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1 Textos Informativos Complementares Expressões Português 12.° ano EXP12 © Porto Editora SEQUÊNCIA 1 Isto O presente texto encontra-se na linha de Autopsicografia, pelo que, na sua aborda- gem, não se deverá perder de vista o que se disse sobre ele. Tal como Autopsicografia, Isto trata do fenómeno da criação artística, do fingimento, do predomínio (mas também interação) do racional sobre o sentimento. O poema pode ser dividido em duas partes, sendo a primeira constituída pelas duas primeiras estrofes, e a segunda, pela última (como se recordará, dá-se o mesmo em Autopsicografia). A parte 1 inicia-se com uma alusão do poeta a que dizem (indeterminado) que ele finge ou mente ao escrever. O poeta nega abertamente que assim seja; não finge (no sentido de falsear, faltar à verdade), não mente. O que ele faz é racionalizar os sen- timentos (sente com a imaginação), não usa o coração (depreende-se que para sentir). O poeta diz-se ainda (segunda estrofe) possuído pela sina de procurar (com o pensamento); o objetivo não é encontrar seja o que for, mas apenas procurar, o ato de procurar tomado por si mesmo. A coisa linda é sempre impalpável, ele não a pode possuir. Tudo quanto se lhe depare (o que sonha, passa, falha ou finda – notar a rima, as aliterações, as construções paralelas – isto é: anseios, vivências, insucesso, fugaci- dade) encobre sempre outra coisa ainda (notar a comparação é como que um terraço) que ele ambiciona (essa coisa é que é linda). Daqui se poder concluir que o poeta procura constantemente, nunca se satisfa- zendo com o que procura, mas vendo sempre (tudo – v. 5), naquilo com que depara, um terraço. Tal terraço é uma cobertura que oculta e eleva de nível, que se encontra perto e parece acessível, mas na verdade não se pode tocar. O terraço esconde outra coisa mais, e essa coisa é que é linda. E assim o poeta a deseja, mas só enquanto ela se não transformar em terraço sobre outra coisa ainda. A parte 2 refere que é por isso (por tais razões) que o poeta se quer libertar do imediato, das sensações. Elas são o que está ao pé, o seu enleio, o que é (na aparência). E ao escrever, o poeta distancia-se delas (escreve em meio – suspenso, integrado, mer- gulhado, compenetrado), coloca-se a nível do fingimento, do pensamento, da naciona- lidade: o que não está ao pé (não se toca, não está ali), a ausência do enleio (livre da confusão dos sentidos), sério do que não é (acreditando, sincero, na esfera do que não é o que parece, do inteligível). E o poeta remata o texto, ironicamente (repare-se na densidade provocada pelo período elíptico, constituído apenas com o verbo, e no infinitivo – Sentir?), remetendo o sentimento para a pessoa do leitor. Assim, teremos, em suma, que tudo se passa como se o poeta dissesse: “mentiroso, eu? Não. A minha intervenção está acima do nível vulgar do fingimento, que é a men- tira. O meu papel é racionalizar tudo. Sentir (o coração) é consigo, leitor”. Procurando uma forma mais esquemática para exprimir o que se disse, teremos: PARTE 1 – o poeta justifica porque não mente ao escrever: sente com a imaginação (parte 1.A) possui o condão de procurar sempre (parte 1.B) PARTE 2 – o poeta conclui que é de sua competência a racionalização, ficando o sentimento a cargo de quem lê.

Análise Do Poema 'Isto

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1Textos Informativos ComplementaresExpressões • Português • 12.° ano

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raSEQUÊNCIA 1

Isto

O presente texto encontra-se na linha de Autopsicografia, pelo que, na sua aborda-gem, não se deverá perder de vista o que se disse sobre ele.

Tal como Autopsicografia, Isto trata do fenómeno da criação artística, do fingimento, do predomínio (mas também interação) do racional sobre o sentimento.

O poema pode ser dividido em duas partes, sendo a primeira constituída pelas duas primeiras estrofes, e a segunda, pela última (como se recordará, dá-se o mesmo em Autopsicografia).

A parte 1 inicia-se com uma alusão do poeta a que dizem (indeterminado) que ele finge ou mente ao escrever. O poeta nega abertamente que assim seja; não finge (no sentido de falsear, faltar à verdade), não mente. O que ele faz é racionalizar os sen-timentos (sente com a imaginação), não usa o coração (depreende-se que para sentir).

O poeta diz-se ainda (segunda estrofe) possuído pela sina de procurar (com o pensamento); o objetivo não é encontrar seja o que for, mas apenas procurar, o ato de procurar tomado por si mesmo. A coisa linda é sempre impalpável, ele não a pode possuir. Tudo quanto se lhe depare (o que sonha, passa, falha ou finda – notar a rima, as aliterações, as construções paralelas – isto é: anseios, vivências, insucesso, fugaci-dade) encobre sempre outra coisa ainda (notar a comparação é como que um terraço) que ele ambiciona (essa coisa é que é linda).

Daqui se poder concluir que o poeta procura constantemente, nunca se satisfa-zendo com o que procura, mas vendo sempre (tudo – v. 5), naquilo com que depara, um terraço. Tal terraço é uma cobertura que oculta e eleva de nível, que se encontra perto e parece acessível, mas na verdade não se pode tocar. O terraço esconde outra coisa mais, e essa coisa é que é linda. E assim o poeta a deseja, mas só enquanto ela se não transformar em terraço sobre outra coisa ainda.

A parte 2 refere que é por isso (por tais razões) que o poeta se quer libertar do imediato, das sensações. Elas são o que está ao pé, o seu enleio, o que é (na aparência). E ao escrever, o poeta distancia-se delas (escreve em meio – suspenso, integrado, mer-gulhado, compenetrado), coloca-se a nível do fingimento, do pensamento, da naciona-lidade: o que não está ao pé (não se toca, não está ali), a ausência do enleio (livre da confusão dos sentidos), sério do que não é (acreditando, sincero, na esfera do que não é o que parece, do inteligível).

E o poeta remata o texto, ironicamente (repare-se na densidade provocada pelo período elíptico, constituído apenas com o verbo, e no infinitivo – Sentir?), remetendo o sentimento para a pessoa do leitor.

Assim, teremos, em suma, que tudo se passa como se o poeta dissesse: “mentiroso, eu? Não. A minha intervenção está acima do nível vulgar do fingimento, que é a men-tira. O meu papel é racionalizar tudo. Sentir (o coração) é consigo, leitor”.

Procurando uma forma mais esquemática para exprimir o que se disse, teremos:PARTE 1 – o poeta justifica porque não mente ao escrever: ◆ sente com a imaginação (parte 1.A) ◆ possui o condão de procurar sempre (parte 1.B)PARTE 2 – o poeta conclui que é de sua competência a racionalização, ficando o

sentimento a cargo de quem lê.

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2 Expressões • Português • 12.° ano Textos Informativos Complementares

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O título do texto (Isto) é à primeira vista desconcertante. Mas, atentando-se melhor, chega-se à conclusão de que quererá significar que o poeta pretende com ele explicar que a justificação que dá para o facto de não mentir quando escreve é muito simples – apenas “isto”.

Isto sugere simplicidade e ainda algo que se encontra perto, mas é indefinido, loca-lizável mas não de maneira concreta ou palpável.

O mesmo título designará também a outra coisa ainda encoberta pelo terraço, aquilo que o poeta indaga com a razão, e é sempre objeto de procura, a tal coisa que é linda, e linda porque não é concreta nem palpável. Designará, portanto, também o carácter insatisfeito do poeta, que procura mas não encontra, está perto mas não abrange.

É de notar ainda, no texto, o seu tom discursivo (reforçado pelos transportes entre os vv. 1-2, 3-4, 8-9, 11-12), cerebralista, cortado apenas pela comparação expressiva de tudo quanto se depara ao poeta com o terraço que oculta a coisa (isto – localizado, mas inacessível), e que ele procura e verdadeiramente o fascina.

A estrutura do texto mostra-se de cunho racionalizado, com um fio lógico muito forte – apresenta-se uma tese, que é discutida, depreende-se uma conclusão (por isso). A organização frásica é sintética, com uma economia de meios a que a elipse confere vivacidade.

Essa organização frásica adequa-se ao tom discursivo do texto, no qual se nota, para além disso, a preocupação (aliás sempre presente em Pessoa) de explorar poten-cialidades da língua, fazendo o reaproveitamento de elementos morfossintáticos e rít-micos da linguagem comum.

Ao deitar mão de tais recursos, o poeta fecha ainda mais o texto, adensa-o, ao mesmo tempo que lhe confere cunho literário. Repare-se em expressões de que o leitor não estaria à espera, tais como “sinto com a imaginação” (vv. 3-4: pode sentir-se com o coração ou com a imaginação), “não uso o coração” (v. 5), “sério do que não é” (v. 14: o poeta usa de sinceridade em relação ao que se afasta da sensibilidade).

É igualmente com essa intenção de racionalização que se deverá relacionar a orga-nização do texto em quintilhas hexassilábicas, o seu esquema rimático (a b a b b), o seu isomorfismo e isometrismo.

SILVA, Lino Moreira da, 1989. Do Texto à Leitura (Metodologia da Abordagem Textual) Com a Aplicação à Obra de Fernando Pessoa. Porto: Porto Editora