13
Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - BauruSP 01 a 03/07/2013 Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80: resistência em forma de imagens 1 Thais Helena da Silva Leite 2 Fábio Goveia 3 Universidade Federal do Espírito Santo/ES Resumo Estudo dos fanzines dos anos 80 veiculados pelo movimento punk brasileiro, entendidos como formas de comunicação que antecederam as redes sociais (em especial no espaço urbano) e que foram responsáveis pela velocidade e difusão da multiplicidade de discursos desse movimento social, dando a eles uma visibilidade independente da atuação da imprensa tradicional, podendo portanto, ser um precedente das narrativas múltiplas que caracterizam as manifestações sociais contemporâneas. O presente artigo é resultado parcial da pesquisa de iniciação científica que se propõe a analisar sessenta e duas capas de fanzines do movimento punk dos anos 80. Os resultados obtidos até agora demonstram que a presença de símbolos como o símbolo da anarquia, a suástica e a caveira predominam nos elementos visuais, o que indica forte cunho de resistência aos sistemas instituídos. Palavras-chave punk; fanzines; movimento social; redes sociais. O movimento punk na década de 1980 do século XX O movimento punk foi iniciado por jovens filhos de operários das periferias de Londres e de algumas cidades dos Estados Unidos, que “se tornaram incrédulos pela força avassaladora do capitalismo na sua versão moderna neoconservadora” (GALLO, 2010, p.5), assumindo uma postura de rompimento, de irreverência, negando-se a participar dos movimentos organizados da sociedade civil, rejeitando a política partidária (inclusive dos partidos de esquerda) e que adotaram a postura Do It Yourself, expressão que tornou-se palavra de ordem do devir punk. 1 Trabalho apresentado no Intercom Júnior - Jornada de Iniciação Científica em Comunicação- IJ 07-Comunicação, Espaço e Cidadania, do XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste realizado de 01 a 03 de julho de 2013. 2 Graduanda, 6º período do curso de Comunicação Social:Audiovisual da UFES/ES, bolsista PIBIC, email: [email protected] 3 Orientador do trabalho. Professor do depto. de Comunicação Social da UFES/ES. email: [email protected], [email protected]

Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

  • Upload
    lethien

  • View
    213

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80: resistência em

forma de imagens 1

Thais Helena da Silva Leite2

Fábio Goveia 3

Universidade Federal do Espírito Santo/ES

Resumo

Estudo dos fanzines dos anos 80 veiculados pelo movimento punk brasileiro, entendidos

como formas de comunicação que antecederam as redes sociais (em especial no espaço

urbano) e que foram responsáveis pela velocidade e difusão da multiplicidade de

discursos desse movimento social, dando a eles uma visibilidade independente da

atuação da imprensa tradicional, podendo portanto, ser um precedente das narrativas

múltiplas que caracterizam as manifestações sociais contemporâneas. O presente artigo

é resultado parcial da pesquisa de iniciação científica que se propõe a analisar sessenta e

duas capas de fanzines do movimento punk dos anos 80. Os resultados obtidos até agora

demonstram que a presença de símbolos como o símbolo da anarquia, a suástica e a

caveira predominam nos elementos visuais, o que indica forte cunho de resistência aos

sistemas instituídos.

Palavras-chave

punk; fanzines; movimento social; redes sociais.

O movimento punk na década de 1980 do século XX

O movimento punk foi iniciado por jovens filhos de operários das periferias de

Londres e de algumas cidades dos Estados Unidos, que “se tornaram incrédulos pela

força avassaladora do capitalismo na sua versão moderna neoconservadora” (GALLO,

2010, p.5), assumindo uma postura de rompimento, de irreverência, negando-se a

participar dos movimentos organizados da sociedade civil, rejeitando a política

partidária (inclusive dos partidos de esquerda) e que adotaram a postura Do It Yourself,

expressão que tornou-se palavra de ordem do devir punk.

1 Trabalho apresentado no Intercom Júnior - Jornada de Iniciação Científica em Comunicação- IJ 07-Comunicação,

Espaço e Cidadania, do XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste realizado de 01 a 03 de

julho de 2013.

2Graduanda, 6º período do curso de Comunicação Social:Audiovisual da UFES/ES, bolsista PIBIC, email:

[email protected]

3 Orientador do trabalho. Professor do depto. de Comunicação Social da UFES/ES. email: [email protected],

[email protected]

Page 2: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

No Brasil obteve seus primeiros seguidores durante o Regime Militar, primeiro

como uma vertente do rock (punk rock) e depois foi se afirmando como movimento. Os

jovens que se autodenominavam punks foram adquirindo uma postura de subversão a

ordem sociopolítica cultural instituída, incorporando conceitos propugnados pelos

punks da Europa (em especial da Inglaterra) e dos Estados Unidos e criaram posturas e

palavras de ordem específicas para demandas brasileiras.

A política econômica após a crise do petróleo4 não conseguiu evitar o aumento do

custo de vida que, aliado ao arrocho salarial vigente, promoveu a rearticulação dos

movimentos sindicais. A partir dos maiores centros urbanos (como São Paulo), as

greves operárias foram se disseminando no mundo do trabalho. O novo sindicalismo

pregava a rejeição à tutela do Estado para intermediar a relação entre patrões e

empregados e essa ação política juntou-se a outras do período, como a luta pelo retorno

da liberdade de expressão, o movimento pró-anistia, a luta pela volta da democracia.

Nesse contexto é que o movimento punk se estruturou: com jovens operários das

periferias e subúrbios dos centros urbanos junto com alguns de classe média (em São

Paulo primeiro, depois no Rio de Janeiro, Brasília, em Porto Alegre, Vitória,

espalhando-se para outras capitais e centros urbanos regionais)5.

Adotaram um visual exuberante e característico (cabelos coloridos e espetados,

jaquetas de couro, coturnos, jeans rasgados, correntes, alfinetes espetados na orelha ou

usados como acessórios), pois, de acordo com Danto,

a representação pertence a nossa essência (...) a moda é a

forma mais simples para se dialogar sobre esse tema (...) O

vestuário se refere menos ao corpo e mais à pessoa, que por

meio dela modifica sua imagem” (DANTO apud

BELTING, 2007, p.111)

Usaram seu corpo de forma cultural, transmissor de ideias, mural ambulante para

mensagens visuais no emaranhado dos centros urbanos, transitando com o pseudo-

4 A crise do petróleo foi desencadeada num contexto de déficit de oferta, com o início do processo de

nacionalizações e de uma série de conflitos envolvendo os produtores árabes da OPEP (Organização dos Países

exportadores de Petróleo), como a guerra dos Seis Dias (1967), a guerra do Yom Kipur (1973), a revolução islâmica

no Irã (1979) e a guerra Irã-Iraque (a partir de 1980). Os preços do barril de petróleo subiram exponencialmente,

(em torno de 400% nos anos 70), o que provocou prolongada recessão no mundo capitalista e desestabilizou a

economia mundial.

5 O presente artigo é resultado parcial do projeto de iniciação científica, “os Fanzines dos anos 80 e suas

similaridades com as narrativas monstro do século XXI” e a pesquisa sobre a existência e atuação do movimento

punk e dos fanzines no Espírito Santo ainda está em curso, por isso não está sendo abordado nesse artigo.

Page 3: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

anonimato que a metrópole permite e ao mesmo tempo buscando representar um

conceito. Segundo Hannah Arendt, : “estar vivo significa estar possuído por um

impulso à exibição . As coisas com vida se apresentam como atores sobre um cenário

preparado para eles” (BELTING, 2007, P.112).

Abraçaram posturas de vida como o “faça você mesmo”, como repúdio à sociedade

de consumo, rejeitando o enquadramento num modismo passageiro. E cada um foi

adotando uma ou mais atitudes, que somadas, foram compondo “o movimento”.

Falava-se individualmente, falava-se de forma coletiva. Em comum: “o rock pauleira”.

O movimento da década de 1980 embalado pela luta política somou seus

questionamentos concernentes às questões estéticas, comportamentais, remoendo e

reelaborando propostas que circulavam no tecido social em escala planetária.

Minimizar ou eliminar o conservadorismo da sociedade da época que mantinha uma

formação educacional de base cívica, disciplinarizante, moralizante: eis o mote

principal.

Tantos pontos de contestação contra a ordem vigente colocou os punks na posição

de perseguidos do Regime Militar. Andar em grupo como forma de sobrevivência foi o

motor que fermentou a formação das gangues. Unidos por trabalharem na mesma

empresa, serem amigos ou parentes, ou porque moravam no mesmo bairro (ou rua) e

gostavam de “rock pesado”, as gangues foram criando suas identidades próprias e seus

desafetos. Até nos dias de hoje, tanto aqueles de São Paulo quanto de outros estados

ainda vivenciam atritos com outros punks ou outras tribos urbanas como skinheads . 6

Por outro lado, cada pequeno grupo vivenciou o movimento punk de forma

particular, formando uma enorme colcha de retalhos enquanto representação.

Anárquica. Formas autogestionárias de organização aliadas a uma conduta de livre

arbítrio. Segundo Felix Guattari,

não realiza uma unidade totalizante. É a univocidade dos

desejos e dos afetos das massas, e não seu agrupamento em

torno de objetivos padronizados, que funda a unidade de sua

6 Segundo a delegada da Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância), Margarette Barreto, a

relação entre os grupos punks e skinheads está mais tensa desde abril de 2011, quando foram feitas manifestações pró

e contra as opiniões polêmicas do deputado federal Jair Bolsonaro (PPR-RJ) sobre homossexuais in

http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/985408-aumentam-conflitos-entre-punks-e-skinheads-em-sao-paulo.shtml

Page 4: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

luta. (...) um agenciamento coletivo de enunciação dirá algo

do desejo sem reduzi-lo a uma individuação subjetiva, sem

enquadrá-lo num sujeito, num assunto, preestabelecido ou em

significações previamente codificadas. (GUATARI, 1985,

p.177/8).

Num clima de redemocratização, a conquista de espaço político de várias

organizações sociais de representação cidadã ( movimento sindical, ecológico, de

mulheres, de negros) não atraíram o punk, que repudiava formas hierárquicas e de

comando. Rejeição ao signo do militarismo.

Os fanzines e a Rede Social Analógica

Fanzines são publicações artesanais, amadoras, independentes, que são feitas por

pessoas apaixonadas por alguma temática, geralmente com pequena tiragem, custeadas

pelo próprio autor (ou autores).

Surgidos nos EUA a partir dos anos 30, esse tipo de revista

foi produzida no Brasil somente em 1965 graças ao

pioneirismo do piracicabano Edson Rontani, que resolveu

fundar o Intercâmbio Ciência-Ficção ‘Alex Raymond’ e

editar um boletim para abordar quadrinhos e reunir os

amantes dessa arte.(NEGRI, s/d, p.1)

Os fanzines produzidos pelos punks eram compostos por textos, entrevistas e fotos

das bandas que estavam se lançando. No início tratavam das bandas punks, e, com o

passar do tempo além desse enfoque, tornaram-se publicações sobre o cotidiano punk e

suas ações na sociedade 7.

Emergindo numa realidade brasileira marcada pela rearticulação e eclosão de vários

movimentos sociais, num momento de ressurgimento de cidadanias, os textos e

imagens versavam sobre perigo nuclear, poluição, ecologia, anarquismo, fascismo,

suástica, religiões 8 e ao mesmo tempo, tratavam de assuntos pontuais do universo punk

como shows de bandas, venda de camisetas, anúncio de venda de discos e fitas demos.

Publicações feitas na maioria das vezes em xerox, datilografadas, com desenhos e

colagens, eram distribuídas inicialmente de mão em mão nos shows de bandas punks,

7 segundo depoimentos no vídeo FANZINEIROS DO SÉCULO PASSADO, 2010 e OLIVEIRA, 2006.

8 segundo OLIVEIRA, 2006, p.26, esses eram os temas mais abordados nos fanzines.

Page 5: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

pontos de encontro, lojas de vinis especializadas, livrarias (em especial de HQ). Na

maior parte das vezes entregue de forma gratuita a quem se interessasse. Aumentou

consideravelmente seu alcance quando passou a ter também a sua distribuição feita pelo

correio, num sistema de troca que resultou numa enorme teia de comunicação.

A carta social que ainda existe no Brasil, atualmente só pode ser usada por pessoas

que façam parte da Bolsa Família, porém nos anos 80, 90, quaisquer pessoas poderiam

usá-la .9

A utilização da carta social foi um motor de difusão importante dos fanzines punks.

Outro recurso para propagação dos zines, esse, transgressor, era o chamado “selo

batizado”. Segundo depoimento de vários fanzineiros (Jean Marim Santos-Sonidos,

ruídos y ideas , Leonardo Panço-Gnomo da Tasmânia e Bodega, e Felipe CDC-

Protectors of noise e Metal Blood), colocava-se uma camada de cola sobre o selo; o

receptor tirava o fanzine do envelope e limpava o selo com água extraindo a tinta do

carimbo do Correio, podendo utilizá-lo novamente. Dessa forma o selo era usado em

média, dez vezes. 10

Essa rotina de comunicação incorporou-se ao trabalho de produzir fanzines. Após a

elaboração criativa e manual do fanzine (buscar as notícias, redigir textos pessoais,

selecionar cartas que seriam publicadas, desenhar, colar gravuras, fotos, diagramar,

datilografar), era necessário preparar os envelopes, subscrevendo à mão o nome dos

destinatários, colocar o selo e levar em várias agências do Correio (afinal, no caso da

carta social, apenas 5 cartas por pessoa, por agência era permitida por dia). Segundo

Pedro de Luna, seu fanzine Arariboia recebia em média 100 cartas por semana e ele

postava em torno de 1.000 exemplares por edição; Cristiane Santos que editava o

Sobrevivência, tinha 2.000 correspondentes por mês. Até alguns funcionários das

agências do correio ficaram com sua curiosidade aguçada a ponto de perguntarem aos

fanzineiros quem eles eram, o que era aquilo que mobilizava tanta gente (depoimento de

Daniel Villa Verde do Infektos Muertos e Nuclear Yogurte 11

).

9 Uma carta social deveria pesar no máximo 10 gramas (2 folhas de chamex) , cada pessoa poderia enviar no máximo

5 por dia, tinha que ser subscrita à mão e a tarifa era 0,01 (da moeda da época).

10

depoimentos presentes no documentário FANZINEIROS DO SÉCULO PASSADO, 2010.

11

segundo entrevista concedida à pesquisadora desse artigo em março de 2013.

Page 6: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

Mais um espaço para “o faça você mesmo”, iniciado pelo “Factor Zero” 12 de São

Paulo, mostrava que qualquer pessoa era capaz de fazer todo seu material sem precisar

comprar revistas ou ainda pagar caro por discos e fitas.

“A ordem do caos é local, contém elementos de

subjetividade, indeterminismo. Para que exista ordem no

caos, é necessário criar ‘estruturas que não insistam numa

ordem unidimensional, que substituam a hierarquia de cima

para baixo, de causa-efeito pela rede celular de interações

múltiplas que sejam abertas, que admitam a indecisão, a

discussão, o repor do que parecia evidente, estruturas que

não sejam hostis à subjetividade e ao livre arbítrio’”(DEUS,

1998,p.17)

A linguagem gráfica do punk no Brasil não foi criada na academia e nem teve a

atenção de designs gráficos da época. A interatividade propiciada pelo fanzine não foi

planejada; a inclusão de espaços para “opiniões, críticas, sugestões” e endereços de

outros zines foi uma ideia que se disseminou no meio dos fanzineiros e demonstram a

rede internacional que se formou.

De acordo com Perkins (1992), algumas das principais funções de fanzines punks

eram fornecer um senso de identidade sem estar relacionada a nenhuma região

geográfica específica, criando ferramentas de divulgação das informações entre estas

comunidades. Seu grande legado, de acordo com o mesmo autor, foi capacitar os fãs e

outros a publicar seu próprio zine.

Na Conferência da Sociedade da História do Design ocorrida em Barcelona em

2011, Triggs sustentou que a litografia punk foi uma linguagem visual distinta que

evocava sentimentos "em algum lugar entre a raiva e a ambivalência "(TRIGGS, 1995,

p. 82-85), ou ainda, "uma linguagem gráfica de resistência ".(TRIGGS, 2006, p. 72-73).

Essa ambivalência segundo FARIAS (2011) é uma característica distintiva da

cultura punk com a adoção do contraditório e / ou posturas ambíguas. “A ambiguidade

é a imagem visível da dialética (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.173). As letras das

12

segundo FARIAS, 2011 o Factor Zero é o primeiro fanzine do movimento punk no Brasil. Já OLIVEIRA, 2006,

afirma que o Factor Zero e o Exterminação de São Bernardo do Campo dividem a primogenitude dos zines

brasileiros

Page 7: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

músicas, as atitudes desafiadoras são normalmente agressivas e na maioria das vezes

divertidas e isto é processado na produção de fanzines pelo uso de elementos visuais

estereotipados como o espetado, o assustador, o improvisado, o rasgado e ao mesmo

tempo, o politicamente engajado.

Análise das Imagens

Como a maior parte dos fanzines do recorte temporal escolhido (década de 1980 até

início da década de 1990) não estava digitalizado, foi necessário uma viagem até São

Paulo, origem da maioria deles, para contatar pessoalmente os fanzineiros e fazer cópias

dos originais que cada um deles tinha em seu acervo. Foram obtidos 62 fanzines 13

. A

partir da análise das capas, três imagens apresentaram-se mais presentes: a caveira, a

suástica e o símbolo do anarquismo. Algumas das imagens podem ser observadas nos

anexos.

Partindo do pressuposto de Hans Belting de que as imagens em nosso corpo de

recordações estão ligadas a uma experiência de vida no tempo e no espaço (p.72),

serão analisadas aqui como um conceito antropológico. Sendo assim, a recepção da

imagem passa por um filtro resultante da união “de uma predisposição pessoal (idade,

gênero e história de vida) com uma predisposição coletiva (esperança de vida,

educação)”.

Outra questão a ser levada em conta é que a exposição da pessoa na sociedade

imagética reposiciona o lugar das imagens, que deslocam-se em corpos individuais,

exigindo um novo conceito de cultura para detectar as marcas (pisadas) dessa difusão da

tradição, dos conceitos ligados aos corpos e suas histórias. (p.75).

Aliando esse pensamento com o conceito de agenciamentos coletivos de enunciação,

não mais se tem face a face um sujeito e um objeto e,

em terceira posição, um meio de expressão; não mais se

tem a tripartição entre o campo da realidade, o campo

13

vários números de 14 fanzines: Factor Zero, Protesto Kaótico, SP Punk, Asfixia Zine, Aviso Final, Cadáver

esquisito, Politiqua, Campo de concentração, Acratismo, Palavra Fobia, Pauta lixo, anarco feminista, pandora, ...da

frente. Destes, 7 capas estão no anexo deste artigo

Page 8: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

da representação e da representatividade e aquele da

subjetividade. O que se tem é um agenciamento

coletivo que é, ao mesmo tempo, sujeito, objeto e

expressão (GUATTARI, 1985, p.178)

Algumas imagens estiveram e estão estritamente relacionadas ao universo punk,

mesmo depois de sua intensa transmutação nas ultimas décadas. É o caso da “Caveira”

que não pode ser entendida apenas como o símbolo da morte, do perigo, do veneno,

mau agouro, Esta, quando nos aparece, nos olha: “Ela une a ausência total de expressão

(o negro das órbitas) à expressão mais selvagem (o esgar da dentadura)”.

(BENJAMIN, apud: DIDI HUBERMAN, 1998, p.190). Ela não nos remete a passado

nenhum, ela simplesmente é naquele exato momento, espaço e tempo em suspensão.

Suástica – O uso da suástica pelos skinheads, na maioria das vezes foi de cunho

assumidamente nazista. Muitos, revoltados pelo desemprego dos anos 80 (década

perdida, segundo alguns analistas de mercado), culpabilizavam o migrante, fazendo um

discurso de exclusão, de desejo de “reserva de mercado” para aquele (ele-skinhead) que

era nascido e criado na urbe “invadida”. De forma contraditória, muitos que usavam a

suástica não conheciam a teoria nem tampouco a história dos governos totalitários.

Para outros, a suástica foi usada como um símbolo de deboche (OLIVEIRA, 2006,

p. 47), até mesmo aliando sentimentos de repúdio e provocação. Ou seja, Figueiredo,

Reagan e Thachter (lideres políticos da época) não eram muito diferentes que Hitler

para àqueles jovens, então, o uso da suástica servia também para ridicularizar e atacar

o símbolo do governo instituído (pichação, queima de camiseta, por exemplo).

Anarquia – O A fechado em um círculo, que pode ser entendido como um O,

remete ao pensamento de Proudhon de que a anarquia é a ordem. Frase várias vezes

proferida por antigos integrantes/fanzineiros do movimento punk nas entrevistas. Lugar

comum nos vários depoimentos colhidos nessa viagem do mês de março de 2013,

quando Daniel Villa Verde, Pedro de Luna, Jean Marim Santos, Cristiane Santos

cederam seus arquivos para cópia e foram entrevistados pela pesquisadora em questão.

O A como imagem do início e do fim em si mesmo (está fechado no círculo, não como

letra, mas como imagem-conceito), como se representasse uma totalidade de

pensamentos, a liberdade como negação do período político anterior ou ainda de uma

esperança que era coletivamente cultivada naquele espaço social, naquele gueto.

Page 9: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

Considerações Finais

Os fanzines dos anos 80 podem, portanto, ser considerados predecessores das redes

sociais, como plataformas de comunicação, que possibilitaram o surgimento de

narrativas múltiplas. Sem grandes recursos, com muita criatividade e envolvimento, os

fanzineiros buscaram canais para se comunicar que existiram de forma marginal à

grande imprensa. A utilização do “selo batizado”, da carta social, da xerox e a

dedicação de muito tempo do seu dia (produzindo fanzines, respondendo cartas,

subscrevendo envelopes manualmente e recebendo correspondências) fez com que os

participantes do movimento punk entrassem em contato não apenas com outras pessoas

de sua cidade, como também do seu estado, do seu país e de outros países.

Percebe-se uma similaridade no modus operante desse movimento com o

comportamento de comunicação atual proporcionado pelas redes sociais, afinal, muitos

sites na internet existem para propiciar uma independência produtiva com tutoriais,

orientações, passo a passo de processos comunicacionais; outro aspecto a ser abordado é

quanto ao teor dessa comunicação; “a extrema relevância do fanzine está em transmitir

informações que interessavam aos punks, mas não aos grandes jornais e revistas “

(OLIVEIRA, 2006, p.16).

As discussões promovidas por algum tema, como hoje acontece nas redes sociais,

eram muito frequentes. A única desvantagem era a demora em obter uma resposta que

levava em média de um a dois dias, que na verdade, nem é tanto tempo assim. Sendo

assim, podemos afirmar que a velocidade da informação que marcou o movimento punk

por meio dos fanzines transpôs as limitações tecnológicas da época.

A ampliação dessa rede social analógica mudou dialeticamente o movimento punk.

Não era apenas um encontro de pessoas para assistir shows de bandas punks, punk rock

ou hardcore; ser punk significava também um comportamento plural, transmissor de

imagens dialéticas, pois, segundo Benjamin,

somente as imagens dialéticas são imagens autênticas (...) uma

imagem em crise, uma imagem que critica a imagem – capaz portanto

de um efeito, de uma eficácia teóricos – e por isso uma imagem que

Page 10: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

critica nossas maneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela

nos obriga a olhá-la verdadeiramente. E nos obriga a escrever esse

olhar, não para “transcrevê-lo”, mas para constitui-lo (BENJAMIN,

apud: DIDI HUBERMAN, 1998, p.172).

A composição dessas imagens é muito ampla e tem um diálogo entre o sensorial e o

semiótico. o corpo do punk é como o corpo em um ritual: dominado, possuído por

imagens que ocupam, abandonam ou regressam ao corpo como forças geradas por um

dublé (AUGÉ, apud: BELTING, 2007, p. 76).

A roupa como representação simbólica de grupo (moicano, predomínio do preto,

uso de correntes, coturnos), mistura-se com a reprodução das imagens do seu presente

(como por exemplo o uso do coturno como afirmação do militarismo que persistia

como signo num momento de transição para o processo democrático, como uma ideia

de enfrentamento, de luta contra status quo ) e compõe com suas referências pessoais .

Referências bibliográficas

BELTING, Hans (2007) . Antropologia de La imagen. Buenos Aires/Madrid: Katz Editores.

BOTINADA, A HISTORIA DOS PUNKS NO BRASIL (2006). Video. Direção: Gastão Moreira.

São Paulo in http://www.youtube.com/watch?v=22lSR-o4n98, acessado em 08 de agosto de

2012.

DEUS, Jorge Dias de. “Ciência e Tecnologia” in Tecnologia e Liberdade. Lisboa:

Sementeira, 1988.

DIDI-HUBERMAN, Georges (1998). O que vemos, o que nos olha, São Paulo: Editora 34.

FANZINEIROS DO SÉCULO PASSADO.(2010). Video. Direção: Márcio Sno. São Paulo, in .

http://vimeo.com/19998552, acessado em 10 de novembro de 2012.

FARIAS, Priscila L. Sem Futuro: the Graphic Language of São Paulo city punk. Disponível em

http://ebookbrowse.com/13-farias-priscila-l-sem-futuro-the-graphic-language-of-sao-paulo-city-

punk-pdf-d354961983, acessado em 10 de novembro de 2012.

Page 11: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

GALLO, Ivone. Por uma historiografia do punk. Disponível em

http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/6542, acessado em 06 de junho de 2013.

GUATTARI, Felix. (1985): Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo,

Brasiliense.

NEGRI, Anna Maria. Quarenta anos de fanzine no Brasil: o pioneirismo de Edson Rontani .

Disponível em

http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/33397517009226686802074911246237676525.pdf ,

acessado em 06 de junho de 2013.

OLIVEIRA, Antonio Carlos (2006) . Os fanzines contam uma história sobre punks. Rio de

Janeiro: Achiamé.

PERKINS, Stephen (1992). ‘Punk zines’, Approaching the '80s Zine Scene: a Background

Survey & Selected Annotated Bibliography. Disponível em

http://www.zinebook.com/resource/perkins.html,acessado em 10 de abril de 2013.

PUNK EM SÃO PAULO: GAROTOS DE SUBURBIO” (1983). Video. Direção de Fernando

Meireles. São Paulo in http://www.youtube.com/watch?v=E7XfeJvvCi8,acessado em 23 de

setembro de 2012.

TRIGGS T. (ed). (1995). Communicating design: essays in visual communication. London:

Batsford.

Page 12: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

Anexos

(1) Ação Suburbana –nº.5 –s/d (2) Asfixia – nº 1 - 1987

(3) Aviso Final –nº 0 – 1990 (4) O cadáver esquisito – 1986

Page 13: Análise de capas de fanzines do movimento punk dos anos 80 ...portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1869-1.pdf · Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste - Bauru– SP 01 a 03/07/2013

(5) Factor Zero – nº 1 - (6) Protesto Kaótico - 1994

(7) SP Punk – nº 1 - 1982