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ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS A ROSA DO POVO CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700 CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP www.sistemacoc.com.br

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Análise de obrAs literáriAsA rosA do povo

CArlos drummond de AndrAde

Rua General Celso de Mello Rezende, 301 – Tel.: (16) 3603·9700CEP 14095-270 – Lagoinha – Ribeirão Preto-SP

www.sistemacoc.com.br

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sumário

1. Contexto soCiAl e HistÓriCo .................................................... 7

2. estilo literário dA époCA ........................................................... 9

3. o Autor ................................................................................................. 12

4. A obrA .................................................................................................... 15

5. exerCíCios ........................................................................................... 43

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A rosA do povo

CArlos drummond de AndrAde

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1. Contexto soCial e HistÓRiCo

na história do brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 a 1930, aproximadamente, é chamado de república Velha, “a política do café com leite”, porque ocupava a presidência da república ora um governo mineiro, ora um paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira e à pecuária. A manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre a produção e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao estado o papel de comprador dos excedentes para garantir o preço em face das oscilações do mercado. exemplo típico dessa política foi o chamado Acordo de taubaté, em 1906, segundo o qual são paulo, rio de Janeiro e minas Gerais se comprometiam a retirar do mercado os excedentes da produção cafeeira para garantir o nível dos preços.

A sociedade brasileira, no início do século xx, sofreu transformações gra-ças ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região Centro-sul do país. entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos foi marginalizada , e estes se deslocaram para a periferia e para os morros; a cultura canavieira do nordeste entrou em declínio, pois não tinha como competir com o apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”.

No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistiam no brasil: de um lado, a urbanização da região Centro-sul, com sua consequente industrialização, e, de outro, o atraso das regiões norte e nordeste. e um terceiro fator, ainda mais grave, somava-se a esse quadro: as oligarquias rurais com seus arranjos políticos não representam os novos estratos socioeconômicos. o resul-tado disso foi o surgimento de um quadro caótico que teve seu término com a chamada revolução de 1930 e o estado novo de Getúlio Vargas.

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na bahia, ocorreu a chamada Guerra de Canudos; em Juazeiro, no Ceará, o fenômeno do jagunço e a política do padre Cícero; os movimentos operários, em são paulo; a criação do partido Comunista; o tenentismo, que teve seu ápice na Coluna prestes, combatida por Arthur bernardes e Washington luís. é claro que esses conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 e 1930, pa-recendo exprimir, às vezes, problemas bem localizados. entretanto, no conjunto, revelaram a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves dese-quilíbrios. A queda da bolsa de nova iorque em 1929 e o movimento tenentista colocaram fim à República Velha, com a vitória na chamada Revolução de 1930, dando início ao chamado estado novo ou era Vargas.

Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a essas transformações. em são paulo e no rio de Janeiro, sobretudo, artistas e intelec-tuais, em contato com as novas tendências do pensamento europeu, como o Fu-turismo, o surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo e o Cubismo, prepararam um evento, a chamada semana de Arte moderna, com o intuito de romper com a mentalidade conservadora, representada na literatura pelos poetas parnasianos e, na política, pelas oligarquias rurais.

de modo geral, a maneira encontrada pelos artistas da década de 1920 para combater o formalismo parnasiano e a mentalidade acadêmica foi a valorização do irracionalismo. mário de Andrade, com a sua poética do “desvairismo” (pu-blicada no “prefácio interessantíssimo”, de pauliceia desvairada), manuel bandeira, com sua teoria do “alumbramento” (a poesia como uma revelação, isto é, como epifania), e toda a obra de oswald de Andrade são três bons exemplos de atitude artística e intelectual que procurou subverter a ordem existente.

manuel bandeira publicou em 1930 seu quarto livro de poesia, cujo título re-velou o intuito de romper definitivamente com a norma poética: Libertinagem.

A década de 1930 marcou a ascensão dos grandes ditadores da primeira metade do século: Hitler na Alemanha, mussolini na itália e, no brasil, o governo de Getúlio Vargas.

na literatura, o período entre 1930 e 1945 foi o momento do posicionamen-to ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida, sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. Foi o momento do romance regionalista de Graciliano ramos, José lins do rego, Jorge Amado e da poesia que se ergueu para defender a dignidade humana, como foi o caso de A rosa do povo, de Carlos drummond de Andrade, publicado em 1945.

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2. estilo liteRáRio da époCa

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o ModeRnisMo BRasileiRoo modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. em janeiro de 1917,

a pintora paulista Anita Malfatti realizou, em São Paulo, uma exposição de pintu-ra, na qual, além dos seus quadros, marcados por influências do expressionismo alemão, apresentou também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros. A exposição criou polêmica, ganhando a simpatia de uns e a antipatia de outros. monteiro lobato escreveu um artigo cujo título era Paranoia ou Mistificação?, negando valor artístico aos quadros. A exposição agradou, entretanto, a mário de Andrade e a oswald de Andrade.

Mas, oficialmente, o movimento modernista brasileiro teve como marco inicial a semana de Arte moderna de 1922. em fevereiro desse ano, por sugestão do pintor di Cavalcanti, um grupo paulista, formado por mário de Andrade, Oswald de Andrade, Paulo Prado, Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e outros, juntamente com escritores mais jovens do rio de Janeiro, como ronald de Carvalho, renato de Almeida e alguns mais, promoveu, no teatro municipal de são paulo, a chamada semana de Arte moderna, com exposição de pintura e escultura, concertos, conferências e declamações.

de modo geral, a literatura dos modernistas, na chamada fase heroica do movimento ou primeira fase modernista, entre 1922 e 1930, provocou a subversão dos gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta adotou processos de elaboração da linguagem poética. Houve uma aproximação dos diversos ismos europeus, os movimentos de vanguarda que procuravam romper com as normas acadêmicas, como o expressionismo, o Cubismo, o dadaísmo, o Futurismo e o surrealismo, já citados anteriormente.

A poesia abandonou as formas poéticas consagradas, como o verso me-trificado e rimado, presença exageradamente constante na poesia parnasiana. Aderiu à linguagem coloquial, ao verso livre, aos temas do cotidiano, ao humor e à ironia. os modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência do que é dito e na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais.

na fase mais combativa do modernismo brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa sofreu transformações significativas. Os períodos tornaram-se curtos, fragmen-tados, com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência do discurso, apresentando a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja uni-ficação exigiu do leitor uma adequação aos novos processos construtivos, uma vez que dispensava a concatenação lógica. A aliteração (repetição dos sons das consoantes) e a criação de neologismos passaram a integrar a linguagem da prosa. o melhor exemplo dessa técnica encontra-se em Memórias sentimentais de João Miramar, de oswald de Andrade.

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de 1930, data da publicação de Alguma poesia, de Carlos drummond de Andrade, a 1945, ano da morte de mário de Andrade, temos o que se convencio-nou chamar de segunda fase do modernismo. As grandes experiências técnicas com a linguagem cederam importância aos temas sociais. surgiu uma literatura que procurava denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretudo na prosa. Aí encontram-se os romances de Graciliano ramos, como vidas secas (1938), São Bernardo (1934), de Jorge Amado, Capitães da areia (1937), Terras do sem-fim (1942), entre outros.

de 1945 em diante, temos a chamada terceira fase modernista. Alguns estudiosos delimitam esta fase entre 1945, ano da morte de mário de Andrade, e 1964, ano do golpe militar. A linguagem é empregada como instrumento da busca do ser, sobretudo em João Guimarães rosa, sagarana (1946), e Clarice lispector, Perto do coração selvagem (1944), A paixão segundo G.H. (1964) e A hora da estrela (1977).

é importante ressaltar que a obra poética de Carlos drummond de Andrade atravessa as três fases do modernismo.

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3. o aUtoR

Carlos drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. Gauche – pronuncia-se “gôch”, palavra francesa cujo significado literal é

esquerdo; no poema, significa inapto, desajeitado.Carlos drummond de Andrade era mineiro de itabira do mato dentro, nas-

cido em 1902, nono filho de Carlos de Paula Andrade, fazendeiro, e de D. Julieta Augusta Drummond de Andrade. Expulso do colégio ao findar o ano letivo de 1919, em consequência de incidente com o professor de português, passou a resi-dir em belo Horizonte, onde fez estudos de farmácia. dedicou-se ao jornalismo e entrou em contato com o modernismo paulista, integrando o grupo fundador de A revista, órgão que divulgava as ideias modernistas em minas Gerais.

Em 1926, sem interesse pela profissão de farmacêutico e sem aptidão para a vida de fazendeiro, lecionou Geografia e Português no Ginásio Sul-Americano de itabira. Ainda em 1926, retornou a belo Horizonte como redator e depois redator-chefe do diário de Minas. em 1928, a revista de Antropofagia publicou seu poema “no meio do caminho”, provocando escândalo nos meios acadêmicos mais conservadores.

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em 1934, deixou belo Horizonte e foi para o rio de Janeiro (onde viveu até o fim da vida, em 1987) como chefe de gabinete do ministro Gustavo Capanema, ministro da educação e da saúde pública.

poeta, contista, cronista e ensaísta, Carlos drummond soube usar com pre-cisão a linguagem, sempre de forma elegante e correta, com riqueza vocabular. os temas e os motivos de sua obra são sempre cotidianos, observando de perto os homens e as sutilezas e brutalidades da vida.

em 1962, em sua Antologia poética, o poeta dividiu sua poesia em nove áreas temáticas:

1) o indivíduo: “um eu todo retorcido”;2) a terra natal: “uma província: esta”;3) a família: “a família que me dei”;4) amigos: “cantar de amigos”;5) choque social: “na praça de convites”;6) o conhecimento amoroso: “amar-amaro”;7) a própria poesia: “poesia contemplada”;8) exercícios lúdicos: “uma, duas argolinhas”;9) uma visão, ou tentativa de, da existência: “tentativa de exploração e de inter-

pretação do estar-no-mundo”.

oBRas

poesia 1930 – Alguma poesia 1934 – Brejo das almas 1940 – sentimento do mundo 1942 – poesias 1945 – A rosa do povo 1948 – poesia até agora 1951 – Claro enigma 1952 – viola de bolso 1954 – Fazendeiro do ar & poesia até agora 1955 – viola de bolso novamente encordoada 1959 – poemas 1959 – A vida passada a limpo 1962 – Lição das coisas 1967 – versiprosa

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1968 – Boitempo & A falta que ama 1973 – Menino antigo – Boitempo II 1973 – As impurezas do branco 1975 – Amor, amores 1977 – A visita 1978 – O marginal Colorindo Gato 1978 – discurso da primavera & Algumas sombras 1979 – Esquecer para lembrar – Boitempo III 1980 – A paixão medida 1982 – Carmina drummondiana 1984 – Corpo 1985 – Amar, sinal estranho 1985 – Amar se aprende amando 1988 – poesia errante 1992 – o amor natural 1996 – Farewell

prosa 1944 – Confissões de minas 1951 – Contos de aprendiz 1952 – passeios na ilha 1957 – Fala, amendoeira 1962 – A bolsa e a vida (crônicas e poemas)1970 – Cadeira de balanço (crônicas e poemas)1970 – Caminhos de João Brandão 1978 – O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso 1978 – os dias lindos 1979 – De notícias e não notícias faz-se a crônica 1979 – Historinhas 1981 – Contos plausíveis 1984 – Boca de luar 1985 – o observatório escritório 1986 – Tempo vida poesia 1987 – o avesso das coisas 1987 – Moça deitada na grama 1983 – o elefante 1985 – História de dois amores (com ilustrações de Ziraldo)

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4. a oBRa

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os 55 poemas que compõem A rosa do povo foram escritos entre 1943 e 1945, portanto em plena segunda Guerra mundial. o livro apresenta um ade-são consciente do poeta aos problemas da realidade exterior, não sendo raras referências a episódios do cotidiano, quando não a acontecimentos marcantes da década de 1940. Três temas são significativos na obra: a sociedade, a existência e a própria poesia.

Os poemas em versos livres convivem com os poemas em versos metrifi-cados, e a linguagem é sempre elegante e correta, de grande precisão vocabular. precisão, aliás, que surge como resultado de uma permanente luta com as pala-vras, no anseio de encontrar o gesto necessário para converter a palavra comum em palavra poética.

em A rosa do povo, a poesia emerge como um instrumento de resistência ante as perplexidades do sujeito em face de um mundo que agonizava diante da guerra. instrumento de resistência e de esperança, daí o título do livro. A rosa como metáfora da esperança de construção de um mundo mais justo.

A relação do eu com o mundo exterior ocorre, principalmente, por meio da sucessão de imagens contraditórias e complementares, como dia x noite, flor x sentimento de náusea. Avulta no primeiro plano da consciência a busca de um sentido para a vida, que se traduz no enfrentamento das forças opressoras, sejam elas herdadas do núcleo familiar ou oriundas da ordem política. não raramente, entretanto, o sentimento de angústia perpassa os poemas, seja através de um humor desencantado, seja através do antilirismo, duas características marcantes da poesia do autor. A angústia é produto de uma consciência que se debate em vão contra as forças da realidade. A consciência reclama, em face do mundo, os seus direitos, e daí emerge a força da negatividade que oprime o sujeito.

mas a poesia é resistência. A construção do discurso poético é uma tenta-tiva de construção de um entendimento e de um sentido para a vida. por isso, o fazer poético é trabalho essencial, pois é por meio dele e da sua matéria-prima – a palavra – que o poeta atinge a serenidade e a compreensão necessárias para a continuidade da crença na edificação de um mundo melhor.

os dois primeiros poemas do livro abordam exatamente o tema do fazer poético:

ConsideRação do poeMaNão rimarei a palavra sonocom a incorrespondente palavra outono.rimarei com a palavra carneou qualquer outra, que todas me convêm.As palavras não nascem amarradas,elas saltam, se beijam, se dissolvem,no céu livre por vezes um desenho,são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

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Uma pedra no meio do caminhoou apenas um rastro, não importa.Estes poetas são meus. De todo o orgulho,de toda a precisão se incorporamao fatal meu lado esquerdo. Furto a Viníciussua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.Que Neruda me dê sua gravatachamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.São todos meus irmãos, não são jornaisnem deslizar de lancha entre camélias:é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terrae é ainda mais do que ela. É qualquer homemao meio-dia em qualquer praça. É a lanternaem qualquer estalagem, se ainda as há.– Há mortos? há mercados? há doenças?É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,Por que falsa mesquinhez me rasgaria?Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas.O beijo ainda é um sinal, perdido embora,da ausência de comércio,boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria,cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas,boca tão seca, mas ardor tão casto.Dar tudo pela presença dos longínquos,sentir que há ecos, poucos, mas cristal,não rocha apenas, peixes circulandosob o navio que leva esta mensagem,e aves de bico longo conferindosua derrota, e dois ou três faróis,últimos! esperança do mar negro.Essa viagem é mortal, e começá-la.

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Saber que há tudo. E mover-se em meioa milhões de formas raras,secretas, duras. Eis aí o meu canto.

Ele é tão baixo que sequer o escutaouvido rente ao chão. Mas é tão altoque as pedras o absorvem. Está na mesa aberta em livros, cartas e remédios.Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,o uniforme de colégio se transformam,são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objetoou recusar-se ao grande? Os temas passam, eu sei que passarão, mas tu resistes,e cresces como fogo, como casa,como orvalho entre dedos, na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,e te desejo e te perco, estou completo,me destino, me faço tão sublime,tão natural e cheio de segredos,tão firme, tão fiel...Tal uma lâmina,o povo, meu poema, te atravessa.

logo na primeira estrofe do poema, temos a rejeição dos modelos con-vencionais de construção poética. modelos que limitam, tolhem a liberdade do poeta e mesmo esterilizam a possibilidade de significados novos. Daí o poeta afirmar que não fará um rima convencional, como rimar a palavra “sono” com a palavra “outono”. Ao afirmar que rimará a palavra “sono” “com a palavra carne / ou qualquer outra, que todas me convêm”, o poeta apresenta ao leitor a sua técnica de composição poética: relacionar as palavras umas com as outras e fazer brotar dessa relação o sentido poético. o poeta precisa saber transformar o lugar comum em um lugar poético.

na segunda estrofe, o poeta se refere aos poetas contemporâneos que admira e afirma que eles “não são jornais “, isto é, eles não são superficiais ou espalhafatosos, tomando do cotidiano apenas o elemento superficial, “nem des-

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lizar de lancha entre camélias:”, ou seja, eles não se prendem a um romantismo idealizador e superficial, eles empregam a poesia como instrumento para o estabelecimento de um mundo melhor.

A terceira estrofe corrobora a segunda, pois o poeta lança-se ao tema social, à realidade, e seus poemas assumem o compromisso com os semelhantes: “é qualquer homem / ao meio-dia / em qualquer praça”.

A partir da quarta estrofe, o poeta assume publicamente seu compromisso com a realidade e com o povo, afirmando ser o “Poeta do finito e da matéria.”, aderindo à vida material dos homens.

no poema seguinte, o tema do fazer poético permanece num dos poemas mais belos da literatura contemporânea:

pRoCURa da poesiaNão faças versos sobre acontecimentos.Não há criação nem morte perante a poesia.Diante dela, a vida é um sol estático,não aquece nem ilumina.As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.Não faças poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escurosão indiferentes.Nem me reveles teus sentimentos,que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a naturezanem os homens em sociedade.Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.A poesia (não tires poesia das coisas)elide sujeito e objeto.Não dramatizes, não invoques,

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não indagues. Não percas tempo em mentir.Não te aborreças.Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,vossas marzucas e abusões, vossos esqueletos de famíliadesaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhastua sepultada e merencória infância.Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação.Que se dissipou, não era poesia.Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.Lá estão os poemas que esperam ser escritos.Estão paralisados, mas não há desespero,há calma e frescura na superfície intata.Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.Espera que cada um se realize e consumecom seu poder de palavrae seu poder de silêncio.Não forces o poema a desprender-se do limbo.Não colhas no chão o poema que se perdeu.Não adules o poema. Aceita-ocomo ele aceitará sua forma definitiva e concentradano espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.Cada umatem mil faces secretas sob a face neutrae te pergunta, sem interesse pela resposta,pobre ou terrível, que lhe deres:Trouxeste a chave?

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repara:ermas de melodia e conceitoelas se refugiaram na noite, as palavras.Ainda úmidas e impregnadas de sonorolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

os 58 versos do poema debatem o tema do fazer poético e podem ser divi-didos em duas etapas: na primeira, por meio de negativas, o poeta fala sobre o que não se deve fazer na poesia: os acontecimentos, emoções, a vida pessoal , o corpo. Na segunda etapa, por meio de afirmativas, o poeta define a essência do fazer poético: aprender a lidar com as palavras, pois elas são a matéria essencial da poesia. plenas de sons e sentidos, a difícil tarefa do poeta é saber arranjá-las de tal forma que elas possam comunicar algo novo. tarefa difícil, porque as palavras podem, conforme o talento do poeta, recusar-se a deixar o seu estado denotativo, permanecendo em seu “estado de dicionário”.

“no importante poema A flor e a náusea, a condição individual e a condi-ção social pesam sobre a personalidade e fazem-na sentir-se responsável pelo mundo mal feito, enquanto ligada a uma classe opressora. o ideal surge como força de redenção e, sob a forma tradicional de uma flor, rompe as camadas que aprisionam. Apesar da distorsão do ser, dos obstáculos do mundo, da incomu-nicabilidade, a poesia se arremessa para a frente numa conquista, confundida na mesma metáfora da revolução (...). essa função redentora da poesia, associada a uma concepção socialista, ocorre em sua obra a partir de 1935 e avulta a partir de 1942, como participação e empenho político. era o tempo da luta contra o fascismo, da guerra da espanha e, a seguir, da Guerra mundial – conjunto de circunstâncias que favorecem em todo o mundo o incremento da literatura par-ticipante. (...)”

a floR e a náUseaPreso à minha classe e a algumas roupasvou de branco pela rua cinzenta.Melancolias, mercadorias espreitam-me.Devo seguir até o enjoo?Posso, sem armas, revoltar-me?

o poeta carrega consigo os valores de sua classe social. Caminha, angus-tiado, por uma rua onde as mercadorias adquiriram mais importância que as pessoas, e a tristeza o observa. pensa em se revoltar contra a ordem instituída, mas não tem armas para lutar.

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Olhos sujos no relógio da torre:Não, o tempo não chegou de completa justiça.O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.O tempo pobre, o poeta pobrefundem-se no mesmo impasse.

o relógio da cidade não marca as horas, mas o andamento da história. o tempo de justiça não chegou e, por isso, o tempo e o poeta estão inconclusos, incompletos, “fundem-se no mesmo impasse”.

Em vão me tento explicar, os muros surdos.Sob a pele das palavras há cifras e códigos.O sol consola os doentes e não os renova.As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

o poeta continua a caminhar pela cidade e sente que é impossível se co-municar com as pessoas. As palavras não trazem solução para os problemas; o sol apenas consola, mas não cura os doentes.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.Quarenta anos e nenhum problemaresolvido, sequer colocado.Nenhuma carta escrita nem recebida.Todos os homens voltam para a casa.Estão menos livres mas levam jornaise soletram o mundo, sabendo que o perdem.

na sua jornada pela cidade adentro, o poeta percebe que os homens cami-nham mecanicamente e que eles conhecem apenas a realidade dos jornais. o poeta sente vontade de vomitar toda a sua náusea, sua liberdade, sua incapacidade de estender a mão ao seu semelhante.

Crimes da terra, como perdoá-los?Tomei parte em muitos, outros escondi.Crimes suaves, que ajudam a viver.Ração diária de erro, distribuída em casa.Os ferozes padeiros do mal.Os ferozes leiteiros do mal.

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Carlos drummond de Andrade

o poeta, em sua angústia, compreende que a literatura é um crime; crime porque aprisiona o poeta em sua subjetividade, não permitindo sua aproximação do outro, por isso a literatura é a sua “ração diária de erro”.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.Ao menino de 1918 chamavam anarquista.Porém meu ódio é o melhor de mim.Com ele me salvoe dou a poucos uma esperança mínima.

A angústia e a náusea levam o poeta ao desejo de suicídio; o sentimento de ódio surge de forma irracional, a partir de uma lembrança de 1918, quando o chamaram de anarquista; o ódio, entretanto, é visto como uma salvação.

Uma flor nasceu na rua!Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.Uma flor ainda desbotadailude a polícia, rompe o asfalto.Façam completo silêncio, paralisem os negócios,garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.Suas pétalas não se abrem.Seu nome não está nos livros.É feia. Mas é realmente uma flor.

O nascimento de uma flor feia, desbotada e desconhecida, pois nem está catalogada, simboliza o surgimento de algo novo na vida do poeta, capaz de vencer o tédio, o nojo e o ódio.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tardee lentamente passo a mão nessa forma insegura.Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

num gesto incomum, o poeta senta-se na rua da capital do país às cinco horas da tarde e acaricia a nova forma de vida que surge, no formato de uma flor. Uma tempestade se anuncia, possivelmente virá para desfazer todo o mun-do “torto” em que as pessoas vivem. Finalmente, a flor vence o asfalto; surge a esperança de uma vida melhor. de uma vida sem guerras, sem alienações e sem o desgosto por saber-se vivo.

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As quinze estrofes que compõem o poema “o medo” contêm versos irregu-lares, além de versos em redondilha maior (7 sílabas métricas). no poema, cujo tema é o medo, que funciona como uma espécie de símbolo da ordem opressora daquela época, a palavra medo vai se espalhando pelos versos, pelo corpo do po-ema, num movimento contínuo, paralisando e esterilizando as ações humanas.

o MedoA Antonio Candido

Porque há para todos nós um problema sério...Este problema é o medo.

Antonio Candido. Plataforma de uma geração

Em verdade temos medo.Nascemos escuro.As existências são poucas:Carteiro, ditador, soldado.Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medoCheiramos flores de medoVestimos panos de medo.De medo, vermelhos riosvadeamos.

somos apenas uns homense a natureza traiu-nos.Há as árvores, as fábricas,doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,este célebre sentimento,e o amor faltou: chovia,ventava, fazia frio em São Paulo.Fazia frio em São Paulo...Nevava.O medo, com sua capa,Nos dissimula e nos berça.

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Fiquei com medo de ti,Meu companheiro moreno.De nós, de vós; e de tudo.Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses.Nosso caminho: traçado.Por que morrer em conjunto?E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,vem, ó terror das estradas,susto na noite, receiode águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,lentos poderes do láudano.Até a canção medrosase parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,duros tijolos de medo,medrosos caules, repuxos,ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,com resplendores covardes,atingiremos o cimode nossa cauta subida.O medo, com sua física,Tanto produz: carcereiros,edifícios, escritores,este poema: outras vidas.

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Tenhamos o maior pavor.Os mais velhos compreendem.O medo cristalizou-os.Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente, recuando de olhos acesos.Nossos filhos tão felizes...Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade, depois da cidade, o mundo.Depois do mundo, as estrelas,dançando o baile do medo.

A primeira estrofe já introduz o tema do medo; as possibilidades na vida são limitadas e o nosso destino, incompleto. na segunda estrofe, a educação pelo medo faz surgir um mundo cujas bases é o próprio medo. nas estrofes seguintes, o medo vai paralisando as pessoas, impedindo-as de agir. na sétima estrofe, surge o desejo de rebelião. mas o desejo é barrado pelo medo e o sen-timento de revolta se cala. Nas estrofes finais, o medo é absorvido de tal forma pelo sujeito que parece se converter numa segunda natureza, sendo transmitido para os descendentes.

é importante lembrar, aqui, que as forças opressoras, na obra de Carlos drummond de Andrade, são oriundas da realidade interior e da realidade exterior. no mundo interior, o código moral da família impregna o sujeito, configurando-se num princípio opressor, porque consiste em fazer o sujeito restringir a sua vontade em nome das vontades alheias e adiar ou moderar a satisfação de alguns prazeres imediatos, tendo em vista o cumprimento de ob-jetivos recomendáveis a longo prazo. na realidade exterior, as forças opressoras são oriundas de uma política ditatorial que impede o sujeito de vivenciar sua liberdade. por isso, na obra do poeta, o esforço para transcender o medo que paralisa é duplo: é preciso vencer o medo interior e é preciso vencer as forças externas que limitam o homem.

no poema “passagem da noite”, o medo recebe o nome de noite, que surge como o símbolo das forças opressoras que estancam o desejo de liberdade.

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passageM da noiteÉ noite. Sinto que é noitenão porque a sombra descesse(bem me importa a face negra)mas porque dentro de mim,no fundo de mim, o gritose calou, fez-se desânimo.Sinto que nós somos noite, que palpitamos no escuroe em noite nos dissolvemos.Sinto que é noite no vento,noite nas águas, na pedra.

E que adianta uma lâmpada?E que adianta uma voz?É noite no meu amigo.É noite no submarino.É noite na roça grande.É noite, não é morte, é noitede sono espesso e sem praia.Não é dor, nem paz, é noite,é perfeitamente noite. Mas salve, olhar de alegria!E salve, dia que surge!Os corpos saltam do sono,o mundo se recompõe.Que gozo na bicicleta!Existir: seja como for.A fraterna entrega do pão.Amar: mesmo nas canções.De novo andar: as distâncias, as cores, posse das ruas.Tudo que à noite perdemosse nos confia outra vez.

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Obrigado, coisas fiéis!Saber que ainda há florestas,sinos, palavras; que a terraprossegue seu giro, e o temponão murchou; não nos diluímos!Chupar o gosto do dia!Clara manhã, obrigado,o essencial é viver!

o poema está dividido em dois segmentos: no primeiro, formado pelas duas primeiras estrofes, predomina a imagem da noite como força opressora que leva o sujeito ao conformismo, fazendo-o sentir-se incapaz de modificar o quadro das circunstâncias em que vive. no segundo bloco, que é formado pela terceira e última estrofe, a conjunção adversativa mas dá início ao verso, contrapondo o dia que surge à imagem da noite. o dia surge como esperança, como crença na possibilidade de uma vida melhor, como força que enaltece e dignifica a existência.

é bastante comum em A rosa do povo a transição da náusea e do sentimento de impotência diante da realidade para o sentimento de esperança e de trans-formação consciente da realidade. no poema “áporo”, como um soneto em redondilha menor (versos com 5 sílabas métricas), a passagem da náusea para a esperança surge numa imagem curiosa:

ápoRoUm inseto cavacava sem alarmeperfurando a terrasem achar escape.

Que fazer, exausto,em país bloqueado,enlace de noiteraiz e minério?Eis que o labirinto(oh razão, mistério)presto se desata:em verde, sozinha, antieuclidiana,uma orquídea forma-se

Vocabulário

áporo = orquídea; problema de difícil solução; inseto

presto = rápido antieuclidiana = ilógico, fora da lógica

convencional

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um inseto cava a terra, nos primeiros oito versos, sem encontrar saída. nos seis últimos versos, o labirinto em que o inseto se encontra é desfeito pelo nascimento de uma orquídea. o poema pode ser todo uma metáfora da situação do país na década de 1940, época do chamado estado novo; o nascimento da orquídea seria a imagem da esperança, de transformações sociais.

é lícito associar o esforço do inseto ao esforço do poeta, que, tolhido pelo sentimento de culpa e pela sensação de náusea, percebe na imagem da orquídea a presença de elemento novo capaz de suscitar esperança e crença no surgimento de um mundo melhor.

para alguns estudiosos da obra drummondiana, “áporo” é uma metáfora da criação poética. A palavra poética, presa nos subterrâneos da subjetividade, acaba por fim se libertando e se realizando no ato da escrita. (* Sobre os aspectos “subterrâneos” da escrita, machado de Assis escreveu um curioso conto, que está em várias histórias, intitulado “o Cônego, ou a metafísica do estilo”).

VeRsos à BoCa da noitesinto que o tempo sobre mim abatesua mão pesada. Rugas, dentes, calva...Uma aceitação maior de tudoe o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza?Darei aos outros a ilusão de calma?Serei sempre louco? Sempre mentiroso?Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?Há muito suspeitei o velho em mim.Ainda criança, já me atormentava.Hoje estou só. Nenhum menino saltade minha vida, para restaurá-la.Lá onde não chegou a minha ironia,entre ídolos de rosto carregado,ficaste, explicação de minha vida,como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram:viagens, furtos, altas solidões,o desespero, agora cristal frio,a melancolia, amada e repelida,

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e tanta indecisão entre dois mares,entre duas mulheres, duas roupas.Toda essa mão para fazer um gestoque de tão frágil nunca se modela,

e fica inerte, zona do desejoselada por arbustos agressivos.(Um homem se contempla sem amor,Se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a ideia de passadovisitar-me na curva de um jardim.Vem a recordação, e te penetradentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,do paletó, da guerra, do arco-íris;enroscam-se no sono e te perseguem,à busca de pupila que as reflita.E depois das memórias vem o tempotrazer novo sortimento de memórias,até que, fatigado, te recusese não saibas se a vida é ou foi.Esta casa, que miras de passagem,estará no Acre? na Argentina? em ti?que palavra escutaste, e onde, quando?seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina,voa talvez para a Bahia e deixaoutros pedaços, dissolvidos no atlas,em País-do-Riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo!Que riqueza! Sem préstimo, é verdade.Bom seria captá-las e compô-lasnum todo sábio, posto que sensível:

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uma ordem, uma luz, uma alegriabaixando sobre o peito despojado.E já não era o furor dos vinte anosnem a renúncia às coisas que elegeu,

mas a penetração no lenho dócil,um mergulho em piscina, sem esforço,um achado sem dor, uma fusão,tal uma inteligência do universo

comprada em sal, em rugas e cabelos.

Em dezesseis estrofes de quatro versos, com um verso final, o poeta desenvolve “uma meditação da idade madura sobre a insatisfação do indi-víduo consigo mesmo, a nostalgia de um outro eu que não pode ser e a per-plexidade que leva a explorar o arsenal da memória, a fim de elaborar com ela uma expressão que, sendo uma espécie de vida alternativa, justificasse a existência falhada, criando uma ordem fácil, uma regularidade que ela não conheceu.”

o poeta procura, então, aceitar, com alguma serenidade, o peso negativo das etapas vencidas:

passageM do anoo último dia do anonão é o último dia do tempo.Outros dias virãoe novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.

o poeta opõe o tempo da vida individual ao tempo da vida da humanidade. Assim, é a vida dele que se aproxima do fim, não a da humanidade.

Beijarás bocas, rasgarás papéis,farás viagens e tantas celebraçõesde aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,os irreparáveis uivosdo lobo na solidão.

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enjaulado em sua solidão, o poeta apresenta os artifícios com que os ho-mens tentam apagar a consciência de seu destino.

o último dia do temponão é o último dia de tudo.Fica sempre uma franja de vidaonde se sentam os homens.Um homem e seu contrário,uma mulher e seu pé,um corpo e sua memória,um olho e seu brilho,uma voz e seu eco,e quem sabe até se Deus...Recebe com simplicidade este presente do acaso.Mereceste viver mais um ano.Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.Teu pai morreu e teu avô também.Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,e de copo na mãoesperas amanhecer.

A única solução possível para os problemas da existência parece ser a aceitação das imposições da vida.

O recurso de se embriagar.O recurso da dança e do grito,o recurso da bola colorida,o recurso de Kant e da poesia,todos eles... e nenhum resolve.

não adianta querer enganar a consciência para escapar dos desígnios da vida, seja por meio das drogas, da filosofia ou da literatura. Tudo é inútil.

As coisas são limpas, ordenadas.O corpo gasto renova-se em espuma.Todos os sentidos alerta funcionam.

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A boca está comendo vida.A boca está entupida de vida.A vida escorre da boca,lambuza as mãos, a calçada.A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

A vida prossegue por conta própria, indiferente ao destino pessoal do poeta. A vida se espalha pelas coisas e pelas pessoas como algo oleoso, como um novo dia, uma nova manhã que tudo clareia com a sua luz; prossegue para além do indivíduo. O fim de uma vida não é o fim da vida.

no belo poema “Consolo na praia”, o sofrimento imposto pelas perdas na vida encontra amparo na resignação, na aceitação do destino pessoal ou no fato de que continuaremos a ter vida, sentimentos, algum consolo próximo ou o sono.

Consolo na pRaiaVamos, não chores...A infância está perdida.A mocidade está perdida.Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.O segundo amor passou.O terceiro amor passou.Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.Não tentaste qualquer viagem.Não possuis casa, navio, terra.Mas tens um cão.

Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam.Nunca, nunca cicatrizam.Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.À sombra do mundo erradomurmuraste um protesto tímido.Mas virão outros.

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Tudo somado, deviasprecipitar-te, de vez, nas águas.Estás nu na areia, no vento...Dorme, meu filho.

o poema “Caso do vestido” é composto de 73 dísticos (estrofes com dois versos) em redondilha maior (sete sílabas métricas) e apresenta uma estrutura dramática, teatral, pois contém personagens, diálogos e um enredo progressivo com clímax e desfecho.

Caso do VestidoNossa mãe, o que é aquelevestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestidode uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, esse vestidotanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutaipalavras de minha boca.

As filhas desejam saber da mãe o porquê de um vestido dependurado na parede. A mãe teme contar, pois o marido está por perto.

Era uma dona de longe,vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,se fechou, se devorou.

Chorou no prato de carne,bebeu, gritou, me bateu,

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me deixou com vosso berço,foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.Em vão o pai implorou,dava apólice, fazenda,dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,lamberia seu sapato.

o marido se apaixonou por uma “dona de longe”, mas ela não lhe dava atenção.

Mas a dona nem ligou.Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,a essa dona tão perversa,

que tivesse paciênciae fosse dormir com ele...

o marido pediu para a esposa que pedisse a essa “dona” que fosse dormir com ele. Ao recordar-se desse fato, a mãe chora.

Nossa mãe, por que chorais?Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso paichega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamospisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procureiaquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacassede meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com elese a senhora fizer gosto,

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só para lhe satisfazer,não por mim, não quero homem.

A “dona de longe” ofende o orgulho da esposa.

Olhei para vosso pai,os olhos dele pediam.Olhei para a dona ruim,os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,de colo mui devassado,

mais mostrava que escondiaas partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,me curvei... disse que sim.Saí pensando na morte,mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,não comia, não falava,

tive uma febre terçã,mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouropagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu no mundo.O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberbame aparece já sem nada,

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pobre, desfeita, mofina,com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.Mas te dou este vestido,última peça de luxoque guardei como lembrança

daquele dia de cobra,da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoadoconfessou que só gostavade mim como eu era dantes.Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupaque recorda meu malfeito

de ofender dona casadapisando no seu orgulho.

recebei esse vestidoe me dai vosso perdão.

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Olhei para a cara dela,quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,quede colo de camélia?

quede aquela cinturinhadelgada como jeitosa?

quede pezinhos calçadoscom sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,boca não disse palavra.Peguei o vestido, pusnesse prego da parede.

Ela se foi de mansinhoe já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.Olhou para mim em silêncio,

mal reparou no vestidoe disse apenas: Mulher,põe mais um prato na mesa.Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,era sempre o mesmo homem,

comia meio de ladoe nem estava mais velho.

o barulho da comidana boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouçovosso pai subindo a escada.

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A partir de um episódio aparentemente banal, um caso de adultério, o poeta constrói uma atmosfera dramática, dando ao “caso do vestido”, relatado pela mãe às filhas, uma dimensão que extrapola os limites do cotidiano. Enquanto o marido sucumbe a uma paixão, a mulher encontra forças para criar os filhos e manter-se viva em meio às dificuldades material e moral que a envolvem. Sua capacidade de aceitar o seu destino e a sua paixão a conduzem da extrema humilhação ao sublime perdão, revelando toda a força que subsiste na alma feminina.

A atitude da mãe em receber o vestido da “dona de longe” e colocá-lo na parede revela a habilidade da mulher em deixar sempre ao alcance da consciên-cia do marido a evidência da traição, encontrando, dessa forma, uma vingança daquilo que sofrera durante a ausência do marido adúltero.

o poema “morte do leiteiro” narra a história de um leiteiro que é tomado por ladrão e é assassinado na madrugada. é interessante lembrar aqui que, antiga-mente, havia o leiteiro e o padeiro que toda madrugada deixavam o pão e o leite na porta das casas. no poema, o clima de medo em que vivem os moradores leva um senhor a acordar na madrugada e a confundir o leiteiro com um bandido.

MoRte do leiteiRo A Cyro novaes

Há pouco leite no país,é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país, é preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteirode madrugada com sua latasai correndo e distribuindoleite bom para gente ruim. Sua lata, suas garrafase seus sapatos de borrachavão dizendo aos homens no sonoque alguém acordou cedinhoe veio do último subúrbiotrazer o leite mais frioe mais alvo da melhor vacapara todos criarem forçana luta brava da cidade.

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Na mão a garrafa brancanão tem tempo de dizeras coisas que lhe atribuonem o moço leiteiro ignaro, morador na Rua Namur, empregado no entreposto, com 21 anos de idade, sabe lá o que seja impulsode humana compreensão. E já que tem pressa, o corpovai deixando à beira das casasuma apenas mercadoria. E como a porta dos fundostambém escondesse genteque aspira ao pouco de leitedisponível em nosso tempo, avancemos por esse beco, peguemos o corredor, depositemos o litro... Sem fazer barulho, é claro, que barulho nada resolve. Meu leiteiro tão sutilde passo maneiro e leve, antes desliza que marcha. É certo que algum rumorsempre se faz: passo errado, vaso de flor no caminho, cão latindo por princípio, ou um gato quizilento. E há sempre um senhor que acorda, resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico(ladrões infestam o bairro), não quis saber de mais nada. o revólver da gavetasaltou para sua mão. Ladrão? se pega com tiro.

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os tiros na madrugadaliquidaram meu leiteiro. Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, não sei, é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sonode todo, e foge pra rua. Meu Deus, matei um inocente. Bala que mata gatunotambém serve pra furtara vida de nosso irmão. Quem quiser que chame médico, polícia não bota a mãoneste filho de meu pai. Está salva a propriedade. A noite geral prossegue, a manhã custa a chegar, mas o leiteiroestatelado, ao relento, perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada, no ladrilho já serenoescorre uma coisa espessaque é leite, sangue... não sei. Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro toma que chamamos aurora.

A última estrofe do poema contém uma das mais belas imagens da literatura brasileira. o branco do leite encontrando-se com o sangue do leiteiro unem-se e formam um tom rosado que é identificado com a aurora, com o dia que nasce.

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em A rosa do povo, há uma série de poemas em que o jogo entre a opressão e o desejo de liberdade aparece materializado na imagem de cidades, como ocor-re em “Carta a stalingrado”, “Com o russo em berlim”, “Visão 1944”, “Cidade prevista”, “mas viveremos” e “telegrama de moscou”. Comparados aos demais poemas do livro, eles são esteticamente inferiores. mas é importante compreendê-los à luz do momento histórico em que foram compostos. no caso de “Carta a stalingrado”, por exemplo, é interessante saber que, nessa cidade, teve início a capitulação do exército nazista, entre agosto de 1942 e janeiro de 1943. o povo russo surgia como herói da liberdade e a cidade, como símbolo de resistência e luta contra as forças opressoras.

CaRta a stalingRadostalingrado...Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!O mundo não acabou, pois que entre as ruínasoutros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,e o hálito selvagem da liberdadedilata os seus peitos, Stalingrado,seus peitos que estalam e caemenquanto outros, vingadores, se elevam.

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CoMentáRio da CRítiCaHá livros que agradam, há livros que desagradam e há livros necessários. A rosa

do povo é um livro necessário. Mas necessário para quê? Ele é necessário para que todos possam entender que aquilo a que chamamos de eu vive em permanente conflito com o que chamamos mundo. O desejo de transformar o mundo é também uma esperança de promover a modificação do próprio ser.

Numa época de apego tão forte ao consumo, quando pensamos que viver e consumir são sinônimos, uma reflexão sobre o sentido da vida é necessária. Na época em que escreveu A rosa do povo, Carlos Drummond de Andrade não ficou omisso em relação aos problemas que assolavam o homem: em seu ofício de poeta, ele conferiu às suas palavras o calor neces-sário para que elas traduzissem a sua indignação ante a guerra e as políticas opressoras.

Num país como o Brasil, onde a distância entre os mais ricos e os mais pobres aumenta em qualquer governo, seja ele de esquerda ou de direita, aqueles que usufruem do privilégio de estudar têm a missão de sair dos limites do próprio ego, de refletir e de participar da transformação de uma sociedade que prima pelas injustiças que destituem o ser humano da sua humanidade.

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Carlos drummond de Andrade

5. ExErcícios

1.leia com atenção os dois fragmentos a seguir, extraídos do poema de Carlos drummond de Andrade cujo título, “procura da poesia”, tam-bém indica o tema. Compare-os e explique como o tema é desenvolvido em cada um deles.

fragmento 1Não faças versos sobre acontecimentos.Não há criação nem morte perante a poesia.Diante dela, a vida é um sol estático,não aquece nem ilumina.As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.Não faças poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

fragmento 2Penetra surdamente no reino das palavras.Lá estão os poemas que esperam ser escritos.Estão paralisados, mas não há desespero,há calma e frescura na superfície intata.Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

2. ............................................................................................................................Uma flor ainda desbotadailude a polícia, rompe o asfalto.Façam completo silêncio, paralisem os negócios,garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.Suas pétalas não se abrem.Seu nome não está nos livros.É feia. Mas é realmente uma flor.................................................................................................................................É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

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A rosa do povoA

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Esse é um fragmento do poema “A flor e a náusea”, do livro A rosa do povo, de Carlos drummond de Andrade.a) O que o nascimento da flor representa?b) Que relação se poderia estabelecer entre este poema e o momento histórico

em que foi elaborado?

3.Não rimarei a palavra sonocom a incorrespondente palavra outono.rimarei com a palavra carneou qualquer outra, que todas me convêm.As palavras não nascem amarradas,elas saltam, se beijam, se dissolvem,no céu livre por vezes um desenho,são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

nos versos acima, extraídos de “Consideração do poema”, do livro A rosa do povo, de Carlos drummond de Andrade, o tema predominante é:a) o sentimento de revolta social.b) a metalinguagem.c) a insuficiência do eu diante da linguagem poética.d) a renúncia aos valores morais herdados da família.e) a descrença na realidade exterior.

4.É noite. Sinto que é noitenão porque a sombra descesse(bem me importa a face negra)mas porque dentro de mim,no fundo de mim, o gritose calou, fez-se desânimo.sinto que nós somos noite, que palpitamos no escuroe em noite nos dissolvemos.Sinto que é noite no vento,noite nas águas, na pedra.

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Carlos drummond de Andrade

E que adianta uma lâmpada?E que adianta uma voz?É noite no meu amigo.É noite no submarino.É noite na roça grande.É noite, não é morte, é noitede sono espesso e sem praia.Não é dor, nem paz, é noite,é perfeitamente noite. Mas salve, olhar de alegria!E salve, dia que surge!Os corpos saltam do sono,o mundo se recompõe.Que gozo na bicicleta!Existir: seja como for.A fraterna entrega do pão.Amar: mesmo nas canções.De novo andar: as distâncias, as cores, posse das ruas.Tudo que à noite perdemosse nos confia outra vez.Obrigado, coisas fiéis!Saber que ainda há florestas,sinos, palavras; que a terraprossegue seu giro, e o temponão murchou; não nos diluímos!Chupar o gosto do dia!Clara manhã, obrigado,o essencial é viver!

a) o poema anterior pode ser dividido em duas partes. Quais são elas e qual palavra as caracteriza?

b) O que expressa o poeta em cada uma delas?

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A rosa do povoA

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texto para as questões 5 e 6

5. nosso tempo

iEste é tempo de partido,tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,viajamos e nos colorimos.A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.

Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.Onde te ocultas, precária síntese,Penhor de meu sono, luzdormindo acesa na varanda?Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijosobe ao ombro para contar-mea cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.As coisas talvez melhorem.São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto.Tenho palavras em mim buscando canal,são roucas e duras, irritadas, enérgicas,comprimidas há tanto tempo,perderam o sentido, apenas querem explodir.................................................................................

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Carlos drummond de Andrade

o fragmento de poema anterior pertence ao livro A rosa do povo, de Carlos drum-mond de Andrade. relacionando-o com os demais poemas do livro, é correto afirmar que:a) prende-se ao tema da subjetividade, não estabelecendo nenhum vínculo com

a temática social.b) prende-se à temática social, não deixando transparecer nenhuma carga emo-

tiva.c) trata-se do tema do próprio fazer poético, um dos temas centrais da obra.d) nele, como em outros poemas, o desejo de transformar o mundo é também

um desejo de promover a modificação do próprio ser.e) nele, como em outros poemas, estão presentes a ironia e o humor do au-

tor, que, pessimista, não vê nenhuma condição de melhora na vida dos homens.

6.Considerando que os poemas foram escritos entre 1943 e 1945, dê uma interpre-tação para a palavra “partido”, presente no dístico inicial do poema.

7.Acordo para a morteBarbeio-me, visto-me, calço-me.É meu último dia: um diacortado de nenhum pressentimento.Tudo funciona como sempre.Saio para a rua. Vou morrer.

os versos acima iniciam um conhecido poema de A rosa do povo. nele, é narrado o último dia de vida de um homem que vai viajar e não sabe que vai morrer. trata-se do poema:a) “morte no avião”.b) “morte do leiteiro”.c) “Caso do vestido”.d) “Consolo na praia”.e) “Versos à boca da noite”.

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gaBaRito1. o tema do poema é o fazer poético. no

fragmento 1, por meio de negativas, o poeta expõe o que não é matéria de poesia; no fragmento 2, por meio de afirmativas, o poeta define o fazer poético como sendo a explo-ração dos sons e dos sentidos da palavra, ou seja, fazer poesia é essencialmente lidar com palavras.

2.a) O nascimento da flor representa a esperança

de regeneração de um mundo marcado pelo asco e pelo ódio.

b) publicado em 1945, no fim da segunda Guerra Mundial, a imagem da flor no poema (assim como a imagem da rosa que dá título ao livro) representa a esperança contra os horrores da guerra e a crença no surgimento de um mundo melhor.

3. b

4.a) A primeira parte é formada pelas duas pri-

meiras estrofes e apresenta a palavra “noite” como núcleo da ideia central; a segunda parte tem início com a terceira estrofe e apresenta o “dia” como núcleo.

b) na primeira parte, a palavra “noite” é em-pregada como símbolo das forças opressoras que forçam o sujeito a acreditar-se incapaz de modificar a realidade exterior; na segun-da parte, a palavra “dia” surge como metá-fora da esperança, da sucessão das trevas que aprisionam e pela luz que liberta.

5. d 6. A palavra “partido” pode se referir a partido

político, ou melhor, a um certo compro-misso ideológico, já que os versos foram escritos durante os tempos da segunda Guerra mundial, o que obrigava as pessoas a assumirem uma posição diante da guerra. A palavra “partido”, no segundo verso do dístico (“tempo de homens partidos”), pode significar que os homens estão partidos, isto é, mutilados pela guerra e pela cidade opres-sora, que mutila corpos e consciências.

7. A

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