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JOCELAINE OLIVEIRA DOS SANTOS ANÁLISE DISCURSIVA DA PEÇA TEATRAL O REI DA VELASÃO CRISTÓVÃO 2010

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JOCELAINE OLIVEIRA DOS SANTOS

ANÁLISE DISCURSIVA DA PEÇA TEATRAL

“O REI DA VELA”

SÃO CRISTÓVÃO

2010

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JOCELAINE OLIVEIRA DOS SANTOS

ANÁLISE DISCURSIVA DA PEÇA TEATRAL

“O REI DA VELA”

Dissertação apresentada como parte dos

requisitos para obtenção do título de

Mestre em Letras, área de concentração:

Estudos da linguagem e ensino, linha de

pesquisa: teorias do texto, do programa

de Pós-graduação em Letras da

Universidade Federal de Sergipe.

Orientador: Prof. Dr Antonio Ponciano

Bezerra.

Co-orientador: Prof. Dr. Renato de

Mello.

SÃO CRISTÓVÃO

2010

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JOCELAINE OLIVEIRA DOS SANTOS

ANÁLISE DISCURSIVA DA PEÇA TEATRAL “O REI DA

VELA”

Dissertação apresentada como parte dos

requisitos para obtenção do título de

Mestre em Letras, do programa de Pós-

graduação em Letras, do Núcleo de Pós-

Graduação em Letras da Universidade

Federal de Sergipe.

Área de concentração: Estudos da

linguagem e ensino.

Linha de pesquisa: Teorias do texto,

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Antonio Ponciano Bezerra - Orientador

Universidade Federal de Sergipe

Profª. Drª. Denise Porto Cardoso

Universidade Federal de Sergipe

Prof. Dr. Renato de Mello - Co-orientador

Universidade Federal de Minas Gerais

Suplentes:

Profª Drª Maria Leônia Garcia de Carvalho

Universidade Federal de Sergipe

Profª Drª Lêda Pires Corrêa

Universidade Federal de Sergipe

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.

Aos que acreditaram na possibilidade de

realização deste trabalho, em especial à minha

mãe.

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe, que se mostra fortaleza e me faz fortaleza diariamente. Ensina-me

a lutar e a não desistir nunca. Obrigada!

Ao professor Dr. Antonio Ponciano, pelos ensinamentos que levarei além

academia. Obrigada pelos direcionamentos, pela paciência e pelos anos de convivência.

Ao professor Dr. Renato de Mello, pelas conversas e pelo carinho com que me

acolheu.

A Claudio, com quem compartilho as angústias diárias das escolhas que faço.

A todos que torceram por mim e confiaram na minha capacidade de chegar até

aqui.

Obrigada!

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“A vida não é em linha reta, nem em ordem direta se processam as histórias de

cada homem.”

Oswald de Andrade

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo proceder a uma análise discursiva da peça “O Rei

da Vela”, de Oswald de Andrade. Pretende-se, em um primeiro momento, articular uma

análise discursiva das estratégias de construção de sentido e das estratégias de constituição

dos múltiplos sujeitos que compõem o processo de enunciação deste texto teatral. Em um

segundo momento, serão identificadas as representações sociais refletidas e refratadas na

peça, através da reconstituição do ethos do personagem Abelardo I e do desvelamento das

vozes presentes no texto. Para tanto, utilizar-se-á de um arcabouço teórico que abarque as

especificidades do texto teatral em sua materialidade linguístico-discursiva. O trabalho se

funda na Análise do Discurso por considerar que as análises propostas pela AD possibilitam

ultrapassar os limites do próprio texto, adentrando na confluência da língua, do sujeito, da

História e da ideologia, tudo isso no e pelo discurso.

Palavras-Chave: O Rei da Vela. Análise do Discurso. Teatro.

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ABSTRACT

This work aims at proceeding a discursive analysis of the play “O Rei da Vela”

by Oswald de Andrade. Firstly, we intend to articulate a discursive analysis of the

strategies of sense construction and the strategies of multiple subjects‟ constitution that

are part of the utterer process of this theatrical text. Second, we will try to identify the

social representations reflected and refracted on the play, through the reconstruction of

the ethos of Abelardo I and from unveiling the speeches in the text. For so, we use a

theoretical framework that contain the specificities of the theatrical text in its linguistic-

discursive materiality. Our work is based upon Discourse Analysis because we believe

that the proposed analyses by DA make it possible to go beyond the limits of the text,

getting into the language, the subject, the History and the ideology confluence, all this

in and by the discourse.

Key-words: O Rei da Vela. Discourse Analysis. Theater.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 9

2 O REI DA VELA .................................................................................................................. 14

2.1 AS VANGUARDAS EUROPÉIAS E O QUADRO DE INFLUÊNCIAS DA PEÇA .... 25

2.2 SOBRE A RECEPÇÃO E A ENCENAÇÃO DA PEÇA ................................................ 30

3 BREVE HISTÓRICO DA ANÁLISE DO DISCURSO ....................................................... 35

3.1 ETAPAS DE CONSOLIDAÇÃO DA ANÁLISE DO DISCURSO ............................... 42

3.2 ALGUNS CONCEITOS CHAVES PARA A ANÁLISE DO DISCURSO .................... 43

3.2.1 Sujeito .................................................................................................................... 43

3.2.2 Discurso ................................................................................................................. 46

3.2.3 Formação discursiva............................................................................................... 47

3.2.4 Interdiscurso ........................................................................................................... 48

3.3 CONSTRUÇÃO TEÓRICA DE UM DISPOSITIVO DE ANÁLISE ............................ 51

3.3.1 O conceito de ethos ................................................................................................ 52

3.3.2 O conceito de Polifonia .......................................................................................... 54

3.4 O TEXTO TEATRAL E SUA ESPECIFICIDADE ........................................................ 59

4 CONSTRUÇÃO DOS BLOCOS DE ANÁLISE .................................................................. 63

4.1 ABELARDO I .................................................................................................................. 67

4.2 INSTITUIÇÃO FAMILIAR ............................................................................................ 78

4.3 LUTA DE CLASSES ....................................................................................................... 83

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 86

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 89

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1 INTRODUÇÃO

Oswald de Andrade, em 1924, lança o “Manifesto Antropofágico”. Esse manifesto

surge como uma proposta artístico-intelectual que tem em sua base absorver o que há de bom

e de valoroso na cultura do outro. Não se trata, evidentemente, de copiar o outro, mas de

assimilá-lo, de interagir com ele, de tirar dele o que há de melhor e fazer disso algo novo,

genuinamente nacional: um projeto consciente de criação de uma arte brasileira autônoma. O

manifesto reelabora, desse modo, o conceito eurocêntrico e negativo de antropofagia,

passando à metáfora de um processo crítico de formação da cultura brasileira. Com a

antropofagia, tenta-se deixar de ser o colonizado, ainda que sabendo o quão difícil é

abandonar tal posição. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

[...] Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”

(ANDRADE, 1995, p. 72)

Assim como na metáfora antropofágica, um trabalho acadêmico exige esse constante

exercício de reelaboração do pensamento. Buscar teorias, lançar olhares, cruzar

conhecimentos são algumas das exigências ao aluno pesquisador, como o do Mestrado.

Portanto, vale-se de tal metáfora para abrir e trilhar o caminho do trabalho que agora se

apresenta, já que, nele, notadamente, Linguística e Literatura, Análise do Discurso e estudos

específicos do Teatro, cruzam-se com a intenção de produzir mais um olhar sobre a obra O

Rei da vela, de Oswald de Andrade.

Ao perceber a escassez de estudos linguísticos que tratam do texto ficcional, do texto

literário e, sobretudo, do texto dramático, resolve-se assimilar o que havia enquanto produção

intelectual, escolhendo somente a parte que acredita-se ser a mais interessante para o trabalho.

Deparam-se com alguns trabalhos acadêmicos que abordam o corpus e também dalí retira-se

algo. Tudo isso foi feito com uma intenção: a de produzir um trabalho acadêmico, uma

dissertação de Mestrado que tentasse algo genuíno.

Deste modo, a proposta é a de proceder a uma análise discursiva da peça O Rei da

Vela, de Oswald de Andrade, escrita em 1933 e publicada em 1937. Pretende-se, em um

primeiro momento, articular uma análise discursiva das estratégias de construção de sentido e

das estratégias de constituição dos múltiplos sujeitos que compõem o processo de enunciação

deste texto teatral. Em um segundo momento, buscar-se-á identificar as representações sociais

refletidas e refratadas na peça, através da reconstituição do ethos do personagem Abelardo I e

do desvelamento das vozes presentes no texto.

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Para tanto, vale-se, aqui, de um arcabouço teórico que abarca as especificidades do

texto teatral em sua materialidade linguístico-discursiva. O trabalho funda-se na Análise do

Discurso (AD), por considerar que as análises propostas pela AD possibilitam ultrapassar os

limites do próprio texto, adentrando na confluência da língua, do sujeito, da história e da

ideologia, tudo isso no e pelo discurso.

Além disso, a própria Análise do Discurso se dispõe a investigar as mais diversas

práticas da linguagem, que vão desde situações linguageiras do cotidiano até as práticas

literárias. Recorre-se, portanto, a teóricos que trabalham na confluência entre Literatura e

Linguística, e, mais especificamente, Análise do Discurso, como Ubersfeld, Maingueneau,

Ryngaert, Mello, Charaudeau, entre outros.

A emergência da entidade discurso, como objeto de análise, leva à percepção do texto

literário além da instância criadora e de seu aspecto meramente estilístico, apartando-se da

visão romântica que permeava a maioria dos estudos literários até a década de 60. Desde

Bakhtin (1929), opera-se uma mudança de paradigma, que se acelera com a Teoria da

Recepção, com os novos dispositivos de leitura introduzidos por Chartier e com a sociocrítica

da década de 70. Neste meio, a Análise do Discurso, que se desenvolve independentemente

dos estudos literários, traz para o centro do debate as mais diversas práticas discursivas,

operando uma abertura nas ciências da linguagem que permitiu a confluência de áreas até

então consideradas distantes,

Em vez de julgar evidente a oposição entre o „profano‟ das ciências humanas e o

„sagrado‟ da literatura, a análise do discurso explora as múltiplas dimensões da

discursividade, buscando precisamente explicar a um só tempo a unidade e a

irredutível diversidade das manifestações do discurso. Ela não se contenta com a

mobilização de noções tomadas à Psicanálise, à Sociologia, à Antropologia, etc, para

aplicá-las a textos literários: não se trata de projetar um universo (as ciências

humanas) noutro (a literatura) que lhe seria estranho, mas de explorar o universo do

discurso. (MAINGUENEAU, 2006, p. 38)

Apesar de estarem sob a mesma orientação e repousarem sob o mesmo substrato (a

linguagem), os estudos linguístico-discursivos e os estudos literários, muitas vezes não se

encontram reciprocamente, ficando reservados aos estudos da Análise do Discurso, por

exemplo, recortes a partir dos gêneros mais cotidianos, como os propostos pela publicidade; e,

reservados aos estudos literários, trabalhos com narrativas consagradas, por exemplo.

Contudo, acredita-se que “[...] a AD se apresenta como mais uma possibilidade de abordar

textos literários com conceitos e ferramentas que, até, provem o contrário, servem para todo e

qualquer tipo de discurso e de texto, inclusive, evidentemente, o discurso e o texto literário.”

(MELLO, 2005, p. 14)

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Ao articular as noções de formação discursiva, de sujeito, de ethos discursivo,

amplamente trabalhadas pela Análise do Discurso, ao texto literário, especificamente ao texto

teatral, intenciona-se conciliar dois campos da pesquisa em Letras, que se situam em espaços

diferentes: a pesquisa em Literatura, considerada pelos seus teóricos e cultores como um tipo

de discursividade sublime, e a pesquisa em Linguística, mais afeita ao estudo do

funcionamento efetivo e prático da linguagem em um contexto social.

Trata-se, portanto, de discursos que são considerados diferentes, produzidos por

sujeitos diferentes com intenções diferentes. Mas, percebe-se que essa diferença é apenas

concebida e imaginada, e uma prova disso é que as novas teorias do discurso se propõem a

desmascarar essa „aura‟ do discurso literário, considerando-o como um discurso analisável

dentro da sua concepção de discurso mesmo.

De acordo com Maingueneau (2004, p.44), “[...] é surpreendente que ainda hoje, a

maior parte dos especialistas em Literatura ignore tudo o que é feito nos trabalhos sobre o

discurso e que a maior parte dos pesquisadores sobre o discurso evite levar em conta

categorizações advindas dos estudos literários.” A literatura é, assim, um campo vasto de

articulação entre as novas tendências que tomam o discurso como prática sócio-interativa.

Esta análise se firmará no texto da peça “O Rei da Vela”, excusando a representação

nesse momento, pois entende-se que o texto, pela sua não perecibilidade diante das mudanças

temporais e contextuais, articula, em seu aspecto de produção e produto, o discurso (ou os

discursos). Sabe-se, também, que a análise do texto teatral em sua encenação demanda

esforços teóricos e práticos não possíveis para este momento da pesquisa, uma vez que a peça

teve montagem significativa em 1968, pelo Grupo Oficina. Deste modo, entende-se o texto

teatral como discurso, de acordo com o que postula Maingueneau (2001, p.43),

De maneira mais ampla, considerar o fato literário como „discurso‟ é contestar o

caráter central desse ponto fixo, dessa origem sem comunicação com o exterior que

seria a instância criadora. Fazê-lo é renunciar ao fantasma da obra em si, em sua

dupla acepção de obra autárquica e de obra fundamental da consciência criadora; é

restituir as obras aos espaços que as tornam possíveis, onde elas são produzidas,

avaliadas, administradas. [...] A partir do momento em que não se pode separar a

instituição literária e a enunciação que configura um mundo, o discurso não se

encerra na interioridade de uma intenção, sendo em vez disso força de consolidação,

vetor de um posicionamento, construção progressiva, através do intertexto, de certa

identidade enunciativa e de um movimento de legitimação do próprio espaço de sua

enunciação.

Para proceder a análise do texto da peça, tornou-se necessário fixar a especificidade

teatral que se faz na confluência entre Literatura e prática dialogal. Para tanto, reservou-se

um momento da pesquisa no qual foi traçada a especificidade do texto e do discurso teatral. É

importante lembrar que a natureza deste objeto de pesquisa é linguístico-discursiva, pois

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entende-se que a representação configura-se como outro texto, situado ao nível da recepção.

Por isso, a especificidade do do objeto faz ultrapassar os limites de uma só área do

conhecimento.

O almejado com esta dissertação é, em última instância, lançar um olhar sobre o texto

oswaldiano sob a ótica dos estudos linguísticos. Na certeza de que é possível uma “inspeção

lingüística”, na medida em que esse texto – assim como qualquer outro texto – é a

materialização de um discurso (ou dos discursos) e como tal permite uma abordagem dos

elementos e mecanismos fundamentais de sua enunciação.

Cabe aqui lembrar que o interesse pela peça O Rei da Vela surgiu no período da

graduação quando, à época da monografia, descobriu-se o teatro oswaldiano, até certo ponto

imêmore pela crítica e desconhecido pelo grande público. Naquela ocasião, foi trabalhada a

chamada Trilogia da devoração (as três peças compostas por Oswald – “O rei da vela”, A

morta” e “O homem e o cavalo”) em uma análise mais interpretativa, pautada na crítica

proposta por Magaldi (2004). Tratava-se mais de uma leitura de quem acabava de descobrir o

novo, repleta de impressões e sensações.

Em um segundo momento, em um curso de especialização, adentrou-se um pouco

mais o teatro oswaldiano, agora somente com a peça “O Rei da Vela”, mobilizando conceitos

apreendidos no curso de teorias do texto, como vozes e polifonia em Bakhtin, na tentativa de

traçar a arena de vozes á qual se atribuía a peça. Tal embate passou a ser analisado com a

intenção de mostrar como essa peça podia ser considerada um palco múltiplo das diversas

instâncias enunciativas que ali se manifestavam.

Contudo, entende-se que o nível de aprofundamento atingido ainda não possibilitou

perceber nuanças constitutivas da peça que intrigavam e intrigam ainda, como os seguintes

pontos: como Abelardo I, personagem síntese e referente do título, mobiliza as diversas

instituições em que transita na construção de seu ethos? Há uma reflexão e uma refração das

representações sociais no discurso construído pelos personagens? Como as diversas vozes

representadas no texto mobilizam-se na construção do discurso (ideologicamente marcado,

como todo o discurso) da peça? Há um discurso na peça ou há uma multiplicidade de

discursos que se imbricam e se enveredam pelos meandros da linguagem?

Agora, mobilizam-se em busca de tais questionamentos, pois julga-se que a partir das

possíveis respostas será lançado um olhar diferenciado e, até certo ponto, responder-se-á

àqueles que se interessam pelo teatro oswaldiano. Será lançada, ainda que de maneira

incipiente, uma proposta de leitura sobre um texto profundamente marcado pela rejeição

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acadêmica, à época de sua publicação, e pelo obscurecimento de sua relevância para a

constituição do teatro moderno nesses últimos anos.

Estes argumentos se consolidam no presente trabalho, organizado da seguinte forma: o

primeiro capítulo ficará reservado ao conhecimento das condições de produção e de recepção

do texto “O Rei da Vela”, considerando também a recepção da encenação em 1967. Será

traçada uma breve caracterização da época e do autor – um percurso nas influências

oswaldianas e nas concepções de teatro vigente; o segundo capítulo será o espaço da

construção teórica do trabalho. Nele será localizada a Análise do Discurso, traçadas as

especificidades concernentes ao objeto e compostos os dispositivos de análise, com os

conceitos de sujeito, de discurso, de formação discursiva e de interdiscurso, além do conceito

de ethos e de vozes, que auxiliarão na construção dos efeitos de sentido da peça.

Em um terceiro momento, será realizada a analise da peça, compondo blocos de

análise a partir da seleção e organização metodológica proposta. Tentar-se-á, a partir da

percepção de recorrência temática (ou seja, repetição de grandes temas, a saber: instituição

familiar e luta de classes) e do personagem Abelardo I, dividir a peça em blocos analisáveis.

Este é o ponto em que a teoria será cotejada às análises, buscando discutir as indagações

formuladas anteriormente e confirmando ou não as hipóteses iniciais.

O quarto capítulo ficará reservado para a reflexão sobre as possibilidades de leitura

dessa peça a partir das análises que serão propostas no terceiro capítulo. É o momento de

relacionar a Análise do Discurso à análise do texto literário, mais detidamente do texto teatral,

com a intenção de compor um quadro de referências. Por fim, nas considerações finais, em

função da pesquisa feita, serão indicados os resultados do estudo.

Sabe-se que, pela própria natureza do trabalho, muitos ajustes podem surgir ao longo do

caminho. Ao explorar a peça, deparou-se cotidianamente com situações novas que podem

exigir de redirecionamentos, já que o texto teatral é múltiplo em suas dimensões, assim como

todos os textos. Tenta-se, assim, lançar um olhar para uma das formas de leitura do texto

oswaldiano, já que, diante da pesquisa, deparou-se com poucos trabalhos que ligam Análise

do Discurso e texto teatral, Linguística e Literatura.

Entendendo que a leitura de um texto e a revelação de suas especificidades, de suas

características, são uma construção progressiva. Buscar-se-á examinar as

condições/circunstâncias específicas que determinam a produção e a interpretação dos sujeitos

que participam do processo de enunciação, e a produção dos sentidos deles advindos.

Pretende-se, neste sentido, enriquecer os estudos sobre a peça, mas, também, sobre os sujeitos

plurais da linguagem, a partir de sua singularidade no texto dramático.

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2 O REI DA VELA

A obra é indissociável das instituições que a

tornam possível, não existe tragédia clássica ou epopéia

medieval fora de uma certa condição dos escritores na

sociedade, fora de certos lugares, de certos modos de

elaboração ou de circulação de textos.

(MAINGUENEAU, 2001, p. 19)

Considerada como um marco na escrita do teatro e da própria cultura nacional, “O Rei

da Vela” (1933-1937), de Oswald de Andrade, foi produzida em meio a um momento

histórico conturbado. A crise do café (1929), a Revolução de 1930 e a Constitucionalista

(1932) marcaram profundamente a sociedade, a economia e, por conseguinte, a cultura. Neste

sentido, Oswald de Andrade produz “O Rei da Vela”, uma obra que, como ele mesmo

pontuou, buscava revelar minuciosamente as engrenagens do Brasil.

O primeiro triênio do século XX foi marcado pelo desenvolvimento amplo das

lavouras cafeeiras e, consequentemente, pelo aumento de imigrantes trabalhadores no país.

Segundo Fausto (1978), de 1890 a 1930 chegaram ao Brasil, aproximadamente, 3.500.591

estrangeiros buscando melhores condições de vida no pós-Guerra, atraídos por subsídios à

imigração, sobretudo concedidos pelo governo paulista.

Essa realidade modificou o panorama das cidades que, com a crise do café e a queda

da Bolsa de Nova Yorque, em 1929, constituíram-se em palco de desemprego e desordem.

Há, neste mesmo período, em virtude da crise, só no estado de São Paulo, uma média de 70

greves em um ano, culminando com a formação de partidos operários e com as

movimentações de partidos de oposição.

Somam-se a essa realidade, a chamada “Revolução de 30”, um movimento armado,

liderado pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul, que culminou com o

golpe de Estado, o Golpe de 1930, que depôs o presidente da república Washington Luís, em

24 de outubro de 1930, impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes e pôs fim à

República Velha.

Interpretada como a revolução que findou com o predomínio das oligarquias no

cenário político brasileiro, a “Revolução de 30” conta com uma série de fatores conjunturais

que explicam esse dado histórico. No âmbito internacional, pode-se destacar a própria crise do

sistema capitalista e a ascensão de ideias socialistas e comunistas. Em solo nacional, a

modernização das economias só era imaginada com a intervenção de um Estado preocupado

em implementar um parque industrial autônomo e sustentador de sua própria economia. Em

contrapartida, o capitalismo vivia um momento de crise, provocado pelo colapso das

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especulações financeiras que, inclusive, provocaram o crash da Bolsa de Nova Iorque, em

1929.

Além disso, há ainda um dos mais importantes acontecimentos da história política

brasileira, ocorrido no Governo Provisório de Getúlio Vargas, a Revolução Constitucionalista

de 1932, desencadeada em São Paulo. Foram três meses de combate, que colocaram frente a

frente, nos campos de batalha, forças rebeldes e forças legalistas. A revolta paulista alertou o

governo de que era chegado o momento de pôr um fim ao caráter revolucionário do regime.

Foi o que ocorreu em maio do ano seguinte, quando finalmente se realizaram as eleições para

a Assembléia Nacional Constituinte, que iria preparar a Constituição de 1934.

Vê-se que a crise política e econômica do início do século XX marcou indelevelmente

a sociedade, pois suas consequências imediatas – desemprego, fome, êxodo rural – deixaram

profundas cicatrizes nas famílias brasileiras. Época de contradições: abundância e miséria,

superprodução e fome; milhares de sacas de café empilhadas, sem valor, sem destino;

milhares de trabalhadores desempregados, na miséria. A velha aristocracia rural entra em

decadência, e a nova burguesia industrial ascende na sociedade.

A década de 30 foi palco, também, de profundas transformações intelectuais, em que

as primeiras propostas de 22 começavam a ser amadurecidas. Apesar de não ter atingido o

rompimento total, a “Semana de Arte Moderna”, em 1922, abriu inúmeras possibilidades

criativas e fez com que o Modernismo começasse a ganhar visibilidade. Com isso, as artes

foram impulsionadas e a Literatura floresceu.

A chamada geração de 22 utilizou-se das ideias de choque e agressão, importantes aos

objetivos que movimentavam a sua produção literária e teórica, para trazer uma reordenação

reflexiva sobre seu tempo. Buscou ativar a inteligência brasileira pelo escândalo e pelo

deslocamento de vozes que, ainda hoje, são responsáveis por aberturas de perspectivas

formais (como o que aconteceu na Tropicália, em 70). Como afirma Helena (1983, p. 96), “A

Semana foi um reinado-bufão, e significava um veto radical ao conservadorismo artístico-

social e uma relativação de valores. Ela foi uma prática carnavalizante instituída contra o lado

doutor de uma sociedade enferma e mergulhada num marasmo cultural petrificante.” .

Assim, o rompimento com as soluções parnasianas e românticas fomentou a luta por

um língua nacional através da quebra de padrões prévios, herdados de um discurso importado.

Há a busca por um novo conceito de texto literário, gerado pelo intercâmbio entre a literatura

e as artes primordialmente iconográficas, mostrando que é possível outro dizer que não mais o

linear. “A Semana” marca uma nova perspectiva, oriunda de um período pós-guerra, aliada a

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estímulos culturais europeus que chegam com as imagens da máquina, da relação burguês-

proletário, da metrópole convulsa. Pode-se dizer, portant

o, que:

A ruptura de 22 não foi obra do acaso, mas ponto crítico de um longo processo de

diferenciação. A formação do grupo, a necessidade de reuniões amiudadas, a

urgência de um manifesto, o happening final, são sintomas todos do crescimento

firme de um modo de pensar que se sabe contrastado, mas que já sente no ar a

possibilidade de uma definição pública. A partir de Semana, os modernistas são um

ponto de vista dentro da história da cultura nacional. (BOSI, 1978, p. 315)

Ainda segundo Bosi (1978), havia a emergência do novo, com a virada do primeiro

pós-guerra, o que abriu circunstâncias em todos os sistemas culturais que mostravam

indicativos de saturação. Dá-se, portanto, de forma aguda em centros mais desenvolvidos,

como São Paulo, a oposição província/cidade. Uma ruptura que só foi possível pelo processo

social, político, econômico e cultural que fomentava uma “sede de contemporaneidade junto a

qual o resto da nação parecia ainda uma província do Parnaso.” (BOSI, 1978, p. 312)

Há, nesse período, uma intelectualidade ativa que percebe as transmutações de estilo

do período pós-naturalista e passa a incorporar, ao seu fazer literário, a desarticulação da

sintaxe, o verso desmanchado e a reinvenção do vocabulário, características de um período de

desordem e revolução.

Neste contexto criador, aliado às vanguardas oriundas da Europa (as quais serão

pontuadas mais adiante), Oswald de Andrade propõe o “Movimento Antropofágico” como

uma tentativa de síntese do pensamento modernista. Esse movimento, que nasce sob a égide

de um Manifesto (1928), tecia críticas à industrialização incipiente do país, ao mesmo tempo

em que buscava explicar e explorar a nacionalidade, a partir de suas raízes primeiras.

A antropofagia deve ser considerada uma linguagem literária ou estética de cunho

nacionalista. A poética antropofágica de Oswald de Andrade reivindica o

estabelecimento de um código literário específico que incorpore as categorias de

uma consciência arcaica tipicamente brasileira, surgida numa hipotética Idade de

Ouro. Essas categorias, que inspirariam a nova linguagem literária, incluem formas

do surreal e do irracional. Os escritores antropofágicos romperiam, assim, com o

discurso linear. A nova linguagem devoraria os modelos literários estrangeiros em

vez de imitá-los. Além disso, a linguagem antropofágica atacaria os sufocantes

códigos sociais, morais e literários, por meio da paródia e do sarcasmo. (GEORGE,

1985, p. 17)

É importante pontuar que a noção de antropofagia, como corrente estética, aparece na

literatura brasileira em 1928, com o projeto oswaldiano. Entretanto, como atitude estético-

cultural vê-se que ela percorre o próprio processo de constituição da literatura, caracterizada

pelo encontro de um projeto nativo que se viu oprimido pela cultura do colonizador, que com

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ele foi, pouco a pouco, dialetizando, até compor os matizados contornos do perfil político-

cultural.

Essa atitude antropofágica já era vista, segundo Helena (1983), em Gregório de Matos

e em Augusto dos Anjos; contudo passa a ser percebida como vertente transgressora da

cultura nas obras de Oswald de Andrade. O que se ressalta, independentemente, é a busca por

uma autonomia nacional, por um projeto literário genuinamente brasileiro, que se contrapõe à

atitude patriarcal colonizadora dominante no percurso histórico da literatura. É uma atitude de

caráter muito mais amplo, que se encontra enraizada na cultura do país, marcada pela

aceitação cultural estrangeira.

A própria dependência cultural brasileira que, assim como em todas as culturas

originadas de uma dominação, passa a reproduzir não só modelos, mas também atitudes

diante da arte, gerou uma literatura alterada e apoiada na figura do dominador e da

inferioridade nacional. Com esse quadro havia, portanto, a urgência de uma arte autônoma,

que buscasse refletir sobre as raízes primeiras.

A antropofagia configurar-se-ia, portanto, como a contrapartida abrasileirizante da

dependência cultural. A devoração da influência e do texto europeu não seria uma adaptação

mecânica e comprometedora, mas uma apropriação consciente de táticas sorvidas na própria

fonte da dominação, para, municiado de tal conhecimento, poder combatê-la e superá-la.

Como se afirma no próprio Manifesto, “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei

do antropófago.” (ANDRADE, 1983, p. 45)

Desse modo, o contato com as tendências estéticas provenientes, em sua maioria, da

Itália e da França, não leva as obras dos antropófagos (representados, sobretudo, na figura de

Oswald e Mário de Andrade) à perda de sua atitude e de seu caráter de brasilidade. Tal

contato, diferentemente, confere distanciamento crítico e autonomia importantes para que

possam redescobrir e recolocar o Brasil em seu lugar de origem.

A busca por novos procedimentos da linguagem, como a incorporação dos processos

de reduplicação verbal, de prefixação imprevista trazem a utilização de uma linguagem viva

que se coaduna com as propostas do Manifesto (“Tupi, or not tupi that is the question”.).

Há uma constante pesquisa que visa transformar a antropofagia em arma de

desrepressão contra um discurso conservador herdado, sobretudo, dos parnasianos e do

lirismo bem comportado. Por isso, funciona como um gesto de desmascaramento e de

deslocamento dos emblemas da cultura oficial para um signo novo, genuíno e brasileiro.

Neste movimento, Oswald de Andrade propunha uma nova linguagem literária,

rompendo com o discurso linear e agregando formas vanguardistas às novas ideias. A

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antropofagia, já idealizada no “Manifesto da poesia pau-brasil”, buscava uma revolução

artística nacionalista, baseada nas raízes mais primitivas. Contudo, com o “Manifesto

Antropofágico” a revolução cultural e social apresentava objetivos mais concretos e

permanentes. O voltar às origens seria revelar as verdadeiras bases da cultura e da sociedade,

como uma alegoria à resistência e ao subdesenvolvimento de uma sociedade livre de culpas e

não reprimida.

Diante do panorama de insegurança e de convulsão econômica, política e social,

também se mostram anacrônicas as linhas de interpretação da realidade brasileira,

embrionariamente questionadas pelo grupo que emergia em 1922, com a Semana de

Arte Moderna. Ao bacharelismo, à cultura estagnada, começava-se a contrapor uma

poesia Pau-Brasil, valorizadora de uma atividade nacional consciente e crítica,

determinando uma volta ao passado, em perspectiva estético-cultural, numa busca

das nossas verdadeiras raízes, promovendo um balanço e um questionamento do

período colonial e da literatura comprometida com os padrões de ideário estético

europeu. Dá-se adeus ao índio de tocheiro, ao brasileiro exótico, às próprias elites

nacionais e tenta-se palmilhar, num localismo frutífero, uma nova geografia cultural

que desse conta das raízes brasileiras e as redescobrisse. (HELENA 1983, p. 109)

Alicerçada nessa liberdade inovadora, ideal estético do Modernismo, a peça “O Rei da

Vela” seria a primeira aplicação da antropofagia à linguagem teatral. Razão pela qual ela “é a

mais política das obras antropofágicas. Seu emprego da metáfora como arma de ataque contra

as classes que se beneficiam com a dependência constitui um poderoso elemento de

conscientização” (GEORGE, 1985, p. 33). Considera-se, assim, que a peça em estudo é, além

de um marco na escrita teatral do Brasil, um marco também na luta de classes – propagada em

meados de 30 no Brasil – e na consolidação de uma literatura brasileira. Seria uma espécie de

manifesto ao povo, a fim de propor uma reflexão e, por conseguinte, uma atitude de mudança.

O autor concebe “O Rei da Vela” fundindo consciência política e vanguarda,

desvencilhando-se da forma clássica e unilateral de concepção teatral. A peça traz, em três

atos satíricos, inovações sensíveis no quadro da dramaturgia brasileira que, até aquele

momento, estava voltada para uma captação realista naturalista dos problemas sociais. A cena

brasileira, nesse período, era marcada por algumas montagens internacionais, em sua maioria,

italianas e francesas, gerando uma espécie de lacuna na produção local. As peças aqui

produzidas reduziam-se, em grande parte, aos mesmos temas, por isso que “[...] os

conhecedores da dramaturgia brasileira da década de 30 não podem entender como Oswald de

Andrade escreveu O Rei da Vela. A peça está fora de todos os padrões praticados entre nós

[...]” (MAGALDI, 1976, p. IV).

Com a início do século XX, o teatro brasileiro viveu um período de incerteza e dúvida

quanto à sua natureza. Com o início da Primeira Grande Guerra, as peças européias reduziram

suas montagens e o país vivenciou um período lacunar, tentando, pouco a pouco, preenchê-lo

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com obras nacionais. Coelho Neto (1864-1934), por exemplo, ao observar esse fato, iniciou-

se no teatro sem muito êxito, já que suas peças pecavam pelo preciosismo vocabular e

grandiloquente, além de serem descontextualizadas da realidade brasileira, ambientado-se em

castelos escoceses, por exemplo.

Após essa tentativa de teatro nacional, figurou, nos palcos cariocas, Paulo Barreto, que

atendia pelo pseudônimo de João do Rio (1881-1921). Ele estréia trazendo peças, como

“Eva”, “Que Pena Ser só Ladrão” e “Um Chá das Cinco”, todas repletas de ambientes

decadentes, de frases de efeito e de paradoxos que traziam para o teatro um vigor intimista

que lhe assegurava um lugar de destaque na história, apesar do pouco reconhecimento no

período.

Além de João do Rio, outros tentaram renovar a cena brasileira, como Cláudio de

Souza e Armando Gonzaga. Contudo, essas tentativas não obtiveram sucesso, já que os

autores ainda se prendiam a temas estrangeiros, sem redefinir o caráter nacional de se fazer

teatro. Alguns casos, como Renato Viana (1894-1953) – que contribuiu com experiências

iniciais de vanguarda no teatro nacional, indo de encontro ao atraso da época –, propuseram

renovações que vinham temperadas com as ideias vanguardistas vindas da Europa. Esse autor,

juntamente com outros intelectuais da época, fundou, em 1922, a chamada “Batalha da

Quimera” que era um “grupo que pretendia apresentar um teatro de síntese, em que luz e som

fossem aplicados como valores dramáticos, explorando a importância dos silêncios, dos

planos cênicos e da direção” (CACCIAGLIA, 1986, p. 102).

Além dessas iniciativas surge, em 1927, o Teatro de Brinquedos, de Álvaro Moreyra,

trazendo uma proposta teatral mais voltada para a popularização da arte. Sua renovação deu-

se, sobretudo, pela linguagem, que já começava a vislumbrar réplicas curtas e telegráficas. O

teatro assim era chamado porque os cenários simulavam caixas de brinquedos. “A intenção de

Álvaro Moreyra era tornar o teatro uma arte popular, que fizesse sorrir e ao mesmo tempo

pensar, e que no último ato abrisse um mundo de reflexões [...]” (CACCIAGLIA, 1986, p.

100)

É pertinente ressaltar que, fora estes casos excepcionais, o teatro brasileiro atravessava

um período complicado, com uma dramaturgia que se voltava insistentemente aos temas

europeus, mesclando comédias de costumes com valores não tão nacionais; a “cultura” de

deleite, produzida sob encomenda para uma platéia extasiada de riso e sem reflexão,

permanecia forte e parecia não querer “sucumbir” aos encantos desse teatro mais crítico e

reflexivo que despontava nos meandros modernistas.

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Para D‟Onofrio (2000), que coloca Oswald de Andrade ao lado de Becket, Ionesco e

Arrabal, na constituição do que viria a se chamar teatro do absurdo, as idiossincrasias do

momento isolado na produção teatral identificada em Oswald, consolidam-se pela liberdade

estética não só de construção da obra, mas, sobretudo, em relação aos recursos da linguagem

utilizados.

A função desses dramaturgos (trata-se do teatro do absurdo), sem pertencerem

propriamente a uma escola ou a um movimento artístico, é de representar no palco o

absurdo da existência humana, seus conflitos indissolúveis. Eles têm em comum a

consciência da crise dos valores tradicionais, que atinge até a linguagem, incapaz de

expressar a angústia do homem contemporâneo [...] É o teatro que quer superar o

estágio do diálogo tradicional, recorrendo a outros meios de expressão.

(D‟ONOFRIO, 2000, p. 487)

De forma resumida, a peça gira em torno de dois eixos temáticos básicos: o

desmascaramento do nacionalismo econômico brasileiro dos anos 30, no qual o casamento

entre Abelardo I e Heloísa, com ideais apenas econômicos, é o retrato máximo; e a relação

entre as lutas de classes, com a demarcação clara da supremacia capitalista e exploradora do

estrangeiro. A partir disso, é possível verificar que a estrutura da peça relaciona-se com

acontecimentos históricos da época, em São Paulo e no Rio de Janeiro, como a crise do café e

o processo de industrialização e “apresenta um panorama caleidoscópico da sociedade e das

relações de classe brasileiras num período de transformações abruptas” (GEROGE, 1985, p.

35)

Idealizada a partir de três atos satíricos, a peça não possui, por assim dizer, um

personagem central; contudo, a presença de Abelardo I se mostra como eixo. A organização

se dá através dos atos que são expostos em torno do seu cotidiano, sendo o primeiro ato

reservado para mostrar como Abelardo I opera a sua vida e os seus serviços, o segundo para

mostrar como seria a diversão para este personagem e, por fim, o terceiro, para revelar o

drama da morte para ele que sucumbe, vítima da própria sociedade que ajudou a erguer.

A “primeira” peça de Oswald de Andrade (ele já havia se lançado sem sucesso no

teatro com Guilherme de Almeida anos antes, mas a peça só foi publicada posteriormente),

apesar de estar alicerçada na total liberdade estética e no rompimento com os padrões

conhecidos, não ostenta o título de iniciadora do teatro moderno brasileiro pelo fato de não ter

sido montada em sua época. Este título ficou para “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues,

encenada em 1943. Contudo, muitos teóricos, como Sábato Magaldi, pontuam que a

mentalidade do período aliada à própria censura do governo não permitiriam essa encenação,

nem mesmo a entenderiam, por isso ela ficou reservada para 1967, com José Celso Martinez e

o Teatro Oficina.

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“O Rei da Vela” é um exemplo inaugural do teatro moderno. A partir da análise da

sociedade, o autor consegue desmistificá-la através da paródia e do blague, mostrando ao

público uma realidade conhecida, mas escondida. Como bem pontuou José Celso Martinez,

essa peça deve ter se fincado na premissa do “Esculhambo, logo existo”. De forma inovadora,

o autor insere o público na peça a fim de mantê-lo atento e pensante, sem cair no ilusionismo,

quebrando todos os paradigmas cênicos conhecidos e construindo uma teatralidade que, até

hoje, é considerada atual e inovadora.

Pode-se considerar a peça como um desfile de tipos: Abelardo I, o eixo da trama,

representa o industrial incipiente de um país subdesenvolvido e dá nome à peça; seu comércio

simboliza a fé cega de um país feudal que não enterra seus entes sem um exemplar de vela por

entre os dedos. Além disso, ele representa um agiota que sobrevive à custa dos juros alheios e

se vale das “leis”, que protegem o capital. Alegoricamente, Oswald premiou este personagem

com o mesmo nome de um famoso amante do século XVII, que na peça se encarrega de fazer

a paródia do amor perfeito com Heloisa de Lesbos. Em realidade, a escolha pela paródia pode

ser considerada como uma inauguração da verve irônica da peça, que intenta revelar o amor-

dinheiro, o amor-interesse, o amor lucro realidade do capitalismo.

Em Abelardo e Heloisa, medievais, vê-se a impossibilidade de o amor se construir, em

razão das barreiras sociais e culturais da época. Abelardo, professor, mais velho, apaixona-se

pela tutoriada Heloisa, filha de um influente clérigo. Da impossibilidade do amor surgem as

tragédias da morte de Abelardo e da condenação de Heloisa ao claustro.

No caso oswaldiano, vê-se que as barreiras passam a não existir, pois o valor do

dinheiro revela-se mais forte e vencedor. Mesmo de classes sociais distintas, como o Abelardo

e a Heloisa iniciais, aqueles vêem na união interesseira a possibilidade do lucro: para ele,

burguês ascendente, há uma posição aristocrática em jogo; para ela, o retorno à sua condição

de rica.

Abelardo I pode ser considerado um anti-herói, simbolizando a burguesia ascendente

que encontra no matrimônio com uma aristocrata falida o status quo e a tradição que o

dinheiro não compra. Através das falas de Abelardo I, evidencia-se que ele detém o dinheiro,

mas não o nome necessário para ser de fato aceito em uma sociedade como a do início do

século (“Para nós, homens adiantados que só conhecemos uma coisa fria, o valor do dinheiro,

comprar estes restos de brasão ainda é negócio, faz vista num país medieval como o

nosso o senhor sabe que São Paulo só tem dez famílias?” (ANDRADE, 2004, p. 44)

Para contracenar com Abelardo I, um Abelardo II. Esse personagem, de mesmo nome,

desempenha um importante papel na peça, pois é a partir dele que Abelardo, o I, irá sucumbir

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e morrer. A escolha do nome é sugestiva: na engrenagem capitalista o dinheiro passa de uma

mão para outra igual, do nome para o mesmo nome, “o dinheiro de Abelardo. O que troca de

mão individual, mas não sai da classe [...]” (ANDRADE, 2004, p. 100). Ou seja, ambos são

meros objetos que constituem o sistema, sem identidade e sem personalidade, a serviço da

roda viva que é o capitalismo. “Somos uma barricada de Abelardos! Um cai o outro substitui,

enquanto houver imperialismo e diferenças de classes.” (ANDRADE, 2004, p. 103)

Oswald de Andrade constrói seus quadros e pinta seus personagens sem demarcar-lhes

minuciosamente o perfil psicológico, de fato ele abandona esta caracterização romântica

construindo suas identidades através de seus próprios atos. A partir da justaposição, as cenas e

as atitudes se justificam por si mesmas, gerando um efeito cumulativo que define, aos poucos,

a personalidade de seus personagens.

Outra personagem importante para a trama é a noiva de Abelardo I, Heloísa de Lesbos.

O nome e a caracterização da moça levam a crer que o autor quis demarcar-lhe tendências

homossexuais; contudo, em nenhuma parte isso fica explícito. Heloísa é filha do Coronel

Belarmino, aristocrata falido pela crise do café e que vê, na mistura de classes, que é o

casamento da filha, uma saída para a família inteira. O casamento entre eles seria uma

metáfora da união entre essas classes sociais, entre o nome e o dinheiro; uma salvação para a

aristocracia frente às crises que a abalaram.

A família de Heloísa é caracterizada por inúmeros vícios e taras: Totó fruta-do-conde,

Joana ou João dos Divãs, irmã de Heloisa; Perdigoto, outro irmão de Heloisa, beberrão e

jogador, que pretende organizar uma milícia aramada dos latifundiários; D. Cesarina, mãe de

Heloisa que flerta com Abelardo I; D. Poloquinha, personagem símbolo da resistência

latifundiária, que não admite a união da sua honrada família a um alpinista social e que, às

escondidas, flerta também com Abelardo I. Através desses personagens, o autor mostra a

sordidez escondida por “detrás dos panos” da aristocracia, e como a aparência e o nome

repercutem, nessa sociedade que esconde suas fraquezas a todo custo.

Nesse variado quadro de personagens, o autor ainda se valeu da figura do escritor

Pinote (alguns teóricos, como Sábato Magaldi, acreditam ser este uma caricatura do escritor

Menotti Del Picchia). Esse personagem serviu para que fosse exposta a situação do intelectual

brasileiro que, para se manter, precisa se subjugar aos detentores do dinheiro, (“Imagina se

vocês que escrevem fossem independentes! Seria o dilúvio! A subversão total! O dinheiro só

é útil nas mãos dos que não têm talento. Vocês escritores, artistas, precisam ser mantidos pela

sociedade na mais dura e permanente miséria! Para servirem como bons lacaios, obedientes e

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prestimosos. É a vossa função social” (ANDRADE, 2004, p. 58) sentencia Abelardo I a

Pinote.

Para completar este quadro de personagens símbolos da sociedade da época, Oswald

de Andrade ainda se vale do norte-americano Mr. Jones, que é demarcado na peça como

sendo o detentor de todo o falso poder atribuído a Abelardo I. O americano é visto como o

patrão e o dono de um país arrasado e vendido pelas dívidas, (“Também já hipotecamos tudo

ao estrangeiro, até a paisagem! Era o país mais lindo do mundo. Não tem agora uma nuvem

desonerada [...] Não se esqueça que estamos num país semicolonial. Que depende do capital

estrangeiro”) (ANDRADE, 2004, p.109). Esta figura, que permanece in off durante toda a

peça, aparece ao final para proferir a sentença, “Oh! Good business!” (ANDRADE, 2004,

p.109) diante do casamento-negócio entre Heloisa e Abelardo, o II.

É interessante ressaltar que a identificação dos caracteres desses personagens não se dá

de forma explícita. Oswald repudiava qualquer psicologismo, além de ser avesso às teorias

realistas. Ao longo da peça isto fica claro pelas rubricas e pelos diálogos entre elas, já que “As

cenas se justificam por si mesmas e não estão umas em função das outras. Pela justaposição

de quadros aparentemente soltos Oswald consegue um efeito cumulativo que define aos

poucos as personalidades” (MAGALDI, 2004, p. 25)

São inúmeras as inovações que a peça trouxe para a escrita do teatro nacional, talvez,

ousa-se dizer, até hoje insuperáveis. Talvez um dos pontos importantes, que também será

visto em outras peças do autor, seja a utilização da técnica do “distanciamento” ou

“estranhamento”, proposto por Piscator, ou mais profundamente por Pirandello em sua teoria

“do teatro dentro o teatro”, e por Brecht, em 1928.

Nessa técnica, há a quebra quase que total do ilusionismo cênico, ou seja, o ator se

dirige ao público a fim de quebrar a ilusão, como pontua Abelardo I “[...] esta cena basta para

nos identificar perante o público. Não preciso mais falar [...]” (ANDARDE, 2004, p. 43)

mostrando à platéia que ela é parte do espetáculo e que, portanto, participa das ações, de

forma a mantê-la sempre lúcida, acordada, pensante e crítica. Magaldi (2004) aponta para o

fato de que Oswald possuía uma imensa intuição para os processos antiilusionistas, e que

talvez ele só tivesse ouvido falar dos precursores, a exemplo de Brecht, que até então eram

pouco conhecidos na França, e, consequentemente, no Brasil.

Oswald busca desmistificar inúmeros pontos em sua obra. Sua paródia e sua crítica se

mostram na desconstrução do amor romântico, símbolo da cena brasileira, onde o mocinho e a

mocinha, inevitavelmente, acabam bem no final; no retrato de uma família aristocrata

decadente que vê no casamento uma troca mercadológica, um negócio baseado no “eu lhe dou

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meu nome e você me dá seu dinheiro”, pintado sob o prisma da degeneração sexual; no

intelectual vendido que troca a sua pseudo-arte por uns tostões e pela proteção dos poderosos.

A primeira grande virtude de “O Rei da Vela” é expor a sociedade da época a seus

próprios defeitos. Como destaca Sábato Magaldi (2004): “O Rei da Vela representa a análise

furiosa feita por Oswald da realidade brasileira e das classes dominantes a que pertencia por

origem”. Ele desmascara o oportunismo e os procedimentos burgueses, sem esquecer que

estes haviam sido seus também.

Através de uma linguagem crua, sem hipocrisia ou convenção social, os personagens

expressam-se em liberdade, como se não houvesse nenhum tipo de camada repressora. Em

toda a peça, os exploradores são cientes da exploração, e por isso a fazem abertamente.

Os atos da peça são situados em três cenários diferentes. O primeiro ato, que mostra a

caracterização de Abelardo I e do seu “trabalho”, é encenado no escritório de usura dele, onde

são enumeradas relações que movem a sociedade burguesa. Lá também é possível observar

objetos que marcam a situação, como por exemplo: a jaula onde estão presos os devedores, o

ajudante Abelardo II vestido como domador de feras, um divã futurista e diversos prontuários

contendo rótulos de definição, como, suicídios, tangas, penhoras, malandros e outros.

O segundo ato, onde é possível observar a diversão dos personagens, passa-se em uma

ilha particular de Abelardo I, na Baía de Guanabara. Essa ilha é caracterizada com diversos

adjetivos fálicos, a fim de mostrar a degeneração da família de Heloisa, que se encontra

reunida à espera do americano. Já no terceiro ato da peça, vê-se a agonia da morte de toda

uma sociedade, ou seja, aqueles que a construíram passam agora a ser destruídos por ela

mesma. A roda viva do capitalismo, tão amada por Abelardo I, será a mesma que esmagará

sua realidade. É nesse momento que o “cadáver gangrenado”1 vem à tona para refletir e

sucumbir aos encantos de uma nova sociedade, que se erguia dos escombros burgueses.

Saber de onde Oswald retirou tanta originalidade é algo ainda muito discutido. O seu

filho, Nonê, em entrevista, afirmou que o pai construía suas imagens através de observações

dos diversos locais por onde esteve, mostrando certo teor auto biográfico em suas peças.

Além dessas experiências de vida, o autor também se valia de suas leituras, como por

exemplo, “Ubu Rei” de Alfred Jarry, escrita em 1896. Essa obra já mostrava indícios de um

experimentalismo, que só possível observar na contemporaneidade, junto com as vanguardas.

“Espanta observar que Oswald, em 1933, tivesse tamanha consciência de vanguarda, a partir

do vínculo intertextual com Ubu rei de Jarry [...]” (MAGALDI, 2004, p. 66)

1 Expressão utilizada por Oswald de Andrade em O Rei da Vela para caracterizar o Brasil. É uma tentativa de,

metaforicamente, sintetizar o estágio de atraso do Brasil.

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As vanguardas são outra fonte de inspiração e reflexão para o autor; a montagem dos

cenários e dos figurinos, segundo as rubricas, parece sair de um quadro expressionista; os

diálogos, repletos de recursos telegráficos, rápidos e sintéticos “aparecem com frequência nas

sínteses futuristas italianas, possível modelo para Oswald” (MAGALDI, 2004, p. 83). Foi a

obra teatral de Oswald de Andrade que refletiu com maior impacto as transformações de sua

personalidade artística e sua capacidade de experimentação, exprimindo com vitalidade o

compromisso que estabelecia com o mundo e com a sociedade em que vivia.

No quadro que segue, será explorado, com mais intensidade, o quadro de influências

das vanguardas a fim de construir as condições de emergência e de produção da obra de forma

mais rica.

2.1 AS VANGUARDAS EUROPÉIAS E O QUADRO DE INFLUÊNCIAS DA PEÇA

Como já pontuado, o início do século XX, no mundo, é marcado por profundas

mudanças de ordem política, social e econômica. A 1ª Grande Guerra, a Revolução Russa e a

2ª Grande Guerra, dentre outros momentos, marcam profundamente a estrutura mundial,

instalando incerteza e revolução, deflagrando uma nova forma de pensar e agir.

Diante desses processos mundiais, o Brasil sofre influências que culminam na 1ª

Greve Geral de São Paulo e na formação de núcleos anarquistas que, impactados pela

Revolução socialista e pela 1ª Guerra, iniciam movimentos nunca antes presenciados no país.

A cidade de São Paulo integra-se à vida moderna, “e adentra no século XX não mais como

„capital dos fazendeiros‟, mas como um núcleo transformado pelos efeitos da

industrialização” (FABRIS, 1994, p. 24).

Confrontando tantas mudanças, era natural que o sentimento de dúvida penetrasse, de

todas as formas, nos espíritos e gerasse inquietações em todos os aspectos. A arte, como parte

constituinte das sociedades, exerceu seu papel de deflagradora dessas inquietações,

transpostas para um momento denominado “vanguarda”.

As vanguardas surgem na Europa como uma tentativa de renovação dos valores

estéticos passados, pois a partir do desenvolvimento cientifico e tecnológico, provados no

início do século, surgem novos ideais filosóficos e sociológicos, que questionam os valores

passadistas. Essas novas tendências, que procuram “ordenar” o futuro, darão origem a uma

pluralidade de investigações nas artes. “Os pioneiros da vanguarda postularam uma estética

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revolucionária sob o signo da ruptura e da emancipação ligada ao mesmo tempo aos mais

altos valores sociais utópicos e à esperança”. (SUBIRATS, 1991, p. 25).

Diante do turbilhão da vida moderna, as vanguardas refletem as sociedades e a

instabilidade em se viver nos grandes centros. Muitas discussões sobre os valores passados e a

vida moderna permeiam esse momento, que também se preocupa em traçar os rumos do novo

nacionalismo e da nova arte.

Surge uma arte de choque, de ruptura, ávida por mudanças, que encontra berço nas

mais diversas expressões e correntes: “Futurismo” (1909), “Expressionismo” (1910),

“Cubismo” (1913), “Dadaísmo” (1916), “Espiritonovismo” (1918) e “Surrealismo” (1924),

dentre outras, mostram a desorganização do universo artístico da época, ao mesmo tempo em

que lutam pela destruição do passado, no afã de se construir algo novo. Das influências diretas

e arquivadas na obra teatral de Oswald de Andrade, destacam-se o Futurismo, o

Cubofuturismo e o Expressionismo com mais força.

O Futurismo, tendo à frente Fillipo Tommaso Marinetti (1876-1944), caracteriza-se

por ser uma corrente de forte teor de ruptura. Seus conceitos de renovação artística e literária

estão apresentados no “Manifesto do Futurismo” (Paris, 20 fev. 1909) e no “Manifesto

técnico da Literatura Futurista” em que o autor enfatiza a quebra total com os valores

tradicionais, de uma forma heróica e dinâmica, para se erguer sob os escombros do passado

uma arte genuinamente nova e livre de influências.

Essa vanguarda enfatiza o culto à máquina, que nesse momento já era parte

constituinte da vida cotidiana, e a quebra da sintaxe, propondo liberdade às palavras. Como

pontua Helena (1996, p. 17), o Futurismo pretendia “Ser uma nova forma de arte e ação, uma

lei de higiene mental, um movimento que pretende ser antitradicional, renovador, otimista,

heróico, dinâmico e que se ergue sobre as ruínas do passadismo.”

Por ser uma das primeiras vanguardas de ruptura real dos padrões, o Futurismo foi

alvo de muitas críticas, contudo, é inegável seu valor para consolidação de uma nova forma de

arte. Os modernistas, sobretudo os da primeira fase ou fase heróica, são o exemplo claro desta

afirmação, já que o Futurismo exerceu uma influência de ordem técnica: na valorização do

versilibrismo, da imaginação sem fios e das palavras em liberdade.

Apesar da publicação do Manifesto Futurista ter chegado ao Brasil simultaneamente à

publicação francesa, ele só alcançou certa projeção e conhecimento público em 1912, quando

Oswald de Andrade retorna de sua viagem à Europa com um exemplar, literalmente, embaixo

do braço. Oswald não só tomou conhecimento desse manifesto como também se utilizou dos

conceitos para a construção de suas obras e dos seus manifestos.

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Outro fato interessante merece destaque: no Manifesto de 1924, Marinetti cita os

principais futuristas do mundo e os que mais contribuíram para a propagação das ideias e,

quando se refere à América do Sul, faz alusão a um certo Prado e a um D‟Andrade, que não

há precisão de quem se trata, mas que os estudiosos sustentam como sendo Oswald.

A influência dessa vanguarda foi sentida em vários momentos do modernismo,

sobretudo, quando se propôs o direito de pesquisa constante e a mudança de atitude cultural e

crítica. Isso significou um grande avanço para um país, que insistia em recorrer aos valores

passados, não valorizando o presente que se instalava de forma tão radical.

Acerca do Cubofuturismo (ou futurismo russo) é interessante analisar que sua

ascensão estava diretamente ligada à perda do prestígio do Simbolismo em toda a Europa, em

fins do século XIX, já que as ideias deste último estavam vinculadas ao misticismo, à

abstração e ao artificialismo. Em oposição definitiva a esse movimento, surge um grupo de

poetas russos, dentre os quais Burliuk, Kruchenik, Khlebnikov e Maiákovski, que começa a

articular as propostas do cubismo francês às propostas do futurismo italiano, formando um

novo ideário.

Em 1912, o grupo assina a autoria do polêmico manifesto “Bofetada ao gosto do

público”, tornando públicas as ideias do Cubofuturismo. Nesse importante documento, ficou

expresso todo o repúdio à literatura mística e moralizante do século XIX, e a exaltação da

palavra pura através de uma linguagem transracional, que seria a observação da palavra como

personagem e motivo em todo o seu aspecto sonoro.

Dentre as inúmeras considerações e propostas do cubofuturismo, talvez a mais

importante seja a valorização do teatro como forma de literatura mais acessível às massas.

Maiákovski será o responsável em externar este preceito. O seu teatro, sobretudo o “Mistério

Bufo”, revestia-se de uma forte carga de reflexão, fazendo com que a ideia de “teatro deleite”

sucumbisse à crítica reflexiva que revestia suas peças e forçava o público a pensar. É

inevitável mencionar que o teatro posterior a ele, e até mesmo o atual, são tributários diretos

desse avanço significativo da arte. Não é inverossímil afirmar que o teatro engajado

politicamente tenha vindo junto a essa vanguarda e ao futurismo italiano, já que é nessa época

que ele se torna veículo de propagação dos ideais revolucionários, instalando uma nova forma

de ver a arte.

Com a sua impaciência teórica, com a sua particular avidez do novo e da novidade,

ele (Oswald) foi, dos nossos modernistas aquele que mais intimamente comungou

do espírito inquieto das vanguardas européias. Deste ponto de vista, que interessa à

história literária, Oswald trouxe, para o nosso Modernismo, então em andamento,

uma experiência por participação – de todo diferente da experiência de Mário de

Andrade – no clima de atrito e desafio, na atmosfera de rebeldia e renovação.

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Ninguém mais que Oswald acentuou, e às vezes até exageradamente, as íntimas

relações entre a atividade do grupo de 22 e as correntes renovadoras da época.

(NUNES, 1979, p. 62)

Analisando as influências sofridas por Oswald de Andrade, na produção das suas

peças (O Rei da vela, A morta, O homem e o cavalo), Lúcia Helena (1985) traça uma

construção de referências, que agora será transformada em quadro. Lembra-se que a citada

autora não se detém em nenhuma peça especificamente, mas traça um panorama geral que

pode ser considerado caracterizador do teatro oswaldiano. Dessa forma, tentar-se-á aliar as

influências elencadas por tal autora à obra “O Rei da vela”2, objeto desta análise.

INFLUÊNCIAS

CARACTERÍSTICAS

COMO PODE SER PERCEBIDO NA PEÇA O REI DA VELA

Teatro futurista

Nova concepção do espaço

cênico e contestação do teatro

burguês

O primeiro ato é ambientado em um escritório de usura em que

coexistem um divã futurista, um retrato da Gioconda, uma

secretária Luis XV e a personagem Abelardo II (alter-ego de

Abelardo I) em trajes completos de domador de circo. Tais

referências podem ser consideradas alegóricas ao suscitarem

estranheza ao público que dirige seu foco para as inúmeras

incongruências transparecidas. Além disso, observamos, em vários

momentos, o tom panfletário assumido por Oswald de Andrade

contra o teatro burguês praticado na época e considerado por ele

como “lacaio” (p.58), como revela o trecho “uma literatura

bestificante. Iludindo as coitadinhas sobre a vida. Transferindo as

soluções da existência para as soluções „no livro‟ ou „no teatro‟.”

(p.57)

Teatro

expressionista Personagem estereotipado

Para revelar as características da sociedade burguesa e de suas

relações pessoais, Oswald atribui a alguns personagens traços de

desvios sexuais que, juntos, formam uma miscelânea de tipos “que

se compreendem e relevam em uma velha família” (p.43). Assim,

Heloísa (a noiva de Abelardo) recebe o sobrenome “Lesbos”, a

irmã mais nova é conhecida por João dos Divãs e o outro irmão

como Totó Fruta-do-conde, em clara referência às posições

sexuais assumidas. Além disso, a velha tia é conhecida por D.

Poloca numa referência óbvia às prostitutas estrangeiras chamadas

de polacas.

Teatro dadaísta Espetáculo provocação

A única fala atribuída a Mr. Jones se dá na morte de Abelardo I e

na assunção de Abelardo II ao posto antes ocupado pelo patrão.

Nessa troca de papéis, reveladora do continuísmo a que estava

submetida toda uma conjuntura social, Mr Jones reserva-se a

dizer: “Oh, good business!” (p.109). Este trecho pode ser encarado

como um vértice da provocação oswaldiana ao passo que

escancara a engrenagem de subjugamento e dependência que nos

liga ao capital estrangeiro. Como um toque final, Oswald traz à

tona a essência de O Rei da Vela: o continuísmo paralisante, fruto

de alianças e jogos de interesses. “Somos uma barricada de

Abelardos! Um cai, outro o substitui, enquanto houver

imperialismo e diferença de classes...” (p.103)

Continua

2 Todos os trechos e referências à obra O Rei da vela foram retirados de: ANDRADE, Oswald. O Rei da vela.

São Paulo: Globo, 2004.

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Continuação do quadro 1

Teatro surrealista

Liberação da linguagem

O arsenal de recursos da linguagem de que dispõe Oswald vão

desde o uso da ironia e da paródia, passando pela alusão e pela

intertextualidade, até a construção de personagens circenses e

farsescos, o que mostra uma rica exploração e extrapolação dos

dispositivos da própria escrita.

Maiákovski Revolução cênica e intervenção

do público

“Mas esta cena basta para nos identificar perante o público.”

(p.43), “Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro

Brasileiro.” (p.50), “Vou atear fogo às vestes (longa hesitação.

Oferece o revólver ao Ponto e fala com ele) Por favor, seu

Cirineu... vê se afasta de mim esse fósforo.” (p.99) são alguns

exemplos de como o conceito de encenação foi revisto por Oswald

ao quebrar o ilusionismo comum aos espetáculos. Ao colocar o

diálogo com o público, há a quebra do pacto mágico entre público

e atores, enriquecendo a composição teatral com novos recursos

até mesmo narrativos.

Piscator Teatro proletário Assumidamente, Oswald faz de seu teatro um libelo em favor do

Socialismo. Toda a peça analisada traz esse tom através das

revelações que faz acerca das relações que são estabelecidas entre

as personagens, dos costumes e da nítida falência do sistema

capitalista (sobretudo internacional, representado na figura de Mr.

Jones) que mantém sob seu jugo poderosos (Abelardo I) e

trabalhadores, mas que irá sucumbir frente ao proletariado, como

revela o trecho “Será a revolução social...os que dormem nas

soleiras das portas se levantarão e virão aqui.” (p.105) Quadro 1: Influências sofridas por Oswald de Andrade. Fonte: Elaboração da autora a partir de Helena, 1985.

Percebe-se que a “a concepção tradicional do teatro é derrubada.” (HELENA, 1985,

p.109) e dá lugar a um texto repleto de experimentação. Apesar de o texto dramático não

receber grande foco durante o florescer das ideias modernistas, Oswald de Andrade

encarregou-se de preencher tal lacuna atrelando as vanguardas européias e as novas

concepções de teatro existentes a uma construção do teatro nacional.

Nesta amálgama da problemática social brasileira municiada por experimentos

vanguardistas, o teatro de Oswald veio revolucionar o painel da dramaturgia

brasileira, estagnada numa linha ora melodramática herdeira dos dramalhões

românticos, ora naturalista e voltada à patologia social [...] Vê-se o quanto vai se

distinguir a produção oswaldiana do que encontra em derredor, o seu contexto mais

próximo, antecipando nossa modernidade cênica. (HELENA, 1985, p.113)

Dessa forma, a construção da identidade cênica oswaldiana vai se delineando na

confluência das inúmeras perspectivas artísticas que, de certo modo, chegaram até ele Assim

contornam-se as características chaves da peça “O Rei da vela” e das outras produções

cênicas de Oswald: um desejo de apresentar não só os questionamentos das relações inter-

humanas, mas também de trazer à tona os determinantes sociais dessas relações, a fim de,

com propósitos muitas vezes didáticos, revelar ao público a necessidade de refletir e, por

conseguinte, mudar a realidade social que o cerca.

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Contudo, é necessário lembrar que, apesar de as vanguardas instalarem um contexto

criativo na produção cultural da época, o Brasil parecia não estar completamente preparado

para as rupturas estéticas provenientes da Europa, de forma que a publicação efetiva da peça

revelará profundas resistências, como será mostrado no tópico seguinte.

2.2 SOBRE A RECEPÇÃO E A ENCENAÇÃO DA PEÇA

Apesar de passados 70 anos da publicação, a peça “O Rei da vela” ainda insufla

discussões, no meio acadêmico, sobre aspectos de sua produção, recepção e encenação.

Mesmo não sendo o foco do trabalho neste momento, julga-se importante entender, dentre

outros aspectos, os mecanismos que fizeram com que o texto não fosse encenado no momento

de sua publicação (1937) e ficasse à espera dos palcos por 30 anos, já que só fora montado em

1968, pelo Grupo Oficina.

Parece que há um contraste entre o silêncio gerado à época da publicação da peça e a

repercussão fruto da encenação, ocorrida em São Paulo anos depois. A primeira situação pode

ser facilmente explicada pela própria conjuntura política do período em que o texto veio à

tona, já que trazia críticas cáusticas à forma de composição da sociedade. Como pontua

Pereira (1995, p.170), “À primeira vista, o que impediu o texto de Oswald de Andrade de se

transformar no primeiro espetáculo reconhecidamente moderno no teatro brasileiro foi a

abrangência e o tom com que fazia a crítica política.”

Além disso, o campo intelectual brasileiro, as tradições teatrais a que estavam

submetidos e os padrões de gostos ligados, sobretudo, às montagens estrangeiras, agravaram a

dificuldade de aceitação da peça. De acordo, ainda, com o teórico citado (PEREIRA, 1995, p.

170),

A publicação de O Rei da Vela ocorreu no mesmo ano da decretação do Estado

Novo, o que tornava quase certa a censura pelos mecanismos implantados

oficialmente, caso a peça fosse encenada, e dificultava até mesmo a boa acolhida da

crítica especializada ao texto da peça. No entanto, além disso, tornava-se improvável

uma recepção favorável ao texto pela intelectualidade, porque já se delineara a

adesão clara ou velada de um contingente expressivo de produtores de cultura ao

projeto modernizador autoritário que se estava delineando como ideologia oficial

desde a Revolução de 30. Oswald de Andrade seria encarado, sem dúvida, como

uma voz discordante do regime. Uma voz que obviamente não poderia ser divulgada

por um canal de tanto poder de penetração como detinha o teatro, naquela época, na

capital do país.

Havia certa naturalidade, entre os escritores de teatro da época, em publicar as peças

ou no idioma francês ou com temas que se ligassem à Europa. Salvo alguns exemplos como

“Adão, Eva e outros membros da família”, de Álvaro Moreyra, escrita em 1925, que se

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propunha a fazer uma incipiente crítica aos padrões e costumes da época. As demais peças

restringiam-se a temas menos polêmicos. Como agravante da repulsa à peça oswaldiana,

percebe-se, entre os modernistas participantes da Semana de 22, uma espécie de ojeriza ao

texto dramático. Tal situação lançou os olhos da crítica à prosa e à poesia, negligenciando as

poucas peças imbuídas com o espírito de 22, como “O Rei da Vela”.

Desse modo, a acolhida ao texto se pautava em um processo de silenciamento da voz,

que se levantava aos brados em uma platéia catatônica pelos processos de exploração, dos

quais, em certa medida, era vítima. Essa voz dissonante foi relegada a um plano secundário e

a peça encontrou os palcos trinta e um anos após sua publicação, através do Grupo Oficina,

liderado por José Celso Martinez. Neste sentido, Sábato Magaldi (2004, p. 170) revela que “O

teatro de Oswald estava adiantado, em relação ao estágio que atravessava o palco brasileiro.

“O Rei da Vela” assustava a pacata ideologia vigente e outros textos que fugiam às

possibilidades práticas das companhias. Daí a sua rica solidão em uma época sem grandes

peças nacionais.”

Somente em 1968, “O Rei da Vela” mereceu uma montagem digna, pelo grupo de

teatro Oficina, liderado por José Celso Martinez Corrêa. Em “O rei da vela: manifesto do

Oficina” (2004), o diretor da companhia afirma que “O Oficina procurava um texto para

inauguração de sua nova casa de espetáculos que ao mesmo tempo inaugurasse a

comunicação ao público de toda uma nova visão do teatro e da realidade brasileira [...] E o

„aqui e agora‟ foi encontrado em 1933 n‟O Rei da Vela de Oswald de Andrade” (p. 21). “O

Rei da Vela” ficou sendo, para o Oficina, a síntese inimaginável da realidade brasileira que,

imersa em monotonia e em falta de criatividade, desmorona o país semicolonial; as

concepções teatrais de Oswald estavam em sintonia com as do grupo, que levou, até as

últimas consequências, a montagem ousada, permitindo que obra ressurgisse ainda forte e

contundente.

Como a peça,

apresentava-se, de modo, até certo ponto esquemático, uma análise dos mecanismos

de exploração econômica no Brasil, elaborando através do texto dramático, um

modelo das relações sociais que garantiram a manutenção do país sob a tutela e o

poder decisório dos grandes centros metropolitanos. (PEREIRA, 1995, p.166)

Não foi difícil para o Grupo Oficina, ao ler a peça, encontrar consonância ao período

histórico que atravessavam.

A metáfora antropofágica é revivida em 1967 com a montagem de O Rei da Vela. A

metáfora permanece, em grande parte, intacta em seus objetivos estéticos e

nacionalistas. O diretor José Celso percebe que a linguagem da antropofagia é uma

resposta apropriada às circunstâncias culturais, políticas e econômicas de 1967, pois

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acha que há um paralelo com os anos 30. Essa convicção pretende ser em si uma

afronta aos dirigente políticos da Brasil, que renovaram a repressão do Estado Novo.

E, também, uma afronta às classes médias urbanas que achavam ter o Brasil

alcançado o progresso. A montagem de O Rei da Vela tem o nítido intento de refutar

essa idéia. O Rei constitui também uma versão atualizada da devoração

antropofágica dos mais recentes modelos teatrais estrangeiros que então

predominavam no teatro brasileiro. Finalmente, o Rei renova a metáfora

antropofágica ao intentar lançar as bases de um modo brasileiro de fazer teatro, com

a incorporação de formas culturais populares e folclóricas. (GEORGE, 1985, p.18)

A tônica da montagem centrou-se, assim, na retratação do imobilismo da história

nacional, pois, apesar de passados trinta anos de sua publicação, a sua atualidade era

espantosa, em meio a um período obscuro para a construção da nacionalidade: a ditadura

militar (e sua censura).

A montagem de O Rei da Vela surgiu em 1967 como uma assunção tropical do

Brasil – um grito de revolta contra a estagnação da nossa cultura, um desabafo para

não identificar-se com o „imenso cadáver cangrenado‟ que lhe parecia ser o País. O

Oficina encenou O Rei da vela para protestar contra a realidade de um Brasil de

1967 idêntico ao de 1937. (MAGALDI, 2004, p. 177)

As peças de Oswald, apesar da enorme importância para a consolidação do teatro

moderno, no Brasil, não foram enfocadas com tanta dedicação pelas companhias teatrais da

época. Esse fato, como mencionado anteriormente, deu-se por inúmeros motivos, dentre eles:

o amadorismo de algumas companhias nacionais, que eram formadas, em sua maioria, por

atores estrangeiros, faltando o comprometimento com o próprio teatro brasileiro; o fato de os

palcos serem dominados mais por atores do que por diretores-montadores; a censura da época,

que brecava qualquer tipo de manifestação artística mais vital; e, a própria impossibilidade de

dar à montagem tudo aquilo que era exigido pelas rubricas do autor. “Tudo isso não cabia no

teatro da época, apto somente para exprimir os sentimentos brejeiros luso-brasileiros. Era

preciso reinventar o teatro. E Oswald reinventou” (CORREA, 2004, p. 3)

José Celso buscou sublinhar as orientações do texto, desde o cenário até o figurino,

entremeando as cenas com músicas de Vila-Lobos e Carlos Gomes, entre outros. Os três atos

da peça foram encenados em três diferentes estilos: o circo, a revista e a ópera, que ampliara

ao máximo a mordacidade viva do texto. A primeira apresentação se deu em meados de 1968,

causando grande impacto no público, que momentaneamente o definiu como “pornográfico e

ridículo”, diferindo daqueles que consideraram a montagem “arrojada e cheia de realidade”. O

que se sabe de fato é que ninguém permaneceu indiferente à encenação.

A companhia viajou o mundo com a peça, obtendo grande êxito. Foi à França,

Alemanha e Itália, auto-afirmando a dramaturgia brasileira como uma das mais profícuas da

época; relembrando o poder de destruição (ou reconstrução?) do modernismo de anos atrás.

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“O humor grotesco, o sentido da paródia, o uso de formas feitas, de teatro no teatro,

literatura na literatura, faz do texto uma colagem do Brasil de 30. Que permanece

uma colagem ainda mais violenta do Brasil de trinta anos depois, pois acresce a

denúncia da permanência e da velhice destes mesmos e eternos personagens.

(CORREA, 2004, p. 25)

É imprescindível relembrar que a primeira encenação se deu nos anos de chumbo da

ditadura e que por isso a peça sofreu muitos cortes. Dessa forma, um pouco do teor corrosivo

de Oswald foi perdido, deixando muitas vezes o espectador com a sensação de lacuna entre as

ações.

Depois do Ato Institucional nº 5, “O Rei da Vela” foi interditada; contudo, mediante

um acordo com a “censura”, a apresentação foi liberada desde que fossem cortadas partes do

texto, óbvio que as alterações visavam sempre atenuar a carga política da peça, deturpando o

sentido.

O crítico Bernard Dort, em um ensaio intitulado “Uma comédia em transe” sentenciou,

após observar a encenação do Oficina, em Nancy, que O rei da vela é um espetáculo que

desconcerta, que irrita, que vocifera uma realidade que continua a viver, a reviver, até a

exaustão . Trinta anos após a escritura da peça, o Oficina não a utiliza para levantar bandeira

em favor das lutas de classes. Ao contrário, quer mostrar face a face o mesmo cadáver

gangrenado do passado, só que mais podre.

Nós somos muito subdesenvolvidos para reconhecer a genialidade da obra de

Oswald. Nosso ufanismo vai mais facilmente para a badalação do óbvio, sem risco,

do que para a descoberta de algo que mostre a realidade de nossa cara verdadeira.

[...] Sua peça está surpreendentemente dentro da estética mais moderna do teatro e

da arte atual. A superteatralidade, a superação mesmo do racionalismo brechitiano

através de uma arte teatral síntese de todas as artes e não artes, circo, show, teatro de

revista, etc. (MAGALDI, 2003, p.25)

Sem dúvidas, a execução da peça encontrou inúmeros entraves para consolidar-se. A

própria concepção inovadora, que exigia do grupo recursos cênicos ainda não vivenciados e

aceitos pela intelectualidade, e a censura, fizeram da montagem do Oficina um marco do

teatro nacional. Assim, “O Rei da Vela”, de Oswald, guardada em livro por mais de trinta de

anos, não pôde exercer a influência imediata e direta oriunda dos palcos. A espera pelo

momento de encenação faz da dramaturgia de Oswald um monumento isolado na história do

teatro brasileiro, surgida cedo demais para que formasse raízes duradouras. Seu vanguardismo

a distanciou do que se produzia e do que se produziu nos últimos anos no país.

Diante de as questões expostas, é possível afirmar que as condições de produção da

peça esboçam um período conturbado, mas, ao mesmo tempo, rico em experimentação e

tentativa. Com isso, constitui-se a revolução necessária para que Oswald projetasse uma peça

símbolo das dicotomias do primeiro vintênio do século XX.

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Posteriormente, quando do aprofundamento da análise da peça (capítulo 03), serão

retomados alguns destes pontos, já que não é possível traçar a constituição do discurso da

peça, apartada dos aspectos históricos que a envolvem. No capítulo que segue, terá início o

esboço da teoria que servirá de suporte a este trabalho, a AD, remontando sua conjuração até

chegar aos dispositivos de análise necessários à proposta.

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3 BREVE HISTÓRICO DA ANÁLISE DO DISCURSO

“Quem vê de perto não vê.

É necessário horizonte, distância,

perspectiva” (Oswald de Andrade)

O termo Linguística foi usado pela primeira vez em meados do século XIX, para

distinguir as novas diretrizes para o estudo da linguagem, em contraposição ao enfoque

filológico mais tradicional, a Linguística Histórica, cuja preocupação principal era a evolução

histórica das línguas, tal como se manifestavam nos textos escritos e no contexto literário e

cultural associado.

Nesse novo enfoque, do final do século XIX, ao invés de se estudar a linguagem para

fazer filosofia ou para fazer crítica literária, como nos séculos anteriores, passa-se a estudar a

linguagem pensando-se um „fazer ciência‟. A área a que se deu mais atenção foi à Linguística

Comparativa, com a qual se pretendia estabelecer a relação genética entre línguas.

No entanto, apesar desse período constituir um grande avanço para a Linguística, o

início do século XX é reconhecidamente o marco da mudança de paradigmas. Atribui-se a

Saussure a instauração dos “fundamentos” da Linguística e do “corte epistemológico”

efetivado em seu interior: a emergência da autonomia de um objeto e o advento da

positividade científica de uma teoria e de um método. Sai de cena a Linguística Histórica e

com ela a diacronia; entra a Linguística Descritiva trazendo consigo a sincronia.

Quando concebe sua teoria linguística, Saussure intenta construir um pensamento

científico-experimental. Para ele, era necessário analisar a vida de um idioma já constituído,

situando a natureza do signo linguístico através das conhecidas dicotomias – língua/ fala,

diacronia/ sincronia, significante/ significado, paradigma/ sintagma –, num plano mais

excludente do que includente. Ele concebia o signo linguístico e a própria língua como

estáticos e abstratos, de forma que não receberiam influência do sujeito, encarado como ideal.

Durante muito tempo, tal visão serviu de base para as concepções em relação à

linguagem e à língua, esta última vista como um subproduto do pensamento, existente única e

exclusivamente através dele. A apreensão da língua, como parte estruturante de um sistema

fechado em si mesmo, vigorará com o crescimento do método estruturalista.

Ao falar do Estruturalismo é necessário compreender que, dentre os inúmeros

programas de pensamentos originários da França, ele foi o que obteve maior repercussão entre

os anos 50-60. Tal desenvolvimento encontra um conjunto múltiplo de razões, dentre as quais

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se destacam a ruptura com os modelos de concepção científica vigentes na época e a proposta

de 'englobamento' de aspectos da realidade e da cultura, que até então haviam sido renegados

pelo academicismo predominante em toda a Europa.

O programa de pensamento proposto pelo Estruturalismo é decisivo para a

constituição das ciências humanas, já que sugere uma reflexão crítica sobre o próprio modo de

se fazer ciência. Se antes a concepção histórico-comparativa predominava no meio acadêmico

e orientava a produção científica em uma tendência à temporalidade ativa. Com o advento do

pensamento estrutural houve a possibilidade de se encarar o objeto dentro das suas próprias

condições de constituição, a partir de um “método rigoroso que podia ocasionar esperanças a

respeito de certos progressos decisivos no rumo da ciência” (DOSSE, 1993, p. 13). Esse

momento se constitui pela indagação da completitude do método histórico, que se via

questionado diante das novas feições adquiridas nas ciências humanas. Assim, a ruptura com

tal modelo se vê no centro da discussão e da ascensão do Estruturalismo.

Além disso, percebe-se, na proposta estruturalista, “uma certa” dose de auto-aversão,

de rejeição à cultura ocidental tradicional, “de apetite de modernismo em busca de novos

modelos” (DOSSE, 1993, p.13), o que culminou na opção pela contra-cultura. Coube ao

Estruturalismo abarcar saberes que até então se viam proscritos das instituições canônicas,

materializando-se pela bandeira dos modernos em sua luta contra os antigos e pela inserção

do que se considerava marginal, recalcado da cultura.

É inegável que a abertura dada pelos estruturalistas do início do século foi importante

para a constituição dos estudos linguísticos, sobretudo nas incipientes inquietações teóricas

que envolviam o discurso. No entanto, não houve uma reflexão e uma revisão de conceitos

mais ampliadas (permanece o pensamento de língua fechada em si mesma, de estrutura

isolada), fato que só se dará a partir da década de 50 quando, diante da necessidade de

aprofundamento teórico e do „esgotamento‟ das conceituações vigentes, os estudiosos

começam a encarar a língua como elemento constitutivo de um processo mais amplo.

Dessa forma, percebe-se que a primeira metade do século XX foi marcada pela

aplicação, às línguas, do conceito de estrutura, o que provocou a produção de muitos trabalhos

sob variados recortes, e fatalmente a descoberta de pontos impossíveis de dar conta por esse

modelo. Assim, o Estruturalismo saussuriano acumulou “excluídos” e entreabriu vertentes

que não podia explorar. Tal acúmulo, provavelmente, levou o seu modelo à „crise‟ e a

segunda metade do século XX explodiu em “novas teorias” ou, ao menos, novas abordagens

para o estudo da língua.

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Nesse momento, torna-se evidente que uma Linguística de cunho imanentista que se

limita a um estudo interno da língua não pode dar conta da relação desta mesma língua com o

social e o ideológico. Como revela Mussalin (2001, p.105), “Uma Linguística saussureana,

uma Linguística da língua, não seria suficiente; só uma teoria do discurso, concebido como

lugar teórico para o qual convergem componentes linguísticos e socioloideológicos, poderia

acolher esse projeto.”.

Há, nesse período, condições de produção (a própria conjuntura política e cultural da

Europa da segunda metade do século XX e as discussões acadêmicas sobre os limites da

ciência no mundo) que reclamam a emergência de uma disciplina capaz de abarcar a

quantidade de produções discursivas da época, atrelando a isso um olhar analítico e, ao

mesmo tempo, interpretativo. Teóricos, envolvidos com debates que colocavam em conexão

teses marxistas, psicanalíticas e epistemológicas passam a constituir um terreno capaz de

fecundar uma teoria, uma metodologia e uma análise para os discursos.

Surgem os trabalhos de Harris (Discourse analysis, 1952), os de R. Jakobson e E.

Benveniste. Eles marcam o início de uma reflexão que passa a conceber a língua em uma

concepção discursivizada. Apesar de marcadamente diferentes, já que o primeiro autor

estendeu procedimentos já consolidados da Linguística Distribucional americana aos

enunciados, encarando o texto em sua forma mais redutora na busca pelo sentido em suas

unidades linguísticas; e, os segundos abarcaram uma perspectiva que deu ênfase ao sujeito

construtor de enunciados dentro da enunciação, ressaltando a relação entre o locutor, o

enunciado e o mundo exterior, tais pesquisas foram crucias e ajudaram a apontar para a

diferença de perspectiva que vai marcar uma postura teórica de uma Análise do Discurso de

linha mais americana, de outra mais européia.

A linha anglo-saxã (ou americana) se preocupava em estabelecer um contato maior

com a Sociologia, enquanto que a Análise do Discurso de linha francesa voltava-se para a

relação do discurso com a História. A primeira enfocava a intenção dos sujeitos numa

interação verbal/oral, já a segunda propunha uma análise dos textos escritos sob a perspectiva

de uma relação ideológica.

O que diferencia a Análise do Discurso de origem francesa da Análise do Discurso

anglo-saxã, ou comumente chamada de americana, é que esta última considera a

intenção dos sujeitos numa interação verbal como um dos pilares que a sustenta,

enquanto a Análise do Discurso francesa não considera como determinante essa

intenção do sujeito; considera que esses sujeitos são condicionados por uma

determinação ideológica que predetermina o que poderão ou não dizer em

determinadas conjunturas histórico-sociais. (MUSSALIN, 2001, p.113)

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Dessa forma, o enfoque assumido pela tendência linguística, que brota na França na

década de 60, encara a língua e a linguagem como lugares de conflito, de confronto

ideológico, que não podem ser compreendidas fora da sociedade, já que os processos

constituintes dessa mesma língua e dessa mesma linguagem são histórico-sociais. Esta última

vertente, em uma visão mais ampla, será intitulada de Análise do Discurso (AD) e começará a

“abrir um campo de questões no interior da própria Lingüística, operando um sensível

deslocamento de terreno na área, sobretudo nos conceitos de língua, historicidade e sujeito,

deixados à margem pelas correntes em voga na época.” (FERREIRA, 2005, p.14).

A vertente francesa buscará condições de consolidação em um tripé, formado pela

Linguística, pelo Marxismo e pela Psicanálise. Na vertente linguística, busca os conceitos de

enunciação, palmilhados por Benveniste; de discurso, por Foucault, além de propor uma

revisão ao método saussureano e ao Estruturalismo. Em Althusser, traz a questão dos

Aparelhos Ideológicos do Estado e do materialismo histórico, de vertente marxista; na

Psicanálise, busca a noção de sujeito clivado entre consciente e inconsciente.

Em outras palavras, a Linguística trouxe ao projeto de gênese da AD a materialidade

da língua para, a partir daí, construir o lugar privilegiado em que a ideologia se manifesta, o

discurso. Althusser e sua teoria dos Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) postula que as

ideologias têm existência material e que, portanto, não devem ser analisadas enquanto ideias,

mas como um conjunto de práticas que reproduzem as relações de força e de produção,

constituindo o que comumente se chama de materialismo histórico. Já a Psicanálise, através

de Lacan, traz a ênfase na constituição do conceito de sujeito clivado, cindido, divido, mas

estruturado a partir da linguagem, interpelado por um exterior e por um inconsciente.

É difícil precisar quando se deu essa mudança de paradigma teórico na Europa (de

língua/fala para língua/ discurso), já que não há um ato fundador, especificamente, nem um

pai declarado, mas pode-se afirmar que as movimentações de maio de 68, na França, que

deram ao sujeito um lugar mais destacado, fizeram com que o excesso do formalismo

linguístico da época fosse revisto e, até mesmo, questionado.

Além disso, atribui-se a emergência da AD às práticas escolares de leitura e

interpretação de textos, consideradas como insuficientes. Diante desses argumentos, Dubois,

linguista, e Pechêux, filósofo marxista, envolvidos em movimentos sociais, política, luta de

classes, marxismo e História configuram os primeiros passos do que se chamaria AD.

Neste contexto, Pêcheux, apesar de não ter rotulado tais pesquisas, torna-se o

responsável pela elaboração teórica e pela territorialização da disciplina, sendo considerado o

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mais representativo teórico da AD, para alguns, e o próprio iniciador da linha francesa de

Análise do Discurso, conforme afirma Maldidier (2003).

Ao propor o deslocamento dos estudos, antes focados na língua abstrata, o teórico

francês precisou definir os campos de atuação dessa disciplina e os pressupostos básicos de

uma teoria que batizou de Teoria do Discurso. Alicerçado em uma formação filosófica,

Pêcheux desenvolve questões críticas sobre a própria Linguística e postula que, para haver um

olhar crítico sobre os processos discursivos é necessário operar uma ruptura epistemológica,

que coloca o discurso em um espaço onde intervêm questões relativas à ideologia e ao

discurso.

Para tanto, recorreu aos conceitos de discurso e formação discursiva, palmilhados por

Foucault; ideologia, tributários de Althusser; além de redefinir o conceito de língua – antes

considerada em transparência, agora vista sob a opacidade do discurso –, e o conceito de

sujeito. Nestes pontos, as reflexões de Pêcheux se mostram de suma importância, já que o

discurso, por exemplo, passa a ser encarado como um ponto de articulação entre o ideológico

e o linguístico, um mediador necessário entre o homem, a realidade e os outros homens.

Em “Semântica e Discurso” (1975), livro síntese das ideias iniciais e ponderações

pechetianas sobre o discurso, Pêcheux lança, através do pensamento filosófico, as bases para a

constituição da sua teoria. Focado na especificidade do discurso, o teórico proporá, nesse

livro, uma reflexão sobre os conceitos de formação discursiva, de ideologia, de sujeito (ou no

dizer de Pêcheux, de forma-sujeito e interpelação do sujeito) e, em uma primeira reflexão,

trará o conceito de interdiscurso, hoje percebido como nodal, no processo de compreensão da

Análise do Discurso.

A partir de uma „revisitação‟ às bases da Linguística (Pêcheux se revela arguto leitor

de Saussure) e ao pensamento filosófico, busca ordenar os conceitos para, enfim, propor uma

teoria materialista do discurso, que se ancorava na tese althusseriana de interpelação do

indivíduo em sujeito do discurso, através da ideologia. Para tanto, ele propõe um

redimensionamento da própria noção de língua vigente na época. Para ele,

O sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o

revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento

dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode

concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso: a

língua se apresenta, assim, como a base comum de processos discursivos

diferenciados. (PÊCHEUX, 1997, p. 91)

As noções trazidas pela Linguística, segundo o autor, vão além de seu campo de

atuação, sendo possível aliá-las aos conceitos filosóficos e psicanalíticos, em voga na época,

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em busca de uma teoria menos subjetiva acerca da linguagem. Criar o instrumental para isso

será o foco de Pêcheux, durante sua trajetória como filósofo-linguísta. Assim, ele repensa a

noção de sujeito encarada como „sempre-já-dado‟ e não reflexivo, em contraponto com a

noção de ideologia, mostrando como esse mesmo sujeito se constitui através de um processo

de autonomia ilusória, no interior de formação discursiva à qual se filia, sendo sempre

atravessado pelo discurso do outro, pelo interdiscurso que constitui o seu próprio discurso.

O estudo entre as condições de produção dos discursos e seus processos de

constituição ganhou destaque através de análises que buscavam, sobretudo, os textos políticos

da época. Caberia à AD “trabalhar seu objeto (o discurso) inscrevendo-o na relação da língua

com a história, buscando na materialidade lingüística as marcas de contradições ideológicas.”

(BRANDÃO, 2004, p. 50), marcando, desta forma, a linguagem como lugar de conflito, de

confronto, que não pode ser estudada nem concebida fora da sociedade, já que seus processos

de constituição são histórico-sociais.

Nesse momento, há uma retomada de alguns conceitos propostos por Bakhtin, em

meados de 30, que já traziam o símbolo da ruptura. A chegada dos escritos de Bakhtin à

Europa, por questões de tradução somente foi possível muitos anos depois (no fim da década

de 60), o que, de certa forma, trouxe à tona pesquisas realizadas há mais de trinta anos, mas

que continham um teor de novidade assombroso para os pesquisadores da época.

Apesar de não ser um retorno metodológico, o que o teórico russo havia proposto há

alguns anos em suas obras “Problemas da Poética de Dostoievski” (1997) e em “Marxismo e

filosofia da linguagem” (1986), principalmente, parecia estar de acordo como o que as novas

perspectivas teóricas propunham: um olhar diferenciado sobre o discurso. Nesse contexto, ao

afirmar que a especificidade das ciências humanas reside no fato de ter como objeto o

discurso, muitas vezes materializado em textos, Bakhtin empreende um caminho contrário ao

dos estudos linguísticos praticados até então. Estudos que desconsideravam o caráter social e

ideológico das produções escritas, por exemplo.

Ressaltando o caráter dialógico da linguagem, que, para ele, seria princípio

constituinte do sujeito e, por conseguinte, da condição de existência do sentido e do discurso,

ele parte do pressuposto que todo discurso reside em uma relação com outro discurso. As

inúmeras contribuições que a AD foi buscar em Bakhtin (longe de afirmar que Bakhtin é AD

ou que a AD se constrói em Bakhtin) não se limitam a esse conceito. Analisando,

inicialmente, o discurso literário, ele propõe conceitos como polifonia, vozes, além de retomar

a questão do gênero sob outra ótica, a discursiva. Desta forma, o terreno aberto por Pêcheux,

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outrora, é vastamente enriquecido, possibilitando uma feição de descoberta e elaboração

constante, dentro do campo da AD.

Buscando uma interface com as áreas afins, a AD, com todos os seus conceitos e

formulações teóricas, configura-se como uma disciplina de entremeio, que busca dar subsídios

consistentes àqueles que intentam apreender as várias nuances do texto e do discurso e suas

relações com o social e o ideológico. Ela serviu de redirecionamento a outros campos do

saber que também se debruçavam sob a linguagem, mas não a percebiam em suas

especificidades, e hoje é uma disciplina institucionalizada e abalizada pelos teóricos. Como

pontua Charaudeau (2006, p.46), a existência de uma disciplina como a AD é um fenômeno

importante já que é “primeira vez na história, (que) a totalidade dos enunciados de uma

sociedade, apreendida na multiplicidade de seus gêneros, é convocada a se tornar objeto de

estudo.”

Assim, esses novos estudos postulam que é através do discurso que o sujeito se

constitui e se revela, pois “a palavra é o signo ideológico por excelência.” (BAKHTIN, 1986,

p. 16) e é a partir dela que se pode identificar as formações ideológicas/discursivas dentro de

uma situação de enunciação. Passa-se a arquitetar o sujeito, não como um indivíduo que fala,

mas que expressa o falar de uma instituição ou de uma ideologia. Desta forma, “Todo dizer é

ideologicamente marcado. É na língua que a ideologia se materializa [...] O sentido não existe

em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-

histórico em que as palavras são produzidas.” (ORLANDI, 2006, p. 38-42)

A ideia de que nenhuma palavra é propriedade de alguém, já que traz em si a

perspectiva de outra voz, abriu diversas possibilidades de entendimento, sobretudo na

Literatura, que há muito conhece o poder da palavra, perfazendo uma espécie de ritual, em

que um sujeito se enuncia, partilhando com os interlocutores, um mundo de possibilidades.

Seria o que se pode chamar de ação da linguagem, com a veiculação de representações, de

conhecimentos outros, tais como os de gerações anteriores e/ou contemporâneas, em interface

com o espaço discursivo do interlocutor. Mostra-se, aí, o fato de que a compreensão é sempre

dialógica, pois é imprescindível a presença do outro para entender e interferir no sentido que

se construirá.

Através de sua preocupação com o método e de suas discussões sobre o acontecimento

e sobre o estatuto do sujeito na linguagem, Pêcheux trouxe contribuições fundamentais para a

constituição da AD. Ao conceber o discurso como uma instância histórica e social, ele rompe

com o paradigma da estrutura, demonstrando que a linguagem, enquanto discurso, não pode

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ser compreendida como uma unidade significativa, mas como um efeito de sentido entre os

sujeitos que a utilizam.

Ao analista, cabe localizar os recursos de combinação e transmissão dos discursos,

observando de que forma a confluência significa a interpretação do discurso de outrem, a

manipulação da argumentação autoritária ou a subversão desse discurso. Buscam-se as

relações entre as condições de produção de um discurso e ele mesmo, analisando as condições

de emergência de um efeito de sentido e não de outro, no interior de um discurso e de um

interdiscurso.

Para entender como a AD chegou a tais formulações e se construiu neste constante

repensar de suas bases, cabe agora traçar o caminho de consolidação da disciplina (item 2.1) e

traçar também as características mais importantes dos conceitos básicos da AD (item 2.2).

3.1 ETAPAS DE CONSOLIDAÇÃO DA ANÁLISE DO DISCURSO

Em uma tentativa de problematizar e, ao mesmo tempo consolidar, os pressupostos

básicos da disciplina a qual aqui se filia, faz-se necessário analisar sucintamente as três fases

por que passou a Análise do Discurso. O primeiro momento, intitulado de Análise Automática

do Discurso (AAD-69) caracteriza-se pela noção de “maquinaria discursiva”, em que o sujeito

acredita ser o produtor de seu discurso, mas é apenas assujeitado às formas discursivas

circulantes e produtoras de seu dizer.

Nessa 1ª fase (AD1), os analistas exploram discursos mais estabilizados (manifestos,

por exemplo) que eram produzidos dentro de condições mais fechadas e, portanto, menos

polêmicos. Havia um grau maior de silenciamento de outros discursos e, por isso mesmo, uma

variação de sentido menor. Para se construir uma análise, nessa época, cabia ao analista seguir

etapas bem definidas, a saber: seleção de um corpus fechado (um texto pertencente a

determinado partido político, por exemplo); análise linguística das sequências; construção de

blocos de identidade a partir das relações linguísticas percebidas; e, por fim, comparação

desses resultados, tentando mostrar que são pertencentes a uma mesma estrutura (ou, uma

mesma máquina discursiva).

O segundo momento da AD é marcado pela revisão do conceito de maquinaria, a

partir da incorporação do conceito de formação discursiva e de interdiscurso (conceitos que

serão detalhados mais adiante). A partir disso, o foco de estudo passa a ser as relações

empreendidas entre as chamadas máquinas discursivas definidas na primeira fase. Na AD2 o

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conceito de formação discursiva (FD) é responsável pela mudança na concepção do objeto da

AD; se, antes a análise, valia-se de discursos mais estabilizados (AD1), nesta fase os discursos

produzidos em situação menos homogênea eram objetos de análise (ex. debates). O papel do

analista seria descrever as regras de formação de cada FD no interior do discurso.

O terceiro momento (AD3), de retomada e reconceituação para a AD, é marcado pelas

noções de interdiscurso, já cotejadas, mas não aprofundadas na segunda fase e de

heterogeneidade constitutiva do discurso, desconstruindo a noção de maquinaria fechada

inevitavelmente. Na chamada AD3, a estrutura de uma FD se concretiza a partir de um

interdiscurso. Adota-se a perspectiva segundo a qual os diversos discursos que atravessam

uma FD não se constituem independentes uns dos outros. Por isso, o procedimento por etapas,

com ordem fixa, explode definitivamente. A partir dessas pesquisas é possível afirmar que,

hoje, há o primado do interdiscurso sobre o discurso.

Nesta esteira, entende-se que um trabalho que manuseie o texto teatral encontra terreno

fecundo nas relações interdiscursivas que o movem e o constituem, enquanto objeto

discursivo, como propõe a 3ª fase da disciplina

3.2 ALGUNS CONCEITOS CHAVES PARA A ANÁLISE DO DISCURSO

3.2.1 Sujeito

Algumas tendências marcaram, inicialmente, os estudos da linguagem no século XX,

bem como o conceito de sujeito. Uma primeira, que, a partir da retomada de estudos

postulados por Platão, considerava a língua como representação. A essa noção filiava-se, por

exemplo, à escola de Saussure, considerando a língua e, por sua vez, o sujeito, como abstratos

e ideais.

Uma segunda tendência toma o domínio da subjetividade para compor a noção de

sujeito e língua. A este quadro filia-se Benveniste e seus trabalhos sobre a enunciação. Para

esse teórico, a língua seria apenas uma possibilidade que ganha corpo no ato de enunciação.

Contudo, tal noção passa a ser considerada restritiva, quando se percebe que ela se fecha ao

ato enunciativo, ou seja, sujeito seria apenas aquele que diz „eu‟. Redutor, tal postulado não

poderia abarcar muito da natureza enunciativa, já que há uma complexidade de discursos

produzidos por um sujeito que não se outorga o „eu‟. Para Benveniste, o sujeito seria „eu‟

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homogêneo que interage com um „tu‟ opondo-se ambos a não pessoa (ele). Haveria assim um

equilíbrio entre o „eu‟ e o „tu‟.

Uma noção posterior – e é nela que se firmará a noção de sujeito para a AD – situaria

a constituição do sujeito em relação ao discurso do outro, já que passa a ser situado num

tempo e orientado socialmente. É nesse ponto que se constitui a noção de interdiscurso, com

Pêcheux. Para o francês, pensar em uma teoria do discurso seria colocar a questão da

constituição do indivíduo em sujeito a partir da interpelação da ideologia e dos outros

discursos que se encontram com esse sujeito. Para ele, é a ideologia que

fornece as evidências pelas quais „todo mundo sabe‟ o que é um soldado, um

operário, [...] evidências que fazem com que uma palavra ou enunciado „queiram

dizer o que realmente dizem‟ e que mascarem, assim, sob „a transparência da

linguagem‟, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos

enunciados. (PÊCHEUX , 1997, p.160)

Nesse momento, a noção de sujeito ego, uno, é contraposta à noção de um sujeito que

se faz na intersecção do discurso do outro. Chega-se ao descentramento do sujeito falante.

Sujeito que tem a ilusão de ser dono do seu discurso, quando na verdade é assujeitado às

condições de surgimento do seu discurso e da sua formação discursiva (autonomia ilusória). O

sujeito seria um efeito de linguagem, já que seria atravessado pelo seu avesso, o inconsciente.

A interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação

(do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é

constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do

sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma

[...] enquanto pré-construído e processo de sustentação) que constituem, no discurso

do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-escritos no discurso do próprio

sujeito. (op. cit. p.163)

A ideia básica da AD seria postular que o sentido e o sujeito não são dados a priori,

são constituídos no discurso. Resultado da relação com a “linguagem” e a “história”, o sujeito

do discurso não é totalmente livre, nem totalmente determinado por mecanismos exteriores. O

sujeito é constituído a partir da relação com o outro, estabelecendo, assim, uma relação ativa

no interior de uma FD.

Para a Análise do discurso, é essa concepção de sujeito – que vai perdendo a

polaridade ora centrada no eu ora centrada no tu e se enriquecendo com uma relação

dinâmica entre identidade e alteridade – que vai ocupar o centro de suas

preocupações atuais. Para ela, o centro não está nem no eu nem no tu, mas no espaço

discursivo criado entre ambos. O sujeito só constrói sua identidade na interação com

o outro. E o espaço dessa interação é o texto. (BRANDÃO, 2004, p. 76)

Para a AD, é um sujeito assujeitado (submetido ao esquecimento, segundo Pêcheux) à

medida em que seu discurso é predeterminado pela sua formação discursiva e pela sua

herança histórica. Tal conceito, assim, modifica-se a partir das fases da AD: 1ª fase –

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assujeitado à maquinaria, ou seja, submetido totalmente a regras específicas que determinam e

delimitam o seu discurso; 2ª fase – desempenhando diferentes papéis através da posição que

ocupa, ou seja, o sujeito se constitui a partir do lugar que se enuncia; na 3ª fase o sujeito

aparece como clivado, heterogêneo, dividido, construído no espaço entre o eu e o tu. Nas três

concepções que constituíram o conceito de sujeito para a AD podemos perceber que em todas

elas o sujeito aparece como não sendo dono de seu dizer e senhor de sua vontade, e sim

construído no interior do próprio discurso.

Contudo, há uma espécie de contradição no interior desse mesmo sujeito: ele não é

nem totalmente livre nem totalmente submetido, pois ao mesmo tempo em que é interpelado

pela ideologia, ele ocupa, na formação discursiva que o determina, com sua história particular,

um lugar que é essencialmente seu. Constituir-se-ia, nesse ponto, a suposta consagração da

„liberdade‟ do sujeito falante, que é interpelado pela ideologia, até certo ponto manipulado por

ela, mas tem a ilusão de ser dono de suas palavras.

A essa concepção de sujeito, Pêcheux denomina forma-sujeito, que seria o sujeito

interpelado pela ideologia. Concebe, assim, o conceito de ilusão discursiva, a partir das

postulações sobre o efeito do esquecimento que regeriam a seleção e as formas de dizer, no

interior de uma formação discursiva. Nomeia de esquecimento nº 1, o esquecimento de

natureza inconsciente e ideológica, que traria ao sujeito a ilusão de ser dono de seu dizer. Por

esse esquecimento tem-se a ilusão de ser a origem do que se diz quando na verdade retomam-

se discursos pré-existentes.

De esquecimento nº 2 designa a seleção das formas de dizer, no interior de uma

determinada FD, sendo, portanto, da ordem da enunciação e de natureza linguística-

ideológica. Esse esquecimento lança a impressão de realidade do pensamento, ou seja, há uma

ilusão referencial que faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem

e o mundo, de tal modo a pensar que o que se diz só pode ser dito com aquelas palavras e não

outras.

Em resumo,

Sob o termo de esquecimento que Michel Pêcheux arranca de sua acepção

psicológica, tenta pensar a ilusão constitutiva do efeito sujeito, isto é, a ilusão para o

sujeito em estar na fonte do sentido [...] A zona de esquecimento nº1 é por definição

inacessível ao sujeito. O esquecimento nº2 designa a zona em que o sujeito

enunciador se move, em que ele constitui seu enunciado colocando as fronteiras

entre o dito e o rejeitado, o não-dito. Enquanto o segundo esquecimento remete aos

mecanismos enunciativos analisáveis na superfície do discurso, o primeiro deve ser

posto em relação com as famílias parafrásticas constitutivas dos efeitos de sentido.

(MALDIDIER, 2003, p.42)

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Através de tais contribuições, o sujeito para Análise do Discurso perde o seu centro e

passa a se caracterizar pela dispersão (no dizer de Foucault), por um discurso heterogêneo que

incorpora, que assume diferentes vozes sociais e que se constitui nesse jogo de força,

instalado em seu discurso, no interior de determinada FD e na relação com a história e a

ideologia.

3.2.2 Discurso

Para organizar a especificidade do termo discurso, dentro da Análise do Discurso,

parte-se do pressuposto de Maingueneau (1997): a noção de discurso não é estável e,

acrescenta-se, nem fechada.

Foucault, em “A ordem do discurso”, inicia seu texto afirmando que diante da palavra

discurso sempre houve certo temor de definições e que “parece que o pensamento ocidental

tomou cuidado para que o discurso ocupasse o menor lugar possível entre o pensamento e a

palavra.” (2007, p. 46). Remontando à questão do discurso, ele diz que “há uma inquietação

diante do que é discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita.” (2007, p.

8), revelando que tratar desse conjunto de conceitos imbricados é tarefa árdua. Para o filósofo,

deve-se “restituir ao discurso seu caráter de acontecimento.” (2007, p. 51), ou seja, considerá-

lo como analisa Michel Pêcheux (2006) em “O discurso: estrutura ou acontecimento?”

Pêcheux parte da indagação do título para traçar um caminho, na Análise do Discurso,

sobre o seu próprio objeto. Ele vai da Escolástica aristotélica à Ontologia marxista, a fim de

traçar a natureza do discurso dentro de uma teoria materialista do sentido, concluindo que

mais do que realidade estruturada, do que proposição estabilizada, o discurso é um

acontecimento localizado em um espaço. Ele parte da análise do enunciado “On a gagné”,

das eleições francesas de 1981, para mostrar que no interior da AD há uma tensão que

considera o discurso como realidade pronunciada, como acontecimento e como uma questão

filosófica analisada no interior da própria estrutura.

Partindo também do “Dicionário de Análise do Discurso” (2006, p. 170), de

Charaudeau e Maingueneau, discurso pode ser definido como uma forma de apreender a

linguagem. Tais teóricos propõem características básicas que podem ajudar no desenho desta

definição: a) “o discurso supõe uma organização transfrástica”, ou seja, ele mobiliza

estruturas de outras ordens para se constituir. Como diz Pêcheux (1997), ele é um

acontecimento muito maior do que sua própria estrutura supõe, de modo que sua constituição

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se dá pela conjuração de situações outras, como uma experiência a cada situação que não dura

muito; b) “o discurso é orientado”, isto é, desenvolve-se no tempo; c) “o discurso é uma

forma de ação” a partir do que a teoria dos atos de fala propõe; d) “o discurso é interativo”,

ele busca o seu outro, uma instância, presente ou não, a qual se dirige e se constrói o próprio

discurso; e) “o discurso é contextualizado”, não assumindo contexto como moldura, mas

como um todo situado dentro de uma condição de produção; f) “o discurso é assumido e

regido por normas” por sua própria natureza social; e, por fim, g) “o discurso é assumido em

um interdiscurso”, ou seja, os sentidos são adquiridos em um universo de outros discursos.

Das características assumidas na obra citada, a última merece um destaque maior,

dentro do quadro da Análise do Discurso hoje. É através da noção de interdiscurso, ponto

nodal da teoria pechetiana e da constituição da Análise do Discurso, que o conceito de

discurso relaciona-se com a materialização da ideologia, da história e do sujeito. O discurso se

constituiria na interseção com outros discursos e, em uma retomada às ideias de Foucault,

pela dispersão constituinte das relações discursivas. Para compreender essa dispersão, cabe a

noção de formação discursiva que, de certa forma, regularizaria o discurso. O discurso seria o

ponto de articulação entre os fenômenos linguísticos e os processos ideológicos. Alicerçada

no materialismo histórico, a AD, portanto, considera o discurso como uma materialização da

ideologia.

3.2.3 Formação discursiva

De maneira mais ampla, pode-se considerar uma formação discursiva como a

manifestação, no discurso, de uma determinada formação ideológica, em uma situação de

enunciação especifica. A formação discursiva (FD) é a matriz de sentidos que regula o que o

sujeito pode e deve dizer e, também, o que não pode e não deve ser dito, definida através de

um interdiscurso. Tal noção “permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua

relação com a ideologia e também dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades

no funcionamento do discurso.” (ORLANDI, 2006, p.43)

Em linhas gerais, uma FD determina o que pode e deve ser dito a partir de um

determinado lugar social, assumido pelo sujeito no interior do discurso. Ela é marcada por

certas „regularidades‟, encaradas como mecanismos de controle, que determinam o que

pertence (o interno) e o que não pertence (o externo) a ela. Desta forma, a FD não se constitui

independentemente, mas no interior de uma relação com outras FDs, outros discursos e,

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principalmente, no interior de uma formação ideológica (FI) específica. Como FI entende-se

os elementos capazes de intervir em relação ao sentido em uma posição dada em uma

conjuntura histórica dada, ou, no dizer de Pêcheux (1997, p.160),

O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, não existe em si

mesmo (isto é, em sua relação transparente com literariedade do significante), mas,

ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no

processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são

produzidas (isto é, reproduzidas). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras,

expressões e proposições mudam de sentido segundo as posições sustentadas por

aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em

referência a essas posições, isto é, em referências às formações ideológicas nas quais

essas posições se inscrevem.

A FD seria um dos componentes de uma FI específica. Mas tais limites se revelam

instáveis, pois há o caráter ideológico que inscreve embates e posições antagônicas. Deste

modo, traçar os limites de uma FD, de maneira definitiva, torna-se tarefa complexa, já que

uma FD se inscreve entre diversas outras FDs, em uma constante troca interdiscursiva, em

que a presença do Outro confere ao discurso o seu caráter heterogêneo constituinte. Uma FD,

no dizer de Maingueneau (1997), não seria, portanto, um bloco compacto e fechado, e sim um

todo constituído na incessante relação com o Outro, afirmando o primado do interdiscurso

sobre o discurso.

Desta forma, uma palavra ou expressão não possui sentido em si mesma, mas constitui

um sentido ou um efeito de sentido nas relações que estabelece com outras palavras ou

expressões, no interior da formação discursiva a que faz parte. De forma análoga, o próprio

sujeito se constituiria no interior de uma formação discursiva específica, que representa,

através da linguagem, as formações ideológicas que lhes são correspondentes. Assim, a

formação discursiva seria parte constituinte, também, do sujeito.

É através da FD, portanto, que se articula o assujeitamento e a interpelação do

indivíduo como sujeito ideológico (forma-sujeito). Há uma identificação imaginária do sujeito

com a FD que o domina, apoiada na noção de interdiscurso (articulado sob a forma de pré-

construído ou de processos de articulação e sustentação mais amplos), de forma que o

discurso do sujeito se reescreve no interior de um outro discurso.

3.2.4 Interdiscurso

A noção de interdiscurso tornou-se chave para a consolidação da AD à medida em que

se postula que hoje esta sob a égide do interdiscurso (ou na expressão de Maingueneau, no

primado do interdiscurso). Essa noção, introduzida por Pêcheux em “Semântica e discurso”

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(1997), encontra ampla utilização nos trabalhos de Maingueneau, que parte dela para construir

a sua semântica global.

Em “Semântica e discurso” (1997), Pêcheux conceitua formação discursiva para

revelar que o interdiscurso pode ser considerado como o conjunto de FDs que se inscrevem no

nível da constituição do discurso, na medida em que trabalham com a re-significação do

sujeito sobre o que já foi dito, o repetível, determinando os deslocamentos promovidos pelo

sujeito na fronteira de uma formação discursiva.

Para ele, “Toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela

se constitui, sua dependência com respeito ao „todo complexo com dominante‟ das formações

discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas” (PECHEUX, 1997, p. 162),

de modo que o interdiscurso é considerado como esse todo complexo das formações

discursivas. Acrescenta ainda que essa noção se assenta no fato de que “algo fala, sempre

antes, em outro lugar, independentemente.”.

Para se compreender a interpelação do indivíduo em sujeito do seu discurso, o

conceito de interdiscurso é basilar, pois é através dele que o sujeito encontra a realidade de

coisas percebidas, aceitas, experimentadas sob a forma de um sistema de evidências e

significações confrontadas. Desta forma, o interdiscurso, sob as formas de pré-construído e de

processos de articulação/sustentação, institui no discurso do sujeito traços daquilo que o

determinam e estão, por sua vez, re-escritos no seu próprio discurso.

Assim, o interdiscurso, para Pêcheux, estaria „diluído‟ no interior do próprio discurso

(que ele chama de intradiscurso), de modo que o sujeito, afetado pelos esquecimentos 1 e 2,

não teria total conhecimento das determinações que o colocam no lugar que ele ocupa, já que

o pré-construído, base do interdiscurso, “remete simultaneamente „àquilo que todo mundo

sabe‟, isto é, aos conteúdos de pensamento do „sujeito universal‟ suporte da identificação e

àquilo que todo mundo, em um „situação dada‟ pode ser e entender, sob a forma de evidências

do „contexto situacional‟”. (PECHEUX, 1997, p.171).

Como pontua Orlandi (2006, p. 54),

O interdiscurso – a memória discursiva – sustenta o dizer em uma estratificação de

formulações já feitas, mas esquecidas e que vão construindo uma história de

sentidos. É sobre essa memória, de que não detemos o controle, que nossos sentidos

se constroem, dando-nos a impressão de sabermos do que estamos falando. Como

sabemos, ai se forma a ilusão de que somos a origem do que dizemos.

A partir dos pressupostos de Pêcheux e de um aprofundamento, através de Foucault,

Maingueneau propõe, em “Gêneses dos discursos” (2007), uma ampliação do conceito que

para ele subjaz à implementação da tese: o interdiscurso tem precedência sobre o discurso.

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Essa ideia propicia, de certa forma, um deslocamento teórico à medida em que a unidade de

análise pertinente, passa do discurso para o espaço de trocas entre vários discursos, escolhidos

pelo analista convenientemente.

No capítulo “Primado do interdiscurso”, o autor coloca o interdiscurso como base de

qualquer processo discursivo, mesmo quando este não está marcado na superfície textual. Ele

parte da hipótese de que como no discurso a heterogeneidade constitutiva é ponto pacífico,

seria o interdiscurso que vincularia, em “uma relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu

Outro.” (PÊCHEUX, 2007, p.33)

Para construir a noção de interdiscurso, considerando-a como inscrita na base de

qualquer discurso, Maingueneau julga necessário entender as noções de universo discursivo,

campo discursivo e espaço discurso, já que, por si só, a ideia de interdiscurso é muito ampla,

sendo importante entender o seu próprio funcionamento. Denomina de universo discursivo o

conjunto das mais diversas formações discursivas que interagem em uma dada conjuntura.

Essa noção não é considerada de grande valor ao analista, já que a AD busca trabalhar as

relações estabelecidas entre as mais diversas formações e as mesmas formações que se

entrecruzam, em estado de concorrência ou aproximação.

A noção de campo discursivo, desta forma, é um ponto chave para o analista, já que

ela pode ser entendida como “um conjunto de formações discursivas que se encontram em

concorrência e delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo

discursivo.” (PÊCHEUX, 2007, p. 35). Estabelecer esta inter-relação entre os campos

discursivos constitui, de certa forma, o trabalho do analista, que faz escolhas individuais a

partir de questionamentos suscitados pelo próprio objeto. A partir da construção dos cortes

operados nesses campos discursivos, emerge o discurso.

No interior dos campos, isolaram-se os espaços discursivos de análise, ou seja,

subconjuntos de formações discursivas que o analista avalia importantes para os propósitos

assumidos em suas hipóteses iniciais. Nesses termos, a conjugação dos espaços discursivos

também é configurada através de seleções do próprio analista. Tendo em vista tais princípios,

é nas relações estabelecidas que emergem as posições assumidas pelo discurso no interior do

interdiscurso.

Optar por este processo de análise viabiliza a percepção das relações de polêmica que

se configuram entre os discursos no interior de uma mesma FD, já que a atitude

responsiva/dialógica é condição sine qua non de qualquer enunciação. Além disso, amplia-se

a percepção do interdiscurso, em relação ao seu exterior, para a relação do interdiscurso como

constitutivo em si mesmo e no intradiscurso, sem haver a necessidade prévia de uma inscrição

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marcada, do primeiro sobre o segundo, como queriam alguns analistas da escola francesa na

década de 60. Como todo enunciado do discurso tem o caráter essencialmente dialógico, não é

possível dissociar a interação dos discursos do próprio funcionamento intradiscursivo.

Assim,

No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável, nem ma citação,

nem uma entidade exterior; não é necessário que seja localizável por alguma ruptura

visível da compacidade do discurso. Encontra-se na raiz de um Mesmo sempre já

descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de ser

considerado sob a figura de uma plenitude autônoma. (MAINGUENEAU, 2007, p.

39)

Partindo de tais considerações, pode-se afirmar o primado do interdiscurso sobre o

discurso, à medida em que, em uma relação de concorrência, polêmica ou concordância, os

discursos se auto-delimitam e delimitam aos outros através do interdiscurso, configurando a

interdiscursividade constitutiva.

3.3 CONSTRUÇÃO TEÓRICA DE UM DISPOSITIVO DE ANÁLISE

De forma geral, a Análise do Discurso propõe-se a construir um dispositivo de

interpretação para o discurso selecionado enquanto objeto analisável. Dessa forma, cabe ao

analista, no confronto com o seu corpus, lançar um dispositivo de análise que possa abarcar as

especificidades de seus objetivos para aquele momento da pesquisa.

A partir do reconhecimento do seu objeto e dos seus objetivos momentâneos, o

analista irá cotejar o discurso que pretende analisar, aos conceitos teóricos. Trata-se de uma

seleção individual, como afirma Maingueneau (2007, p. 26), “Onde houver enunciados,

enunciados sobre esses enunciados, ad libitum, cada um tem sempre o direito de traçar os

limites de um terreno de investigação conforme seja conveniente.”

Desta forma, há uma ligação entre a descrição do corpus e a construção do arcabouço

teórico que irá ancorar os gestos de interpretação possíveis para aquele recorte. Não é

possível, desta forma, uma compreensão do analista que não seja mediada constantemente

pela intermitência entre a descrição e a teoria que constituem o processo de estudo.

Para esta pesquisa, escolheu-se apresentar os conceitos iniciais que irão constituir o

dispositivo de análise; contudo, não se pretendeu, e nem seria possível, esgotar tais elementos,

pois entende-se que, através da leitura do corpus, os conceitos ganham força e vida. Acredita-

se, porém, ser necessário um breve panorama destes conceitos, já que adentrar no corpus

propriamente será aprofundá-los.

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Assim, além dos conceitos-chave em AD, que já foram elencados anteriormente

(sujeito, discurso, FD e interdiscurso), somam-se os conceitos de ethos e polifonia, que na

nossa concepção auxiliarão na identificação e análise das estratégias de construção de sentido

e de constituição dos múltiplos sujeitos na peça “O Rei da vela”, como proposto inicialmente.

3.3.1 O conceito de ethos

Os anos 80 marcaram uma reflexão aprofundada, em relação ao discurso, ocasião em

que Maingueneau (1997, 2001, 2006) traz a problemática do ethos retórico, empreendido por

Aristóteles, na Grécia antiga, aliada a uma perspectiva da Pragmática e da Análise do

Discurso, traçando o que se veio a conhecer por ethos discursivo. Esse empenho encontra

justificativa com o avanço das mídias visuais, sobretudo, a publicidade, que se vale dessa

elaboração de um corpo imaginário, através do discurso como estratégia, e do crescente

interesse trazido pela AD em confrontar língua, sujeito, história e ideologia, percebendo,

através do discurso, como há a constituição de uma imagem de si.

Trabalhado por Aristóteles, o ethos retórico estava ligado à enunciação do locutor em

face a um auditório, sendo a designação de uma “imagem de si que o locutor constrói em seu

discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário.” (CHARAUDEAU, 2006, p. 220).

Assim, essa construção se daria porque o auditório atribuiria certas características ao locutor,

através de seu discurso. Nesta concepção,

A prova pelo ethos consiste em causar uma boa impressão por meio do modo como

se constrói o discurso, em dar de si uma imagem capaz de convencer o auditório ao

ganhar sua confiança. O destinatário deve assim atribuir certas propriedades à

instância apresentada como fonte do evento enunciativo. (MAINGUENEAU, 2006b,

p. 267)

A fim de conseguir tal feito, na Retórica, o orador deveria articular três características

básicas: phronesis, ou prudência, areté, ou virtude, e eunóia, ou benevolência. O importante

seria a imagem que o auditório formaria de seu orador, em relação aos seus traços de caráter,

revelados no momento da enunciação.

Inúmeros estudiosos trouxeram pontos somatórios para a concepção do ethos, mas a

“integração desse termo às ciências da linguagem encontra uma primeira expressão na teoria

polifônica da enunciação de Oswald Ducrot” (AMOSSY, 2005, p. 14). Partindo da

enunciação, tal teórico expropõe que há uma distinção entre o locutor, enquanto enunciador, e

o locutor enquanto ser no mundo, que diferenciaria também o mostrar e o dizer. É o

enunciado que revela os autores da enunciação, por isso era necessário não confundir as

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instâncias internas do discurso com o ser empírico que se situaria fora da linguagem. A

pragmático-semântica, disciplina à qual Ducrot estava vinculado, se interessava por essa

instância discursiva que se revelava através do seu discurso, formando uma imagem, no

entanto, Ducrot não aprofundou essa reflexão sobre o ethos.

Neste contexto, Maingueneau (2001) começa elaborar essa noção atrelada à

construção da imagem de si no discurso, em seus trabalhos de Pragmática e Análise do

Discurso. Ainda numa perspectiva interativa entre locutor (enunciador) e público (co-

enunciador), ele coloca que o ethos se constrói em uma imagem passada e, também,

apreendida pelo público. Deste modo,

É insuficiente ver a instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso apenas

como estatuto ou papel. Ela se manifesta também como voz, e, além disso, como

corpo enunciante, historicamente especificado e inscrito em uma situação, que sua

enunciação ao mesmo tempo pressupõe e valida progressivamente.

(MAINGUENEAU, 2005, p. 70)

Seria necessário, para tanto, a construção de uma espécie de quadro, através da

enunciação, para legitimar o discurso que se constrói nessa interação, o que Maingueneau

chamou de cena da enunciação. Para ele, enunciar não seria apenas expressar seu discurso,

mas também tentar construir e legitimar o seu dizer através deste quadro chamado de cena da

enunciação.

O locutor deve dizer construindo o quadro desse dizer, elaborar dispositivos pelos

quais o discurso encena seu próprio processo de comunicação, uma encenação que é

parte integrante do universo de sentido que o texto procura impor. A situação de

enunciação não é, com efeito, um simples quadro empírico, ela se constrói como

cenografia por meio da enunciação. [...] O discurso implica uma certa situação de

enunciação, um ethos, código linguageiro através dos quais se configura um mundo

que, em retorno, os valida por seu desenvolvimento. (MAINGUENEAU, 2006b,

p.47)

Maingueneau não descarta, contudo, que essa noção é um tanto problemática, já que,

por estar ligada à enunciação, por exemplo, não se pode descartar as imagens prévias que o

público tem antes mesmo de entrar em contato com o enunciador. Ele coloca em jogo a

questão do ethos discursivo e do ethos pré-discursivo, e cita exemplos específicos que

desestabilizariam as possíveis certezas, como no caso de um romance de autor desconhecido

pelo grande público. Ele coloca, também, a relação entre os gêneros escolhidos e os

posicionamentos ideológicos, já que, por ser uma noção que interage com diversos fatores,

pode-se falar em indução. Além disso, ele traz a questão dos elementos exteriores, que podem

contribuir para esta noção, e também a ideia de que muitas vezes o ethos visado não

corresponde ao produzido.

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Diante disso tudo, Maingueneau (2006b, p. 60) afirma que “Não é de forma alguma

possível estabilizar definitivamente uma noção desse tipo, que é mais adequado apreender

como núcleo gerador de uma multiplicidade de desenvolvimentos possíveis.”, mas que é

importante se traçar as características básicas dessa noção, a saber: é uma noção discursiva,

ou seja, é construída por intermédio do discurso; é um processo interativo de influência sobre

o outro; é uma noção híbrida que não pode ser apreendido fora da situação de comunicação.

A formação de uma imagem positiva de si, através do discurso, articula-se à noção de

adesão, por meio da qual o co-enunciador se sente impelido a manter uma relação de

confiança com o locutor. Instaura-se, ai, uma noção de fiador do discurso, que seria uma

espécie de tom específico, que permitiria relacionar a uma caracterização de corpo do

enunciador (discursivo) que atesta o que é dito. Esse fiador incorporaria um caráter –

comportamento em relação ao espaço social – e uma corporalidade específicos, a partir do ato

enunciativo. Seria esse tom específico que tornaria possível traçar uma dimensão da

identidade e do posicionamento discursivo.

De acordo com Maingueneau (2001, p. 99),

O poder de persuasão de um discurso consiste em parte em levar o leitor a se

identificar com a movimentação de um corpo investido de valores socialmente

especificados. A qualidade de ethos remete, com efeito, à imagem desse fiador que,

por meio de sua fala, confere a si próprio uma identidade compatível com o mundo

que ele deverá construir em seu enunciado.

A opção que Maingueneau faz, portanto, é por um ethos encarnado, que se constrói na

dimensão verbal, que ganha um corpo e um caráter através da imagem desse fiador, que o

articula às representações coletivas. Essa articulação a estereótipos faz com que o leitor

ultrapasse a simples identificação a uma personagem e chegue ao mundo ético.

A construção do ethos se dá, assim, por meio de um apoio recíproco entre a cena da

enunciação (da qual o ethos participa) e do conteúdo apresentado, que se articula a fim de

montar uma imagem acerca do enunciador. A maneira de dizer, segundo Amossy (2005),

possibilita a construção de uma verdadeira imagem de si a partir do momento em que articula

a inter-relação entre o locutor e seu parceiro através de diversos índices discursivos.

3.3.2 O conceito de Polifonia

Em meados de 30, pensar a língua, a linguagem e a própria comunicação, reduzia-se,

muitas vezes, a seguir os caminhos já palmilhados por Saussure e os formalistas. Em meio a

uma linguística imanente, que percebia a língua como um sistema abstrato e ideal, distante da

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interação real da comunicação, Bakhtin (1929), pensador russo, junto a Voloshinov e

Medvedev, começou a refletir sobre a linguagem a partir de outros pressupostos: a interação e

a enunciação.

Partindo de uma ideia de que a abordagem da língua e do discurso não pode se dar de

forma interna, exclusivamente, como os tributários do chamado objetivismo abstrato

acreditavam, e nem de maneira exclusivamente externa, como pregavam os partidários do

subjetivismo idealista, Bakhtin propõe uma abordagem mediativa entre essas duas dimensões,

como uma forma de conhecer o homem e sua condição de sujeito múltiplo, bem como seu

lugar na História, na cultura e na sociedade, através da linguagem.

Em um contexto histórico conturbado, dialogando com estudiosos das áreas da

Sociologia, Antropologia e Literatura, Bakhtin começa a perceber a língua em seu aspecto

discursivo, e, desta forma, “influenciou ou antecipou as principais orientações teóricas dos

estudos sobre o texto e o discurso desenvolvidos, sobretudo, nos últimos trinta anos.”

(BARROS, 1997, p. 27). Ele iniciou, desse modo, uma reflexão sobre alguns conceitos da

Linguística moderna ao passar a perceber a língua como um fato social, reflexo ideológico,

bojo da interação entre os sujeitos.

É em uma percepção de alteridade, própria das ciências humanas, que o teórico russo

irá conceber que a linguagem é dialógica por natureza, já que o outro é imprescindível no

processo de construção de sentido. Passa-se a uma visão da linguagem como interação, em

que o outro desempenha um papel basilar na constituição dos significados, integrando-se o ato

de enunciação individual a um contexto mais amplo, trazendo à tona as relações estreitas entre

o linguístico e o social.

Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente

organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do

signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas

condições em que a interação aparece. [...] Realizando-se no processo da relação

social, todo signo ideológico, e portanto também o signo linguístico, vê-se marcado

pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados. (BAKHTIN,

1981, p.44)

Como característica essencial da linguagem, o princípio dialógico traria a perspectiva

de que nenhuma palavra é totalmente propriedade de alguém, por trazer em si a presença de

outra voz, percebida, às vezes, de forma anônima, distante. Considera-se, assim, que o

dialogismo é a condição de existência do próprio discurso, pois ele constitui o texto como um

conjunto de muitas vozes ou de muitos textos ou discursos, que se entrecruzam. A palavra

passa a ser o lugar privilegiado para as manifestações da ideologia, uma espécie de arena de

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vozes, onde haveria o confronto entre aquelas vozes que querem ser ouvidas por outras e

querem demonstrar suas visões de mundo. Como afirma Brait (2003, p. 15):

Tanto as palavras quanto as ideias que vêm de outrem, como condição discursiva,

tecem o discurso individual de forma que as vozes – elaboradas, citadas, assimiladas

ou simplesmente mascaradas – interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a

ficar nas sombras autoritárias de um discurso monologizado.

Um discurso encontra o discurso de outrem e estabelece uma relação viva e intensa

com ele, constituindo o sujeito que se enuncia em sujeito do discurso. Assim, a palavra

veicula, de maneira privilegiada, a ideologia, sendo a língua a representação das relações e

das lutas sociais. A palavra seria, então, construída através de uma multidão de fios

ideológicos, que representariam as relações sociais, no processo de interação com o outro.

Deste modo, “As relações dialógicas são um fenômeno quase universal, que penetram

toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo

o que tem sentido e importância” (BAKHTIN, 1997, p. 42), sendo o ponto articulatório entre

sujeito, história e ideologia.

Apesar de muitas vezes serem usadas como sinônimas, as palavras dialogismo e

polifonia diferenciam-se no ponto em que esta última se instaura como uma estratégia

discursiva, em um texto em que é possível perceber claramente a presença de muitas vozes.

O diálogo é a condição da linguagem e do discurso, mas há textos polifônicos e

monofônicos, segundo as estratégias discursivas acionadas. No primeiro caso, o dos

textos polifônicos, as vozes se mostram. No segundo, o dos monofônicos, elas se

ocultam sob aparência de uma única voz. Monofonia e polifonia de um discurso são,

dessa forma, efeitos de sentido decorrentes de procedimentos discursivos que se

utilizam em textos, por definição, dialógicos. Os textos são dialógicos porque

resultam do embate de muitas vozes sociais: podem, no entanto, produzir efeitos de

polifonia, quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar, ou de monofonia,

quando o diálogo é mascarado, e uma voz, apenas, faz-se ouvir. (BARROS, 2003, p.

6)

Trazida por Bakhtin, a partir da análise dos romances de Dostoiévski, a noção de

polifonia se liga à ideia de realidade em formação, de não acabamento, de uma natureza

multifacetada que traduz a multiplicidade social, cultural e ideológica representada. Para ele,

o autor de um romance polifônico não definiria os personagens apenas, mas deixaria que

estes, através de suas enunciações, se revelassem num processo interativo muitas vezes não

concordante com apenas uma voz. É a polifonia o ponto alto de um discurso, que se constrói

através do diálogo de muitas vozes, que se olham de posições sociais e ideológicas diferentes,

construindo o discurso no cruzamento desses pontos de vista. Como pontua Bezerra (2008, p.

198), “Polifonia é aquela multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis

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cujas vozes não são meros objetos [...] , mas os próprios sujeitos desse discurso, do qual

participam mantendo cada uma sua individualidade caracterológica, sua imiscibilidade.”

Tal noção abre a possibilidade de encarar a linguagem como esse processo interativo

de diálogo, constante entre as diversas vozes, e suas cosmovisões em um dado momento

histórico e um dado contexto social. O discurso passa a ser percebido não como um produto

individual, mas como fruto de uma interação, antes de tudo, ideológica. A palavra seria,

então, o fenômeno ideológico por natureza, demonstrando de forma pura e sensível as

relações sociais. Por isso que,

realizando-se no processo da relação social, todo signo ideológico, e, portanto

também o signo linguístico, vê-se marcado pelo horizonte de uma época e de um

grupo social determinado [...] A palavra revela-se, no momento de sua expressão,

como produto da interação viva das forças sociais. (BAKHTIN, 1981, p. 66)

A busca pela literatura, inicialmente com o gênero romanesco, se dá porque o teórico

russo acredita que esta concentra um tipo especial de linguagem, que possibilita a visão de

elementos obscurecidos por outros tipos de discurso. Buscando o texto, concebido como

tecido organizado, unidade discursiva estruturada e contextualizada sócio-historicamente, ele

percebe os diálogos que são travados entre o enunciador e o enunciatário, na interação verbal

do espaço textual e nota que o sentido só é atingido através de diversas vozes que dialogam

e/ou polemizam dentro do texto.

Desta forma, nota-se que os textos são, em sua maioria, polifônicos, já que, como

afirma Bronckart (1999) “nele se fazem ouvir várias vozes distintas”. As vozes aqui

mencionadas seriam entidades que tomam para si (ou às quais são atribuídas) a

responsabilidade do que é enunciado. A polifonia seria, pois, a realização mais concreta do

posicionamento ideológico, pois é nela que as vozes dialogam e polemizam entre si, olhando

de posições sociais diferentes. E é no cruzamento entre estes pontos de vista, que se delinea o

discurso. “O discurso, forma histórica e falante, faz-se ouvir através de suas inúmeras vozes,

dirige-se a um interlocutor e impõe uma atitude dialógica, a fim de que os vários sentidos,

distribuídos entre as vozes, possam aflorar.” (BRAIT, 2003, p. 15)

A ideia de que nenhuma palavra é propriedade de alguém, já que traz em si a

perspectiva de outra voz, abriu diversas possibilidades de entendimento, sobretudo na

Literatura, que há muito conhece o poder da palavra, perfazendo uma espécie de ritual, em

que um sujeito se enuncia partilhando com os interlocutores um mundo de possibilidades.

Seria o que se pode chamar de ação da linguagem, com a veiculação de representações, de

conhecimentos outros, tais como os de gerações anteriores e/ou contemporâneas, em interface

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com o espaço mental do interlocutor. Mostra-se aí o fato de que a compreensão é sempre

dialógica, pois é imprescindível a presença do outro para entender e interferir no sentido.

Segundo Bronckart (1999), as vozes assumem as formas mais concretas da realização

do posicionamento e podem ser subdivididas em três categorias, quando se trata de um texto

literário: vozes de personagens, vozes de instâncias sociais e vozes do autor empírico. Dessas,

a primeira se definiria como sendo as vozes procedentes de seres humanos, ou de entidades

humanizadas, envolvidos, na qualidade de agentes, nos acontecimentos ou ações que

constituem o eixo temático de um segmento de texto. Sendo, portanto, a materialização de

discursos reais, ou pelo menos verossimilhantes, aos que se configuram no mundo não

literário.

A segunda formulação do teórico propõe as vozes sociais, que seriam as “procedentes

de personagens, grupos ou instituições sociais que não intervêm como agentes no percurso

temático de um segmento de texto, mas que são mencionadas como instâncias externas da

avaliação de alguns aspectos desse conteúdo.” (BRONCKART, 1999, p. 327)

É importante ressaltar que, em alguns textos, como o objeto deste estudo, as vozes

sociais são responsáveis por intervenções tão profundas que dissociá-las seria perder em

muito a essência da mensagem. As vozes sociais seriam os “espectros” importantes que dão

subsídios à construção dos temas, dos personagens, das falas. Como já foi citado, o homem,

enquanto sujeito social carrega em si sua herança histórica e cultural; o personagem, como

personificação desse homem, também a trará, sendo, portanto, impossível não reconhecer sua

importância.

As vozes sociais, que estão dispostas no texto, dão a possibilidade ao leitor de

reconstruir um panorama histórico partindo do discurso. É no texto que se reconhecem os

embates ideológicos de uma época, que talvez se perderiam se não houvesse a preocupação

constante do autor de buscar externar essa vivência. É aí que se configura a última definição

de voz proposta: a voz do autor. É ela que intervém comentando e avaliando aspectos que são

enunciados e que, em muitos momentos, irá outorgar-se a responsabilidade do dizer,

quebrando o ilusionismo, como propôs Oswald de Andrade.

Através dessas vozes, que geram um compósito polifônico, o discurso se fará em luta

direta na construção do sentido. A palavra seria “a arena onde se confrontam valores sociais

contraditórios” (BAKHTIN, 1981, p. 14) e entendê-la em suas multifaces seria compreender

também um sistema social. A língua, como expressão das relações de lutas de classes, seria o

instrumento e o material para construção do sentido dentro do texto.

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Nessa arena de vozes que é o texto, pode-se observar o caminhar das mudanças

ideológicas, analisando as relações de forças, já que “cada signo ideológico é não apenas um

reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento da realidade” (BAKHTIN,

1981,, p. 33). Desta forma, para o analista do discurso localizar os recursos linguísticos e não-

linguísticos da combinação e transmissão das vozes discursivas, observando de que forma a

confluência significa a interpretação do discurso de outrem ou a manipulação da

argumentação autoritária ou a subversão desse discurso, é bastante esclarecedor.

Além de construir, através dos conceitos de ethos e polifonia, o arcabouço teórico

mais específico para esta análise, é de extrema importância traçar, também, a especificidade

do objeto sob o qual se debruça. Entender a natureza do texto teatral torna-se urgente, uma

vez que é a partir deste entendimento que os elementos estruturais e estruturantes do discurso

irão emergir, também configurando o quadro necessário ao analista. Sendo assim, escolheu-se

o tópico a seguir para compor a especificidade do texto teatral.

3.4 O TEXTO TEATRAL E SUA ESPECIFICIDADE

Alguns estudiosos consideram árdua a tarefa de ler o teatro, já que em sua gênese a

representação seria um elemento necessário à completude dos sentidos, lacunar em sua

própria essência. Supõem que a chave para o entendimento do texto teatral estaria fora dele,

pois seria necessário estar familiarizado com técnicas de performance teatral ou com uma

aguçada imaginação, para ativar a leitura e a construção dos sentidos.

Entretanto, entende-se que, por ser uma prática textual muito específica, é necessário,

antes de tudo, constituir um arcabouço teórico que dê conta de um compósito de linguagem

tão particular. Dessa forma, recorre-se aos pressupostos da Linguística moderna, que

possibilitam analisar o texto teatral enquanto prática de linguagem e não como prática de

representação.

Como pontua Ubersfeld (2005, p. XIII),

A complexidade da prática teatral se situa na encruzilhada das grandes querelas

modernas que permeiam a Antropologia, a Psicanálise, a Linguística, a Semântica e

a História. [...] A Linguística é privilegiada no estudo da prática teatral, não apenas

por causa do texto, principalmente o diálogo – uma vez que e a substância da

expressão verbal, evidentemente – mas também por causa da representação.

Assim, ativar os sentidos do texto seria compor uma leitura que se bastasse a si

mesma, fora de qualquer representação, pois o texto em si seria o responsável por dar pistas

na construção de mundos imaginários.

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Ler o texto de teatro é uma operação que se basta a si mesma, fora de qualquer

representação efetiva, estando entendido que ela não se realiza independentemente

da construção de um palco imaginário e da ativação de processos mentais como em

qualquer prática de leitura, mas aqui ordenados num movimento que apreende o

texto „a caminho‟ do palco. (RYNGAERT, 1995, p. 25)

Entender os mecanismos que compõem o texto dessa arte paradoxal tornou-se

necessário àqueles que, de alguma forma, se enveredam pelos caminhos do dramático. Mas,

afinal, como reconhecer a especificidade do texto de teatro? Será que reduzi-lo a um quadro

de características não seria obscurecer a complexidade que envolve a composição de uma

peça? É razoável considerar o texto teatral como uma extensão da conversação apenas?

Texto literário e objeto representável; seria ilusão conceber que o texto possui a

mesma composição que a interpretação. Em ambas, há a mobilização de diferentes linguagens

que se combinam num todo e, por isso, é necessário estabelecer o que pertence a cada

domínio. A especificidade do texto dramático passa pela combinação dos elementos de

teatralidade, matizes textuais: os diálogos (falas) e as didascálias (textos que não se destinam

a ser pronunciados nos palcos, mas que ajudam o leitor a compreender e a imaginar a ação e

as personagens).

Para distinguir esses elementos é necessário recorrer ao conceito de enunciação. Nas

didascálias, quem se enuncia, marcadamente, é o autor. Nos diálogos, marcadamente as

personagens. Desta forma, o texto teatral é passível de análise como qualquer outro objeto

linguístico, a partir das regras da Linguística e do processo de comunicação.

As didascálias, consideradas como metatexto, são responsáveis pela construção

imaginária das cenas, das personagens, das ações, enfim, da atmosfera que permeia o texto.

Na representação, são auxiliares importantes da cenografia e do figurino; na leitura,

constituem um verdadeiro texto sobre o texto.

Partindo do pressuposto de que “O teatro é antes de tudo diálogo, ou seja, nele a

palavra do autor é mascarada e partilhada entre vários emissores. Essas palavras em ação

assumidas pelas personagens constituem o essencial da ficção.” (RYNGAERT, 1995, p.12),

analisa-se, neste momento, as características do diálogo teatral. Este assume a consistência de

uma conversação orientada.

Neste simulacro da conversação, um elemento característico e fundador do texto

teatral seria a dupla enunciação, como revela Ubersfeld (2005, p.84)

Todo discurso no teatro possui dois sujeitos na enunciação, a personagem e o eu que

escreve (do mesmo modo que possui dois receptores, a outra personagem e o

público). Esta lei do duplo sujeito da enunciação é um elemento capital do texto de

teatro: é ai que se situa a fenda inevitável que separa a personagem de seu discurso e

a impede de se constituir em sujeito verdadeiro de sua fala. Uma personagem, cada

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vez que fala, não fala sozinha, pois o autor fala ao mesmo tempo por sua boca; daí

um dialogismo constitutivo do texto de teatro.

Partindo disso, uma análise dos diálogos teatrais não pode deixar de mencionar a dupla

enunciação do seu texto, definida como a relação entre os eixos internos e externos da

composição. Quando um personagem fala, faz isso em seu estatuto de personagem, ou seja, o

faz em seu próprio nome, mas através do processo de dupla enunciação o faz porque o autor o

faz falar.

Assim,

A comunicação teatral não opera exclusivamente no eixo interno da relação entre os

indivíduos, mas também, ou principalmente, no eixo externo entre o Autor e o

Leitor/ público, através de uma cadeia de emissores. O que é chamado de dupla

enunciação no teatro. Na comunicação mais imediata, um ator fala a um ator, assim

como na vida ordinária um emissor conversa com um receptor. Mas esses atores são

apenas a expressão de uma troca situada desta vez ao nível da ficção, em que uma

personagem conversa com outra personagem. Por trás das personagens encontra-se o

verdadeiro emissor de todas essas falas, o autor, que se dirige ao público. O público

tem, portanto, o estatuto de destinatário indireto, pois é a ele, em última instância,

que todos os discursos são dirigidos, ainda que raramente o sejam de maneira

explícita. (RYNGAERT, 1995, p.109)

De forma esquemática, seria:

Dupla enunciação eixo interno (entre personagens) + eixo externo (entre autor/

leitor-público)

1) Comunicação imediata

Ator Ator

Emissor receptor

2) Ficção

Tudo o que é dito é destinado a produzir sentido e no texto teatral não é diferente. Ele

busca, na fala, seu alimento, a partir de estratégias de informação, ou seja, na seleção e

organização do autor em prol de um destinatário maior: o público. Assim, é através da

enunciação, como se concebe em Benveniste, que se estrutura uma peça que, fora da situação

de comunicação não possui sentido, só esta situação, ao permitir o estabelecimento das

condições de enunciação, confere ao enunciado seu sentido.

Personagem Personagem (destinatário direto)

Autor Público (destinatário indireto)

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Deste modo, “Ler o discurso teatral é, à falta da representação, reconstruir

imaginariamente as condições de enunciação, as únicas que permitem promover sentido.”

(UBERSFELD, 2005, p. 158). Pode-se, assim, considerar que há um jogo nos diálogos que

imputam a necessidade de atribuir um lugar aos parceiros da enunciação, através do

compartilhamento dos rituais de comunicação.

Na constituição do discurso teatral haveria, portanto, “duas camadas textuais distintas

(dois subconjuntos do conjunto textual): uma que tem como sujeito imediato da enunciação o

autor e que compreende a totalidade das didascálias, outra que investe o conjunto do diálogo e

que tem como sujeito mediato da enunciação uma personagem.” (UBERSFELD, 2005,

p.159), ligadas a diferentes situações de comunicação, uma concreta (a situação cênica) e

outra imaginária.

Na medida em que o discurso teatral é o discurso de um sujeito scriptor, ele é o

discurso de um sujeito imediatamente destituído de seu Eu, de um sujeito que se

nega como tal, que se afirma como quem fala pela voz de um outro, de

muitos outros, como quem fala sem ser sujeito: o discurso teatral é um discurso sem

sujeito. Discurso sem sujeito, mas que investem duas vozes, dialogando: é a

primeira forma, rudimentar, de dialogismo no interior do discurso teatral.

(UBERSFELD, 2005, p. 168)

O falar no teatro não pode ser igualado ao falar ordinário, já que este não se organiza a

partir de uma instancia maior, o autor, mas o que é possível é percebê-lo em suas nuanças

enunciativas, como um simulacro da conversação ordinária. Pode-se, portanto, afirmar que

neste processo de dupla enunciação que é o texto teatral, o discurso seria um canal

privilegiado, por onde trafegam ideologias, já que o mascaramento dessa mesma ideologia se

dá apenas no plano ilusório.

É no texto teatral, através do simulacro, que é a fala do personagem e as didascálias,

que a instância enunciadora, o autor, se utiliza deste espaço privilegiado na construção do seu

dizer. O autor do discurso teatral, neste processo de dupla enunciação, se confunde com o eu

enunciador personagem.

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4 CONSTRUÇÃO DOS BLOCOS DE ANÁLISE

Ao se trabalhar com o discurso, é necessário, antes de construir a análise, traçar os

caminhos que levaram ao objeto e que permitiram colocá-lo em seu lugar de recorte

analisável. Essa manobra consiste em pôr o elemento linguístico à distância e fixar os

instrumentos e os recortes de análise de acordo com um itinerário único, concernente à

formação do pensamento linguístico que se almeja. Como diz Charadeau (2008, p.15), “essa

herança passa pelo sujeito que produz a teoria ou a fala, o que significa reafirmar que há

tantos percursos históricos quanto forem os sujeitos que teorizam”

Com isso claro, sabe-se que, ao propor uma análise está se produzindo um novo texto

a respeito de outro texto que depende, por sua vez, de outro texto e assim infinitamente, de

forma que a análise que se inicia é apenas uma escolha, diante de tantas possibilidades do

“território-lugar-do-meu-pensamento-lugar-no-qual-eu-vou-me-construir” (CHARADEAU,

2008, p. 16). Buscando Barthes, ele diz em S/Z (2003) que produzir uma análise de um texto

é entender que esse eu que se aproxima do texto, já é, ele mesmo, uma pluralidade de outros

textos.

Assim, ao buscar o texto teatral, enquanto objeto de estudo, tenta-se encará-lo como

realidade discursiva, fruto de condições de produção específicas, as quais já foram definidas

em capítulos anteriores. Tentar-se-á, portanto, uma nova leitura. Quando setrabalha com o

texto literário e se afasta de uma análise estritamente literária, sem excluí-la, obviamente, está

se traçando caminhos, pelos meandros da linguagem e do discurso, que auxiliarão a compor

um novo texto, um novo olhar.

Partindo dessa realidade, buscar-se-á compor os blocos de análise da peça “O Rei da

Vela” a partir de duas escolhas distintas, porém imbricadas: o primeiro caminho será tecer um

recorte a partir do personagem Abelardo I. Essa opção se justifica por considerar Abelardo I

como personagem síntese e também porque seu discurso, em forma de suas falas/enunciações,

podem ser considerados porta-vozes de discursos múltiplos, que trafegam no interior da peça.

Basicamente, as análises que se fincam em tal personagem terão como base o 1º ato, pois

considera-se que neste momento da peça o foco é descrevê-lo e construir sua imagem.

Como já esboçado anteriormente, a peça não possui um protagonista, propriamente

(suspeita-se, inclusive, que os discursos da peça sejam o principal), mas percebe-se que, o fato

de Abelardo I circular em todos os momentos da peça e por ser ele, muitas vezes, elemento de

desestabilização, pode-se considerá-lo como nodal. Desta forma, serão recortados alguns

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trechos em que Abelardo I se enuncia, a fim esboçar as estratégias discursivas mobilizadas

para a construção desse sujeito enunciador e de seu ethos.

A composição dos outros blocos de análise se dará em torno da recorrência temática

nas falas das personagens. Este cotejamento será parte do processo de construção da

identificação das representações sociais que são refletidas e refratadas na peça. Desta forma,

serão recortados em dois grandes temas: instituição familiar e luta de classes, pois julga-se

serem representações bastante marcadas ao longo da peça. Tais análises se fincarão,

respectivamente, no 2º e no 3º atos. Como traçado no primeiro capítulo, “O Rei da Vela” traz,

em seu bojo, uma relação estreita com os acontecimentos da São Paulo de 30 e do mundo, de

modo que falar de revolução proletária e as novas configurações da sociedade se tornam uma

constante na obra.

Antes de iniciar a leitura de Abelardo I e dos outros pontos recortados da peça, julga-

se necessária uma breve análise de alguns elementos marcados, sobretudo, pelas didascálias.

Como já dito em tópico anterior, são as didascálias que constroem o universo ao redor da ação

dos personagens, destinadas ao público leitor. Elas tornam-se responsáveis também pelas

múltiplas leituras possíveis de “O Rei da Vela”. São elementos externos e físicos que

proporcionam um panorama visual de algumas relações sociais, ideológicas e artísticas, que

compreendem a criação da atmosfera e do cenário da peça.

É interessante retomar que a peça deve ser vista como parte de um processo de

desconstrução das máscaras que compõem o nacionalismo econômico dos anos 30. Chama-se

de máscaras a construção de um nacionalismo econômico, como uma ideologia voltada para o

futuro, comum na Era Vargas, em que o incremento econômico está estreitamente ligado aos

interesses de classe e não aos ideais verdadeiramente nacionais, com o se propõe a ideia de

nacionalismo. O programa de Vargas, no Estado Novo, assumiu os argumentos do

nacionalismo econômico como parte de sua política oficial, em particular, no que diz respeito

à estatização e à intervenção na economia.

Percebe-se, com estas referências, que a estrutura interna da peça relaciona-se com as

condições históricas e sócio-econômicas, mas que o fazem, principalmente, por meio de um

amplo processo de técnicas vanguardistas, como a paródia escancarada e a caricatura. Ela

trata de um tempo e de um lugar específicos – São Paulo e Rio de Janeiro na década de 30 –,

mas sem esgotá-los, pois a peça não consegue ser confinada em seu tempo, uma vez que

quando ganha corpo, na década de 60, torna-se precursora de concepções próprias da teoria da

dependência, num raro processo de atualização.

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Analisando o primeiro cenário, há o escritório de agiotagem de Abelardo I, que

constitui o primeiro extrato do que, depois, irá cristalizar-se numa hierarquia de exploração-

dominação estrangeira sobre a burguesia local, e esta sobre o proletariado local (urbano e

rural), evidenciando setores totalmente degradados pela crise. Os elementos de cena

percebidos no primeiro ato incluem, entre outros elementos, um retrato da Gioconda, um divã

futurista, uma secretária Luis XV, um telefone, um castiçal de latão e um mostruário de velas

de todos os tipos e tamanhos.

Essa perspectiva leva a “ler” o retrato de um Brasil que tem os olhos voltados para o

futuro (como a marcação do divã futurista, elemento representativo das novas teorias

freudianas e da conflagração da aristocracia com o novo), enquanto permanece no passado

(como mostra a secretária Luis XV). Há também um elemento utilizado para representar o

encarceramento do Brasil ao capitalismo externo e interno – uma sala de espera em forma de

jaula, onde ficam os devedores.

Já o segundo ato, transcorre numa ilha tropical na Baía de Guanabara, perto do Rio de

Janeiro. Há pássaros exóticos, palmeiras, uma praia e “personagens que se vestem pela mais

furiosa fantasia burguesa e equatorial” (ANDRADE, 2003, p. 65). Há ainda barulho de

lanchas, móveis mecânicos e uma bandeira norte-americana hasteada. Tais elementos

constituem uma paródia dos costumes brasileiros marcados por um exotismo, atrelados a uma

tecnologia e a um pensar, muitas vezes norte-americano.

Com elementos cênicos de um hospital, o terceiro ato se desenrola no mesmo cenário

do primeiro. Este ponto simboliza a queda de um rei da vela e ascensão de outro (no caso

Abelardo II). A vela, constante nos cenários e no próprio título da peça, pode ter variados

valores simbólicos.

Inicialmente, o valor da vela é econômico. Em virtude da crise do café, a companhia

de eletricidade se viu em quase falência e a vela voltou a ser utilizada. Abelardo I abasteceu o

mercado de velas tornando-se o rei da vela. Nesta mesma análise, a vela estaria associada às

ideias de regressão ao feudalismo, ao semicolonialismo e ao subdesenvolvimento. Abelardo

representaria, neste contexto, o pequeno especulador, que se situa perto da base na hierarquia

de exploração. No vértice, estaria o imperialismo. A vela seria síntese de uma visão radical de

um período marcado por profundas crises econômicas.

Passando dessa análise, baseada no fundamento econômico, pode-se considerar a vela

como sugestivo de temas ligados às classes sociais. Abelardo I, graças ao dinheiro adquirido

em seu comércio de velas e em sua casa de usura, irá se casar com Heloisa, representante da

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aristocracia cafeeira, e é tratado, nessa mesma família, como o rei da vela. Contudo, também é

considerado arrivista, intruso.

Mais adiante, este novo rico é destruído pelo próprio sistema de exploração que ajudou

a manter. Assim, a vela torna-se símbolo de morte, velório e por fim vala, que é o destino

final de Abelardo I, no último ato:

ABELARDO II – Está morrendo. A minha vida começa!

ABELARDO I – A val...a..

ABELARDO II – Compreendo. A vala comum... Não ficou nada. Nem para o

enterro nem para a sepultura. A casa ia mal há um tempo. Coitado!

ABELARDO I – A val...a..

ABELARDO II – O quê! Quer alguma coisa? Que dê o sinal do crime? Não, é cedo

ainda.

ABELARDO I – Não... (Mostra com sinais alguma coisa que deseja)

ABELARDO II – O telefone! Não. Um copo d‟água?

ABELARDO I – (num esforço enorme) A vela!

ABELARDO II – Ahn! Quer morrer de vela na mão? O Rei da Vela. Tem razão.

(Abre o mostruário. Tira uma velinha de sebo, a menor de todas. Acende-a) Não

quer perder a majestade. Vou pôr naquele castiçal de ouro!

A vela é o símbolo da morte individual, mas também passa a ser símbolo da morte

coletiva dos ideais de uma classe. É a vela com valores cíclicos, já que com a morte do I, o

Abelardo II passa a ocupar todo o espaço deixado pelo seu antecessor, inclusive com direitos

sobre a noiva, Heloisa. Constitui-se um ciclo imutável da história dos países que vivem sob o

jugo do imperialismo e das classes arrastadas pela correnteza dessa nova conjuntura dada

pelos norte-americanos. Percebe-se, neste trecho, como há a construção do discurso a partir de

traços interdiscursivos, pois ultrapassam-se os limites do individual e passa-se a entender as

colocações como parte da marcação ideológica de um período.

Como revela o próprio Abelardo I, em diálogo com a noiva Heloisa:

ABELARDO I – [...] Descobri e incentivei a regressão, a volta à vela...sob o signo

da capital americano.

HELOÍSA – E ficaste o Rei da Vela!

ABELARDO I – Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O Rei

da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em criança, pensando nas

histórias das negras velhas... Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas

em casa... As empresas elétricas fecharam com a crise... Ninguém mais pode pagar o

preço da luz... A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. Veja como eu

produzo de todos os tamanhos e cores (indica o mostruário). Para o mês de Maria

das cidades caipiras, para os armazéns do interior onde se vende e se joga à noite,

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para a hora de estudo da crianças, para os contrabandistas no mar, mas a grande vela

é a vela da agonia, aquela pequena velhinha de sebo que espalhei pelo Brasil

inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar nos umbrais da

eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional.

(2º ATO, p.63)

Ao listar as inúmeras utilizações de suas velas, Abelardo constrói uma imagem de que

o Brasil continua imerso em atraso profundo. Reforça esta ideia através das marcações

lexicais “feudal”, “interior”, “cidades caipiras”. Ele conclui com a própria constatação “Num

país medieval como o nosso” sobre o uso da vela de maneira que se formula a hipótese de

atraso.

Além disso, estabelece a relação de explorador-explorado, ao afirmar que seu negócio

se ergueu sobre a desgraça daqueles que ainda se ligam às tradições de outrora. Há, como se

pode perceber, um deslizamento do discurso do capitalista burguês para os elementos que

marcam um homem passadista. De forma análoga, Abelardo se vê adiante do seu tempo

(“mãos previdentes”), mas preso a um passado colonial.

4.1 ABELARDO I

Como já pontuado anteriormente, considera-se Abelardo I como elemento nodal para o

entendimento da peça. Ele, que será analisado nesse momento, é um agiota, dono de uma casa

de usura, e um novo rico, em ascensão, em meados de 30. Seu poder financeiro não lhe

concedeu acesso ao mundo aristocrático ainda predominante na São Paulo do início do século.

Para tanto, busca, através do casamento com Heloisa, filha de um latifundiário falido, uma

posição social de destaque. É um exemplo bastante representativo da busca burguesa pelo

poder do status quo no contato com os nobres depostos.

Percebe-se, e isso é um ponto constituinte da análise, que o nome de Abelardo I,

ligado ao de Heloisa, faz reconhecer uma famosa história de amor medieval do Ocidente, em

que a impossibilidade do amor faz o casal superar barreiras sociais e culturais para viver sua

história. Na famosa história de amor medieval, o casal era marcado pela tragédia de castração

e morte.

Nesta história de agora, o casal também é marcado pela tragédia, mas surge em uma

tragédia atualizada aos moldes do Brasil de 30: um novo rico, que precisa de uma posição

social, somente dada pela possibilidade de um casamento por interesse, com uma

representante da oligarquia cafeeira paulista. Um casamento sem amor, em que os cônjuges,

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abertamente, sabem fazer parte de um negócio. Ao se referir ao casamento, no momento de

sua derrocada, Abelardo I sentencia a Heloisa:

“ABELARDO I – Terás que procurar outro corretor... Você sabe... Nos casávamos

para você pertencer mais à vontade ao Americano [...]

A impossibilidade do amor, que é vital na primeira história, realiza-se em “O Rei da

Vela” pelo fato de Abelardo I morrer e deixar Heloísa, como parte de suas posses, para

Abelardo II, seu sucessor, e este, por sua vez, por conceder o „direito da pernada‟ ao

americano Mister Jones. Em um processo paródico, há a desconstrução do amor romântico da

primeira história e ascensão de um casamento fincado no interesse mútuo. Nesta relação

intertextual, ressoam as vozes da antiga história, quando Abelardo sentencia: “Heloisa sempre

pertencerá a Abelardo. É clássico!” (p. 97), este processo de ativação da memória discursiva

leva ao processo de desmoronamento dos ideais do amor.

Sabe-se que a AD introduz, por meio da noção de sujeito, a noção de ideologia e de

situação sócio-histórica como reflexões sobre as relações sociais, mostrando o discurso não só

como transmissor de informações, mas como efeito de sentido entre locutores. Desse modo,

aquilo que é dito não é resultado apenas da intenção de um indivíduo em informar o outro,

mas da relação de sentido estabelecida por eles num contexto social e histórico.

Como se adotou como referência esta linha de pensamento, entende-se como

primordial a relação da linguagem com a exterioridade, entendida como condição de produção

do discurso. A partir disso, percebe-se como a paródia, construída sob o amor romântico,

funciona como elemento de desconstrução de paradigmas arraigados no imaginário de todo

um grupo social: o casamento – instituição sagrada e célula da família – passa a ser concebido

como elemento de valor de troca, em negócios rentáveis para grupos distintos: a família de

Heloisa lucrará, pois mesmo diante da falência trazida pela quebra da Bolsa de 29, não

abandonará o luxo e a riqueza a que se acostumou; Abelardo I, arrivista social, lucrará

também, pois conseguirá, enfim, o brasão que tanto deseja para poder, sem receios, fazer parte

de uma elite. É a derrocada do amor romântico e a ascensão do amor dinheiro.

Maingueneau (2006, p. 266), ao destacar que “O texto não se destina à contemplação,

sendo em vez disso uma enunciação ativamente dirigida a um co-enunciador que é preciso

mobilizar a fim de fazer aderir „fisicamente‟ a um certo universo de sentido.”, traz à tona

algumas noções discursivas importantes para a construção desta análise e a busca em torno da

constituição dos múltiplos sujeitos, como ethos e adesão.

Adentrando a peça “O Rei da Vela”, percebe-se que a construção de Abelardo I é

tecida sobre elementos que se imbricam e se afastam mutuamente, construindo-o enquanto

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homem que se faz na confluência das divergências do seu próprio tempo. Ele é múltiplo,

apesar de considerar e se „enunciar‟ uno.

Observando trechos em análise, pode-se perceber que isso se materializa, claramente,

na enunciação de Abelardo I, quando este, ao revelar-se e construir-se identitariamente tenta,

também, mobilizar o leitor em sua visão de mundo. Partindo do pressuposto de que “Também

no discurso literário o ethos desempenha um papel de primeiro plano, dado que, por natureza,

visa a instaurar mundos que ele torna sensíveis por seu próprio processo de enunciação.”

(MAINGUENEAU, 2005, p. 88), é perceptível como o discurso de Abelardo I e a imagem

construída de si, na sua própria enunciaçã, alia-se à constituição da identidade de um homem

atrelado aos valores de sua época e atento ao seu tempo.

No primeiro ato, que é reservado para mostrar como esse personagem opera seus

negócios, as primeiras cenas revelam o contato com os seus credores, um cliente de nome

Manoel Pitanga de Moraes, outros marcados pelo nome de vozes, clientes representados por

suas nacionalidades (um italiano, uma francesa, um russo branco, um turco); com o seu fiel

auxiliar Abelardo II e com um padre que lhe faz uma ligação.

Na primeira cena, o cliente Manoel Pitanga recorre, novamente, aos serviços de

empréstimos oferecidos pela casa de Abelardo I. Ele pede que o usurário reconsidere a dívida

que mantém há anos com o escritório. Abelardo I, por sua vez, argumenta a impossibilidade

disso. Após analisar a situação do cliente, inicia a conversa. É na confluência desse diálogo

com o cliente que se inicia o delineamento dos múltiplos sujeitos através de Abelardo I.

a) Trecho 01 (página 39/40)

ABELARDO I - Traga o dossiê desse homem

ABELARDO II - Pois não! O seu nome?

O CLIENTE (Embaraçado, o chapéu na mão, uma gravata de corda no pescoço

magro)- Manoel Pitanga de Moraes.

ABELARDO II - Profissão?

O CLIENTE - Eu era proprietário quando vim aqui pela primeira vez. Depois fui

dois anos funcionário da Estrada de Ferro Sorocabana. O empréstimo, o primeiro,

creio que foi para o parto. Quando nasceu a menina...

ABELARDO II - Já sei. Está nos IMPONTUAIS. (Entrega o dossiê reclamando e

sai)

– ABELARDO I (Examina) - Veja! Isto não é comercial, seu Pitanga! O senhor fez

o primeiro empréstimo em fins de 29. Liquidou em maio de 1931. Fez outro em

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junho de 31, estamos em 33. Reformou sempre. Há dois meses suspendeu o serviço

de juros... Não é comercial...

O CLIENTE - Exatamente. Procurei o senhor a segunda vez por causa da demora de

pagamento na Estrada, com a Revolução de 30... Foi um mau sucesso que

complicou tudo...

– ABELARDO I - O senhor sabe, o sistema da casa é reformar. Mas não podemos

trabalhar com quem não paga juros... Vivemos disso. O senhor cometeu a maior

falta contra a segurança do nosso negócio e o sistema da casa...

O CLIENTE - Há dois meses somente que não posso pagar juros.

– ABELARDO I - Dois meses. O senhor acha que é pouco?

O CLIENTE - Por isso mesmo é que eu quero liquidar. Entrar num acordo. A fim de

não ser penhorado. Que diabo! O senhor tem auxiliado tanta gente. É o amigo de

todo mundo... Por que não há de fazer um acordo?

– ABELARDO I - Aqui não há acordo, meu amigo. Há pagamento!

Analisando esta primeira passagem, é possível delinear duas faces que se mesclam na

constituição do ethos da Abelardo I: de um lado, alguém compreensivo apto a ajudar, que se

traveste da instituição que representa a fim de justificar seus atos; de outro, alguém pouco

amistoso, preocupado apenas com o valor do capital. São essas duas faces que, de forma

amalgamada, comportam a justificativa quase dramática (“O senhor sabe, o sistema da casa é

reformar. Mas não podemos trabalhar com quem não paga juros... Vivemos disso”) e a

sentença assertiva (“Aqui não há acordo, meu amigo. Há pagamento!”) lado a lado até o final

da cena.

Observa-se, através das marcações linguísticas, como na palavra “dossiê”, que a

relação que se estabelece entre os sujeitos é de crime, uma vez que o cliente nega-se a pagar.

Há uma espécie de armadilha discursiva porque quem se constrói como bom é Abelardo I,

que empresta, que serve, que negocia, e não o cliente que está ali para um golpe. O sobrenome

do cliente (Pitanga) guarda também uma significação interessante, pois dentro do nome

(Pitanga), guarda-se a palavra “tanga” que, na época, era uma gíria para indicar a situação de

quem era devedor.

Como acredita-se que “Um sujeito ao enunciar presume uma espécie de „ritual social

da linguagem‟ implícito, partilhado pelos interlocutores.” (MAINGUENEAU 1997, p.30),

percebe-se que a construção da imagem de Abelardo I se dá também através da fala do

cliente, que o julga “amigo de todo mundo”, por ser este o agiota mais procurado em toda a

cidade e ser este o mais útil, nos momentos de angústia econômica por que passaram boa

parte dos paulistas da década de 30.

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Avançando um pouco mais na cena, o cliente solicita a Abelardo I uma pequena

redução do capital; neste momento Abelardo argumenta, trazendo uma reflexão que deixa o

cliente sem palavras. Neste pedaço da obra observa-se, inclusive, um léxico inquisitorial

(executar), mas com certo tom de modernidade (fuzile). Pode-se entender tal processo como

atualização da pena dos devedores.

b) Trecho 02 (página 42)

ABELARDO I – Me diga uma coisa, seu Pitanga. Fui eu que fui procurá-lo para

assinar este papagaio? Foi o meu automóvel que parou diante do seu casebre para

pedir que aceitasse o meu dinheiro? Com que direito o senhor me propõe uma

redução no capital que eu lhe emprestei?

O CLIENTE (Desnorteado) - Eu já paguei duas vezes...

ABELARDO I - Suma-se daqui! (Levanta-se) Saia ou eu chamo a polícia. É só dar o

sinal de crime neste aparelho. A polícia ainda existe...

O CLIENTE - Para defender os capitalistas! E os seus crimes!

ABELARDO I – Para defender o meu dinheiro! Será executado hoje mesmo. (Toca

a campainha) Abelardo! Dê ordens para executá-lo! Rua! Vamos. Fuzile-o. É o

sistema da casa.

Como o “O ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o

outro.” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 60), é através da imagem estereotipada de um agiota

que a imagem de Abelardo e de seu discurso são ancorados. Para ele, seu trabalho é digno e

limpo já que não houve uma tentativa de sedução por sua parte a fim de influenciar o homem

a pedir dinheiro. Isso mostra como a construção de um mundo discursivo se apóia

substancialmente em mundos já construídos, já alicerçados socialmente.

No dizer de Foucault (2007), o discurso não é transparente nem neutro, ele é um

reflexo do momento em que foi constituído, já que

em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,

selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm

por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,

esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2007, p. 9).

Assim, é através da instituição, que Abelardo I representa (o universo dos usurários),

que ele se enuncia e valida seu argumento. Não há possibilidade de ser diferente.

Na relação que estabelece com o capital, Abelardo I, em um processo de argumentação

sólida, vale-se do discurso da prestação de serviço e da oferta e procura, para convencer o

devedor sobre a responsabilidade que este tem em relação à sua derrocada de dívidas. Ao

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questionar o cliente, Seu Pitanga, Abelardo I constrói seu discurso sobre o discurso do

capitalismo, já que um das bases de tal forma de manutenção econômica é a lei de mercado:

se o cliente procurou, não há justificativa para não aceitar as condições estabelecidas pelo

escritório de usura. Como no trecho em que questiona “Fui eu que fui procurá-lo para assinar

este papagaio?”. Isso revela como o discurso de Abelardo, em consequência a sua construção,

enquanto sujeito, está ancorado na premissa maior do discurso capitalista: a lei de mercado.

Na cena subsequente, da qual participam apenas Abelardo I e seu empregado Abelardo

II, o agiota revela como, para ele, a instituição familiar deve ser percebida e aceita e como

encara seu casamento com Heloísa de Lesbos, filha de um aristocrata falido, vítima da crise

de 29, ambos fincados nos ideais do capitalismo:

c) Trecho 03 (página 43/44)

ABELARDO I – [...] Não confunda seu Abelardo! Família é uma coisa distinta.

Prole é de proletariado. A família requer a propriedade e vice-versa. Quem não tem

propriedades deve ter prole. Para trabalhar, os filhos são a fortuna do pobre [...] Seu

Abelardo, a família e a propriedade são duas garotas que frequentam a mesma

garçonnière, a mesma farra...quando o pão sobra...Mas quando o pão falta, uma sai

pela porta e a outra voa pela janela [...] Para nós, homens adiantados, que só

conhecemos uma coisa fria, o valor do dinheiro, comprar esses restos de brasão

ainda é negócio, faz vista num país colonial como o nosso! O senhor sabe que São

Paulo só tem dez famílias?

ABELARDO II - E o resto da população?

ABELARDO I - O resto é prole. O que eu estou fazendo, o que o senhor quer fazer é

deixar de ser prole para ser família, comprar os velhos brasões, isso até parece teatro

do século XIX. Mas no Brasil ainda novo.

Ethos de um homem de negócios, prático e calculista, Abelardo I sabe que precisa de

uma posição social que ainda não possui, por ser um burguês ascendente, para se legitimar

socialmente. Homem difuso, tem consciência do atraso, ao passo que se revela à frente do seu

tempo, justamente por essa percepção. A metáfora do atraso anda lado a lado com uma

imagem de um homem empreendedor que compreende plenamente o papel que quer e que

deve assumir. Como se sabe, para a Análise do Discurso, “Assujeitar-se é condição

indispensável para ser sujeito. Ser assujeitado significa antes de tudo ser alçado à condição de

sujeito” (FERREIRA, 2005, p. 18), é assim que Abelardo I se constrói sujeito.

Ao falar dos desvios sexuais atribuídos à família de Heloísa e a ela mesma, Abelardo

encontra, na própria instituição familiar e na tradição aristocrática, uma justificativa, mostra-

se, assim, tendencioso, como revela seguinte passagem:

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d) Trecho 04 (página 43)

ABELARDO I – Coisas que se compreendem e relevam numa velha família!

Heloísa, apesar dos vícios que lhe apontam. Você sabe, toda gente sabe. Heloísa de

Lesbos! Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio, para nos casarmos.

Disseram que era na Grécia. Apesar disso, ela ainda é a flor mais decente dessa

velha árvore bandeirante. Uma das famílias fundamentais do Império.

A diminuição do fato, perante a importância da tradição familiar, como mostra o

trecho, coaduna com um trecho anteriormente dito por Abelardo I, quando afirmava que uns

restos de brasões ainda faziam vista num país colonial, confirmando a construção de uma

identidade permissiva e volúvel que se faz na confluência de um jogo de interesses.

e) Trecho 05 (página 49/51)

ABELARDO II (atendendo)- Alô! É o padre! Aquele da entrevista! Está, reverendo!

Vem já...

ABELARDO I - Mas você marcou?

ABELARDO II - Não marquei nada.

ABELARDO I (toma o fone) - Bom dia, reverendo! Sou eu mesmo, Abelardo... Ah!

Com muitíssima honra... Esperarei vossa reverendíssima. Pode ser às quatro horas?

Então... sem dúvida... Beijo-lhe as mãos! Sempre às suas ordens. (Depõe o telefone)

Este padre é engraçado... Não me larga... Eu não sou eleitor... Ele não quer

dinheiro...

ABELARDO II - Quer sua alma...

ABELARDO I - Evidentemente é um caso raro. Um homem preocupar-se comigo

sem ser logo à vista... Quanto?

ABELARDO II - Ele prefere tratar desde já do seu testamento.

ABELARDO I – Inútil. Eu morro ateu e casado.

ABELARDO II – É isso mesmo que ele quer. A viúva cuidará bastante de sua alma

que terá ido... para o purgatório.

ABELARDO I - Diga-me uma coisa, seu Abelardo, você é socialista?

ABELARDO II - Sou o primeiro socialista que aparece no Teatro Brasileiro.

ABELARDO I - E o que você quer?

ABELARDO II - Sucedê-lo nessa mesa.

ABELARDO I - Pelo que vejo o socialismo nos países atrasados começa logo

assim... Entrando num acordo com a propriedade...

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ABELARDO II - De fato... estamos em um país semicolonial...

ABELARDO I - Onde a gente pode ter ideias, mas não é de ferro.

ABELARDO II - Sim. Sem quebrar a tradição.

Nesta cena, a ação se passa ao telefone, entre Abelardo I e um padre, seu conhecido.

Pode-se perceber dois momentos de Abelardo neste trecho: o primeiro, ao falar com o padre,

que gira em torno de conceitos espirituais; e o segundo, que gira em torno de conceitos como

a luta de classes. Analisando o primeiro, pode-se perceber que Abelardo constrói um

prolongamento de sua visão de mundo para o padre que está ao telefone, pois, ao duvidar das

intenções do reverendo ele transpõe a imagem de capitalista, sem medida, também para o

padre. Depois da resposta de Abelardo II, há a conclusão que este estava certo: o padre

também era movido pelo capital.

Esta ancoragem no discurso de outrem faz com que o ethos de Abelardo seja

confirmado, pois ele não passa de um produto dessa sociedade capitalista. Ao tecer o

comentário crítico sobre o socialismo (“o socialismo nos países atrasados começa logo

assim... Entrando num acordo com a propriedade”), Abelardo I, novamente, tenta revelar ao

interlocutor sua visão de mundo e, portanto, a imagem que quer construir de si mesmo. Ele se

coloca em uma posição estratégica, pois critica a maneira de se fazer oposição em um país

dominado pelo capital estrangeiro.

De forma visível, seu discurso trabalha em cima da desconstrução e da reconstrução de

imagens sedimentadas socialmente, como o usurário capitalista e o empregado engajado com

a luta de classes, mostrando que, independente da posição que se assuma, o resultado apontará

para o mesmo caminho: a dominação daqueles que detém o poder (o capital) sobre aqueles

que são seus subordinados.

Tomando como ponto de análise uma discussão transcorrida no 2º ato (p. 70), entre

Abelardo I e D. Cesarina (mãe de Heloisa), pode-se perceber como Abelardo insiste em

imprimir o ethos de um homem „moderno‟, adiante de seu tempo, em contraposição à

referência aristocrática. Percebe-se que essa cena gira em torno de dois personagens que, à

primeira vista, se configuram como antitéticos, pois Abelardo I representa o poder burguês,

sem nome, e D. Cesarina é a representante mais pura da aristocracia cafeeira, que não aceita a

entrada de um alpinista social em sua classe. Contudo, em outras cenas, D. Cesarina, apesar

de negar, flerta com Abelardo, em uma simbologia clara ao fascínio que o capital burguês

exerce sobre os falidos oligarcas (mais adiante será analisado este tópico).

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f) Trecho 6 (página 70)

D.CESARINA – Me diga uma coisa, seu Abelardo, o senhor não tem ciúmes?

ABELARDO I (surpreso) – Ora essa!

D.CESARINA – Aquele alemão!

ABELARDO I – Alemão? Americano. Americano e banqueiro!

D.CESARINA – Ele anda com uns brinquedos brutos com a Heloísa!

ABELARDO I – Ah! É boxe. Ela está aprendendo a jogar boxe. De vez em quando

uns golpes de luta livre... Ele é campeão de tudo isso em Nova York, Wall Street.

D.CESARINA – Pois olhe, seu Abelardo. Eu ficaria roída se alguém que eu amo

tivesse aquelas liberdades com um estranho.

ABELARDO I – Mas d. Cesarina! Eu me prezo de ser um homem da minha época!

A senhora quer que eu perca tempo em ter ciúmes? (Imita dramaticamente um casal

em choque) Diga, Heloísa! Quem era aquele homem? – Eu fui lá só para dar um

recado. – Foste lá! Confessas! Entrastes naquela casa, naquele antro! Traíste-me,

perjura! – Ah, meu amor, que desconfiança também, que injustiça! Um homem feio

daquele! Eu fui lá só por causa do recado! – Maldita! Pum! Pum! (Ri) Oh!Oh! Ah! É

isso? Essa ridicularia que divertiu e ensanguentou gerações de idiotas. É isso... O

ciúme!

Analisando os trechos em destaque, percebe-se que Abelardo I se auto-intitula um

homem da sua época, que acredita que os sentimentos oriundos da concepção romântica de

relacionamentos amorosos foram os responsáveis por atrasos (idiotas). Neste momento, tal

discurso ativa uma memória discursiva que retorna aos aspectos literários antecessores ao

Modernismo, como uma forma de contraposição clara, principalmente, ao Romantismo.

Isso também fica claro pelas escolhas linguísticas do próprio diálogo, forjado por

Abelardo I. Percebe-se que a escolha pela segunda pessoa (foste, traíste, entraste) traz, em seu

bojo, um tom de formalidade que não faz mais parte do universo dos modernistas. Esta

representação, até certo ponto jocosa, estabelece ainda mais o afastamento que Abelardo I

julga ter desses elementos antigos e ultrapassados.

Percebe-se que a ironia da imitação das vozes é uma ridicularização aos diálogos,

impregnados de sentimentalismo. Como forma de negação, a ironia se configura como um

ponto de conflito, já que um homem moderno (lê-se, afeito aos ideais capitalistas, segundo o

discurso da obra) não pode “perder tempo com ciúmes”. Em contraposição, D. Cesarina

afirma que ficaria “roída”.

A força do ideal capitalista também está presente quando Abelardo afirma ser o

americano campeão de boxe e luta livre em Wall Street e que, por esse motivo, não vê

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problema em Heloisa ser treinada por ele. É mais uma referência ao que de valoroso interessa

ao homem moderno: o capital.

Em um trecho posterior, Abelardo I começa a tomar decisões acerca dos clientes que

lhe devem e tece os seguintes comentários:

g) Trecho 07 (página 46)

ABELARDO I – A rua inteira sabe que penhorei porque não me pagaram 200$000.

A cidade inteira sabe. Talvez gastasse mais nisso... que importa? Dura Lex, aprendi

isso na faculdade de Direito! [...] Linche esse camarada! Ponha flite nele e ascenda o

fósforo! Pro pau com esse bandido! Lei contra a usura! Miseráveis! Por isso é que o

país se arruína. E há um miserável que quer se aproveitar dessa iniquidade.

ABELARDO II – Leis sociais...

ABELARDO I – Súcia de desonestos. Intervir nos juros. Cercear o sagrado direito

de emprestar o meu dinheiro à taxa que eu quiser! E que todos aceitam. Mais! Que

vem implorar aqui! Sou eu que vou buscá-los para assinar papagaios? Ou são eles

que todos os dias enchem minha sala de espera.

Abelardo I utiliza-se do argumento de “sagrado direito” para justificar suas cobranças

de juros perante o capital emprestado. Percebe-se, com isso, que ele tenta imprimir um ethos

de um homem digno e ético, pois é apenas mais um prestador de serviço, mas seu discurso

desliza para a construção de um homem impiedoso e cruel ao revelar como consegue manter

seus negócios. Ele constrói um discurso de que não gostaria de proceder dessa forma, mas que

não vê alternativa, diante da “Súcia de desonestos” que todos os dias batem a sua porta.

Este afastamento é construído, novamente, pela ativação da memória discursiva de

que, aos usurários, no caso representado por Abelardo I, não cabe nenhuma culpa, pois este

deve ser considerado como um bom homem que empresta seu dinheiro a miseráveis falidos. A

adesão é feita através da argumentação de que, na necessidade, todos aceitam sorridentes as

condições estabelecidas pelo usurário, para ele isso é o “sagrado direito”, portanto maus são

aqueles que não pagam. É como se o discurso de Abelardo I construísse uma espécie de

armadilha, capaz de trancafiar as possibilidades de contra-argumentação dos clientes. Nesta

inversão, Abelardo I assume o papel de bom homem, coadunando com a imagem já

construída em trechos anteriores, quando este foi intitulado de “amigo de todos”. Mas,

percebe-se que, mais adiante, Abelardo I abandona tal ethos e se deixa perceber quando

vocifera contra os clientes, afirmando que, para eles, o melhor era a morte (trecho a seguir).

O fato de ter que agir dessa forma o afasta dos sentimentos de pena e caridade,

construídos pelas lamentações dos inúmeros clientes, no mesmo trecho:

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h) Trecho 08 (página 46)

UMA VOZ DE MULHER – Meu marido bebeu estricnina.

OUTRA – Minha mãe tomou Lisol.

OUTRA – meu pai se jogou do viaduto.

ABELARDO I – Lisol! Estricnina! Viaduto! É do que vocês precisam, canalhas!

Neste instante, o bom homem retorna para o ethos de homem frio e impiedoso, como

quando ordena que fuzile os clientes. Com isso, pode-se dizer que, da mesma forma que se

constrói na intersecção do antigo e do moderno, ele se constrói enquanto sujeito na dicotomia

bom/mal. Na página 63, diálogos depois e próximo ao término do primeiro ato, Abelardo I

retoma tal construção em conversa com sua noiva Heloisa, como se vê:

i) Trecho 09 (página p.46)

ABELARDO I – Estamos de fato num ponto crítico em que podem predominar,

aparentemente e em número, as pequenas lavouras. Mas nunca como potência

financeira. Dentro do capitalismo, a pequena propriedade seguirá o destino da ação

isolada nas sociedades anônimas. O possuidor de uma é um mito econômico.

Senhora minha noiva, a concentração do capital é fenômeno que eu apalpo com as

minhas mãos. Sob a lei da concorrência, os fortes comerão sempre os fracos. Desse

modo é que desde já os latifúndios paulistas se reconstituem sob novos proprietários.

HELOISA – Formidável trabalho o seu!

ABELARDO I – Não faça ironia com sua própria felicidade! Nós dois sabemos que

milhares de trabalhadores lutam de sol a sol para nos dar farra e conforto. Com a

enxada nas mãos calosas e sujas. Mas eu tenho tanta culpa como o papa-níquel bem

colocado que se enche diariamente de moedas. É assim a sociedade em que

vivemos. Regímem capitalista que Deus guarde...

HELOISA – E você não teme nada?

ABELARDO I – Os ingleses e americanos temem por nós. Estamos ligados ao

destino deles. Devemos tudo, o que temos e o que não temos. Hipotecamos

palmeiras...quedas d‟água. Cardeais!

HELOISA – Eu li no jornal que devemos só à Inglaterra trezentos milhões de libras,

mas só chegaram até aqui trinta milhões...

ABELARDO I - É provável! Mas compromisso é compromisso! Os países

inferiores têm que trabalhar para os países superiores como os pobres trabalham para

os ricos. Você que acredita que Nova York teria aquelas babéis vivas de arranha-

céus e as vinte mil pernas mais bonitas da Terra se não se trabalhasse para Wall

Street de Ribeirão Preto a Cingapura, de Manaus a Libéria? Eu sei que sou um

simples feitor do capital estrangeiro. Um lacaio se quiserem! Mas não me queixo. É

por isso que possuo uma lancha, uma ilha e você...

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Neste trecho, há uma espécie de síntese do discurso sobre a visão do capitalismo que

permeia a personagem. Para Abelardo I, ele tem tanta culpa quanto a máquina de caçar

níqueis colocada no lugar correto. Essa comparação revela o quanto o personagem se percebe

engrenagem do universo da exploração, e tem consciência disso, pois é apenas o recolhedor

do dinheiro. O capital não pertence a ele, ele é apenas o “feitor” de um processo maior que é o

imperialismo norte-americano e seu capitalismo.

Como o primeiro ato, marcadamente, funciona como uma apresentação de Abelardo I,

ao fim se dá a síntese sobre a construção desse personagem enquanto sujeito, e pode-se

perceber como está bem representado, em sua ideologia, a roda viva à qual faz parte. De

modo que não é possível estabelecer qualquer espécie de contra-argumentação, nem irônica,

como faz Heloisa, diante da lógica que ele constrói como necessária para se mover uma

estrutura cujas bases se assentam na mais pura exploração consentida.

E a aceitação está alicerçada na realidade de privilégios a que tem acesso. O alto custo

pago por Abelardo I para se tornar o afamado Rei da vela parece irrisório diante de tudo que

possui. Abelardo I tem uma misteriosa consciência de que joga com cartas escuras, mas não

se arrepende, pois é apenas uma parte do processo de exploração que ajuda a construir e que

será seu ponto de derrocada.

Baseando-se em Magaldi (2004, p. 70), que diz que “Abelardo I, em todos os campos

em que atua, representa uma situação-limite, um exagero lucidamente calculado para ilustrar

com didatismo uma verdade.”, pode-se perceber que o personagem Abelardo I funciona como

um elemento desencadeador de verdades obscurecidas. Ele, através da total consciência da

exploração a que faz parte traz, em seu discurso, a projeção dos sacrifícios necessários ao

avanço e a completa lucidez sobre os prejuízos de tal aceitação. Mergulhado nesses ideais,

transpõe o discurso do capitalista para seu discurso e se constrói de forma dicotômica: ele é

um bom homem mau.

4.2 INSTITUIÇÃO FAMILIAR

Oswald de Andrade, em “O Rei da Vela”, mostra a crise de 1929 por meio de uma

aliança despudorada entre a aristocracia rural falida, representada por Heloísa de Lesbos e o

novo rico, burguês, representado por Abelardo, agiota e dono de uma fábrica de velas. O

casamento de Abelardo e Heloísa é um negócio que interessa a ambos e, principalmente, a

Mister Jones, o americano.

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j) Trecho 10 (página 43/44)

ABELARDO I – [...] Não confunda seu Abelardo! Família é uma coisa distinta.

Prole é de proletariado. A família requer a propriedade e vice-versa. Quem não tem

propriedades deve ter prole. Para trabalhar, os filhos são a fortuna do pobre [...] Seu

Abelardo, a família e a propriedade são duas garotas que frequentam a mesma

garçonnière, a mesma farra...quando o pão sobra...Mas quando o pão falta, uma sai

pela porta e a outra voa pela janela [...]

ABELARDO II - E o resto da população?

ABELARDO I - O resto é prole. O que eu estou fazendo, o que o senhor quer fazer é

deixar de ser prole para ser família, comprar os velhos brasões, isso até parece teatro

do século XIX. Mas no Brasil ainda novo.

Pode-se observar que Abelardo I compara, ressaltando as diferenças, família e prole.

Para tanto, vale-se da própria palavra, „prole‟, para chegar à ideia de proletariado. Em seu

discurso revela que família, por ser um conceito superior, necessita do capital (evidenciado

pela palavra „propriedade‟). Ao usar a metáfora da garçonnière evidencia ainda mais a

concepção de que os mais abastados têm privilégios que só a classe e o poder lhe concebem.

Mas que, ao despertar da crise, ambos não podem coexistir.

Há um novo deslizamento do discurso de Abelardo, que ultrapassa os ideais de sua

classe, a ponto de perceber que a forma de manutenção econômica, encarada pela sociedade

como vital, não trará a sorte que todos acreditam. Enquanto sujeito dicotômico, vislumbra

uma realidade por muitos não aceita e deixa entrever o interdiscurso que constrói a obra:

buscando teses marxistas, só a verdadeira revolução libertará.

Mais adiante, concretiza-se a visão estabelecida acerca da família quando Abelardo I e

Abelardo II iniciam um diálogo sobre a família de Heloisa:

l) Trecho 11 (página 45)

ABELARDO I – Você sabe que não há outro gênero no mercado (referindo-se a

Heloisa). Eu não ia me casar com a irmã mais moça que chamam por ai de garota da

crise e de João de Divãs. Nem com o irmão menor que todo mundo conhece por

Totó-fruta-do-conde!

ABELARDO II – Um degenerado...

ABELARDO I – Coisas que se compreendem e relevam numa velha família!

Heloisa, apesar dos vícios que lhe apontam...você sabe, toda a gente sabe. Heloisa

de Lesbos! Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio, para nos casarmos.

Disseram que era na Grécia. Apesar disso, ela ainda é a flor mais decente dessa

velha árvore bandeirante. Uma das famílias fundamentais do Império.

ABELARDO II – O velho está de tanga, entregou tudo aos credores.

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ABELARDO I – Que importa? Para nós, homens adiantados, que só conhecemos

uma coisa fria, o valor do dinheiro, comprar esses restos de brasão ainda é negócio,

faz vista num país colonial como o nosso! O senhor sabe que São Paulo só tem dez

famílias?

A degeneração sexual da família de Heloisa torna-se um pequeno detalhe, pelo fato de

pertencer a uma família aristocrática. Esse discurso reforça a ideia de que o poder concedido

pelo status quo e pelo dinheiro são fatores preponderantes à moral. Para Abelardo I, que se

considera “homem adiantado”, o casamento arranjado lhe concederá o livre acesso ao brasão

que tanto deseja, para deixar de ser prole e tornar-se família.

Com isso, há a sedimentação de uma imagem, de um ethos, de um homem que

transpõe os padrões considerados éticos socialmente para chegar a um espaço dominado pelo

poder do nome, “comprar esses restos de brasão ainda é negócio, faz vista num país colonial

como o nosso!”. Ele ainda se vale da ideia de atraso para transfigurar a construção de um

sujeito adiantado e atento às necessidades do seu tempo.

Mais adiante há a sedimentação deste discurso, em um tom mais irônico, quando

Abelardo I retoma a descrição da família de Heloisa:

m) Trecho 12 (página 88)

ABELARDO I – Um é o Totó-Fruta-do-Conde. O outro, este bêbedo perigoso.

Virou fascista agora. Minha cunhada veio sentar de maiô em meu colo para eu

coçar-lhe as nádegas...com cheques naturalmente. A sogra caída...a outra velha...E

eu é que devo me sentir honradíssimo...por entrar em uma família digna, uma

família única.

Se no primeiro ato é possível construir a imagem de Abelardo I, em sua relação mais

direta com o capitalismo (haja vista que a cena se passa em seu escritório), o segundo ato é

um espaço cujo tema instituição familiar é recorrente. Este ato, como já pontuado

anteriormente, passa-se em ilha adquirida por Abelardo. Nessa ilha estão os familiares de

Heloisa (Coronel Belarmino, pai, D. Cesarina, mãe, D. Poloca, tia, Totó, irmão, João dos

Divãs, irmã, Perdigoto, o outro irmão, e o americano.

Como já revelado, Abelardo I constrói seu ethos de homem avançado relevando e

compreendendo alguns vícios da família de Heloisa. Ele constrói a imagem de que, para ele,

família significa posse e poder e que, portanto, faz parte da necessidade do homem

contemporâneo, sentir-se incluso nesse processo de degeneração sexual. Agora, no segundo

ato, Abelardo I irá reforçar este ethos na medida em que também fará parte da construção e da

representação social do conceito de instituição familiar da São Paulo, década de 30.

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n) Trecho 13 (página 74)

ABELARDO I – Por que é que a senhora há de ser tão simpática quando estamos a

sós. E tão infame na frente dos outros?

D. POLOCA – Mas como é que o senhor quer que eu proceda em sociedade?

ABELARDO I – Quero que proceda humanamente.

D. POLOCA – Desde quando que a humanidade é um pedaço de marmelada seu

Abelardo? Eu defendo o meu ponto de vista de tradição e de família?

Intransigentemente. Sou sua melhor amiga (carinhosa) em segredo. Mas não posso

dar confiança em público a um novo rico, a um arrivista, a um Rei da Vela!

ABELARDO I – E se eu a fizesse Rainha do Castiçal?

D. POLOCA – Prefiro ser a neta da Baronesa de Pau-Ferro. A neta pobre e inválida

que sempre viveu do pão dos irmãos e cujo resto de família foi salvo por

um...intruso!

ABELARDO I – Por um intruso...

D. POLOCA – Que nos tira das ruínas mas tem que reconhecer as diferenças sociais

que n os separam. Tenho sessenta e dois anos. Vi as poucas famílias que restam do

Império se degradarem com alianças menores! [...] Sei que é esse o destino da minha

gente. Mas resisto me opondo às relações fáceis e equívocas da sociedade moderna.

ABELARDO I – Me diga ma coisa, D. Poloca, se não fosse esse avacalhamento,

permita-me a expressão, é de Flaubert!

D. POLOCA – Diga decadência, soa melhor!

ABELARDO I – Bem! Se não fosse essa decadência. É realmente, é mais

suave...Como é que vocês, permita a expressão, comiam?

D. POLOCA - Seu Abelardo, a gente não vive só de comida!

ABELARDO I – Está ai um ponto em que eu discordo profundamente de Vossa

Majestade! Não podemos mais nos entender. A senhora vive de aragens...Eu de

bifes.

Basicamente neste ato, há uma espécie de conflito entre os ideais da burguesia

ascendente (representada por Abelardo I) e da aristocracia falida (representada por D. Poloca,

tia de Heloisa e exemplar típico desta classe). Essa dicotomia, aparentemente insolúvel, se

constrói a partir da relação tensa que se estabelece entre essas duas personagens. Mas,

percebe-se que esta antítese é apenas imaginada, pois D. Poloca, que antes se mostrava

irredutível, se rende aos encantos do capitalismo, personificado em Abelardo.

O embate ideológico das vozes dissonantes, que se constrói em vários momentos em

que se tem a instituição familiar como foco, tece a representação de que a aristocracia

cafeeira, falida na São Paulo de 30, vê-se seduzida pela possibilidade de continuar poderosa

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aliando-se à burguesia ascendente. Apesar de tentar negar, não consegue resistir, construindo,

assim, a imagem de que o valor da tradição não é válido em um momento cujo capital

estrangeiro domina. Há um cruzamento interdiscursivo neste trecho que remonta à ideia de

que os aristocratas constroem-se de maneira alheia à realidade, deslocados do mundo, por isso

Abelardo I afirma que vive de bifes e D. Poloca de aragens.

Na cena final do segundo ato, isso se torna bastante nítido, quando D. Poloca e

Abelardo planejam uma noite de amor:

o) Trecho 14 (página 91)

ABELARDO I (Ajoelhando-se) – Deixe-lhe beijar os pés! Santinha! O maiô pelo

menos! (Levanta-se). Pois olhe, há de ser comigo. Eu lhe dou uma viagem a

Petrópolis! Tomaremos nós dois sozinhos a lancha. Sulcaremos baía. Jantaremos no

Rio num grande restaurante. Mas à noite... À noite...

D. POLOCA – Uma noite de amor!Nesta idade!

ABELARDO I – A primeira... Diga que aceita...

D. POLOCA – Olhe que eu não sou de ferro.

ABELARDO I – Vou mandar preparar a lancha... E uns bolinhos...

D. POLOCA – Uns pés-de-moleque. A-ba-fa.

ABELARDO I – Abafa! (saindo pela direita. Atira um beijo...dois...) Ao luar! Esta

noite. (TELA)

Neste trecho final, pode-se entender a noite de amor entre as personagens como uma

construção metafórica da rendição da aristocracia aos apelos da burguesia. D. Poloca, cujo

nome funciona como uma desconstrução do nome „polaca‟ – alcunha dada às prostitutas da

época –, que se mostrava firme aos propósitos da tradição e da moral, aceita ter sua primeira

noite com Abelardo I.

Em troca, Abelardo lhe concederá pequenos agrados (uma viagem, um jantar, doces),

mostrando como a sedução entre as classes se dá por meio de trocas. Essa cena pode ser

considerada síntese da representação social que a peça quer construir acerca da instituição

familiar em meados dos anos 30, simbolizando a degradação de um conceito de família para

ascensão de outro advindo de uma nova conjuntura econômica.

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4.3 LUTA DE CLASSES

O terceiro ato da peça, como já explanado anteriormente, gira em torno da derrocada

de Abelardo I. Em uma cena que tem como pano fundo os restos de um hospital, instalado no

escritório do usurário, Abelardo I sucumbe, vítima da própria engrenagem que ajudou a

mover. Seu alter-ego, Abelardo II, toma seu lugar, inclusive com direitos sobre sua noiva,

evidenciando o imobilismo a que estávamos submetidos: a exploração apenas passa de uma

mão a outra, que não deixa de ser a representação da mesma mão.

Neste ato, Abelardo começa a vislumbrar a luta marxista, o socialismo e os ideais de

uma revolução em que a classe operária irá tomar as ruas e promover uma mudança. Para este

personagem, só uma mudança radical no último ato promoverá a transformação necessária

para os avanços de que tanto necessita o país. Contudo, como homem dicotômico que é,

morre afirmando que se pudesse continuaria a servir o imperialismo norte-americano.

Na peça “O Rei da Vela”, a revolução, embora nomeada e definida, também não vai

além de seu anúncio e conta apenas com a certeza de sua vinda. A revolução confunde-se com

o próprio futuro e é tratada como uma inevitabilidade. Essa inevitabilidade parece depender

muito mais da vontade, da fé, do que da práxis (como no trecho “Onde a gente pode ter ideias,

mas não é de ferro”)

p) Trecho 15 (página 50)

ABELARDO I – Diga-me uma coisa, seu Abelardo, você é socialista?

ABELARDO II – Sou o primeiro socialista que aparece no teatro brasileiro.

ABELARDO I – E o que é que você quer?

ABELARDO II – Sucedê-lo à mesa.

ABELARDO I – Pelo que vejo o socialismo nos países atrasados começa logo

assim... Entrando num acordo com a propriedade...

ABELARDO II – De fato... estamos num país semi-colonial...

ABELARDO I – Onde a gente pode ter ideias, mas não é de ferro.

ABELARDO II – Sim. Sem quebrar a tradição.

A afirmação de Abelardo I, de que o socialismo, nos países atrasados, inicia-se

entrando em acordo com o capitalismo, faz perceber uma espécie de descrença em relação à

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mudança de sistema político. Essa descrença pode estar alicerçada na ideia de imutabilidade

do país e na ideia de impossível liberdade. Neste diálogo, percebe-se uma espécie de

confluência de vozes, que se admitem parceiras, de modo que Abelardo II é o alter-ego do I.

Em concordância, revelam-se uma só quando o tema é luta de classes.

q) Trecho 16 (página 103)

ABELARDO II – São todos assim como você, passam para o outro lado quando

estão arruinados!

ABELARDO I – É um erro teu! Se todos fossem como o oportunista cínico que sou

eu, a revolução social nunca se faria! Mas existe a fidelidade à miséria! Eu estou

saindo da luta de classes. [...]

ABELARDO II – Me matas?

ABELARDO I – Para quê? Outro abafaria a banca. Somos...uma barricada de

Abelardos! Um cai, outro o substitui, enquanto houver imperialismo e diferença de

classes. [...] O cálculo frio é a nossa honra. O sistema da casa! Não morro como

convertido. Se sarasse ia de novo lutar pela nota. Ia ser pior do que fui. E mais

precavido. A neurose do lucro! Quem a conhece não a larga mais. É a mais bela

posição do homem sobre a terra! Nenhuma militância a ela se compara. Nenhuma

religião. Se vejo com simpatia, neste minuto da minha vida que se esgota, a massa

que sairá um dia das catacumbas das fábricas... é porque ela me vingará ...de você.

Abelardo revela, nesses momentos que antecedem a sua morte, a conclusão de que só

a luta por um mundo mais igualitário poderia solucionar a situação discrepante que separa

ricos de pobres. Ele, portanto, desmascara o oportunismo, o procedimento da burguesia, que

havia sido também o seu, por uma conduta conscientemente cínica.

r) Trecho 17 (página 103)

ABELARDO I – Ah! Ah! Moscou irradia no coração dos oprimidos de toda a Terra.

ABELARDO II – Sujo! Demagogo!

ABELARDO I – Calma! Não é parecido com o Jujuba, senão no físico. Vou te

contar a história de Jujuba. Era um simples cachorro! Um cachorro de rua... Mas um

cachorro idealista! Os soldados de um cachorro adotaram-no. Ficou sendo o mascote

do batalhão. Mas o Jujuba era amigo dos seus companheiros de ruas! Na hora da

bóia, aparecia trazendo dois, três. Em pouco tempo, a cachorrada magra, suja e

miserável enchia o pátio do quartel. Um dia, o major deu o estrilo. Os soldados se

opuseram à saída do seu mascote! Tomaram o Jujuba nos braços e espingardearam

os outros... A cachorrada vadia voltou para a rua. Mas quando o Jujuba se viu solto,

recusou-se a gozar o privilégio que lhe queriam dar. Foi com os outros!

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ABELARDO II – Demagogia.

ABELARDO I – Não. Ele provou que não! Nunca mais voltou para o quartel.

Morreu batido e esfomeado como os outros, na rua, solidário com sua classe!

Solidário com sua fome. O soldaram ergueram um monumento ao Jujuba no pátio

do quartel. Compreenderam o que não trai. Eram seus irmãos. Os soldados são da

classe do Jujuba. Um dia também deixarão atropeladamente os quartéis. Será a

revolução social... os que dormem nas soleiras das portasse levantarão e virão aqui

procurar o usurário Abelardo! E hão de encontrá-lo...

No trecho, há o discurso narrativo que envolve o cão Jujuba – que se manteve

solidário com os outros cachorros e que não aceitou as vantagens que só o beneficiariam – e

aponta para a seguinte tese: Abelardo I acreditava que a sociedade fosse uma cidadela, que só

poderia ser tomada por dentro, quando a união daqueles que estão lá fora é que permitir, um

dia, a quebra dos privilégios. Os soldados são da classe de Jujuba e acabarão por deixar,

atropeladamente, os quartéis, realizando a revolução social.

Paralelamente às revelações que tece sobre a natureza da exploração imperialista, há,

na parábola do cão Jujuba, uma espécie de sugestão de alternativa. Pode-se considerar, a partir

da história contada, que há uma visão romântica da luta de classes, alicerçada na fidelidade do

proletariado e na união das classes oprimidas.

Nesta perspectiva, a burguesia urbana é tida como corrupta, voraz e cruel, sendo o

imperialismo a raiz primeira do sofrimento, do caos e da miséria. Jujuba representa, na

solidariedade com a classe, uma solução alternativa para a dependência. Analisando as

condições de emergência desse discurso e os acontecimentos subsequentes pode-se, inclusive,

admitir tratar-se de uma visão ingênua.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegar a esse momento derradeiro é tentar, em certa medida, reconstruir o caminho

percorrido. Em outro momento, ficou latente nos escritos o envolvimento que com a peça.

Mas, é importante reforçar que, para poder recompor os caminhos da leitura pretendida,

precisa-se afastar de sensações e partir para a recombinação de elementos que possibilitariam

lançar a análise em solo mais seguro.

Para chegar a esse ponto, inicialmente, propôs-se a uma leitura, um olhar, dentre as

inúmeras possibilidades de olhares que possuía. Escolheu-se os olhos da Análise do Discurso.

Para tanto, recompôs-se as condições de emergência da peça e do discurso. Guardou-se um

bom tempo para isso, pois entende-se que as possibilidades de construção de sentidos se dão

por esse caminho em primeiro plano.

Ao fazer isso, ficou evidentemente claro que a peça “O Rei da Vela” se constrói

através dos meandros do seu próprio tempo e que as vozes que ali circulam são vozes que

trazem o discurso e a ideologia de uma época. Uma época de transformações, marcada por

profundos antagonismos: de um lado a crise e a derrocada de uma classe inteira, do outro a

entrada do capital estrangeiro e suas inúmeras explorações. Nesta simbiose das relações de

classe, os interesses, os conceitos de moral e ética passam por uma revisão, por isso conclui-

se, ao fim da análise da personagem Abelardo I, que ele era um bom homem mau.

Dentro da formação discursiva a que o personagem estava submetido (o capitalismo),

ele se vê impossibilitado de agir de outra forma. Constitui-se sujeito através dos indícios que

marcam sua identidade, enquanto servidor do imperialismo e do capitalismo. Suas atitudes

encontram justificativa neste pressuposto e sua argumentação, baseada na premissa maior

deste sistema econômico (lei de oferta e procura), torna-se cada vez mais sólida.

Abelardo I se constrói, enquanto sujeito, de forma tão enraizada nestas premissas de

exploração que, até no momento de sua morte, reafirma que faria tudo outra vez, apesar de ter

uma consciência cínica de que a luta de classes e a revolução proletária estão por vir. Como já

afirmado anteriormente, ele está à frente do seu tempo ao mesmo tempo em que se liga aos

valores tradicionais que reafirmam a família ser importante para a consolidação do status quo.

Dicotômico por si, conjura o discurso de uma classe social ao passo em que dá vazão às

inúmeras vozes dissonantes da sua realidade.

Dentro dos caminhos que a própria obra suscitou, sentiu-se a necessidade de construir

um quadro de referência dentro da AD para poder cotejar a obra. Traçou-se, para tanto, os

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conceitos básicos que auxiliariam até este momento. Recortaram-se os blocos de análise,

também, a partir de uma recorrência temática que possibilitou lançar um olhar sobre as

estratégias de composição das representações sociais que se viam refletidas e refratadas na

peça.

Ao tentar articular uma análise discursiva das estratégias de construção de sentido da

peça, buscou-se analisar as inúmeras representações que transitavam e o ethos do personagem

Abelardo I. Como tentou-se proceder a uma inspeção linguística, analisaram-se os múltiplos

sujeitos que se locomoviam e construíam os discursos da obra a partir de marcas que levam a

universos de sentidos textuais.

Chegou-se ao tema instituição familiar e percebeu-se como este ponto também se via

ligado ao tema maior, que é a relação burguesia x aristocracia. O discurso e a representação

que se tem deste tema coadunam com a imagem de subserviência ao capital, já que, apesar de

não ser aceito totalmente pela família de Heloisa, Abelardo transita livremente nesta classe

social, por que sabe seduzi-la. A família é vista como parte de um negócio lucrativo que

garante acesso ao universo do poder do nome.

Em “O Rei da Vela”, percebe-se o ataque direto ao conjunto da sociedade capitalista.

O autor critica com vigor certos expedientes de classe e a exploração econômica; caracteriza

de modo burlesco o estelionatário de elite, o subserviente e o rufião. Exibe facetas amargas da

luta pela sobrevivência, situando personagens subjugadas por agiotas, banqueiros que,

desesperadas, negociam dívidas para sobreviver.

Nesta obra, o autor pôs a nu as mazelas da sociedade capitalista, movendo em muitas

camadas de sujeição e perversão. Mostrou as faces da economia, que desmoronou com a

bancarrota do café, destronando a aristocracia rural, que passa a se submeter aos interesses da

emergente burguesia urbana.

Dentro dos inúmeros conflitos indissolúveis que a peça apresenta torna-se latente o

ethos de homem frio e calculista de Abelardo, que se contrapõe aos ideais de luta de classes.

Para ele, que se considera um homem de seu tempo, ignorar o proletariado e a exploração

constróem-se como condições iniciais para a sobrevivência. Contudo, ao fim, próximo a sua

morte, como um ser reflexivo, ele se mostra mais aberto à realidade que está por vir.

Perceber-se-á, enfim, como se articulam, em uma só personagem, elementos que podem ligá-

lo ao discurso de uma aristocracia falida pela crise de 29 e ao discurso de um burguês

ascendente da São Paulo dos anos 30. Através da formação de seu ethos é possível perceber

tais polaridades que se ligam, antes de tudo, ao discurso do avanço do capital estrangeiro tão

presente nesta nação.

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Abelardo é, sem dúvida nenhuma, um homem de seu tempo, conhece o poder “da

nota” ao mesmo tempo em que reconhece o valor “de uns restos de brasões”, já que tudo isso

faz vista em um país colonial como o Brasil. Cindido mas, ao mesmo tempo uno, o discurso

de Abelardo é um retrato de um período de redefinições em todos os campos de atuação do

homem; e tal possibilidade de leitura encontra concretude na imagem que ele tenta projetar de

si mesmo, através de seu discurso, através do seu ethos

Como um representante do seu tempo, a personagem central vê-se imerso em um

sistema voraz, que o devora, mas que, ao mesmo tempo, é desejado por ele. A sua relação

com a instituição familiar, por exemplo, é uma representação do atraso e do avanço da

sociedade paulista da década de 30, assumindo para si o papel de elemento identificador do

homem „moderno‟ em um país colonial.

O quadro que ora se apresenta não se pretende conclusivo nem totalmente abrangente.

Destacam-se apenas os elementos e as dimensões mais evidentes no interior do espaço

discursivo constituído, intentando, em primeira instância, construir uma possibilidade de

leitura de obra tão rica. Tem-se absoluta convicção que inúmeras possibilidades poderiam ter

sido construídas que não essa, mas acredita-se também ser, o trabalho que ora se encerra, uma

contribuição para a construção de sentidos de leitura de uma obra singular.

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