Análise Memorias Postumas de Bras Cubas - Estrutural

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  • 5/24/2018 An lise Memorias Postumas de Bras Cubas - Estrutural

    Revista Eutomia Ano I N 01 614-620)

    A Verossimilhana em Memrias Pstumas de Brs Cubasde Machado de Assis

    Daniela Piva Reyes- USP

    ResumoO objetivo principal deste artigo discutir como est organizadoestruturalmente o romance Memrias Pstumas de Brs Cubas, deMachado de Assis. Mais especificamente, pretende-se analisar, luz doconceito de verossimilhana, como se d o efeito de verdade queatribumos estria contada nesse romance, na qual um defunto que seintitula autor - algo considerado impossvel de acontecer, de acordo com algica real na qual vivemos - se apresenta tambm como o narrador dessaestria.

    AbstractThe aim of this article is to discuss about the organizational structure of

    Machado de Assis novel, Memrias Pstumas de Brs Cubas. Morespecifically, and based on the concept of verisimilitude, this articleintends to analyze how is it possible for this specific novel to be acceptedas a realistic fact, since its author, who declares himself dead - whatwould be considered almost impossible to happen, according to logic ofreal life -, also introduces himself as the narrator of this story.Palavras chave: Machado, verossimilhana, narrativaKey words: Machado, verisimilitude, narrative.

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    A Verossimilhana em Memrias Pstumas de Brs Cubas de Machado de Assis

    ... cada livro realiza a reduo verbal deum pequeno fragmento da realidade...

    Julio Cortzar

    frase de Julio Cortzar foi empregada originalmente em uma comparao

    feita entre a literatura e as artes plsticas, em que aquela estaria

    aparentemente em desvantagem perante estas por nada colocar de novo no

    mundo. Porm, furtar o que j est no mundo (como disse o prprio Cortzar), de

    maneira que o objeto deste furto se torne o mote do escritor para contar novas

    histrias, parece dar, a ns leitores, ao reconhecermos esse objeto durante a

    leitura, uma sensao to libertadora quanto a surpresa de ver uma nova

    composio - um quadro surrealista, por exemplo - na qual, no encontramos

    nenhuma referncia da realidade.

    A

    Essa sensao, portanto, se d justamente por percebermos na narrao do

    romance uma organizao que parece interpretar fielmente tudo aquilo que

    pensamos e sentimos de verdade. No digo que ao lermos uma histria temos as

    respostas e explicaes das ocorrncias da vida que tanto nos angustiam - at

    porque muitas delas nos deixam ainda mais intrigados e incomodados

    dependendo do assunto que tal histria prope; mas ao percebermos que cada fato

    da vida, ou de um fragmento da vida de um personagem est concatenado e

    devidamente relacionado a tudo que se passa no romance, inclusive

    personalidade dos indivduos que nele atuam, que sentimos a tal sensao de

    reconhecimento.

    Mesmo nos romances mais recentes do sculo XX, naqueles em que estorelatadas questes subjetivas muito inquietantes e so despejados fluxos de

    conscincia muito ntimos, possvel notar que uma seleo de situaes - que

    daro forma ao enredo da histria - e uma seleo de caractersticas - que daro

    consistncia aos seus personagens - foram organizadas e relacionadas de maneira

    compreensvel e plausvel ao leitor que, desse modo, parece encontrar nesse

    gnero uma realidade possvel.

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    Desse modo, o realismo filosfico (Watt, 1990: 14) teve sua importncia

    para o desenvolvimento do romance, pois apresentou a postura geral do

    pensamento realista que, a partir do sculo XIX, passou a fazer parte da

    literatura brasileira. Esta no teria mais a obrigao de ter que recorrer a

    suposies passadas ou temas tradicionais do meio literrio para que uma

    histria pudesse ser relatada e compreendida; viu-se livre, portanto, para

    utilizar-se do novo mtodo que compunha o estudo particular da experincia

    individual, por parte de um pesquisador tambm individual baseado na idia de

    que o ser humano, em qualquer poca, sempre se viu forado, de um modo ou de

    outro, a tirar alguma concluso sobre o mundo exterior a partir da prpria

    experincia.

    A verossimilhana, portanto, se estabelece exatamente a, quando nos coloca

    em sintonia com o que acontece na histria do romance sem precisar de

    referncias concretas da realidade; na verdade, ela nos d subsdios para a

    figurao indita de tudo aquilo que ela nos descreve j que isso se reporta ao

    ponto de vista de uma experincia individual, da subjetividade de um ser. Afinal,

    nada mais compreensvel para o ser humano leitor do que reconhecer a suasubjetividade em um ser humano fictcio. Desse modo, o seu realismo no est em

    descrever fatos de uma vida comprovadamente existente, qual se possa dar

    nome e se ter referncia material no mundo; mas sim na maneira pela qual

    aquela seleo e organizao de fatos e personalidades humanas, das quais

    falamos anteriormente, so apresentadas.

    No romance de Machado de Assis, Memrias Pstumas de Brs Cubas, o

    qual ser discutido a partir de agora, encontramos um bom objeto de estudo paraobservamos as caractersticas apresentadas at ento: um enredo aparentemente

    cheio de interferncias reflexivas em sua ordem seqencial, e um personagem que

    escreve suas memrias depois de morto, algo que no se admitiria, em princpio,

    em um romance chamado realista, como o caso.

    Como foi h pouco mencionado, a narrativa desenvolvida pelo j falecido

    Brs Cubas rodeada por diversos pargrafos e, principalmente, captulos

    reflexivos sobre os fatos que so lembrados por ele. Reflexes estas que

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    expressam no exatamente seu julgamento em relao ao que est se passando ao

    seu redor; mas que evidenciam seus pensamentos, desejos e sentimentos - que

    acreditamos ser verdadeiros - experimentados nas situaes vividas em sua vida

    pessoal e em sociedade. Brs Cubas expe, assim, muitos comentrios sobre os

    fatos que ocorreram consigo ou sobre as pessoas que participaram de sua vida; e

    nos revela muito claramente as suas imediatas sensaes e atitudes naqueles

    momentos.

    Por outro lado, como o livro um relato de suas memrias, pode nos parecer,

    em uma primeira anlise, que a seqncia da histria est desorganizada. O

    processo de recordao que envolve os seres humanos cria uma rede de ligao

    entre os fatos que temos guardados, no necessariamente racional e direta. A

    estrutura do relato de Brs Cubas tenta demonstrar esse processo que em vida,

    de fato, nos apresenta essa impresso confusa; mas que se fosse fielmente

    reproduzida deixaria os leitores quase que certamente sem entender esse

    processo de lembrana. Porm, dentro do romance, a forma como essas conexes

    nos so apresentadas aparecem to bem organizadas na seqncia da histria,

    so to logicamente contadas e acessveis ao nosso entendimento, quereconhecemos ali esse aspecto da nossa vida real; isso o que nos leva a acreditar

    na possibilidade de a histria do enredo ter, de fato, ocorrido.

    Outro tipo de digresso tambm acaba guiando os leitores por todos esses

    fragmentos dos quais Brs Cubas vai se recordando. So estes os momentos de

    reflexo que vo surgindo no momento em que est resgatando suas memrias.

    No captulo nove, Transio, por exemplo, o personagem faz uma pausa com o

    intuito de organizar tudo o que j contou at ali e em seguida continuar a histriasem deixar que o leitor se perca na seqncia da narrativa.

    Alm disso, o personagem se encontra em intenso dilogo conosco durante

    sua narrao, ressaltando detalhes das situaes das quais participou. Brs

    Cubas provoca o leitor, deixa-o livre para opinar sobre tudo aquilo que conta, e

    transfere a responsabilidade do julgamento a ele tambm. Dentro do conceito de

    verossimilhana e realismo filosfico com os quais estamos trabalhando, essas

    intervenes ao leitor permitem, com muito efeito, que este fique atento ao que

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    est sendo contado, acompanhe a linha de narrao do autor fazendo com que seu

    desabafo de impresses sobre tudo aquilo que diz faa parte inteiramente da

    narrativa, sem, com isso, causar uma desarmonia na suposta veracidade dos fatos

    que recorda. Pelo contrrio, temos a impresso, a esse ponto, de estarmos

    conversando com Brs Cubas em tempo real; uma situao em que ele nos conta

    suas experincias e fala de suas divagaes pessoais passadas e, como se fosse ao

    vivo, tambm relata suas atuais e, em alguns casos, reformuladas impresses

    pessoais sobre sua vida. Situao essa imanente nossa prpria coleo de

    experincias.

    No entanto, o fato de sabermos que o narrador est morto, poderia

    contradizer tudo que foi argumentado a favor do conceito de realismo, grosso

    modo, que caracterizamos at o momento; afinal, essa situao anula, por

    princpio, toda possvel imanncia aos fatos narrados. Mas, no caso de Brs

    Cubas, logo no primeiro pargrafo do livro, ele ressalta e explica o porqu estaria

    escrevendo depois de morto; ele nos convence que isso possvel e que seria at

    melhor nos contar a histria a partir de sua morte e que, logicamente, precisaria

    estar morto para isso.Pensando nessa questo, podemos nos perguntar como foi possvel nos

    deixarmos simpatizar com tal histria, a ponto de l-la at o fim e consider-la

    plausvel, se algo que sabemos ser o fim eterno de todas as coisas descrito como

    a justificativa que impulsionou o personagem a escrever. Na comparao com a

    vida real isso no faria sentido nenhum. Porm dentro do enredo parece

    perfeitamente possvel. Essa justificativa prvia o que motiva o relato de uma

    srie de lembranas que iro nos apresentar as caractersticas que Machado deAssis selecionou para compor o personagem dentro daquilo que ele tambm

    selecionou para nos apresentar a sua vida. Que fique bem claro que ele no nos

    define com palavras especficas o que cada personagem de sua trama ; mas aorganizao de toda aquela seleo dentro da narrativa no caso, a seleo das

    memrias que lhe ocorreram - compe toda uma trama que amarra muito bem

    todos esses fragmentos e facilita a nossa compreenso sobre tudo que est

    envolvido no romance.

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    Contextualizando mais especificamente, ento, a questo do personagem,

    passemos para outra comparao com a vida real. Ao olharmos para outra pessoa,

    um amigo, por exemplo, estabelecemos uma interpretao para ele com o intuito

    de podermos conferir certa unidade sua diversificao essencial, sucesso dos

    seus modos-de-ser (Candido, 1968: 58-59), objetivando, desse modo, uma

    maneira mais lgica e organizada de encarar a ampla subjetividade do ser

    humano. Isso no nos faz, idealmente pelo menos, limitar a complexidade de uma

    personalidade caractersticas finitas e estveis. Portanto, a nossa

    interpretao dos seres vivos mais fluida, variando de acordo com o tempo ou as

    condies da conduta (Candido, 1968: 58-59) se a compararmos com o que nos

    oferecido no romance. Porm, a limitao das caractersticas escolhidas para

    compor um personagem dentro da organizao restrita da narrativa, de acordo

    com uma certa lgica de composio de tudo aquilo que envolve o romance, o

    que cria a iluso do ilimitado que percebemos na vida real e nos permite

    estabelecer um paralelo entre a fico e a realidade.

    De certo modo, o estabelecimento convencionalizado de conexo e referncia

    entre um trao e outro, tanto dentro do enredo quanto na composio dapersonalidade de um personagem, alm da articulao entre personagem(s) e

    enredo, o que estabelece o poder sugestivo do romance; e essa observao

    explicaria, com eficcia, o fato de acreditarmos que um autor

    (inacreditavelmente) defunto poderia nos contar uma histria. Cada fragmento de

    sua memria, cada reflexo feita na poca da lembrana de cada fato recordado, e

    sua participao ativa no presente da narrativa que desenvolve - enfim, cada

    trao selecionado e ento relatado nessas memrias, adquire sentido um emfuno do outro. Em outras palavras, o sentimento de realidade, a

    verossimilhana, depende da organizao lgica de um contexto que, aliado

    seleo de traos especficos para a composio da experincia individual - mesmo

    que s durante um pensamento - de um personagem, possibilitam a concretizao

    tcnica do que chamamos realismo filosfico.

    Toda esta organizao o que d veracidade aos seres fictcios; o que lhes

    proporciona uma vida que admitiramos como nossa; o que os faz parecer mais

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    reais e, assim, capazes de nos sugerir uma situao possvel; o que nos leva a

    acreditar que seria possvel, de fato, a existncia de um defunto autor que

    gostaria de dividir suas memrias e reflexes, algumas de suas experincias - as

    das quais se lembra - com o amigo leitor que, aqui, ainda no pode ver as coisas

    pela perspectiva de Brs Cubas, mas que no ousa duvidar da honestidade da

    condio em que este est escrevendo.

    Referncias Bibliogrficas

    ASSIS, Machado de. Memrias Pstumas de Brs Cubas. So Paulo: Moderna,

    1999. (Coleo Travessias).

    CANDIDO, A. A personagem do romance. In:A personagem da fico. So Paulo:

    Perspectiva, 1968. p. 53-80.

    CORTAZAR, J. Situao do romance. In: CAMPOS, H.; ARRIGUCI JR., D. (Org.).Valise de cronpio. Traduo de Davi Arriguci Jr. e Joo Alexandre Barbosa. So

    Paulo: Perspectiva, 2004. p. 61-83. (Coleo Debates).

    WATT, I. A Ascenso do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.

    Traduo de Hildegard Feist. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 11-33.

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