10
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE TEORIA DA LITERATURA II PROFESSOR ANTÔNIO MEDEIROS ADELSON DOS SANTOS SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA O conto é uma narrativa construída em parágrafos e apresenta o desenvolvimento de um enredo enxuto, marcado pela síntese. Em geral tem poucas personagens, a ação se desenrola em um único espaço – ou em um número reduzido de lugares – em um período curto de tempo. Por ser curto, não costuma ter longas descrições e pormenores, encaminhando-se logo para a narrativa dos fatos. Assim, após uma breve apresentação da situação em que se encontram as personagens, já se introduz o elemento que vai gerar um conflito ou complicação; em poucas ações esse conflito atinge um clímax, vindo o desfecho e uma nova situação de equilíbrio.Quanto ao tema,podem ser classificados como de mistério, quando investigam crimes e ou enigmas a serem decifrados; de amor, quando estão ligados à paixão, às sensações humanas; os fantásticos, quando tratam temas incomuns, sobrenaturais como se fossem cotidianos – Edgar Allan Poe ; os psicológicos, quando estão voltados à subjetividade, às angustias humanas, suas dúvidas,etc. Na literatura em geral, alguns autores se especializaram como contistas: Anton Tchekhov, Edgar Allan Poe, Mia Couto, Machado de Assis, Clarice Lispector, Osman Lins e Guimarães Rosa. Nascido em Minas Gerais, formado em medicina, tendo atuado como diplomata, foi um dos maiores escritores brasileiros, cuja grande maioria dos seus escritos ambienta-se no sertão brasileiro. Sua obra tem destaque, principalmente, pelas inovações no campo da linguagem, pela influência dos falares populares e regionais, que assimiladas pelo autor, permitiu a criação de vocábulos a partir de arcaísmos, invenções e intervenções semânticas e

ANÁLISE DO CONTO DE GUIMARÃES ROSA SORÔCO,SUA MÃE, SUA FILHA

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: ANÁLISE DO CONTO DE GUIMARÃES ROSA  SORÔCO,SUA MÃE, SUA FILHA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTETEORIA DA LITERATURA IIPROFESSOR ANTÔNIO MEDEIROS

ADELSON DOS SANTOS

SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA

O conto é uma narrativa construída em parágrafos e apresenta o desenvolvimento de um enredo enxuto, marcado pela síntese. Em geral tem poucas personagens, a ação se desenrola em um único espaço – ou em um número reduzido de lugares – em um período curto de tempo. Por ser curto, não costuma ter longas descrições e pormenores, encaminhando-se logo para a narrativa dos fatos. Assim, após uma breve apresentação da situação em que se encontram as personagens, já se introduz o elemento que vai gerar um conflito ou complicação; em poucas ações esse conflito atinge um clímax, vindo o desfecho e uma nova situação de equilíbrio.Quanto ao tema,podem ser classificados como de mistério, quando investigam crimes e ou enigmas a serem decifrados; de amor, quando estão ligados à paixão, às sensações humanas; os fantásticos, quando tratam temas incomuns, sobrenaturais como se fossem cotidianos – Edgar Allan Poe ; os psicológicos, quando estão voltados à subjetividade, às angustias humanas, suas dúvidas,etc. Na literatura em geral, alguns autores se especializaram como contistas: Anton Tchekhov, Edgar Allan Poe, Mia Couto, Machado de Assis, Clarice Lispector, Osman Lins e Guimarães Rosa.

Nascido em Minas Gerais, formado em medicina, tendo atuado como diplomata, foi um dos maiores escritores brasileiros, cuja grande maioria dos seus escritos ambienta-se no sertão brasileiro. Sua obra tem destaque, principalmente, pelas inovações no campo da linguagem, pela influência dos falares populares e regionais, que assimiladas pelo autor, permitiu a criação de vocábulos a partir de arcaísmos, invenções e intervenções semânticas e sintáticas. Autor de livros como Sagarana – 1946, cujo título apresenta um exemplo de inovação linguística, um hibridismo, ao unir o radical saga – do germânico, canto heróico, lenda; e rana – do tupi, que exprime semelhança; Grande sertão: veredas – 1956, cujo título se apresenta como um oximoro, afinal veredas significa estreito caminho, senda ou trilho. Grande sertão: veredas liga o pequeno ao grande, o espaço amplo ao restrito. O título seria o encontro desses dois. Este livro inclusive foi transformado em filme, dirigido por Geraldo e Renato dos Santos Pereira, em 1965; em minissérie da Globo, em 1985, dirigido por Walter Avancini. Em 1962, publica Primeiras Estórias, livro de 21 contos, ambientados no sertão não especificado, do qual o conto Sorôco, sua mãe, sua filha fazem parte. Para Antônio Cândido, o crítico literário, todo romancista destaca-se pelo seu desempenho em pelo menos um destes três aspectos: o senso estético (aspectos de estrutura e de linguagem), o senso sociológico (a análise dos problemas que envolvem o homem em suas relações sociais) e o senso psicológico ( a análise interior).Obras que abrangem esses três aspectos são raros e na ficção brasileira apenas três nomes alcançaram esse nível: Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.

Page 2: ANÁLISE DO CONTO DE GUIMARÃES ROSA  SORÔCO,SUA MÃE, SUA FILHA

Sorôco,sua mãe, sua filha é um conto narrado em terceira pessoa, mas com a participação ambígua do narrador como personagem. Isto se dá em razão de o narrador ser um observador dos fatos, mas também fazer parte do povo: "A gente se esfriou (...)" "A gente estava levando agora o Sorôco (...)" Ou seja, "a gente”, no conto, pode ser a gente, o povo da estação, como também o marcador oral "a gente" enquanto nós. Existe uma ambiguidade nas falas do narrador que permitem entendê-lo como narrador onisciente e também como personagem: “A gente reparando, notava as diferenças.”, “A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, (...)”. “A gente”, aqui, pode indicar tanto o povo como uma inclusão do narrador na ação, como se ele próprio participasse, pessoalmente, do acontecimento, e estivesse nos relatando o que via. Entretanto, não se restringe ao relato: fala também dos sentimentos, penetrando, ainda que sutilmente, na mente das personagens: “As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas.” “ A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco[...]”O narrador inicia a narrativa com um distanciamento coerente com quem narra algo que vê e do qual não faz parte,mas ao longo da narrativa ele vai se imiscuindo nas ações e demonstra uma certa afetividade em relação ao protagonista ““Tomara aquilo se acabasse” até o momento em que ele se alia definitivamente à gente que assiste ao cortejo que se não é fúnebre, é triste de ver.

O protagonista desse conto é Sorôco, descrito de duas formas distintas, em tempos diferentes: “Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas”, provavelmente sua figura mais comum, a do dia-a-dia em que tem que lidar com as duas loucas; “Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso.” Mesmo colocando sua melhor roupa, seu aspecto geral não mudara muito, talvez resultado da ausência de uma mulher que cuidasse melhor de suas coisas, já que mesmo estando com duas fêmeas, estas não tinham condições de lhe dar esse apoio, afinal apesar da sintética descrição de sua vida, no conto o narrador afirma que Sorôco é viúvo. Além do protagonista, há no conto as duas mulheres loucas, a que lhe deu e a que recebeu dele a vida. Assim como no comboio que as levarão, o título e a estrutura da família de Sorôco sugerem um trem: formada por três pessoas, ligadas por laços consangüíneos, em que apenas um tem o comando; o título tem o nome de Sorôco,o único que até poucos antes do desfecho do conto possui razão, ligado ou separado das outras duas apenas por uma vírgula, sem ponto final ou outro ponto que indique término. O povo ou as gentes fazem parte das personagens que tem atuação no conto, pois num primeiro momento parecem se rir do que acontece com as loucas, muito embora tentem conter esse riso, mas que ao final do conto e com o caminhar do trio rumo ao trem que as irá levar para muito longe, parecem se condoer com a situação, principalmente se solidarizar com Sorôco. Há ainda mais quatro personagens que estão lá apenas para compor o cenário e não apresentam ação preponderante para a narrativa – o agente da estação, o guarda – freios,Nenêgo e João Abençoado, que vão acompanhar as duas loucas na viagem. Quanto ao espaço, há poucos marcadores. A única referência concreta a um lugar é a cidade de Barbacena, que, segundo o narrador, estava longe. De resto, existe uma estação de trem e umas árvores de cedro, além de uma rua de baixo. O que refere a qualquer cidadezinha do interior. Guimarães Rosa serviu como médico oficial do 9º batalhão de infantaria na cidade de Barbacena – MG em 1933. Sendo mineiro e tendo

Page 3: ANÁLISE DO CONTO DE GUIMARÃES ROSA  SORÔCO,SUA MÃE, SUA FILHA

outro livro seu narrado no sertão mineiro, é de se supor que seja o mesmo ambiente. O conto inicia com a descrição de um vagão diferente, gradeado, que seria levado pelo “trem do sertão”. E, apesar de ser limitado também o espaço da estória, este divide-se numa oposição – o vagão que vai levar as mulheres e as árvores de cedro sob as quais fica o povo. O fato de o vagão não ser um vagão “comum de passageiros” evoca a idéia de exclusão: o vagão era para passageiros que não eram comuns”. As grades, o rodar atrelado ao expresso e a sua posição “quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois” indicam que o carro é o lugar do marginal, do colocado à parte, no lado dos animais (do irracional), afastado do lugar de embarque dos homens. Aliás, “o carro lembrava um canõao no seco, navio”, possivelmente uma referência à Nau dos insensatos, livro de Sebastian Brant – 1494 -, longo poema satírico, de perspectiva moralizante, em que o autor aponta com dedo crítico e irônico para a sociedade de seu tempo, denunciando as falhas e vícios tanto da nobreza quanto do vulgo, não poupando Igreja,Justiça, universidades e outras instituições, como também pode ser uma referência à Nave dos loucos, pintura do pintor flamengo Hieronymus Bosch.

Quanto ao tempo, a estória – como escreve Rosa – é contada após ter acontecido, como indicam os tempos verbais e os dêiticos “hoje” e “agora”. Existe uma diferença entre o tempo da narrativa e o da história. Ela, porém, não se passa em pouco mais de alguns minutos, num dia ensolarado, em torno do meio-dia. A única referência concreta é o horário em que o trem do sertão passa: às 12h45min, o que pode indicar que a narrativa se passa entre o antes do trem chegar, durante a parada do trem e minutos após a saída do trem levando sua nova carga. O tempo anterior à chegada do trem é curto, mas o narrador faz perceber que esse tempo foi um tempo prolongado pela voz da coletividade, das gentes, o imperfeito e a abundância de gerúndios produzem o efeito de o tempo passar mais devagar e prolongar-se, durar, além de remeter ao convívio de Sorôco com as duas mulheres, tempos difíceis: “O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram [...]”. Depois o tempo se prolonga até a saída do trem que encerrará a união entre Sorôco e seus parentes.

Apesar de vocábulos que aparentemente levam o leitor a pensar que o conto versa sobre solidariedade: “Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas [...] para não parecer pouco caso [...]. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê”, é da loucura e da marginalização dos seres, o tema da narrativa. Um espaço dividido em dois: de um lado, a família do protagonista, marcada pela loucura, pela exclusão; de outro, a comunidade a proteger-se do mal que acomete o primeiro grupo. A marginalidade da loucura é revelada pelo espaço reservado ao vagão. Michel Foucault, em História da loucura, explica as origens das instituições de tratamentos psiquiátrico e o lugar reservado aos “loucos” ao longo dos séculos. Segundo Foucault, a medicina demorará a se inteirar desse assunto. Na Idade Média, por exemplo, a regressão da lepra na Europa faz com que os antigos leprosários passem a ser ocupados por incuráveis e loucos. Na antiguidade e na idade média, os portadores de deficiência física, sensorial ou mental eram vistos como possuidores de alguma força do bem ou do mal, significando que certas deficiências eram consideradas possessões demoníacas e outras como divinas. Esses indivíduos eram abandonados ou eliminados, pois tais atitudes eram coerentes com os ideais de perfeição desse período da história. A partir das

Page 4: ANÁLISE DO CONTO DE GUIMARÃES ROSA  SORÔCO,SUA MÃE, SUA FILHA

modificações advindas com a doutrina cristã, as atitudes de abandono são substituídas por sentimentos de misericórdia e caridade. Os portadores de deficiência passam a ter direitos de sobrevivência. São acolhidos em conventos e igrejas e interpretados como indivíduos que estão sob a proteção especial de Deus. Miguel de Cervantes, com seu Dom Quixote; Shakespeare, com Rei Lear e MacBeth; Erasmo de Rotterdam, com seu Elogio da loucura; Álvares de Azevedo, com Noite na caverna; Machado de Assis, com Dom Casmurro, o magistral Quincas Borba e o irônico O alienista; Moacyr Scliar, com O exército de um homem só são alguns exemplos de autores que abordaram a loucura em suas obras, mesmo diversificando as abordagens. É o que faz Guimarães Rosa neste conto. Até a poesia drummondiana retratou a loucura em um de seus poemas, intitulado O doido:

O doido passeia pela cidade sua loucura mansa. É reconhecido seu direito à loucura. Sua profissão. Entra e come onde quer. Há níqueis reservados para ele em toda casa. Torna-se o doido municipal, respeitável como o juiz, o coletor, os negociantes, o vigário. O doido é sagrado. Mas se endoida de jogar pedra, vai preso no cubículo mais tétrico e lodoso da cadeia.

Como médico e embaixador que foi, Guimarães Rosa tinha conhecimento do histórico da doença não só no Brasil,mas também em outras regiões do mundo,não só no seu tempo como embaixador,mas também pelas suas leituras e sabia da marginalização a que estava relegado o louco, o demente,aquele que sofria da idiotícia. Mostra, também, essa loucura caracterizada como algo risível, digno de pena, não dos loucos, mas dos que lidam com eles: “por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos [...].” “Todos diziam a ele seus respeitos, de dó.” Essa loucura fica determinada a partir de uma canção ininteligível cantada pelas loucas e que a princípio é exclusivo delas. O próprio nome do protagonista sugere essa temática, pois sendo Guimarães Rosa um expert em anagramas, inovações linguísticas e arcaísmos, não seria nada impossível: So (sou) rôco (louco). Essa brincadeira com o nome da personagem principal também pode remeter a outras duas ideias: a de socorro, afinal aquele que lida com loucos, sendo um ignorante na matéria, e estando sozinho, necessita de socorro, auxílio, como fica explícito na passagem: “Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê.”; ou ainda referir a solidão de Sorôco, afinal um viúvo que convive com duas loucas na realidade vive sozinho e após a partida delas se tornará mais sozinho ainda, o que remete a palavra oco em Sorôco, o que se percebe talvez na passagem “Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras”. Ele é, talvez, a linha tênue que separa a razão da loucura, esta que se inicia talvez com a mãe, que com para mais de setenta, tenha iniciado a loucura na família que desemboca na filha cuja idade não é referida no conto. Outro fator que delineia a separação entre loucura e razão é a cantiga das mulheres, pois enquanto elas cantam, mesmo que seja

Page 5: ANÁLISE DO CONTO DE GUIMARÃES ROSA  SORÔCO,SUA MÃE, SUA FILHA

uma canção sem sentido, Sorôco o lúcido até então é calado, sisudo, tem duas únicas falas no conto, uma para agradecer as palavras de conforto e outra para afirmar que a mãe não obedecia quando lhe chamavam "Ela não acode, quando agente chama..."  e que era inofensiva "Ela não faz nada, seo Agente..." . Uma passagem do texto em que se destaca, talvez, um vislumbre de razão, ocorre quando a mãe olha para filha e que é percebido apenas pela onisciência do narrador-“personagem” “Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso.” Após a saída das mulheres, a solidão se abate sobre Sorôco, tanto que ele não quer nem ficar para ver o trem desaparecer no fim da trilha, então num ato inesperado, num comportamento ilógico, irracional, nas palavras do narrador “Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido [...] Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido [...]” e a solidão pode enlouquecer até o mais são. Já diz um ditado antigo que de médico e louco todos têm um pouco, que o diga o conto de Robert Louis Stevenson, cujo personagem central de sua obra principal – O médico e o monstro -, Dr. Jekyll tem teorias que afirmam o homem ter duas naturezas completamente opostas equilibradas de acordo com sua saúde mental.É justamente esse equilíbrio que parece ter perdido Sorôco com a partida das mulheres, muito embora a turba de espectadores ache que ele não sentirá sua falta.Mas o fato de cantar a mesma cantiga desconexa das loucas não é significativo de que o herói do conto esteja louco, mas pode significar que isso seja uma demonstração de afeto e carinho que ele tenha por elas e essa demonstração pode ai,sim, significar solidariedade, do tipo que faz a multidão,sem nem mesmo se questionar, acompanhá-lo, demonstrando que os limites todos foram postos fora. O limite entre a razão e loucura, o limite entre coletividade e individualidade e o limite entre aparente inércia, passividade diante dos fatos e ação solidária. Se em Grandes sertões: veredas há uma travessia que o homem faz em busca de uma solução para seu conflito, em Sorôco, sua mãe, sua filha essa travessia não leva a solução nenhuma, pois se para o pobre tudo é mais longe, para o louco tudo é mais excludente, porém para Sorôco, o dó causado pela sua situação criou um vínculo de amizade que vai preencher o oco que ficou no peito dele.

Um aspecto que se sobressai no conto é a linguagem utilizada por Rosa. Como foi dito anteriormente, Guimarães Rosa constrói sua narrativa se utilizando de termos arcaicos, como na descrição da mãe de Sorôco “[...] A velha só estava de preto, com um fichu- cobertura triangular para cabeça, pescoço e ombros de senhoras - preto”. “[...] uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada – cheia de vento, envaidecida - em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas- badulaques, enfeites, trastes de pouco valor: matéria de maluco”. [...] Assim, num consumiço- consternadoramente [...],Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorcôo – animação,instigação - do canto, das duas, aquela chirimia – instrumento musical -, que avocava- chamava a si. Além do léxico, Guimarães Rosa trabalha o uso das palavras e nesse conto ele parece ter uma predileção no uso do artigo, na substantivação das palavras. São exemplos disso: “cada um porfiando no falar com sensatez”; “prática do acontecer das coisas”; “conhecia dele o parente nenhum”; “no levar as mulheres”;“com o trazer de comitiva”; “no se-dizer das palavras – o nenhum”; “nos docementes”; “O se seguir”; “o ao ar”; “Ao sofrer o assim das coisas, ele” ; “parecia que ia perder o de si, parar de ser”. Todas essas informações

Page 6: ANÁLISE DO CONTO DE GUIMARÃES ROSA  SORÔCO,SUA MÃE, SUA FILHA

presentes num conto fazem de Guimarães Rosa um escritor merecedor de tudo que se diz a seu respeito, propiciando ao leitor, num texto curto, densidade temática e estética que tanto valorizam o leitor capaz de percebê-las.

REFERÊNCIAS

Bakhtin, Mikhail Mjkhailovitch, 1895-1975. Estética da criação verbal / Mikhail Bakhtin [tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira revisão da tradução Marina Appenzellerl. — 2’ cd. - São Paulo Martins Fontes, 1997. — (Coleção Ensino Superior)

CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura. Trad. José T. Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 1978.

MOISÉS, Massud. A criação literária. São Paulo: Melhoramentos, 1967.13ª ed. Poesia. São Paulo: Cultrix, 2001.15ª ed. Prosa I.São Paulo, Cultrix: 2001. 18ª ed. Prosa II.___________.A Análise Literária.São Paulo: Cultrix, 1969.

Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 1.0

Novo Dicionário Aurélio em versão eletrônica.