srie Estudos, em 2005, voltada para a anlise de delitos relacionados a manifestaes de violncias interpessoais. No primeiro nmero, Dossi Mulher, abordou-se os problemas das violncias sexuais e agresses fsicas no Rio de Janeiro e no mundo. Os profissionais que atuam no sistema de segurana pblica, tradicionalmente, trabalham apenas com dados relativos aos crimes que esto sob sua responsabilidade direta. Embora, no haja nada de errado nisso, essa postura no permite perceber a regularidade com que determinados delitos ocorrem, o que dificulta o trabalho de planejamento.7 Tambm disponvel no site www.institutodeseguranca.rj.gov.br 8 Ver Boletim Mensal, op.cit

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A identificao de padres, a partir do cruzamento das informaes existentes nos bancos de dados das polcias, constitui-se em uma forma de sistematizao mais independente do que a memria individual dos agentes. Os policiais consideram fundamental esta forma de trabalho, para que se possa falar no emprego de estratgias preventivas. Esta estratgia, no entanto, apresenta duas grandes dificuldades: romper com a tradio policial de reter as informaes e no compartilh-las, e enfatizar o aperfeioamento da qualidade das informaes recebidas e processadas pela polcia. Ressalta-se que a organizao e anlise dos dados so importantes por dois aspectos: permite que as instituies policiais possuam insumos de qualidade para realizar seu trabalho, visando reduzir a vitimizao de cidados e policiais, alm de permitir que a administrao pblica conhea os principais problemas do ponto de vista da populao, j que se sabe que somente registrado aquilo que considerado mais importante, como por exemplo, para fazer jus a direitos, como no caso do recebimento de seguro de automveis, ou nos casos de crimes contra a vida, onde o Estado tem a obrigao de atuar. A padronizao da informao faz parte de um esforo de estruturao e organizao das instituies policiais, como forma de centralizar o acesso aos dados na administrao central e com o objetivo de reduzir o arbtrio policial. Trata-se de buscar formas de controle institucionais, que assegurem a qualidade e a padronizao da informao e do trabalho policial.

Do caos s ordens: a disputa entre a poltica do sigilo e a transparncia poltica O Registro de Ocorrncia o documento produzido pela Polcia Civil que poder iniciar um inqurito policial, quando houver indcio da existncia de algum crime. Conforme j descreveu Roberto Kant de Lima (1995), ainda hoje o registro de ocorrncia s efetivado quando a polcia assim o deseja, o que contraria a legislao e as orientaes governamentais atuais. Os policiais argumentam que estariam poupando tempo do cidado. No entanto, j foi verificado que, muitas vezes, o policial leva algumas horas convencendo a vtima a no registrar o crime, gastando provavelmente tempo equivalente ao necessrio para se realizar o registro.

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comum criticar-se este tipo de prtica, classificando-a como um indcio do despreparo policial, assim como do interesse em manter um nmero baixo de registros, para no contabilizar um nmero alto de casos no resolvidos9. Embora essas hipteses no meream ser descartadas, acredito, contudo, que esse aparente descaso faz parte de uma forma tradicional de organizao e controle de informaes, na qual a desordem e a particularizao do conhecimento so mecanismos fundamentais para a distribuio e manuteno do poder10. O registro de ocorrncia, na prtica, no se restringe s classificaes penais. Ao contrrio, sua anlise explicita mais o modo pelo qual a polcia entende os conflitos sociais, nos quais se incluem os crimes tipificados na legislao brasileira. Observa-se que h uma maior nfase ao que se denomina modus operandi dos delitos, o que explica, do ponto de vista policial, a existncia de um nmero maior de ttulos de ocorrncia do que as classificaes de crimes na legislao. H que se considerar, ainda, que a classificao dos eventos distinta tambm entre as duas instituies policiais. Enquanto as categorias utilizadas pela Polcia Civil so quase totalmente relacionadas legislao vigente no pas, que trata dos crimes e contravenes, a classificao adotada pela Polcia Militar trata os eventos de forma mais genrica, incluindo alm dos crimes, eventos que so denominados de assistenciais e os procedimentos considerados administrativos. As classificaes existentes na Polcia Civil totalizam cerca de 1200 ttulos, que abrangem a legislao relativa a crimes, contravenes, assim como ttulos genricos que permitem a incluso de eventos, que no se encaixam nas demais. As classificaes de ocorrncias na Polcia Militar so agregadas em cinco grandes conjuntos (001 crimes; 002 contravenes; 003 trnsito; 004 assistenciais; 005 diversas), que incluem um nmero varivel de itens para detalhamento11.9 No Boletim de Monitoramento n. 02, de julho de 2003 (base junho), foi apresentado um levantamento que indicava a mdia percentual de 2,7% de elucidao para os casos de homicdio. No Relatrio Final do Projeto Avaliao do Trabalho Policial nos Registros de Ocorrncias e Inquritos Referentes a Homicdios Consumados em reas de Delegacias Legais (2005), a mdia de elucidao de cinco delegacias analisadas foi de 4%. 10 Tal prtica foi observada por mim em outras instituies pblicas, tais como Cartrios de Registros Pblicos e Arquivos Pblicos (MIRANDA 2000 e 2005). 11 Ver RAMOS (2002) e GUEDES (2003).

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Um outro ponto importante, diz respeito transitoriedade do ttulo da ocorrncia na Polcia Civil, que pode ser modificado ao longo da investigao. Tratase de uma classificao inicial e provisria que atende ao relato feito no calor dos acontecimentos, podendo ser alterado a qualquer momento pela autoridade policial, em face a novos fatos e/ou outras informaes obtidas durante o inqurito policial. Neste sentido, a classificao de um fato do ponto de vista policial pode se diferenciar da classificao do mesmo fato por parte do Ministrio Pblico, podendo ter, ainda, uma outra classificao quando do julgamento pelo juiz. Assim, uma anlise aprofundada deste ciclo pressupe que todas as instncias do sistema de justia criminal divulguem periodicamente seus dados, com a possibilidade do acompanhamento de um fato desde o registro da ocorrncia at o seu julgamento. Infelizmente, esse processo ainda est longe de ser realidade no pas. A rigor, a classificao dos ttulos dos registros de ocorrncia deveria ser realizada pelo delegado, mas a prtica tem revelado que esta tarefa feita pelos agentes e, muitas vezes, estes ttulos no so conferidos pela autoridade policial. Outra situao ainda comum no cotidiano das delegacias a classificao de um fato em um ttulo diferente para no contabiliz-lo na classificao correta. Isso ocorre quando h a predominncia de um problema numa regio e os policiais decidem no registr-lo mais. Ressalta-se que tal prtica pode acontecer independentemente de uma ordem superior, o que caracterizaria uma situao de maquiagem das estatsticas. Ao faz-lo autonomamente, os policiais podem, apenas, estar tentando evitar que sejam cobrados a melhorar a sua produtividade na investigao de tais delitos; podem tambm demonstrar, ainda que inconscientemente, a discricionariedade do trabalho policial. Desde 2004, em funo de um maior rigor na anlise dos dados e, conseqentemente, da observao de um maior nmero de erros, a Polcia Civil do Rio de Janeiro adotou como procedimento regular, o encaminhamento dos registros em que h divergncia entre o ttulo e o fato descrito para a Corregedoria, que por sua vez fica encarregada de conferir e cobrar as alteraes necessrias. Alm do carter correcional, pretende-se com isso influenciar indiretamente a qualidade dos registros de ocorrncias. importante lembrar que a organizao dos dados na Polcia Civil teve incio em julho de 1997, quando a Assessoria de Planejamento (ASPLAN) comeou um trabalho de digitao e organizao de banco de dados, trabalho que posteriormente foi adaptado pela Secretaria Nacional de Segurana Pblica, com o objetivo de criar um sistema nacional e integrado de informaes, atualmente em fase inicial de

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implantao no Brasil12. Como ressalta Beato Filho (2000), so raras as secretarias de segurana no Brasil que dispem de departamentos de estatstica e coleta de dados, bem como da tecnologia necessria para tal. Em levantamento realizado pelo NUPESP em 2004, constatou-se que dos 26 estados apenas quatro informavam regularmente seus dados, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, So Paulo e Minas Gerais. No entanto, os diferentes formatos de classificao no permitem muitas vezes a comparao entre os mesmos. Uma outra mudana importante no processo de qualificao estatstica do Rio de Janeiro foi a criao do Programa Delegacia Legal, em 1999. Seu objetivo foi modificar completamente a forma de operar de uma delegacia de polcia, a partir da organizao das informaes e tambm da prestao de um servio pblico de qualidade populao, com a retirada das carceragens e a melhoria do trabalho investigativo. No que tange organizao das informaes, h um esforo contnuo de padronizar as classificaes, atravs da redao e divulgao de manuais. Este processo, no entanto, ainda encontra resistncias por parte dos policiais, que mantm arquivos particulares, com informaes sobre criminosos, informantes e at registros de ocorrncias, no incluindo as informaes no banco de dados da instituio. A resistncia dos policiais s tentativas de padronizao se soma resistncia com relao publicidade dos dados, insumo necessrio proposio de polticas pblicas. Entretanto, a resistncia no deve ser encarada negativamente, ao contrrio, deve ser considerada um indicador importante do impacto das polticas pblicas em culturas institucionais. Quando no h nenhuma resistncia porque provavelmente as mudanas no esto surtindo os efeitos esperados. S se pode falar de efetividade de uma poltica pblica medida que ela provoque impacto nas rotinas de uma instituio, e ao faz-lo, essa poltica sofrer conseqentemente crticas dos que no desejam a mudana. A divulgao sistemtica dos registros de ocorrncia possibilita um diagnstico preliminar, embora limitado, dos problemas que a populao leva ao conhecimento da polcia. No entanto, ater-se apenas ao que foi registrado retifica a imagem da polcia como uma instituio destinada ao combate ao crime, em detrimento de uma outra imagem, tambm existente, da polcia mediadora de conflitos intracomunitrios e de agncia que articula a populao a outras agncias estatais.12 Os dados referentes economia, sade ou educao j so h algum tempo regularmente coletados e analisados nacionalmente, porm apenas recentemente, os dados oriundos das polcias passaram a merecer tal tratamento, o mesmo no se pode falar sobre os dados do poder judicirio

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essa imagem da polcia que o projeto de integrao das informaes entre as duas corporaes pretende apresentar. Atualmente, os dados dos atendimentos realizados pela Polcia Militar, seja atravs do COPOM13, seja mediante o Talo de Registro de Ocorrncia, no so sistematizados e analisados. Destaca-se que esses dados so extremamente valiosos. Com eles, possvel observar diversas prticas policiais relativas ao que se chama de feijoada, ou seja, o trabalho assistencial, que considerado menos nobre, embora constitua 50% das atividades cotidianas, contabilizadas juntamente com processos administrativos sem DP (36% de conduo DP obrigatria ou por opo das partes e 14% de atendimentos frustrados). Atualmente, est em andamento um projeto de Integrao de Bancos de Dados da Polcia Civil, da Polcia Militar e das Guardas Municipais do Estado do Rio de Janeiro, que est analisando a situao dos bancos de dados das Polcias Civil e Militar visando a sua integrao. Numa segunda fase, pretende-se promover a integrao com as Guardas Municipais e a Justia Estadual, visando ampliao do conhecimento relativo aos fatos relacionados segurana pblica, mediante o cruzamento das informaes14. Simoni Lahud Guedes fez uma instigante anlise sobre o sistema classificatrio das ocorrncias na Polcia Militar (2003), destacando que o sistema de registro trabalha conjugado a um sistema classificatrio implcito, construdo e transmitido pela ao e observao do trabalho dos mais experientes. Assim, o sistema classificatrio das ocorrncias dirige o olhar para determinadas direes, hierarquiza e valoriza eventos, desvaloriza outros e obriga construo de liames entre o vivido e o registrado (2003:7). O principal problema em transformar o conjunto de ocorrncias em estatstica est exatamente na dificuldade de transformar a classificao policial, que toma por referncia a experincia vivida em anos de trabalho policial em uma outra classificao, a estatstica, cujos critrios lhe so exteriores, genricos e pretendem alcanar uma universalidade.13 O Centro de Operaes da Polcia Militar registra todas as chamadas feitas para o telefone de emergncia (190) do municpio do Rio de Janeiro, excluindo-se aos bairros atendidos pelos Batalhes 27 e RCECS, na zona oeste. A partir de 2006, quando for implementada da Central 190 haver uma centralizao das chamadas e dos despachos, possibilitando uma ampliao das informaes. 14 Este projeto parte de um convnio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Secretaria de Segurana Pblica e o Instituto de Segurana Pblica, com financiamento da Unio Europia.

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Tal dificuldade se revela medida que estamos tentando construir modelos de traduo que possibilitem a comparao entre os fatos registrados pela Polcia Civil, aonde o cidado vai apresentar sua queixa, com os fatos registrados pela Polcia Militar, que atende a seus chamados. Numa anlise preliminar dos eventos, j possvel observar que h algumas divergncias de classificaes entre as duas instituies, o que certamente revelar o que valorizado e desvalorizado pelas duas polcias. A adoo da transparncia como modelo de ao poltica tem sido apreciada como discurso no pas, em especial, no que se refere prestao de contas do uso de verbas pblicas. Entretanto, este modelo contrasta com um outro, observvel a partir das prticas rotineiras de funcionrios pblicos, chamada de poltica do sigilo. Sua caracterstica principal a expresso de um certo temor: os documentos pblicos quando analisados podem significar censura a uma m administrao. Segundo Jos Honrio Rodrigues, a poltica do sigilo (1989: 13) corresponderia a uma velha tradio15 portuguesa que pretende esconder e sonegar os documentos, independentemente do tempo j decorrido. Esse desafio necessita ser enfrentado para que se possa efetivamente compreender que a relao entre informao e democracia biunvoca, ou seja, uma no pode existir sem a outra (FERRARI, 2000). preciso refletir tambm que esta relao deveria assegurar o direito-dever de informar, o que equivale possibilidade de constituir e gerir fontes de informao, evitando-se os monoplios, bem como o direito de ser informado, o que corresponderia ao acesso a uma pluralidade de fontes informativas diferenciadas e de qualidade, evitando-se as informaes manipuladas por m f e/ou por ocultao de fatos.

Publicidade dos dados e o sentimento de (in) segurana A descrio de como os dados tm sido produzidos e analisados o ponto de partida para a discusso de como so construdas algumas representaes a respeito da insegurana e o medo da violncia e sua relao com a mdia no Rio de Janeiro. Foram selecionadas inicialmente 141 reportagens publicadas em jornais de circulao diria, das quais foram 38 selecionadas, abrangendo os meses de junho, julho, setembro e outubro de 2003; fevereiro, maio, junho e julho de 2004, relativos ao monitoramento15 O conceito de tradio entendido aqui como um determinado padro, inconsciente, produzido e reproduzido por um grupo atravs de suas prticas.

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dos dados referentes aos registros de crimes no Estado16. A escolha deste recorte temporal est associada com a cobertura da imprensa durante a divulgao dos Boletins Mensais de Monitoramento e Anlise, pelo Instituto de Segurana Pblica. Foram includas ainda algumas anlises dos dados levantados pela pesquisa Avaliao do sentimento de insegurana nos bairros da cidade do Rio de Janeiro, em fase de concluso17. A seleo dos jornais ocorreu em funo da participao de seus reprteres durante as entrevistas coletivas, quando foram apresentados os dados estatsticos, contando com a presena no s dos principais jornais fluminenses (O Globo, O Dia, O Fluminense, Extra, Jornal do Brasil e Jornal do Commercio), bem como de dois jornais paulistas (O Estado de So Paulo e A Folha de So Paulo). Uma primeira constatao diz respeito ao espao dado pelos jornais ao tema. Com exceo do Jornal Extra, cujas matrias sobre as estatsticas aparecem no caderno denominado Geral, os demais apresentaram suas matrias em sees chamadas de Dia a Dia / Nosso Rio / Polcia (O Dia); Cidade (O Fluminense e Jornal do Brasil); Rio (O Globo); Cotidiano (Folha de So Paulo); Cidades (O Estado de So Paulo); Rio de Janeiro (Jornal do Commercio). Esta localizao certamente no casual e indica uma associao entre a representao do cotidiano da vida urbana ao aumento da violncia e do crime, o que j foi amplamente analisado pela cincia social brasileira, conforme apontam Kant de Lima, Misse e Miranda (2000). Um outro ponto importante diz respeito aos jornais paulistas que muitas vezes do um maior destaque aos fatos ocorridos no Rio de Janeiro e pouco falam sobre os eventos ocorridos em So Paulo18. Esse silncio no pode ser considerado casual. Muito menos se pode imaginar que a principal metrpole do pas seja um paraso na terra,16 O levantamento foi realizado pelos estudantes de Comunicao Social, Brbara Tiago Bono e Gabriel Souza, e de Cincias Sociais, Eliane dos Santos da Luz, estagirios do ISP. 17 A pesquisa foi financiada pela FAPERJ, tendo sido realizada em nove bairros (Bangu, Bonsucesso, Botafogo, Campo Grande, Copacabana, Lagoa, Mier, Pavuna, Santa Cruz), levando-se em conta o IDH (ndice de Desenvolvimento Humano) de cada bairro, os critrios de renda, escolaridade, taxa anual de homicdios e populao. Foram aplicados 400 questionrios em cada bairro a partir de uma amostra por cotas de gnero e idade, totalizando 2.000 pessoas. Participaram desse projeto os pesquisadores do ISP: Ana Lusa Vieira de Azevedo, Andria Soares Pinto, Renato Coelho Dirk. 18 Ver tambm RAMOS E PAIVA (2005)

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j que pblica a posio da poltica de segurana pblica do estado de So Paulo, contrria divulgao de informaes relativas aos problemas locais. Atualmente, os dados so divulgados pela internet de forma agrupada, tais como crimes contra o patrimnio, crimes contra a vida etc., o que impossibilita qualquer tipo de comparao com os demais estados. Este fato, no entanto, tem sido pouco analisado, tanto do ponto de vista acadmico, quanto jornalstico. A visibilidade dada criminalidade do Rio de Janeiro em detrimento da existente em So Paulo apontada por Michel Misse (1999) como a estratgia de construo de um paradigma da violncia carioca, que se constitui em torno da representao de um perigo social que poderia contaminar o pas, expresso pelo discurso do aumento da violncia a partir da dcada de 1980. Isso coincide com o perodo de democratizao do pas e com a expanso do banditismo, que deixa de ser exclusividade das classes pobres e se estende s classes mdias e elites da cidade. Como conseqncia os signos da violncia passaram a ser os fatos que se apresentam sob a forma de desordem, caos urbano e falta de controle por parte do Estado, como se o passado recente tivesse sido diferente deste quadro. O espao dado ao crime no o nico objeto interessante do ponto de vista analtico. Conforme nos assinala Joo Trajano Sento S, o mais relevante seria a forma de abordagem, ou seja, a compreenso do modo como essas modalidades discursivas so construdas. Questionando a qualidade das abordagens a respeito da segurana pblica, Joo Trajano afirma: despojada de maior consistncia analtica, a imprensa, em geral, e a mdia escrita, em particular, se restringem a acionar os mecanismos afetivos de produo de notcia na veiculao de casos envolvendo a violncia. gritante a ausncia da contrapartida mais ponderada de uma exposio ainda que eventual, consistente e informada do quadro em que os eventos relatados devem ser colocados. (2003: 35). certo que a mdia no cria a realidade, ela faz parte dela, mas a falta de consistncia analtica a torna um instrumento forte para a divulgao e reproduo dos atos de violncia. Ela constri um discurso e/ou uma imagem do transgressor como um Outro que estranho, que no pertence sociedade, vivendo quase na animalidade, a quem se deve temer e, portanto, afastar do convvio social19.19 Sobre o tema ver BENEVIDES, 1981; CARDIA, 1994; MINAYO, 1999; RONDELLI, 1997 e 2000.

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Essa viso conservadora predomina nas anlises sobre a violncia, tendo como uma rara exceo o trabalho organizado por PEREIRA et al (2000), que sustenta no ter a violncia necessariamente uma conotao negativa. Esta pode ser uma forma de expressar o descontentamento diante da realidade e at de deflagrar processos de renovao social, constituindo-se, assim, em um fenmeno de carter polissmico, para o qual as anlises normativas e morais no so apropriadas. Ou seja, trata-se de compreender o sentido que tem a violncia, ou suas formas de manifestao, a partir do ponto de vista da dinmica cultural de uma dada sociedade. Nesse sentido, a violncia no Brasil pode ser pensada a partir de uma dupla perspectiva: por um lado, surge como uma realidade alheia e hostil realizao mais plena das tentativas democratizantes da sociedade em todos os nveis, da marginalizao do pequeno criminoso at a represso militar de conflitos trabalhistas. Por outro, a violncia aparece como expresso limite de articulaes culturais dinmicas, a opo para reivindicar exigncias sociais justas, a forma de representar novas identidades culturais ou ressimbolizar a situao de marginalidade, dando, assim, incio a uma tentativa de superao da excluso social (PEREIRA et al, 2000:14-15). A mdia uma das instituies polticas, tal como a universidade e a polcia, que produzem e transmitem verdades, no sentido que Foucault definia como um conjunto de procedimentos para a produo, a lei, a repartio, a circulao e o funcionamento dos enunciados (1990: 14). Trata-se, portanto, de uma disputa no em favor da verdade, mas sim dos efeitos de poder que se obtm ao se classificar o que falso ou verdadeiro. A credibilidade desfrutada pelos meios de comunicao um dos dispositivos de sua influncia na construo dos discursos, que se contrape baixa credibilidade das instituies policiais, conforme podemos observar a partir dos dados levantados na pesquisa Avaliao do sentimento de insegurana nos bairros da cidade do Rio de Janeiro. Nos nove bairros da cidade do Rio de Janeiro pesquisados, 67,5% dos entrevistados afirmaram confiar nos meios de comunicao, enquanto 38,5% disseram confiar na Polcia Civil e apenas 29,3% confiam na Polcia Militar. Quando perguntados se o que sai na mdia sobre a criminalidade no bairro, 48,6% afirmaram que os meios de comunicao refletem bem os fatos ocorridos; 30,1% disseram que exageram os fatos ocorridos; e 21,3% falaram que h uma diminuio dos fatos ocorridos.

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Quando perguntados sobre o destaque dado s notcias sobre criminalidade no Rio, 77,1% dos entrevistados afirmaram que o destaque grande, contra 22,9% que discordaram dessa idia. Quanto s razes para esse fato, 35,3% das pessoas disseram que a atuao do crime organizado responsvel pelo destaque na mdia; 23,7% alegaram que a cidade tem fama de violenta; 19,1% responderam que isso se deve importncia da cidade no pas; 18,5% apontaram que a cidade tem fama de ter uma polcia violenta; 3,4% apresentaram outros fatores. A credibilidade maior dos meios de comunicao do que das instituies policiais assegura uma maior influncia no pblico, na medida em que transmite uma imagem de sinceridade e neutralidade, o que no ocorreria com as instituies policiais. A recepo de uma mensagem veiculada pela imprensa, cujo contedo seja proveniente de informaes policiais, j provoca uma desconfiana a respeito de sua veracidade, no s nos leitores, mas tambm entre os prprios jornalistas, que geralmente partem do mesmo pressuposto. A isso se soma o fato de que os dados oriundos de fontes policiais so analisados por um rgo estatal, embora tcnico, o que tambm o torna suspeito. Nesse caso, o fluxo de comunicao j tem seu incio comprometido. A anlise de algumas manchetes originadas a partir da apresentao pblica de dados estatsticos permite fazer algumas consideraes importantes a respeito da construo de narrativas sobre o crime (CALDEIRA, 2000), que teriam a funo de (re) ordenar o mundo a partir da repetio de histrias que, por sua vez, s serviriam para reforar as sensaes de perigo e de insegurana. Considerando que a divulgao dos dados oficiais era feita mediante a apresentao de um resumo do Boletim Mensal, durante uma entrevista coletiva20, optou-se por selecionar apenas as matrias que apresentaram de formas distintas as estatsticas de um mesmo perodo, tomando como referncia a manchete e o subttulo da notcia. Esto em destaque as notcias relativas ao mesmo ms, no quadro a seguir.

20 Essa estratgia vigorou durante o perodo de junho 2003 at junho de 2005.

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Quadro 1: Cobertura jornalstica das estatsticas policiaisData08/07/2003

JornalJornal do Brasil

MancheteCresce o nmero de roubos no Estado

SubttuloAssaltos a pessoas comrcio e residncias so responsveis pelo aumento da sensao de insegurana Segundo dados do Estado, de 10 modalidades comparadas, apenas 3 tiveram alta em um ano Trs tipos de crime tiveram aumento e sete caram em maio Junho teve menos crimes, em comparao com o do ano passado Nmero de mortes em confrontos com a polcia aumenta quase 50% Estado comemora queda no nmero de carros roubados e fim dos assaltos a bancos

08/07/2003

O Fluminense

Nova metodologia para analisar ndices Roubos a lojas crescem Cai o nmero de assaltos, homicdios e latrocnios Estatstica da violncia em junho tem queda em 7 dos 10 ndices principais A asfixia vai continuar

08/07/2003 22/07/2003

O Dia Jornal do Commercio O Globo

22/07/2003

29/08/2003

Extra

29/08/2003 29/08/2003

Jornal do Commercio O Fluminense

Mais latrocnio e menos Secretaria de Segurana divulga assaltos e roubo de carro ndices apurados em julho Aumenta nmero de roubos a lojas e residncias no Estado S ndices de homicdio doloso e assalto a residncia sobem Roubos e assassinatos crescem

Secretaria de Segurana Pblica considera gravssima a situao em Niteri Violncia: Em agosto houve queda em 8 dos 10 crimes monitoradosEstatsticas de criminalidade no Rio indicam aumento de homicdios e ataques a residncias no Estado

23/09/2003

Jornal do Commercio Jornal do Brasil

23/09/2003

17/10/2003

Folha de So Paulo Polcia do Rio mata mais do que em 2002

De janeiro a setembro de 2003, foram 917 civis mortos em confrontos; incidncia de 8 tipos de crime sobre queda ____________

17/10/2003

O Globo

Violncia: ndices caem, mas assalto a casas sobe

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14/11/2003

O Globo

Estatstica oficial aponta reduo na criminalidade ndice de violncia cai, mas assalto ao comrcio aumenta Caem os ndices de violncia no estado Secretaria divulga nova queda na criminalidade

Nove crimes caram. Mortes em confronto aumentam 80% Nove itens analisados apresentam queda ____________ Pelos nmeros oficiais, nove dos 10 delitos considerados mais importantes sofreram reduo em janeiro com relao ao mesmo perodo de 2003 Nmero de assaltos a residncia o nico a no cair entre os 10 tipos de delito Nmeros so menores do que os de maro de 2003, mas esto em alta

14/11/2003

Jornal do Commercio Extra O Fluminense

18/02/2004 18/02/2004

18/02/2004

O Dia

Perigo dentro de casa

21/04/2004

O Globo

Estatstica aponta reduo em oito ndices de criminalidade no Estado Em dez modalidades, apenas latrocnio cresceu Oito crimes registraram queda no ms de abril Crescem roubos e latrocnio

21/04/2004

Jornal do Commercio Extra Jornal do Brasil O Estado de So Paulo O Dia O Globo

Estatstica mostra queda ____________ ____________

18/05/2004 18/05/2004 18/05/2004

Sobe nmero de assaltos Apesar disso, invaso de casas o e latrocnios no Rio crime tido como mais problemtico na cidade Sobem ndices de dois crimes Caem nmeros de oito tipos de crimes

18/05/2004 18/05/2004

Roubos a pedestres e seguidos de morte cresceram ms passado Latrocnio confirma tendncia de aumento e assaltos a pedestre tm 361 casos a mais ____________

18/05/2004

Folha de So Paulo Nmeros de latrocnios e de roubos a pedestres aumentam no Rio

Fonte: Jornal O Globo, Jornal do Brasil, Jornal O Dia, Jornal O Estado de So Paulo, Jornal Folha de So Paulo, Jornal Extra, Jornal O Fluminense e Jornal do Commercio

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Pobre do leitor que se utilizar de diversas fontes para estar bem informado! Se considerasse as manchetes publicadas em julho de 2003, relativas aos dados divulgados sobre o ms de junho de 2003, no chegaria concluso alguma, j que duas se referem queda e outras duas se referem ao aumento dos crimes. Afinal, o que teria acontecido com os registros de crime no estado? A primeira observao que podemos fazer que, em primeiro lugar, h uma confuso entre as noes de criminalidade e violncia utilizadas propositadamente como sinnimas. Essa associao provoca uma srie de equvocos. sabido que no se pode falar de violncia e sim de violncias, devendo ser entendidas como um conjunto de representaes de uma idealidade negativa que se ope s idias de paz, consenso, segurana, integrao e harmonia social (MISSE, op. cit.). Nota-se ainda que a criminalidade aparece nas notcias como um conjunto de prticas (roubos e homicdios) resultantes da ineficcia da ao repressiva da polcia, o que contradiz a proposta de Machado da Silva (1995 e 1999), de que a criminalidade no pode ser compreendida apenas pela perspectiva de referncia ao Estado (ausncia do Estado; Estado paralelo etc.), e sim pela sua organizao social e suas redes de sustentao. O que est em jogo principalmente o questionamento sobre os mecanismos formais e informais de controle social, e no apenas o papel do Estado. Violncia e criminalidade so, portanto, questes distintas que s podem se tornar sinnimas quando se considera que na interpretao dada pela imprensa h uma mensagem oculta de que o Estado deve atuar para aniquilar os conflitos, restaurando a ordem, numa concepo unitria e homogeneizadora da vida social. A associao das noes de criminalidade e violncia acaba tambm por obscurecer outras modalidades criminosas, em especial as que se referem aos crimes econmicos (lavagem de dinheiro, corrupo, sonegao)21. Uma segunda observao diz respeito representao construda sobre as anlises elaboradas pelo NUPESP, que enfatizam o fato de que estamos trabalhando com os registros de ocorrncia, que no correspondem totalidade de eventos ocorridos no ms anterior. De modo geral, os jornais possuem uma postura ambgua, ora se referem aos nmeros como a realidade nua e crua, ora insinuam que os nmeros no so reais porque seriam maquiados.21 Sobre a relao entre os crimes econmicos e a mdia ver Miranda (1999) e (2002).

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A terceira observao se refere ao uso constante dos verbos no tempo presente do modo indicativo, o que do ponto de vista gramatical, significa que o processo ocorre simultaneamente ao momento em que se fala. Embora seja possvel, na Lngua Portuguesa, o uso do presente significando um processo j ocorrido no passado, essa forma discursiva propicia ao leitor a impresso de que aquele fato continua contecendo na mesma intensidade. Uma ltima observao corresponde abordagem dada pelos diferentes rgos de imprensa aos nmeros. Ao longo de nossa anlise, observamos que o Jornal O Dia, em seus ttulos, d maior nfase a dados negativos, o que faz com que o leitor tenha de imediato uma m interpretao dos dados. J jornais como O Globo e Extra, do mesmo grupo editorial, valorizam os dados de delitos em queda, no deixando de divulgar, atravs do subttulo, os dados relevantes em alta. O Jornal do Brasil destaca em suas manchetes somente dados de delitos em alta, revelando os nmeros na ntegra apenas no decorrer do texto. O jornal O Fluminense, por sua vez, apresenta em suas matrias os dados positivos dos ndices, valorizandoos. Por fim, o Jornal do Commercio foi o nico que informou os dados de maneira ntegra, de forma a no gerar uma opinio ou interpretao direta sobre o assunto. Podemos concluir que h de modo geral, uma abordagem que privilegia a denncia como forma discursiva, em detrimento da descrio, que seria a tcnica mais adequada em face do contedo abordado. A denncia funciona como uma espcie de acusao, onde os fatos relatados equivalem a uma imputao de erro ou culpa a outrem, mesmo que no se tenha provas da veracidade da mesma. Essa abordagem privilegia a construo de um discurso homogneo, que no favorece a reflexo crtica. Ao contrrio do que se pensa comumente, a leitura de um jornal pode conformar o leitor condio de um sujeito receptor acrtico de informaes, ao mesmo tempo em que o faz acreditar que est lidando com a realidade (SERRA, 1980). Assim, as narrativas que enfatizam o crime fazem o medo proliferar, j que tornam plausvel a idia de que o leitor ser mais uma vtima; as narrativas denuncistas podem ainda reificar preconceitos e a definio de certos lugares e grupos como perigosos, como revelam os dados levantados pela pesquisa Avaliao do sentimento de insegurana nos bairros do Rio de Janeiro.

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Tabela 1: Caractersticas de um Lugar PerigosoAbsoluto 1) Condies do local 2) Proximidade a outros lugares considerados perigosos 3) Sem policiamento 4) Lugares especficos 5) Todo lugar 6) Presena de elementos suspeitos 7) Ocorrncias de crimes e atos de violncia 8) Presena do trfico de drogas 9) Com policiamento 10) Outros Total 1473 511 335 285 240 189 161 90 9 135 3428 % 43% 15% 10% 8% 7% 6% 5% 3% 0% 4% 100,00%

Fonte: ISP, pesquisa Analisando o sentimento de insegurana nos bairros do Municpio do Rio de Janeiro, 2004.

As categorias da tabela agrupam informaes obtidas atravs da pergunta aberta O senhor saberia reconhecer um lugar perigoso? Quais suas caractersticas?, englobando termos e expresses espontneas, de acordo com os seguintes critrios: 1. Condies do local: deserto, pouco movimentado, mal iluminado, escuro, com becos, matagais, lugares desocupados, trnsito parado ou parada em sinais, ambiente suspeito, hostil, agitado, pesado; 2. Proximidade a outros lugares considerados perigosos: favelas, comunidades carentes, pobres ou sem recursos; 3. Presena de elementos suspeitos: pivetes, mendigos, drogados, pessoas suspeitas, estranhas, de m ndole, desocupadas, desempregadas, pessoas armadas, bandidos; 4. Ocorrncia de crimes e atos de violncia: tiroteio, assassinatos, assaltos constantes;

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5. Presena de trfico de drogas; 6. Com policiamento; 7. Sem policiamento; 8. Lugares especficos: exemplos de nomes de locais considerados perigosos 9. Todo lugar: sem especificar condies; 10. Outros: termos e expresses muito especficos. A forma simplista, e at caricatural, como essas narrativas so construdas acabam por reforar modelos segregacionistas, posto que tentam eliminar as ambigidades e complexidades do processo de administrao e controle de conflitos. Os discursos produzidos tentam tambm reorganizar o mundo como uma ordem social homognea e esttica, em contraposio s experincias vividas em crimes, que desorganizam o mundo. Configura-se, deste modo, que a segurana , do ponto de vista individual, um sentimento que resulta da crena de que no h risco ou perigo iminente. O sentimento de insegurana caracterizado, segundo Roch (1990 e 1998), pelo medo e a preocupao com a ordem. Embora seja difcil mensur-lo, o sentimento de insegurana no irreal ou imaginrio. O sentimento de insegurana, no nvel idealtpico do medo, se associaria a uma sensao difusa de angstia ou de ansiedade que permaneceria para alm dos acontecimentos e que no possuiria um objeto definido. O medo uma construo social (DELUMEAU, 1990), onde se teme o que se considera ser um grande perigo, no se levando em conta os riscos mais freqentes. A anlise dos ndices de criminalidade no serve para explicar o medo e o sentimento de insegurana22. Existem, portanto, outros fatores, muitos de ordem subjetiva, incidindo sobre o sentimento de insegurana, alm do conhecimento sobre o nmero efetivo de ocorrncias criminais. Ento, se os dados da criminalidade no incidem diretamente sobre o sentimento de insegurana e se as estatsticas so reconhecidamente imprecisas, caberia perguntar por que elas seriam informaes relevantes para a construo de polticas pblicas de segurana?22 Ver Sento-S, 2003, 25

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Por que preciso divulgar e analisar os nmeros da criminalidade? relevante a divulgao dos dados estatsticos por duas razes principais: dar visibilidade ao trabalho policial e, por conseqncia, aumentar a possibilidade de cobrana por resultados, pela populao e pelo poder pblico; bem como possibilitar, mesmo que indiretamente, a utilizao dos dados como base para a implementao de planejamento nas polticas de segurana de carter universalista, e no particularista, como tem sido a tradio. Refora-se, assim, a idia de que a segurana pblica um servio que deve ser oferecido pelo Estado a todos os cidados de modo racional, em termos objetivos (diminuio de riscos e perigos reais) e subjetivos (diminuio do medo) (SILVA, 2003:1). No entanto, no basta somente cobrar resultados das polcias e demais rgos do sistema de justia criminal. preciso que se considere que a anlise criminal no uma novidade, e tampouco uma soluo mgica para resolver o problema da criminalidade, da delinqncia e das violncias. Outro aspecto a considerar que, como qualquer anlise cientfica, a anlise criminal est diretamente relacionada com o enfoque terico que orienta o recorte dos dados. Com essa afirmao, pretendo ressaltar que antes de se iniciar a escolha desta ou daquela tecnologia, necessrio se definir o que se pretende com ela. Tudo isso pode parecer obviedades, mas no o so. Na prtica, sabido que muitas vezes somos seduzidos por programas de computador que revolucionariam o mundo!, se soubssemos o que fazer com eles... claro que a tecnologia facilita em muito o trabalho do analista criminal, que pode manipular mais informaes em menos tempo, mas ele tem que saber para que e como tratar as informaes. Considero que a divulgao de dados o primeiro passo deste processo, pois provoca, mesmo involuntariamente, o envolvimento dos agentes na busca pela qualidade da informao. Na medida em que so divulgados, provocam diversos questionamentos, que s podem ser respondidos se a informao estiver disponvel no banco de dados. E no h banco de dados de informaes policiais, ou qualquer outro, se as informaes no forem coletadas nos atendimentos e investigaes e informatizadas. comum que policiais (civis ou militares) procurem por informaes que sabidamente no so regularmente coletadas pelos prprios policiais. Como resolver essa contradio?

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Devolver a pergunta uma possibilidade concreta e imediata para a qualificao das informaes contidas nos registros policiais. Outra possibilidade a produo de relatrios analticos, que originaro uma srie de questionamentos sobre a validade das suas concluses. Essas duas estratgias permitem indicar que jamais ser possvel a qualificao da informao policial, sem que os policiais se envolvam diretamente no processo. O resultado dessas aes pode ser constatado pela supresso e/ou reduo de crticas dos pesquisadores aos dados do Rio de Janeiro23. Assim, a divulgao dos dados atende simultaneamente a dois propsitos: uma prestao de contas sociedade, e tambm um instrumento poderoso de controle interno, j que permite identificar os gargalos da atuao policial. O segundo passo diz respeito sensibilizao dos policiais da importncia e utilidade da anlise criminal. Consideramos que antes de ensinar as tcnicas de manipulao de softwares estatsticos e de geoprocessamento, necessrio que os policiais percebam o quanto essas ferramentas podem contribuir para a profissionalizao das polcias. Nesse sentido, o ISP realizou I Encontro de Qualificao Estatstica e Anlise Criminal e a I Jornada de Qualificao Estatstica e Anlise Criminal, em 2004, voltado para os policiais militares e civis. Nos dois eventos, discutiu-se a necessidade do fortalecimento da integrao entre as polcias; a necessidade de adequao das tecnologias anlise da dinmica criminal; apresentao dos rgos, produtos e servios disponveis; a importncia do uso tcnico das informaes e recursos disponveis atualmente na melhoria de qualidade dos servios de polcia judiciria e dos servios de polcia de preservao da ordem pblica, tomando por base estudos de casos, onde delegados e oficiais apresentaram suas experincias concretas23 Em abril de 2005, o ISP organizou o I Encontro Sistema Estadual de Estatsticas de Segurana Pblica e Justia Criminal, que teve como objetivo apresentar a situao do sistema poca, bem como as mudanas ento previstas, possibilitando assim sua avaliao e a discusso de um novo modelo de divulgao dos dados, tendo em vista a incorporao de sugestes para a sua melhoria. Como conseqncia, foi criado o Grupo de Trabalho Sistema Integrado de Informaes Policiais, formado por representantes de importantes ncleos de pesquisa da rea, de vrias instituies, a saber: Centro de Estudos de Segurana e Cidadania da Universidade Candido Mendes - CESeC; DataBrasil Ensino e Pesquisa/UCAM, Grupo de Estudos Estratgicos - GEE -Coppe - UFRJ, Laboratrio de Anlise da Violncia - LAV/UERJ, Ncleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violncia Urbana - NECVU/UFRJ, Ncleo de Pesquisa das Violncias - NUPEVI- UERJ, Instituto de Pesquisa do Rio de Janeiro - IUPERJ Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro - SMS, Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisas - NUFEP - UFF, Centro Latino-Americano de Estudos de Violncia e Sade Jorge Careli - CLAVES, alm de contar com a presena de uma consultora da SENASP. Ver tambm SOARES et al (2005)

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e os resultados alcanados no uso das informaes e recursos tcnicos atualmente colocados a sua disposio. A anlise criminal que desenvolvida atualmente pela equipe tcnica multidisciplinar24 do Instituto de Segurana Pblica, atravs do Ncleo de Pesquisa em Segurana Pblica e Justia Criminal (NUPESP), tem como objetivo realizar estudos analticos e sistemticos tomando por base as relaes entre as ocorrncias registradas e os padres e tendncias (aumento, estabilizao, reduo) dos delitos em diferentes regies do Estado25. Outra linha de atuao est direcionada aos mtodos analticos de diagnstico, monitoramento e avaliao da prpria performance das polcias, em especial, ao acompanhamento da reduo da letalidade policial e da vitimizao policial. Com base nas discusses realizadas em 2004 e com as demandas e obstculos encontrados pela equipe do NUPESP, que identificou um aumento de demanda por dados pelos oficiais superiores, a mdia e as instituies de pesquisa, observou-se tambm a sub-utilizao dos dados criminais em uma dimenso micro, ou seja, pelas unidades de segurana atravs dos responsveis pelo planejamento. Desta forma, foi elaborada uma proposta de capacitao dos policiais militares no uso de tcnicas de anlise quantitativa e fundamentos metodolgicos para traar metas e mensurar resultados, voltada para o aperfeioamento do planejamento estratgico26. Ainda no se pode prever os resultados do curso, que ser desenvolvido ao longo de 2006, mas pode-se afirmar que a aproximao entre profissionais da segurana pblica e da comunidade acadmica27 ser extremamente profcua para a construo efetiva de polticas pblicas para a segurana, voltadas para a preveno dos delitos e para a reduo da violncia.24 A equipe composta por policiais civis, militares e pesquisadores, cuja formao variada (cientistas sociais, gegrafos, estatsticos), bem como a titulao (especialistas em polticas pblicas, mestres e doutores). 25 As variveis utilizadas geralmente so dia da semana, hora, local, perfil da vtima, perfil do autor, modus operandi 26 O curso de Capacitao em Tcnicas Quantitativas e Anlise Criminal foi desenvolvido com recursos da Unio Europia. 27 Outras parcerias j tm se mostrado exitosas no Rio de Janeiro: com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, no Curso de Extenso em Segurana Pblica, que funciona desde 1999; com a Universidade Federal Fluminense, no Curso de Especializao em Polticas Pblicas de Justia Criminal e Segurana Pblica, criado em 2000.

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No se pretende com a anlise criminal medir qual a quantidade de crimes que ocorrem, o que, alis, impossvel, pode-se apenas estimar a subnotificao dos crimes que varia em funo do seu tipo28. O que a anlise criminal pode contribuir no fornecimento de subsdios para aes do poder pblico, seja na dimenso ttica, para que os policiais possam realizar melhor as investigaes e o patrulhamento, seja na dimenso estratgica, de modo que os gestores e formuladores das polticas possam realizar projeo de cenrios. Por ltimo, urge salientar que a anlise criminal no um fim em si mesma, apenas a primeira etapa para o desenvolvimento de polticas pblicas e para a profissionalizao das polcias, restando ainda muito trabalho a ser feito.

28 Crimes sexuais tendem a ser os menos registrados e informados, enquanto o roubo de veculos tem a menor subnotificao por causa do seguro

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ColetAndo e extrAindo inFormAes dos BAnCos de dAdos CriminAis: A lGiCA dAs estAtstiCAs dAs orGAnizAes PoliCiAisDoriam Borges

Introduo Nos ltimos anos os fenmenos relacionados violncia, criminalidade e segurana pblica tm sido cada vez mais estudados. No entanto, ainda existem algumas dvidas no que se refere s abordagens e os mtodos mais adequados para uma anlise criminal. Neste sentido, com o intuito de abordar este tema, discutiremos o estado das artes das pesquisas e bases de dados deste fenmeno no Brasil, introduzindo os usos e problemas metodolgicos de uma pesquisa, a importncia da gesto da informao no desenvolvimento de polticas pblicas, e a criao e manipulao de ferramentas analticas para o fenmeno da violncia e criminalidade. Deste modo, o objetivo principal desta discusso apresentar de uma forma simples a idia da pesquisa na rea da violncia, como instrumento para a construo do conhecimento do tema, baseado no rigor de certas exigncias cientficas.

Metodologia de Pesquisa A) Conceitos da Pesquisa Cientfica A estatstica um conjunto de ferramentas matemticas que permitem coletar, organizar, descrever e analisar dados e, assim, auxiliar na tomada de decises. Na pesquisa cientfica, deve-se definir: a. b. c. a motivao = importncia associada ao trabalho; o objetivo = qual a finalidade especfica do trabalho; as hipteses a serem verificadas.

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Alm disso, deve-se verificar a existncia de trabalhos similares e de opinies de especialistas sobre o assunto trabalhado. Nestas pesquisas muito importante tambm levar em conta o esforo em termos de recursos necessrios (humanos, de material, de tempo, etc.) para a boa coleta dos dados. Na coleta de dados sobre uma populao, duas podem ser as formas de se obter dados tais dados: o CENSO e a AMOSTRAGEM. No censo, devem ser coletadas as informaes de interesse sobre toda a populao-alvo. J na amostragem, devese coletar informaes apenas de um subconjunto da populao-alvo, denominado amostra. Nesse ltimo caso preciso, ento: definir quem a populao-alvo; definir o tamanho de amostra; verificar os custos associados coleta; decidir finalmente entre censo e amostragem. No estudo censitrio, as informaes sobre a populao so exatas, enquanto que no estudo amostral, as informaes sobre a populao so apenas aproximadas. H perda de preciso neste ltimo caso que est diretamente ligada ao tamanho da amostra tomada. Quanto maior o tamanho amostral, mais prximo o subconjunto estar da populao como um todo e, assim, maior a preciso. No entanto, tambm maiores sero os custos associados a tal coleta. Alm desta impreciso amostral, existem outros erros que devem ser considerados: os erros do observador, do mtodo de observao e do prprio objeto. No primeiro caso, o prprio observador impe vcios na coleta, fazendo com que a informao sobre a populao contida na amostra seja destorcida (como, por exemplo, um entrevistador, ao invs de selecionar pessoas de todas as faixas etrias, resolve trabalhar somente com os jovens). O erro do mtodo est basicamente associado ao fato de usar um mtodo errado para medir o que se quer. O erro do objeto , na verdade, um erro por no considerao da variao que pode haver em um indivduo (como no levar em conta o fato que a presso de uma pessoa varia ao longo do dia).

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Para cada tipo de erro, existe um controle que deve ser realizado, seja sob a forma de treinamento, seja sob a forma de utilizao de tcnicas adequadas para medir ou considerar caractersticas do objeto em estudo. Deve-se ainda determinar quais os parmetros (variveis) que sero analisados, incluindo aqui as variveis principais (dependentes) e as secundrias (independentes ou explicativas). As independentes, em muitos casos, so usadas para ajudar a descrever ou mesmo prever o comportamento das variveis dependentes. A fonte dos dados utilizada em uma pesquisa dita primria (quando voc mesmo realiza a coleta das informaes de que precisa) ou secundria (quando se utiliza dados que uma outra pessoa coletou). Aps a coleta, feito o pr-processamento da informao (atravs de codificao e digitao) e parte-se, ento, para a anlise (estatstica) e a interpretao dos resultados.

B) Avaliao de programas pblicos (programas sociais e polticas de segurana pblica) A avaliao de polticas pblicas possui um carter estratgico, porque permite ajudar no planejamento, execuo e (re)direcionamento das aes do fenmeno. A avaliao um processo sistemtico de anlise das aes, caractersticas e resultados de uma poltica pblica, programa ou projeto a partir de critrios definidos, que visam determinar seu mrito ou relevncia, sua qualidade, utilidade ou efetividade, gerando recomendaes para sua correo ou melhoria. No h avaliao sem monitoramento. O monitoramento o processo sistemtico de registro e armazenamento das informaes substantivas no continuum da ao de uma poltica. O sistema de monitoramento deve ser capaz de capturar as informaes relevantes, precisas, sintticas, que alimentam o processo de avaliao. E isso se consegue criando condies favorveis (tcnicas e informacionais) para se estabelecer obrigatoriedade do registro e processamento das informaes definidas como relevantes. Neste sentido, ser apresentado algum comentrio sobre o mtodo comparativo para a avaliao de polticas pblicas, chamado de avaliao antes e depois, com grupo de controle. Neste tipo de avaliao preciso observar e medir o fenmeno que se pretende modificar antes da interveno da poltica pblica. Feita a interveno, devemos medir novamente o fenmeno aps certo tempo. Alm disto, para ter certeza de que a mudana no fenmeno no foi devida a fatores externos a p