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ANÁLISE LINGUÍSTICO-DISCURSIVA DO ENSAIO “SAUDADE DO TELEVIZINHO” DE ROBERTO POMPEU DE TOLEDO Lauro Sérgio Machado Pereira 1 A presente análise tem como objetivo colocar em prática os elementos de análise textual baseados na tradição linguística, esta denominada de descrição, e também os elementos da análise do discurso (produção, distribuição e consumo) e que está baseada na tradição interpretativa ou microssociológica de levar em conta a prática social da linguagem. (Pedrosa, 2009). O autor do ensaio “Saudade do televizinho”, Roberto Pompeu de Toledo é jornalista com ampla experiência, tendo trabalhado em vários jornais, rádios e revistas brasileiras. Atualmente escreve e é editor especial da revista Veja. O ensaio que servirá como objeto de análise foi publicado pela revista Veja em fevereiro de 2002, ano em que houve eleições para a presidência da república e também a Copa do Mundo. Entretanto, outro fenômeno mundial tinha sua estreia na televisão brasileira, o Big Brother Brasil (Grande Irmão), que era apenas mais uma adaptação feita pela Rede Globo, de um reality show (show da realidade) cuja primeira temporada mundial foi realizada em 1999 nos Países Baixos. Vista a reação positiva da população em geral frente ao novo programa que apresentava uma “realidade” cheia de prazeres carnais, o jornalista voltou aos primórdios da história da televisão no Brasil com o intuito de criticar um novo papel ou função social da televisão. Na verdade, o autor ao mesmo tempo em que discute o desaparecimento de certas palavras devido a falta de função para elas, propõe uma provocação ao dizer que para as coisas existirem, necessitam adentrar o mundo televisivo, ou seja, só há vida na televisão. Feita essa contextualização pode-se partir para a análise pormenorizada dos parágrafos que compõem o ensaio. Inicialmente é fundamental considerar o título do ensaio, “Saudades do Televizinho”, que apresenta duas palavras de 1 Aluno do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Lingüística: Leitura e Produção Textual das FASA - Faculdades Santo Agostinho. 1

ANÁLISE LINGUÍSTICO DISCURSIVA DE SAUDADES DO TELEVIZINHO

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ANÁLISE LINGUÍSTICO-DISCURSIVA DO ENSAIO “SAUDADE DO TELEVIZINHO” DE ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

Lauro Sérgio Machado Pereira1

A presente análise tem como objetivo colocar em prática os elementos de análise textual baseados na tradição linguística, esta denominada de descrição, e também os elementos da análise do discurso (produção, distribuição e consumo) e que está baseada na tradição interpretativa ou microssociológica de levar em conta a prática social da linguagem. (Pedrosa, 2009).

O autor do ensaio “Saudade do televizinho”, Roberto Pompeu de Toledo é jornalista com ampla experiência, tendo trabalhado em vários jornais, rádios e revistas brasileiras. Atualmente escreve e é editor especial da revista Veja.

O ensaio que servirá como objeto de análise foi publicado pela revista Veja em fevereiro de 2002, ano em que houve eleições para a presidência da república e também a Copa do Mundo. Entretanto, outro fenômeno mundial tinha sua estreia na televisão brasileira, o Big Brother Brasil (Grande Irmão), que era apenas mais uma adaptação feita pela Rede Globo, de um reality show (show da realidade) cuja primeira temporada mundial foi realizada em 1999 nos Países Baixos.

Vista a reação positiva da população em geral frente ao novo programa que apresentava uma “realidade” cheia de prazeres carnais, o jornalista voltou aos primórdios da história da televisão no Brasil com o intuito de criticar um novo papel ou função social da televisão. Na verdade, o autor ao mesmo tempo em que discute o desaparecimento de certas palavras devido a falta de função para elas, propõe uma provocação ao dizer que para as coisas existirem, necessitam adentrar o mundo televisivo, ou seja, só há vida na televisão.

Feita essa contextualização pode-se partir para a análise pormenorizada dos parágrafos que compõem o ensaio. Inicialmente é fundamental considerar o título do ensaio, “Saudades do Televizinho”, que apresenta duas palavras de conteúdo, “saudade” e televizinho. A primeira é possuidora de um caráter explicitamente sentimental que remete possivelmente ao tempo passado e vivido de uma experiência supostamente positiva por parte do sujeito-autor. Nesse sentido, a saudade está muito ligada à questão do eterno retorno intrínseco ao homem que sempre deseja experimentar de novo sentimentos e sensações boas colhidas ao longo da vida. E é aí que passa a existir o que se denomina de felicidade. Isso também coloca em discussão o fato de que o sujeito-autor está certamente indignado e insatisfeito com algum fenômeno social contemporâneo. A segunda palavra, “televizinho”, causa quase que de imediato, principalmente para os leitores mais jovens e aqueles que desconhecem tal palavra, um estranhamento consequente e normal quando há o encontro com um termo fossilizado de qualquer língua. Esse estranhamento com certeza gera muitas indagações por parte do leitor. Quem será esse ex-participante da sociedade? Será que ele ainda existe, mesmo que em menor número?

Portanto, ao valer-se das palavras “saudade” e “televizinho” fica evidente que o sujeito-autor fará suas considerações a partir de um fenômeno social brasileiro vivenciado por ele há alguns anos. Uma outra questão a ser observada em relação à estética do texto, é a presença de um recorte do texto em itálico ao lado esquerdo da página que coloca em destaque algo que será mencionado no corpo do texto propriamente dito. Assim, o recorte “Não é que a TV tenha ocupado todos os cantos da

1 Aluno do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Lingüística: Leitura e Produção Textual das FASA - Faculdades Santo Agostinho.

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vida. É mais: ela tomou o lugar da vida.”, faz com que o leitor comece a lançar inúmeras inferências ao texto a ser lido referentes ao papel da televisão na sociedade brasileira, que podem ser confirmadas ou não ao término da leitura do ensaio.

Logo no início do primeiro parágrafo do ensaio, o sujeito-autor remete o seu pensamento ao passado experienciado e além disso lança perguntas ao sujeito-leitor como numa verdadeira relação dialógica com o propósito de testar o conhecimento do leitor sobre a questão a ser tratada. Só nesse parágrafo há quatro perguntas diretas que principalmente quase que obrigam o leitor a recorrer imediatamente a dois dos melhores dicionários disponíveis no mercado. Ao assumir esse discurso, o sujeito-autor estabelece uma posição superior à do leitor, especialmente à dos mais jovens, ao pressupor que estes não vão saber o que seria o termo “televizinho”, usado por ele várias vezes nesse parágrafo.

Houve um tempo em que havia o televizinho. Será que sobra algum televizinho? Será que sobra até mesmo quem saiba o que é televizinho? Televizinho era a pessoa que, não tendo televisão em casa, se aproveitava da do vizinho. O jovem leitor duvida? Acha que se está aqui inventando vocábulo exótico, só para fazer graça? Pois corra aos dicionários. A palavra ali está, tanto no Aurélio como no Houaiss. Os dicionários têm isso de bom: conservam as palavras em desuso como os sedimentos conservam os fósseis. Neles repousam, em sono esplêndido, palavras como bufarinheiro e alcouceira, mandrana e parvajola. Ou então, diriam os moralistas, palavras que embora em uso, identificam práticas em desuso: honestidade, vergonha, intimidade, virgindade...

O sujeito autor não espera muito após lançar as duas primeiras perguntas para poder explicar o sentido atribuído à palavra televizinho. É sabido que ao fazer isso ele lançou mão da função referencial da linguagem como forma de facilitar a leitura do sujeito-leitor. As duas últimas perguntas têm mais a função de provocar o leitor e manter contato com o seu destinatário de modo a testar o canal de comunicação, isto é, através do uso da função fática da linguagem. E, não se pode deixar de lado o fato de que o sujeito-autor ao escrever: “Pois corra aos dicionários” está fazendo uso da função conativa da linguagem com o objetivo de influenciar o destinatário. Em seguida, inicia alguns elogios ao amigo dicionário que guarda eternamente palavras que já estão mortas pelo desuso de seus falantes. Em seguida dá exemplos de vocábulos extremamente incomuns para leitores contemporâneos mas que segundo ele repousam em sono esplêndido no dicionário. Ao citar essas palavras, a saber: bufarinheiro, alcouceira, mandrana e parvajola, que respectivamente possuem o sentido de honestidade, vergonha, intimidade e virgindade, o sujeito-autor ironiza a realidade da sociedade ao dizer que embora essas palavras estejam em uso, elas denominam práticas bastante em falta, em desuso entre os membros dos segmentos sociais.

No segundo parágrafo, após superar o possível sentimento de desconfiança que o próprio sujeito-autor sabia que dominaria o sujeito-leitor frente a palavra “televizinho”, procura embasar e reforçar suas colocações através da evocação de um diálogo entre alguns leitores que possivelmente teriam vivido na época dos primeiros anos da televisão e consequentemente também teriam sido ou até conhecido algum televizinho.

Quem viveu os primeiros anos da televisão sabe que o fenômeno da televizinhança não foi desprezível. Poucos tinham televisores em casa. Aos sem-TV, essa maioria de deserdados, restava correr à casa dos que a possuíam como os famintos correm aos sopões da caridade. O televizinho era um tipo social definido e reconhecido em seus direitos e sua

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invidualidade. Os próprios apresentadores da TV se referiam a eles. Davam boa noite “aos televizinhos”. Depois, desapareceu. Desapareceu como, por exemplo, a figura do agregado, tão popular nos romances do século XIX. O agregado, mal comparando, era um televizinho sem televisão.

O sujeito-autor ao fazer uma comparação direta do fenômeno da televizinhança com os sopões de caridade, está na verdade comparando o conteúdo transmitido pela televisão a um alimento que sacia a fome dos seres humanos. Isto é, há aí uma crítica ferrenha proposta pelo autor no que se refere ao facínio que a TV exerce sobre as pessoas, como se na verdade as imagens e sons transmitidos em uma tela se transformassem em alimento materializado, não para o estômago, mas para a mente que consequentemente seria manipulada pelas mensagens por ela veiculadas. Ao dizer que o televizinho era um ser social definido, pode-se deduzir que os próprios donos dos canais de televisão sabiam de tal fato e por isso tinham o objetivo real de manipular o pensamento das massas como forma de dominação ideológica. Por fim, como todos que estavam na frente das câmeras, dentro dos estúdios de televisão sabiam da existência da figura do televizinho, os apresentadores de programas os cumprimentavam diariamente. Entretanto, como o poder de compra das camadas mais populares aumentou e também porque certamente o preço de um aparelho de TV foi sendo reduzido gradativamente, chegou o tempo em que o televizinho pôde adquirir seu próprio aparelho e consequentemente isso causou o desaparecimento da função da palavra que o denominava. Ainda nesse parágrafo, o autor compara o desaparecimento do televizinho ao do agregado do século XIX que passava a morar na casa de uma família não devido à TV, mas como um ente familiar sem, é claro, televisão.

É interessante ressaltar que o sujeito-autor lança a todo tempo, mão da comparação para tratar na verdade de temas relacionados às transformações sofridas pela sociedade brasileira. No terceiro parágrafo, há a comparação da família a uma empresa que para ser melhor administrada precisa ter seus gastos excessivos cortados. Com isso, passado o século XIX as famílias se livraram do agregado e em seguida do excesso de filhos como consequência da aquisição de aparelhos de TV. Ironicamente, como costumam dizer as más línguas, depois que a televisão passou a fazer parte do seio familiar e proporcionar prazer para o casal, o número de nascimentos foi reduzido. As famílias preferiam agora ficar mais enxutas de filhos mas não de aparelhos de TV. Com o avanço da ocupação da TV nos lares brasileiros, até mesmo os moradores de barracos em áreas menos favorecidas foram dominados pela maré televisiva que triunfou sobre todos e culminou no desuso da palavra televizinho.

As famílias livraram-se do agregado. Livram-se em seguida, acrescente-se de passagem, do excesso de filhos e ficaram mais enxutas, para usar as palavras que lhes conviria se famílias fossem empresas – se é que não são. Mas, na medida em que, nos lares, se iam cortando os excessos, em matéria de seres humanos, iam-se, inversamente, multiplicando os aparelhos de TV. Ninguém mais deixava de tê-los. Nem mesmo os moradores de barracos. Triunfo! O televizinho de antes agora tinha seu próprio aparelho. Foi alcançado por ele, em seu avanço irresistível, como a maré, ao subir, alcança a praia toda. O vocábulo que o identificava virou forma sem conteúdo.

Ao afirmar que o vocábulo “televizinho” virou forma sem conteúdo, o ensaísta

confirma a função social da linguagem. As palavras, que vão surgir a partir da necessidade de comunicação dos falantes, perdem o seu propósito de uso caso haja

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qualquer tipo de mudança nas esferas sociais. Se os participantes do discurso deixam de usar determinada palavra, esta cai em desuso e se fossiliza de modo a correr o risco de não mais ser ressuscitada porque é desnecessária para os processos comunicativos.

A dicotomia entre o real e o ficcional, bem como a função da televisão nesse contexto passa a ser discutida pelo sujeito-autor no quarto parágrafo. Inicialmente a televisão vivia seus anos de inocência. A vida da televisão era uma e a vida real, a dos seres humanos era outra. Ainda havia um certo distanciamento por parte dos seus assistentes domiciliares.

A era do televizinho coincidiu com os anos de inocência da televisão. Basicamente, tal inocência consistia na crença de que televisão era uma coisa, e vida era outra. O televizinho, assim como a amável família que a acolhia, olhava para aquela caixinha luminosa com deslumbramento, sim, mas também com suave distanciamento. Apreciavam seus truques como se apreciam os truques do mágico no circo, mas depois iam cuidar de suas existências. Reinava a ilusória impressão de que a TV ocupava um lugar determinado no mundo, um pedaço pequeno e restrito, de onde não tinha como extrapolar. Admitir o contrário seria convir com a hipótese absurda de o caleidoscópio proporcionar algo mais, na existência de uma pessoa, do que um divertimento ligeiro para os olhos. Ou de o gramofone ir além de produzir alguns breves instantes agradáveis – ou desagradáveis – para o ouvido.

Percebe-se que a palavra televisão passa, nesse parágrafo, a receber um nome no diminutivo “caixinha luminosa”, de modo carinhoso em um primeiro momento, mas que apresenta uma mensagem subliminar carregada de ironia por parte do sujeito-autor que quer na verdade criticar a importância exagerada que a sociedade dá à televisão. Com o desenvolvimento rápido e crescente dos meios de comunicação e a possibilidade de o telespectador interagir com a televisão e sua programação termina por contribuir para o aumento do facínio dos seres humanos pela caixinha que hoje não é mais um objeto inocente que proporcionava um rápido divertimento para os olhos das famílias. Entretanto, no quinto parágrafo, o aparelho passa a ser denominado de maneira mais séria como “caixa de luz”, e que não era tão inocente como se pensava e que por isso aprontou grande surpresa para aqueles que pensaram que ela não era capaz de nada. Desse modo, ao passar a ser possuidora do elemento surpresa, o autor dá-lhe nomes como caixa de Pandora e caixa-preta com o objetivo de expressar sua perplexidade ao ter vivenciado tal fenômeno relativo à televisão. Mesmo que a relação com o sujeito-leitor já tenha sido estreitada, o sujeito-autor ainda opta por continuar testando o canal comunicativo e por isso convida o leitor a escolher o nome que ele achar melhor para a televisão.

Aquela inocente caixa de luz revelou-se muito mais que uma caixa de luz, porém. Revelou-se uma caixa de surpresas, caixa de Pandora, caixa-preta – escolha o leitor a caixa de sua preferência. Cedo transbordou para muito além de seu suposto lugar certo e determinado. Hoje se conhece todo seu alcance. Não é que a televisão tenha ocupado todos os cantos da vida. Essa também não deixa de ser uma visão ingênua. É outra coisa: a televisão tomou o lugar da vida. Substituiu-a. Engoliu-a e vomitou-se a si mesma no lugar.

Reveladas todas as surpresas provenientes da televisão, o sujeito-autor explica que ela não alcançou simplesmente todos os lugares da sociedade, ela fez muito mais do que

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isso ao tomar o lugar da própria vida. Com o intuito de materializar o máximo possível a sua imagem mental dessa dominação da televisão sobre a vida, ele faz uma construção de sentido a partir da utilização de uma figura de linguagem para intensificar tal fenômeno. Ao dizer que a televisão engoliu a vida e vomitou-se a si mesma no lugar, o autor faz uso da prosopopeia (personificação), figura de linguagem que consiste em atribuir a seres inanimados predicativos que são próprios de seres animados.

Definitivamente, o sujeito-autor não está nada satisfeito com os novos rumos que a televisão tem tomado nos últimos anos. Ao iniciar o sexto parágrafo com a colocação “No doce tempo do televizinho, (...)”, que apresenta a palavra “doce” como qualidade positiva atribuída àquela época, o autor expressa o amor que tinha pela figura do televizinho e a possibilidade de interação que ele trazia aos lares.

A situação contemporânea em torno da televisão está tão mudada que o sujeito-autor enche-se de sarcasmo para dizer que a vida real ainda pulsava e se sobrepunha à influência da TV, esta que ainda não havia sugado tudo que pairava à sua volta. Mesmo que o homem se sentisse vislumbrado com o novo aparelho, ainda era possível realizar outras atividades mais dinâmicas e interativas como jogar futebol no campo e pular o Carnaval na rua. Algo que hoje soa quase que como pertencente a outro mundo, principalmente para os moradores das grandes cidades que vivem praticamente isolados em seus apartamentos e se contentam em assistir à partida de futebol na TV. Os telespectadores da contemporaneidade gozam ao serem convidados pela Rede Globo para assistirem a seleção brasileira dar o melhor de si, porque é lá na tela da TV que a verdadeira emoção acontece. Assim, não é raro, caso se experimente sair em frente de casa no horário de uma partida televisionada, perceber que a rua está menos movimentada porque os seres humanos estão todos hipnotizados pela imagem televisionada, pela representação da verdadeira realidade.

No doce tempo do televizinho, ocorriam fenômenos que hoje parecem nada menos que prodigiosos. Enquanto a televisão tinha sua sede na sala do vizinho, o Carnaval era na rua e o futebol era no campo. Sim, meninos: o Carnaval era na rua e o futebol era no campo! Aos poucos, tudo foi entrando TV adentro, como se aquela caixa tivesse um ímã, ou como se fosse um buraco negro a atrair a matéria cósmica à sua volta. Hoje, tanto o Carnaval como o futebol são na TV. Tire-se deles a TV, e será como cortar-lhes o ar. Não sobreviverão. E a eleição? No tempo do televizinho, a televisão ficava lá na sala, quieta, enquanto o comício era na praça. Eleição agora também foi sugada pelo campo gravitacional da televisão. Neste ano haverá Copa do Mundo e eleição. Se por alguma espécie de desgraça a televisão sumir do mundo, não haverá nem uma nem outra. Ou melhor, pode até haver, mas serão coisas de naturezas tão diversas das que nos habituamos que não merecerão os mesmos nomes.

A comparação entre o passado e o presente é nítida desde o início do texto, mas é no sexto parágrafo que a materialização da descrição fica ainda mais perfeita. É possível visualizar como as pessoas antigamente interrompiam o momento de prazer frente à TV e partiam para outros ambientes porque a vida gritava mais alto do lado de fora. Porém, hoje as pessoas fazem da TV o seu oxigênio, tudo só existe se for dentro dela, o futebol, o carnaval e inclusive as eleições. O possível desaparecimento da televisão poderia vir a gerar o caos que desencadearia, inclusive, mudanças nos nomes daquilo que hoje se conhece como Eleição e Copa do Mundo.

No último parágrafo, o sujeito-autor confessa que fez uma opção proposital ao historicizar ironicamente, através de comparações explícitas entre presente e passado ao escrever “Dito o que, chegamos aos programas de TV”; para na verdade criticar o tão

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assistido e venerado Big Brother e todas as outras mídias que vão entrar em voga depois dele como os sites de relacionamento: Orkut, Second Life, Sonico e outros nos quais o objetivo é se mostrar e deixar ser visto. Foi necessário que o sujeito-autor fizesse todo esse retorno ao passado, à época do querido televizinho, para que o sujeito-leitor pudesse compreender pelo menos um pouco do seu sentimento de pesar.

Dito o que, chegamos aos programas de TV como o chamado de Big Brother. O Big Brother original, do romance 1984, de George Orwell, espionava os cidadãos de modo tão sufocante que a vida ficava irrespirável. O Big Brother de hoje é o contrário. Sem a presença dele, sem seu olho benfazejo, aí sim é que a vida some. Estou na TV, logo existo. A vida é representar para a câmara, e representar para a câmara é a vida. Estar na TV, mesmo que seja a troco de nada, sem ter nada a dizer, nem habilidade a demonstrar, eis o programa supremo da existência. O televizinho ficaria intrigado. Exitaria em voltar à sala onde reinava aquela caixa.

O sujeito-autor realmente não abre mão da comparação e portanto evoca as vozes de outros textos como o romance 1984 de George Orwell. O que ocorre na verdade é uma relação intertextual entre a narrativa da obra mencionada e a realidade contemporânea. A única diferença é que a espionagem se dá de forma invertida. No romance de Orwell o olho que tudo controlava sugava a vida e hoje o Big Brother Brasil da Rede Globo proporciona o mais elevado nível de gozo e vida para aqueles incapazes de lançar um olhar mais crítico sobre o que a TV verdadeiramente faz com os seres humanos. Ela torna-os escravo de um mundo que na verdade inexiste. Entretanto, a sociedade não precisa nem pensar para existir, basta estar na TV ou na Internet e escancarar toda a sua privacidade que por esse motivo é quase que artigo raro atualmente. A construção “Estou na TV, logo existo.” é escrita pelo sujeito-autor com o intuito de evocar a voz de outro texto, desta vez um filosófico, de René Descartes que disse “Penso, logo existo.” Entretanto, isso não faz mais sentido para o homem contemporâneo e precisou ser reescrito pelo sujeito-autor. Ao fazer a rescrita de um pensamento filosófico bastante conhecido e citado, pode-se pensar que ele quis chamar a atenção do leitor através de um possível estranhamento que este último sentiria frente ao novo, via intertextualidade.

Em conclusão, todo o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo é marcado por um emaranhado de vozes e intertextos que expressam a indignação do sujeito-autor frente à falta de comunicação da sociedade mundial contemporãnea. Além disso, para Pompeu, a vida tornou-se artigo supérfluo e o gostoso mesmo é olhar e ser olhado, ainda que esses contatos se dêem de forma monótona, monológica e passiva entre as partes envolvidas nesse tipo de discurso. Nesse contexto, no qual impera o despropósito dos programas como o Big Brother, não é preciso que a pessoas filmadas tenham uma habilidade a demonstrar, basta representar para a câmera um jogo sucessivo de situações, gestos e comportamentos irreais.

A propósito, ainda bem que alguns campos artísticos como o cinema propõe discutir a questão da falta de comunicação entre as sociedades e até a criticar diretamente a indústria dos programas de reality shows que optam por chamar a atenção dos telespectadores ao mostrar o show da vida real como dizem os seus apresentadores. Recentemente foram lançados filmes como Babel do diretor mexicano Alejandro Gonzáles Iñárritu que apresenta um leque de personagens que vivem em direferentes continentes, mas que compartilham uma enorme perturbação provocada pela falta de comunicação. É até mesmo irônico observar a solidão dos personagens que vagueiam pelos “cabarés sociais” repletos de tecnologias de ponta e suas parafernálias eletrônicas,

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mas que não proporcionam ao ser humano o contato com a vida. Outro filme que desta vez critica a produção dos reality shows é O Show de Truman do diretor Peter Weir, que mostra a vida de um cidadão chamado Truman que desde o seu nascimento foi criado em um estúdio de TV comandado por um diretor que controla cada segundo de sua vida e a transmite para milhões de pessoas. O filme é uma excelente parábola do mundo moderno dominado pela mídia e pela imagem. Por fim, já no Brasil, seria preciso ressuscitar o espírito do televizinho, este que possivelmente para o autor poderia ser o salvador da pátria para a situação incomunicável e de falta de solidariedade em que o mundo se meteu. O televizinho seria quem resgataria o processo comunicativo frente à TV. Pena que hoje, todos podem se deleitar com seu aparelho individual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETO, Frei. Reality Show. Correio da Cidadania, 02/02/2002. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp060220026.htm. Acesso em: 23/06/2009

PEDROSA, Cleide Emília Faye. Análise Crítica do Discurso: Uma Proposta para a Análise Crítica da Linguagem. Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/3/04.htm. Acesso em 23/06/2009

TOLEDO, Roberto Pompeu de. Saudade do televizinho. Veja. São Paulo, p.122, edição 1740, 27 fev. 2002.

SITE CONSULTADO

http://pt.wikipedia.org/wiki/Roberto_Pompeu_de_Toledo. Acesso em: 29/06/2009

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