Análise Musical Repertório de Bossa Nova

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Análise de canções atribuídas à Bossa Nova.

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    APNDICE

    REPERTRIO COMENTADO DE CANES

    A Bossa Nova sobrevive aos anos 90, iniciando-os com uma edio bilnge de

    canes em "modernos song books", em cinco volumes. A coleo, organizada por

    Almir Chediak, totaliza mais de 300 canes. Muitas foram excludas dos

    comentrios, por razes diversas. Nem todas as escolhidas se justificam como

    pertencentes Bossa Nova.

    Apenas para referncia, os ttulos das canes na lista contm a indicao dos

    volumes em algarismos romanos:

    1. "A felicidade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)

    2. A paz, de Joo Donato e Gilberto Gil (IV)

    3. A r, de Joo Donato e Caetano Veloso (I)

    4. Adriana, de Roberto Menescal e Lula Freire (I)

    5. gua de beber , de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (I)

    6. guas de maro, de Tom Jobim (II)

    7. Ah se eu pudesse, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (I)

    8. Alegria de viver, de Luiz Ea e Fernanda Quinder (III)

    9. Amanhecendo, de Roberto Menescal e Lula Freire (I)

    10. Amazonas, de Joo Donato e Lysias Enio (IV)

    11. Amei tanto, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)

    12. Amor certinho, de Roberto Guimares (V)

    13. Amor de nada, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (III)

    14. Amor em paz, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)

    15. Anoiteceu, de Fracis Hime e Vinicius de Moraes (IV)

    16. Anos dourados, de Tom Jobim e Chico Buarque (IV)

    17. Aos ps da cruz, de Marino Pinto e Z Gonalves (V)

    18. Apelo, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)

    19. Aqui, ! , de Toninho Horta (V)

    20. At parece, de Carlos Lyra (I)

    21. Atrs da porta, de Francis Hime e Chico Buarque (I)

    22. At quem sabe, de Joo Donato e Lysias nio (III)

    23. Aula de matemtica, de Tom Jobim e Marino Pinto (III)

    24. Baiozinho, de Eumir Deodato (V)

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    25. Balano zona sul, de Tito Madi (I)

    26. Bananeira, de Joo Donato e Gilberto Gil (IV)

    27. Barravento, de Srgio Ricardo (III)

    28. Batida diferente, de Mauricio Einhorn e Durval Ferreira (IV)

    29. Batucada surgiu, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)

    30. Beijo partido, de Toninho Horta (IV)

    31. Berimbau, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)

    32. Bim-bom, de Joo Gilberto (I)

    33. Bloco do eu sozinho, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (II)

    34. Bolinha de papel, de Geraldo Pereira (V)

    35. Bolinha de sabo, de Orlann Divo e Adilson Azevedo (IV)

    36. Bons amigos, de Toninho Horta e Ronaldo Bastos (V)

    37. Brigas nunca mais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (I)

    38. Brisa do mar, de Joo Donato e Abel Silva (IV)

    39. Caminho de pedra, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)

    40. Caminhos cruzados, de Tom Jobim e Newton Mendona (I)

    41. Cano do amanhecer, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes (II)

    42. Cano do amor demais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (I)

    43. Cano do nosso amor ,de Dalton Silveira (III)

    44. Cano que morre no ar, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli (II)

    45. Candeias, de Edu Lobo (IV)

    46. Cansei de iluses, de Tito Madi (V)

    47. Canto de Ossanha, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (III)

    48. Canto triste, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes (III)

    49. Carta ao Tom 74, de Toquinho e Vinicius de Moraes (I)

    50. Cu e mar, de Johnny Alf (III)

    51. Chega de saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)

    52. Chora tua tristeza, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini (III)

    53. Choro bandido, de Edu Lobo e Chico Buarque (V)

    54. Chove l fora, de Tito Madi (V)

    55. Chuva, de Durval Ferreira e Pedro Camargo (IV)

    56. Coisa mais linda, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (II)

    57. Comeou de brincadeira, de Pacfico Mascarenhas (I)

    58. Consolao, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)

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    59. Corao vagabundo, de Caetano Veloso (IV)

    60. Corcovado, de Tom Jobim (IV)

    61. De onde vens, de Dori Caymmi e Nelson Motta (IV)

    62. De palavra em palavra, de Miltinho, Maurcio Tapajs e Paulo C. Pinheiro (V)

    63. Deixa, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)

    64. Demais, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (I)

    65. Derradeira primavera, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)

    66. Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendona (II)

    67. Desejo do mar, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (II)

    68. Deus brasileiro, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)

    69. Dindi, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (I)

    70. Discusso, de Tom Jobim e Newton Mendona (I)

    71. Domingo, azul de Billy Blanco (III)

    72. Doralice, de Dorival Caymmi e Antonio Almeida (V)

    73. Duas contas, de Garoto (V)

    74. luxo s, de Ari Barroso e Luiz Peixoto

    75. E nada mais, de Durval Ferreira e Lula Freire (III)

    76. E vem o sol, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)

    77. Ela carioca, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)

    78. Embarcao, de Francis Hime e Chico Buarque (IV)

    79. Enquanto a tristeza no vem, de Srgio Ricardo (I)

    80. Entrudo, de Carlos Lyra e Ruy Guerra (V)

    81. Esperana perdida, de Tom Jobim e Billy Blanco (III)

    82. Esse mundo meu, de Srgio Ricardo e Ruy Guerra (I)

    83. Estamos a, de Mauricio Einhorn, Durval Ferreira e Regina Werneck (IV)

    84. Este seu olhar, de Tom Jobim (II)

    85. Estrada branca, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (IV)

    86. Estrada do sol, de Tom Jobim e Dolores Duran (I)

    87. Eu preciso de voc, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (IV)

    88. Eu sei que vou te amar, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (I)

    89. Eu te amo, de Tom Jobim e Chico Buarque (IV)

    90. Falsa baiana, de Geraldo Pereira (V)

    91. Feio no bonito, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri (I)

    92. Feitinha pro poeta, de Baden Powell e Lula Freire (II)

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    93. Fim de noite, de Chico Feitosa e Ronaldo Bscoli (II)

    94. Foi a noite, de Tom Jobim e Newton Mendona (II)

    95. Fotografia, de Tom Jobim (V)

    96. Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (II)

    97. Gente, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (III)

    98. H-ba-l-l, de Joo Gilberto (I)

    99. Influncia do jazz, de Carlos Lyra (I)

    100. Insensatez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)

    101. Intil paisagem, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (I)

    102. Izaura, de Herivelto Martins e Roberto Roberti (V)

    103. Lamento no morro, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (IV)

    104. Lgia, de Tom Jobim (III)

    105. Lobo bobo, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli (II)

    106. Luiza, de Tom Jobim (III)

    107. Maria ningum, de Carlos Lyra (I)

    108. Mxima culpa, de Srgio Ricardo (III)

    109. Meditao, de Tom Jobim e Newton Mendona (I)

    110. Menina feia, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini (V)

    111. Menina-moa, de Luiz Antnio (V)

    112. Minha namorada, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (I)

    113. Minha saudade, de Joo Donato e Joo Gilberto (II)

    114. Moa flor, de Durval Ferreira e Lula Freire (IV)

    115. Modinha, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)

    116. Morrer de amor, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini (V)

    117. Nan, de Moacyr Santos e Mario Telles (IV)

    118. No diga no, de Tito Madi e Georges Henry (V)

    119. Ns e o mar, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (I)

    120. O amor chama, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (III)

    121. O amor que acabou, de Chico Feitosa e Lula Freire (III)

    122. O astronauta, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)

    123. O barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (I)

    124. O morro no tem vez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)

    125. O negcio amar, de Carlos Lyra e Dolores Duran (II)

    126. O nosso amor, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (II)

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    127. O nosso olhar, de Srgio Ricardo (II)

    128. O pato, de Neuza Teixeira e Jaime Silva (III)

    129. O que amar, de Johnny Alf (II)

    130. O que eu gosto de voc, de Silvio Cesar (V)

    131. O que tinha de ser, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (II)

    132. Olha Maria, de Tom Jobim, Chico Buarque e Vinicius de Moraes (V)

    133. Onde est voc, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini (V)

    134. Outra vez, de Tom Jobim (II)

    135. Pernas, de Srgio Ricardo (III)

    136. Poema azul, de Srgio Ricardo (I)

    137. Pois , de Tom Jobim e Chico Buarque (IV)

    138. Por causa de voc, de Tom Jobim e Dolores Duran (II)

    139. Por toda a minha vida, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (IV)

    140. Pouca durao, de Pacfico Mascarenhas (III)

    141. Pra dizer adeus, de Edu Lobo e Torquato Neto (IV)

    142. Pra que chorar, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)

    143. Pra voc, de Silvio Cesar (V)

    144. Praias desertas, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)

    145. Preciso aprender a ser s, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)

    146. Primavera, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (III)

    147. Rapaz de bem, de Johnny Alf (II)

    148. Razo de viver, de Eumir Deodato e Paulo Srgio Valle (I)

    149. Retrato em branco e preto, de Tom Jobim e Chico Buarque (I)

    150. Rio, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (III)

    151. Rosa morena, de Dorival Caymmi (V)

    152. Sabe voc, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (II)

    153. Sabi, de Tom Jobim e Chico Buarque (IV)

    154. Samba da bno, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)

    155. Samba da pergunta, de Pingarilho e Marcos Vasconcelos (II)

    156. Samba de Orfeu, de Luiz Bonf e Antnio Maria (IV)

    157. Samba de Orly, de Toquinho, Chico Buarque e Vinicius de Moraes (V)

    158. Samba de rei, de Pingarilho e Marcos Vasconcelos (I)

    159. Samba de uma nota s, de Tom Jobim e Newton Mendona (I)

    160. Samba de vero, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (III)

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    161. Samba do avio, de Tom Jobim (V)

    162. Samba do carioca, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (II)

    163. Samba do dom natural, de Pingarilho e Marcos Vasconcelos (V)

    164. Samba em preldio, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)

    165. Samba torto, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (II)

    166. Samba triste, de Baden Powell e Billy Blanco (I)

    167. Saudade fez um samba, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli (I)

    168. Se tarde me perdoa, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli (II)

    169. Se todos fossem iguais a voc, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (IV)

    170. S dano samba, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (II)

    171. S em teus braos, de Tom Jobim (I)

    172. S por amor, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)

    173. S tinha de ser com voc, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (I)

    174. Sonho de lugar, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (II)

    175. Sonho de Maria, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)

    176. Tamanco no samba, de Orlann Divo e Elton Menezes (IV)

    177. Tambm quem mandou, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (III)

    178. Tarde em Itapo, de Toquinho e Vinicius de Moraes (IV)

    179. Telefone, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (II)

    180. Tem d, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)

    181. Tem d de mim, de Carlos Lyra (III)

    182. Tema de amor por Gabriela, de Tom Jobim (V)

    183. Tempo feliz, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (IV)

    184. Tereza da praia, de Tom Jobim e Billy Blanco (III)

    185. Terra de ningum, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (II)

    186. Tet, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (II)

    187. Tintim por tintim, de Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques (V)

    188. Triste, de Tom Jobim (III)

    189. Tristeza de ns dois, de Mauricio Einhorn, Durval Ferreira e Bebeto (IV)

    190. Tudo se transformou, de Paulinho da Viola (V)

    191. ltima forma, de Baden Powell e Paulo Csar Pinheiro (IV)

    192. Vagamente, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (II)

    193. V, de Roberto Menescal e Lula Freire (I)

    194. Verbos do amor, de Joo Donato e Abel Silva (IV)

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    195. Viagem, de Joo de Aquino e Paulo Cesar Pinheiro (V)

    196. Viola enluarada, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (IV)

    197. Vivo sonhando, de Tom Jobim (III)

    198. Voc, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (I)

    199. Voc e eu, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (I)

    200. Vou por a, de Baden Powell e Billy Blanco (I)

    201. Wave, de Tom Jobim (III)

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    COMENTRIOS ANALTICOS DAS CANES

    Volume I:

    A r, de Joo Donato e Caetano Veloso

    Este samba foi gravado em 1968 por Srgio Mendes e seu Brasil 66 no lbum

    Look around.

    A letra parcialmente um scattering sugerindo que h um ritmo sincopado

    autctone (tropical) peculiar ao samba e tambm a outros gneros, similar ao coaxar

    da r. Joo Gilberto gravou-a com o ttulo de O sapo, com silabao, sem os versos,

    no LP Joo Gilberto (199.055, selo Philips).

    Para que se perceba o samba, preciso pensar nas notas da melodia articuladas

    de uma maneira determinada.

    A instabilidade tonal deixa nele uma certa marca, pois no se estabelece tnica e

    no se conclui na tnica, prevalecendo o modo drico.

    A insistncia faz repetir obsessivamente o encadeamento Dm7 G7, que acaba

    conduzindo a A7M, tom homnimo do relativo, praticamente uma modulao

    inesperada no fim do perodo.

    Considerado como bossa-nova, mas no muito tpico, neste samba o II V soa

    no como uma forma de evitar a tnica, mas quase como uma base de improvisao,

    que no caso aparece vocalizada, onomatopeica do rudo de uma r.

    Adriana, de Roberto Menescal e Lula Freire

    Cano em compasso quinrio 5/4 em d menor drico, permite que se suponha

    que ela foi diretamente inspirada pela audio da produo de Dave Brubeck, do final

    da dcada de 1950. O discos so Time out e Time further out1, este ltimo inclui um

    texto de Brubeck na contracapa datado de agosto de 1961. O famoso Take five,

    tema de Paul Desmond includo no Time out, era um grande sucesso.

    A melodia de Adriana claramente estruturada num beat incomum nos

    gneros brasileiros, e semelhante rtmica usada por Brubeck.

    A harmonia chamou ateno pela forma de preparao do acorde da tnica Cm

    feita pelo encadeamento II V, em que o segundo grau usa a quinta justa como no

    1 Dave Brubeck Quartet. Time out CBS,37255 e Time further out CBS,37277

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    modo maior e no a quinta diminuta como no modo menor. Talvez, devidamente

    verificado, este tipo de harmonizao drica tenha uma qualidade que ocorre mais nas

    canes americanas que nas produzidas aqui.

    gua de beber, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes

    A melodia da cano, em si menor, totalmente incomum aos gneros urbanos

    brasileiros (samba, bolero, etc.) quanto a vrios aspectos. No que diz respeito

    ausncia de sensvel (l #) e sobretudo ao quinto grau, f# abaixado para f natural,

    notamos que o centro tonal foi enfraquecido. Ao mesmo tempo que a repetio do

    verso gua de beber, camar lembra algo de melodia de origem regional, com

    maneiras de cantar e entonaes diferentes das do samba, tanto pelo intervalo de tera

    menor quanto pelas notas repetidas de tnica. O quinto grau, abaixado para f natural,

    lembra uma blue note2 e a escala de jazz. A ausncia de sensvel ou o VII grau natural

    na escala menor tambm so fartamente encontrados nas peas de jazz.

    Esta pea mereceria, posteriormente, uma anlise mais detalhada

    Ah se eu pudesse, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli

    A cano, em d maior, no estabelece tnica inicial. A primeira harmonia se

    apoia sobre o Fm (IVm) (situao que pode ser interpretada tambm como IIm7(9)

    V7(13) / bIII ) e a primeira nota do tempo forte a nona deste acorde. No freqente

    encontrar-se harmonia de canes iniciando com encadeamento resolvendo num

    acorde de emprstimo modal (IIm9 V13 / bIII ). Est clara a necessidade de se

    evitar a estabilidade de uma tnica nos primeiros compassos.

    No caso desta cano a tnica mal se apresenta nos acordes finais, cedendo a

    concluso harmnica da pea para o homnimo do anti-relativo EM7. Nota-se que

    estas situaes, incomuns nas canes populares de pocas anteriores, so, ao

    contrrio, muito freqentes no repertrio da Bossa Nova.

    Amanhecendo, de Roberto Menescal e Lula Freire

    Uma outra forma de se evitar a obviedade da tnica inicial neutraliz-la com

    harmonias e movimentos meldicos no diatnicos. No captulo sol, sal, sul

    2 A blue note uma nota rebaixada de meio tom em relao s notas da diatnica. Alm das notas da diatnica so rebaixados tambm os intervalos de quinta

    dos acordes, e, por extenso deste princpio e por analogia, outros intervalos imitam esta prtica.

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    Ruy Castro conta que entre 1960 e 1961 a dupla de parceiros se reuniu e produziu

    muito, entre Rio e Cabo Frio3. Esta cano faz parte deste perodo, assim como a

    anterior Ah se eu pudesse.

    No tom de r maior, nela aparecem, j no segundo compasso aps a articulao

    da tnica, intervalos da escala de r menor natural os VI e VII graus abaixados em

    relao ao modo maior harmonizados com Am7, isto , o V grau menor, encontrado

    na mesma escala. Esta harmonia poderia ser A7(#9), sendo o d natural da melodia a

    nona aumentada, muito semelhante harmonia que se segue, Eb7 com a 13 (d

    natural no canto). Esta situao demonstra claramente como o acorde de dominante

    com resoluo 5 abaixo (no caso A7#9) pode ser substitudo por harmonia de 6

    aumentada (Eb7), muitas vezes chamado de dominante de substituio ou subV.

    Esta cano parece tpica da Bossa Nova, exaltando, na letra, a temtica do

    amor-flor-mar, o qual ela estabelece ou do qual ela resulta. Canta todos os clichs de

    natureza, considerados como caractersticos da Bossa Nova: rio lindo para o mar,

    tantas nuvens brancas no azul, o dia traz mil cores diferentes neste amanhecer.

    As situaes harmnicas tambm estabelecem ou resultam de um padro,

    diverso de um samba convencional. A primeira estrofe poderia levar tnica, mas

    evita esta concluso, substituindo-a por Am7, inserindo j na primeira estrofe um elo

    para a segunda (Am7 D7), que introduzida com inclinao para o IV grau, o qual

    por sua vez no se resolve e substitudo por um G#m7(b5) (#IVm7(b5)), preparando

    o IVm6.

    Talvez encontremos mais evidncias destes elementos nas canes assinadas

    por Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli, do que nas assinadas por outros.

    At parece, de Carlos Lyra

    Samba bastante tpico rtmica e melodicamente. A alternncia da sncope com

    as notas repetidas, logo na exposio do primeiro compasso, lembra um samba

    convencional. A concluso da cano com tnica na melodia e no tempo forte

    tambm refora uma esttica mais tradicional.

    A nova vestimenta se apresenta na segunda seo, que apesar do movimento

    meldico regular mostra harmonizaes com (13) e (b13) e relaes de intervalos

    compostos com a harmonia, que so mais comuns na Bossa Nova.

    3 CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. P.274

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    o samba totalmente presente na Bossa Nova, inclusive atravs da letra que

    une samba, balano e mar.

    Atrs da porta, de Francis Hime e Chico Buarque

    Esta uma cano que se aproxima do gnero bolero e samba-cano, com

    harmonia e melodia longa, e mais rebuscado do que o usual gnero.

    O centro tonal (d) est bastante diludo, iniciando-se a exposio do motivo

    temtico no IV grau. A tnica vai aparecer muitos compassos depois, na forma do

    homnimo maior (C#7M). O acorde de tnica aparece no final da pea, que usa a

    reafirmao da ltima frase para concluir em outra harmonia que no da tnica. Este

    recurso encontrado em muitas das canes analisadas.

    Pode-se conjecturar que as harmonias mais amplas e com muitas alteraes

    produto da formao do compositor, que arranjador e pianista. Supe-se que o

    compositor que cria ao violo mantm um padro de harmonizao diferente do

    compositor que cria ao piano. Isto se aplica tambm a Tom Jobim.

    Balano zona sul, de Billy Blanco

    Esta cano se afasta do padro de outras j analisadas, porque expe uma

    melodia simples, harmonizada com a tnica inicial bastante clara, apoiada na tera

    maior do acorde. A simplicidade vai se estender at o final da cano, que conclui a

    melodia com a nota da tnica (d), e com harmonia de tnica. Nem o motivo da

    melodia nem o padro rtmico fazem senti-la com intensidade como sendo de um

    gnero convencional de samba.

    Entretanto a letra marca, com a palavra balano, a inteno de uma poca que

    pensava na rtmica sincopada como algo capaz de fazer balanar as pessoas. A

    associao do balano no andar com o balano do ritmo (o sambalano) foi muito

    explorada nas letras da poca da Bossa Nova, sem que se possa dizer que era uma

    peculiaridade exclusiva dos que a cultivaram. Muitas letras falam de balano, de

    ritmo balanado significando algo parecido com o que no jazz se chama swing.

    Alm de falar de balano a letra o localiza nos bairros da Zona Sul do Rio

    (do Leme ao Leblon), pedao de geografia muito cantada na Bossa Nova.

    Batucada surgiu, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle

    A inteno de defender o samba e a batucada como cultura exclusiva da raa

    negra torna frgil demais a cano. A ingenuidade da letra associa a raa de cor

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    branca falta de amor e morte. E, no lado racial oposto, os negros sorriem e so

    cheios de amor. A batucada surgiu e nem um branco ficou, a no ser o prprio

    compositor, cidado branco da Zona Sul do Rio.

    Examinando-se a msica fica evidente um contraste inconcilivel entre a defesa

    do samba de negros e uma melodia modal de forte tendncia pentatnica, sem a

    sensvel do tom, aparentemente r drico. Esta omisso da sensvel, que ocorre em

    outras canes como Berimbau e Consolao, de Baden Powell e Vinicius de

    Moraes, faz pensar numa procura de supostas razes regionais e africanas, afastada

    do gnero de samba preferentemente tonal. Esta discusso pode ser aprofundada e

    trazer esclarecimentos bastante teis.

    Bim-bom, de Joo Gilberto

    Esta cano foi o lado dois do disco em 78 rotaes por minuto que lanou Joo

    Gilberto em 1958 com o sucesso Chega de Saudade, de Tom Jobim e Newton

    Mendona.

    A simplicidade da melodia e da letra intencional. tambm uma forma de

    apologia, que parece defender que o prazer puro do samba dispensa complicaes

    harmnicas e meldicas e influncias malficas. Para evitar uma dependncia

    completa da diatnica, aparece no segundo perodo musical uma inclinao para l

    menor atravs do seu segundo grau Bm7, que, apresentado com a quinta justa por

    razes meldicas, e contrastando com a quinta diminuta exigida no modo menor

    harmnico, amplia um pouco o campo diatnico

    Brigas nunca mais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes

    A riqueza da relao melodia-harmonia lembra os recursos de outras tantas

    canes, cujo motivo meldico contm notas repetidas (o modelo o Samba de uma

    nota s) sustentada por uma harmonia rica e variada. A progresso descendente A6

    G#7 G7M acompanha um motivo repetido com ritmo sincopado e afasta a melodia

    do centro tonal j a partir do segundo compasso. O canto na sexta e na stima dos

    acordes aparece mais variado e menos bvio que os motivos de outras canes como

    Eu sei que vou te amar (melodia sobre a stima dos acordes diatnicos) e Garota

    de Ipanema (sobre a nona do acorde de tnica). Os apoios harmnicos nos tempos

    fortes que se seguem, acontecem sobre a dcima terceira abaixada F#7(b13) e sobre a

  • 13

    dcima primeira justa Bm7(9), mantendo um padro de intervalos compostos para

    quase toda a cano.

    Alm destas qualidades parece que a letra, apesar da harmonia um tanto

    rebuscada, se pe de acordo falando desimpostadamente de um sentimentalismo na

    vida cotidiana.

    O sentido bem definido de samba, verificado nas sncopes e na rtmica de notas

    repetidas, se faz com naturalidade, sem enfatizar a inteno de uma relao complexa

    entre a melodia e a harmonia.

    Caminhos cruzados, de Tom Jobim e Newton Mendona

    Esta cano se aproxima do gnero do bolero, por ser um samba demasiado

    lento. Apesar de ser curto, optou por uma melodia bem desenhada e apoiada por uma

    harmonia rica e menos padronizada que as demais canes da Bossa Nova. Sendo a

    tnica l, a inclinao para o homnimo do anti-relativo C#7M, surge como um

    considervel afastamento da diatnica. A abundncia de acordes de sexta, tanto com

    funo dominante (F#m6, Gm6) como com funo de subdominante (Em6, Dm6) e

    de tnica (D6), do fora ao desenvolvimento da melodia e enfatiza o carter de

    alguns gneros brasileiros ( preciso examinar melhor esta afirmao). A melodia que

    inclina no primeiro perodo para C#7M, atravs da dominante G#7(13), reaparece na

    reexposio apoiada por outra harmonia D#(b13)deEm6/G, que renova e revigora o

    desenho meldico. Este movimento do baixo tem uma longa tradio na msica

    brasileira, e pode se supor reconhecvel como caracterstico do choro e do samba

    tradicional, nas instrumentaes dos conjuntos regionais. A culminncia meldica

    dada pela relao de nona aumentada (si natural) harmonizada com G#7(b13). E o

    acorde de D#(b13) usado como acorde de passagem, em situao incomum, entre o

    IV grau D6 e o II grau invertido Em6/G.

    A constatao das riqueza de harmonizao da prtica de msica popular, no

    Brasil, deve ser enfatizada e demonstrada em pesquisas e estudos, haja vista que a ela

    se referem tanto a bibliografia quanto os especialistas.

    Cano do amor demais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes

    Uma das primeiras composies da dupla e ttulo do LP que Elizeth Cardoso

    gravou para o selo Festa em 1958, ela se inclui neste que considerado o primeiro

    disco da Bossa Nova. Ele contm uma faixa em que Joo Gilberto, com a famosa

  • 14

    batida de violo acompanha, a contragosto, Elizeth em Chega de Saudade e Outra

    vez. O desentendimento entre os dois, durante os ensaios para a gravao, est

    relatado por Ruy Castro4.

    A composio revela muito mais sobre a trajetria da parceria de Tom e

    Vinicius do que sobre o convvio musical de um grupo social na Bossa Nova. Por ser

    uma balada, gnero distinto do samba, do bolero e do choro, sem um desenho rtmico

    caracterstico, esta cano pode ser percebida como um clssico, tanto no sentido de

    marco de referncia, quanto de proximidade com a msica de concerto. A carga

    dramtica da letra, inclusive usando a segunda pessoa do singular tu, sustentada por

    uma melodia em modo menor, bastante complicada e movimentada como se fosse um

    recitativo, foge ao padro da cano popular difundida em rdios e discos. O

    cromatismo da melodia, alternada por notas repetidas e pela presena no final de um

    intervalo de quarta aumentada, e a sua culminncia, acentuada por um l#

    harmonizado com um acorde Am7, dificilmente ocorrer em muitas canes ou se

    repetir como clich.

    O clima dramtico teria sido acentuado na interpretao de Elizeth Cardoso, no

    s nesta como em todas as outras canes do LP, sendo este talvez o motivo de

    conflito entre ela e Joo Gilberto.

    Carta ao Tom 74, de Toquinho e Vinicius de Moraes

    A mensagem, enviada de um momento (ano de 1974) no futuro dos

    acontecimentos da Bossa Nova, celebra com nostalgia (Ah que saudade) as virtudes

    do tempo em que se produziu Cano do amor demais, mencionada literalmente,

    Garota de Ipanema, (nossa famosa garota) e Corcovado (um cantinho de cu e

    o Redentor). E conclama a que, inspirado nestas virtudes, se reinvente os

    sentimentos que aquele momento do passado teria descrito to bem.

    Comeou de brincadeira, de Pacfico Mascarenhas

    Tpico samba da Bossa Nova, tanto a letra quanto a msica propem uma

    exposio do motivo de notas repetidas, sem impostaes, que se estabelece desde a

    primeira frase, numa anacruse que se dirige para a stima r do acorde de tnica

    Eb7M, sob as palavras mais ou menos foi assim. Estes so recursos que pretendem

    4 idem.p.177

  • 15

    demonstrar uma informalidade, como que uma renncia forma, e a impresso de que

    a letra no passa da descrio de uma situao em estilo coloquial, renunciando

    tambm a tratar a cano como se fosse uma obra com forma definida, com comeo

    meio e fim, ou seja, exposio, reexposio e coda. As notas repetidas so uma

    referncia e um indcio de que o Samba de uma nota s foi no s bem digerido

    como apreendido e transformado em idioma.

    Consolao, de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    Ela pertence a uma linha de sambas, produto da parceria que se encontrou para

    trabalhar em 19625, sem a softness dos sambas lentos da Bossa Nova. A extenso das

    sncopes, abrangendo todo o compasso, e s vezes at alm da barra de compasso

    (verificar o refro no incio da pea), caracteriza ritmicamente um samba

    convencional, diferente do estilo de sncopes mais curtas usado em outras canes da

    Bossa Nova.

    As letras de Vinicius se adaptam bem esttica meio regionalista das peas

    de Baden Powell (o mesmo acontece em Berimbau). A ausncia de sensvel, ou o

    stimo grau abaixado do modo menor, situa a pea num ambiente, ao qual pode se

    atribuir um colorido modal. A combinao, muito usada pela dupla, de modalismo,

    samba convencional e letra com temtica sentimental, obteve sucesso.

    Nesta cano, como em outras, o gnero samba se revela completamente na

    segunda seo, em que o modalismo , por pouco tempo, abandonado, e a harmonia

    surge com a apresentao do acorde A7, que contm a sensvel da tnica l. O fato

    gerador da sensao de um samba mais reconhecvel deve-se provavelmente a este

    retorno provisrio a uma linguagem mais diatnica.

    Deixa, de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    Como o anterior, tambm um samba mais convencional, no tanto

    bossanovista, criado na mesma poca. Ele faz parte do famoso LP Opinio de Nara

    de 1965. Nele, vrias entonaes reforam a linguagem consagrada, como a frase

    final, tpica de um sambo. O intervalo de oitava descendente, motvico, um dos

    ingredientes que nos faz reconhec-lo como grande samba. , por uma exagerada

    coincidncia, o mesmo intervalo, s que invertido, do motivo de O sol nascer, de

    5 idem. p.306.

  • 16

    Cartola e lton Medeiros, de 1964. Este samba est includo no disco que Nara

    gravou para o selo Elenco naquele ano. Intervalos to pouco econmicos quanto a

    oitava aparecem nos motivos musicais de outros sambas da dupla como Tem d,

    Amei tanto, Pra quer chorar e Tempo feliz.

    Entretanto h pretenses de modernizao da linguagem, que se revelam na

    relao melodia-harmonia. Aparece a nona aumentada, na forma de uma conservao

    da sensvel abaixada sol, apoiada pela harmonia tonal E7(#9), na trade arpejada de l

    menor harmonizada dissonantemente por E7(b9), e no intervalo de quinta justa em

    que ambas as nota d e f so intervalos compostos do acorde E7(b13).

    Demais, de Tom Jobim e Aloysio de Mendona

    Parceria de 1959, assim como Eu preciso de voc e Dindi, Tom Jobim no

    produziu muitos sambas com Aloysio de Oliveira. Nestas canes as sncopes

    caractersticas esto ausentes e, ritmicamente, elas se aproximam mais das baladas e

    dos fox-trotes americanos com que Aloysio deve ter se familiarizado, na sua longa

    estadia em Los Angeles, produzindo musicais para Hollywood.

    Deus brasileiro, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle

    Neste samba a melodia procura perigosamente escapar da diatnica com

    cromatismos e uma inclinao ao sexto grau do modo menor bVI7M que parece fruto

    de um clculo que constrange a melodia.

    Fruto tambm de clculo, a letra faz a apologia do brasileiro cordial que no

    sabe o que a guerra e s tem amor, no tem preconceito de cor e no se importa

    com prestgio social e financeiro. Neste paraso perdido todos so livres e felizes.

    Discusso, de Tom Jobim e Newton Mendona

    Se se pretendesse indicar uma cano modelar para o samba bossa-nova, esta

    seria uma forte candidata. Ela se inclui no LP tambm modelar O amor, o sorriso e a

    flor, de 1960, cujo ttulo um verso do samba Meditao.

    O desenho motvico se apoia nas stimas dos acordes desde o primeiros

    compassos. A melodia construda sobre a stima de C7M, de Dm7, Em7, etc. A

    repetio do motivo em graus ascendentes bastante convencional, assim como a sua

    harmonizao dada pela progresso C7M, Eb, Dm7, D#, Em7, que um clich.

  • 17

    A letra, desenvolvendo uma retrica sentimental, criou um estilo, muito

    cultivado na poca, que evitava fortemente o tom melodramtico dos sambas

    habitualmente veiculados pelo rdio, considerados pesados. Pode-se pensar aqui em

    composies de Herivelto Martins como Caminhemos e de Antnio Maria como

    Ningum me ama, ningum me quer.

    Dindi, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira

    Balada com uma longa introduo que lembra as canes americanas, esta

    mais uma parceria com Aloysio de Oliveira, que se tornou um grande sucesso. Como

    as outras parcerias, no expressa os ritmos idiomticos do samba, da marcha ou do

    choro.

    Srgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, foi um crtico acerbo da Bossa Nova, e

    acusou Tom Jobim de plgio. Tentou corrigir a situao, contando numa entrevista

    que o plgio pode ser involuntrio6. Dindi, segundo ele, semelhante a Love for

    sale de Cole Porter.

    Enquanto a tristeza no vem, de Srgio Ricardo

    O tom de modernidade do samba do paulista Srgio Ricardo quer falar da

    realidade feia da favela, com a esperana de fazer nascer l uma rosa.

    A falta de apoio na tnica inicial e o carter instvel da exposio tornam difcil

    a percepo do centro tonal da pea. Ele deve ser sol menor, que s aparece claro no

    ltimo compasso. A melodia caminha constrangida pela harmonia e vice-versa. As

    relaes entre elas no so as que se v nas canes de Tom Jobim, Roberto Menescal

    e Carlos Lyra, mais prximas de intervalos impostos por uma lgica tonal. A esttica

    aqui mais rspida, se se pode dizer assim, e torna endurecida a relao melodia-

    harmonia.

    A progresso harmnica que sustenta a melodia de notas fundamentais dos

    acordes em Cm7 e Fm7, e no final a tnica harmonizada com Gm6, contrasta

    fortemente com a violenta dissonncia do arpejo de Cm apoiado pelo acorde de

    Db7M, numa inclinao inesperada ao II grau abaixado.

    Esse mundo meu, de Srgio Ricardo

    6 Divulgada no programa do Show do Crioulo Doido, no Teatro Toneleros, em 1968.

  • 18

    O mesmo tom de modernidade apresentado no samba Enquanto a tristeza no

    vem aparece neste outro samba.

    Igualmente, o mesmo constrangimento entre melodia e harmonia pode ser

    observado. A percepo do centro tonal da pea no difcil e at bvio. O motivo

    inicial, baseado nos I, II, III graus de d maior, chega a ser deliberadamente

    despojado. No entanto a harmonia, F7M Dm7 G74 C7, parece colocada

    intencionalmente para desestabilizar a sensao de obviedade e de despojamento. Isto

    , temos uma melodia bvia e linear em d maior, harmonizada em f.

    A letra praticamente um manifesto contra a apropriao dos meios de

    produo por uma s classe. A escravido, antes s no reino e agora no mundo

    inteiro, impede o amor. Ele acrescenta uma disposio de lutar contra esta situao

    com qualquer arma disponvel, inclusive as armas da cultura religiosa negra.

    O engajamento do samba to forte que vincula a prtica musical prtica

    poltica, expressando uma opo pela luta dos dominados contra os dominadores.

    Estrada do sol, de Tom Jobim e Dolores Duran

    Uma das vrias parcerias da dupla, este samba-cano de 1958 e destoa dos

    demais, cuja temtica sempre tratava das desiluses amorosas. Tom Jobim, em incio

    de carreira, parecia ter recentemente descoberto a possibilidade de harmonizar com o

    encadeamento II V. marcante a seqncia cromtica no incio da segunda seo,

    cujos elos se encadeiam por semitom descendente Bbm7 Eb7, Am7 D7, Abm7

    Db7, e que do ao conjunto um agradvel colorido de afastamento da tnica.

    Eu sei que vou te amar, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes

    A melodia marcante desta cano revela a descoberta de Tom Jobim de como

    usar e abusar das stimas nos acordes. Todo o motivo da exposio estruturado

    sobre as stimas dos acordes, em notas repetidas. Este procedimento composicional

    pode servir para demonstrar uma inteno esttica a de buscar sistematicamente na

    relao melodia-harmonia os intervalos de stimas, nonas, dcimas primeiras e

    dcimas terceiras. Esta prtica j podia ser observada nas canes das dcadas

    anteriores, nas peas e canes de Custdio Mesquita, Noel Rosa, Pixinguinha,

    Garoto e Ari Barroso. No entanto, nos compositores da gerao em que surgiu a

    Bossa Nova, esta prtica exclusiva e constitui uma opo estilstica. A relao

  • 19

    melodia-harmonia s utiliza as fundamentais, as teras e as quintas dos acordes como

    ltima alternativa. Esta cano pode servir para testar esta hiptese.

    Na mesma entrevista em que Srgio Porto falou da semelhana de Dindi com

    Love for sale de Cole Porter, mencionou tambm a semelhana de Eu sei que vou

    te amar e Dancing in the dark, sucesso americano gravado por Frank Sinatra7.

    E vem o sol, de Marcos Valle Paulo Srgio Valle

    Uma das primeiras composies da dupla, de 1963, tem como tema da letra os

    motes da Bossa Nova conhecidos como amor-flor-mar ou sol-sal-sul.

    A pea uma espcie de samba mais rpido do que os sambas lentos e suaves

    como Brigas nunca mais, gua de beber e Discusso. A melodia se encaixa

    com a harmonia e os seus cromatismos e alteraes de quinta diminuta, no acorde

    A7(b5), do colorido pea e facilitam a inclinao para o sexto grau do modo menor

    Bb7M atravs de uma dominante de substituio, iniciando uma curtssima segunda

    seo do samba.

    interessante o movimento interno da melodia sugerida pela progresso

    harmnica F#74 F#7(b5) Bm7. A quarta, dissonncia que deve se resolver

    descendentemente, parece subir em direo quinta diminuta, e a quinta diminuta em

    direo quinta justa.

    Feio no bonito, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri

    Este samba foi gravado por Nara Leo LP Nara com o ttulo de O morro (feio,

    no bonito) . A sua introduo lembra mais uma vez as canes de Gershwin e

    Cole Porter, bem mais reduzida neste caso. Sente-se nela uma clara inteno de crtica

    s temticas dos concursos das escolas de samba, com a saudao Salve as belezas

    desse meu Brasil. Esta uma frmula tpica resultante das regras que haviam sido,

    no regime de fora do Estado Novo, estabelecidas pelo DIP para a temtica das

    escolas.

    Dentro de um formato de samba convencional, os autores negam as belezas da

    situao de pobreza e carncia da vida nas favelas. E pedem, para o morro, uma outra

    histria, diferente daquela que eles puderam constatar.

    7 idem

  • 20

    Carlos Lyra conheceu Gianfrancesco Guarnieri no Teatro de Arena em So

    Paulo8, e as suas parcerias sempre estiveram ligadas ao esprito dos Centros Populares

    de Cultura da UNE.

    interessante notar que a progresso harmnica inicial Am6 G#(b13)

    C7/G muito semelhante que Tom Jobim utilizou no incio de Corcovado,

    composio famosa por sintetizar o esprito da Bossa Nova.

    H-ba-l-l, de Joo Gilberto

    Produo da dcada de 50, um ritmo latino do gnero do beguine, cuja

    simplicidade da letra contrasta com a melodia e a harmonia mais fortemente do que

    na cano Bim-bom, da mesma poca.

    A inclinao para F7M, o III do homnimo menor na segunda seo,

    prolongada e pode ser considerada quase que um novo trecho em outro centro tonal,

    diferente do inicial. Seria uma pea modulante.

    A harmonizao inicial II-V aparece tambm em Bim-bom e parece criar uma

    regularidade na forma de adiar a apresentao da tnica.

    Influncia do jazz, de Carlos Lyra

    significativa a apresentao desta composio no concerto de Bossa Nova

    (new brazilian jazz) do Carnegie Hall em novembro de 19629. Parece um ato de

    coragem poltica faz-lo justamente por conter uma crtica modernizao do samba

    e sua contaminao pelo jazz.

    A idia de que o samba tem que se virar para se livrar da influncia da jazz

    uma afirmao que merece ser desenvolvida num captulo especfico de tese. Para que

    o comentrio no se restrinja s exortaes da letra, vale observar a construo do

    motivo rtmico-meldico da cano e da sua harmonizao. Todos os seus elementos

    contem expresses de ambigidade que se afastam e se aproximam de uma pea de

    msica popular com perfil moderno e de identidade brasileira.

    8 BARCELLOS, Jaluza. CPC da UNE. Rio: Nova Fronteira, 1994.p.96

    9 CASTRO, Ruy. Op.cit. p.320

  • 21

    Intil paisagem, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira

    Como em Demais e Dindi, a parceria conseguiu, melhor do que nunca,

    reunir com sucesso o tema da natureza e do sentimentalismo. de fato original, em

    relao ao tratamento de todas as outras composies da linha amor-flor-mar, nas

    quais a natureza se soma ao sentimental. Esta se distingue por opor a natureza e o

    estado de esprito da decepo amorosa.

    A pea insiste na esttica da balada, preferida pela dupla, e que no caracteriza

    nem ritmo e nem gnero tpico brasileiro. No entanto possvel execut-la em ritmo

    bem lento, com uma batida sincopada mais prxima do bolero que do samba lento.

    A relao melodia-harmonia optou pela sofisticao, pelo entortamento da

    linguagem musical, aquele mesmo tipo combatido por Carlos Lyra em Influncia do

    jazz. O motivo inicial com trs mnimas ascendentes, em trs compassos, mostra a

    necessidade de uma expresso harmnica forte, opondo o movimento do baixo em

    linha descendente. O movimento contrrio das vozes do canto e do baixo levam

    escolha de uma harmonia complexa, A6 Fm6/Ab G7M(#11).

    O movimento contrrio colocado em vozes extremas ocorre, na Bossa Nova,

    menos freqentemente do que o oblquo, aquele em que notas repetidas do canto so

    acompanhadas por harmonia movimentada ascendente ou descendentemente (Samba

    de uma nota s, Pois , Bonita, Brigas nunca mais, etc.). Este movimento, o

    oblquo, aparece mais adiante nesta mesma cano, quando uma melodia interna se

    movimenta descendentemente para sustentar a melodia parada (Dm Dm7M Dm7

    Dm6)

    A incluso do acorde de nona aumentada, usado intencionalmente, parece

    caracterstico da esttica de Tom Jobim. B7(#9) e E7(#9) no so acidentes para a

    resoluo de problemas com a conduo do modo menor descendente, como aquele

    encontrado no acorde C7(#9) em S tinha de ser com voc (Tom Jobim e Aloysio

    de Oliveira), e Deixa (Baden Powell e Vinicius de Moraes). So dominantes

    consecutivas encadeadas com nonas aumentadas na melodia. Este recurso apelidado

    pelos msicos como entortamento da linguagem musical e da harmonia.

    Maria Ningum, de Carlos Lyra

    Carlos Lyra insiste na introduo modulante (l maior) para uma cano em f

    maior. O gnero aparentado ao choro e no ao samba.

    A pea foge a todo rebuscamento dos recursos harmnicos e meldicos da

    Bossa Nova. A melodia e a harmonias so simples, sem nenhum entortamento. O

  • 22

    motivo inicial est construdo sobre a tera do acorde de tnica, como qualquer outra

    melodia simples de choro ou samba. O esquema harmnico I V7/II II V I

    absolutamente banal, sobre uma mtrica tambm banal.

    Se h um estatuto esttico para a Bossa Nova, aqui ele foi inteiramente

    ignorado.

    Meditao, de Tom Jobim e Newton Mendona

    O amor, o sorriso e a flor um clssico e um cone da Bossa Nova.

    Por todas as razes se pode idealizar que esta cano seria o modelo

    paradigmtico da Bossa Nova, se esta fosse a tica do estudo: pela melodia, pela

    harmonia, pela letra, e at pelo marco referencial do LP de Joo Gilberto, cujo ttulo

    O amor, o sorriso e a flor um verso da cano. Na capa est reproduzida a sua

    assinatura, e na contracapa h um texto de Tom Jobim, que assinou a direo musical.

    No texto Tom descreve como foi a preparao do disco em 1960, na companhia de

    Joo Gilberto no seu stio na serra10.

    A cano provavelmente de 195811, ano em que Tom e Newton Mendona

    produziram tambm Foi a noite e Caminhos cruzados.

    O tema convida a uma celebrao oposta aos melodramas de Ningum me

    ama, ningum me quer, de Antnio Maria ou Caminhemos, de Herivelto Martins.

    O clima mais cool, e o tom da letra distinto, se afastando tanto da vulgaridade

    quanto do lugar comum das canes populares.

    O encadeamento harmnico inicial II-V/III, seguido do I grau, e que motvico,

    serviu de padro para outras canes, como Eu preciso aprender a ser s, de Marcos

    Valle e Paulo Srgio Valle, cuja harmonia inicial A7M D#m7 G#7 A7M.

    O encadeamento Cm7-F7-Bm7, cuja cifra analtica IVm7-bVII7-III, tambm

    um clich recorrente em sambas e outras canes.

    Minha namorada, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes

    Cano produzida anos depois das primeiras parcerias da dupla, transformou-se

    tambm num clssico desde sua gravao pelo Quarteto em Cy em 196712.

    10 O amor, o sorriso e a flor MOFB. 3.151, Odeon.

    11 CASTRO, Ruy. Op.cit. p.204

    12 VINICIUS/CAYMMI Elenco ME 23, 1967

  • 23

    O motivo meldico principal enfatiza as stimas com notas repetidas, muito

    semelhante ao clssico Eu sei que vou te amar, e pode ser percebida como um

    samba-cano, com elementos de bolero e de balada.

    Alguns encadeamentos harmnicos usam recursos mais complexos como a

    dominante de substituio, muito mais explorada agora. Ela se apresenta no

    encadeamento C7-B7-F(b13)-A7M, que pode ser analisado como V7 em relao de

    semitom com o V7/V7-bVI(b13)-I7M. C7 dominante de substituio da dominante

    secundria B7. Aparece tambm no encadeamento G#m7(11)-G7(#11)-F#m7, cuja

    anlise IIm7 encadeado por semitom com o V7, dominante do VIm7, com resoluo

    por semitom. Ainda aparece como dominante por semitom do II grau abaixado no

    encadeamento B7(9)-Bb7M.

    Pode-se dizer que esta composio pertence a uma poca em que a busca por

    harmonizaes mais rebuscadas significava enriquecimento esttico.

    Ns e o mar, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli

    Samba lento tpico da Bossa Nova e da parceria, tem o motivo inicial exposto

    com a tnica no primeiro compasso. Para evitar a obviedade diatnica aparece logo

    no segundo compasso Am7, que o quinto grau do modo menor natural, uma

    dominante fraca. Recurso semelhante usado em Amanhecendo. Estas

    composies da dupla foram, a maioria, produzidas no incio dos anos 60, inspiradas

    no tema sol-sal-sul.

    O vocabulrio harmnico bastante amplo e as situaes musicais do espao,

    por exemplo, para o emprego de Bb7(13) (bVI7(13) na modulao para o modo

    menor na segunda seo, e o Ab (bIV) preparando o quarto grau Gm7.

    O astronauta, de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    Inspirada no feito do cosmonauta russo Iuri Gagarin, o primeiro viajante do

    espao que descobriu que a Terra toda azul, ele segue uma esttica que combina o

    ritmo do samba convencional com recursos de enriquecimento harmnico da Bossa

    Nova. O motivo meldico se repete por trs compassos reforando a nota l, que, por

    movimento oblquo, se sustenta sobre harmonia movimentada C6(9) de Eb de Dm7.

    O barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli

  • 24

    Grande sucesso da dupla e marco do esprito bossanovista, que consagrou a

    ideologia sol-sal-sul.

    Composta tambm no incio dos anos 60, a pea simples e conclui-se numa

    nica seo. O prprio Menescal contou em entrevista13 que ela foi criada num

    momento de pescaria em que o barco em que estavam, ele, Bscoli e Nara Leo,

    parou por algumas horas no mar de Cabo Frio. O motivo rtmico lembra, segundo ele,

    o rudo do motor de um barco que est falhando. A propsito deste acontecimento,

    Roberto Menescal afirmou que importante que na criao possam ser reconhecidas

    situaes comuns a muita gente. Esta seria uma funo da msica.

    A gravao do samba por Maysa Matarazzo foi um grande sucesso veiculado

    nas rdios14. Foi gravado tambm, na mesma poca, por Joo Gilberto15.

    O motivo musical principal se repete por graus descendentes e se estrutura sobre

    as stimas e as nonas de acordes estveis F7M, I7M, e Eb7M, bVII7M.

    Poema azul, de Srgio Ricardo

    Esta cano tambm foge temtica preferida pelo compositor, o social. uma

    pea curta e simplssima sobre a natureza, porm com um vocabulrio harmnico

    rebuscado. Apesar de to curta, o stimo grau bem explorado, e aparece com F7M

    (bVII7M) e F7(#11) (bVII7(#11).

    Alm destas observaes, deve ser dito que ela no lembra nenhum dos gneros

    brasileiros usados na poca da Bossa Nova.

    Pra que chorar, de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    Lanado em 1962, este samba segue a mesma linha esttica dos demais,

    Consolao, Deixa, etc. Os sambas da dupla parecem incorporar com

    naturalidade harmonias um pouco mais avanadas para padres rtmicos e meldicos

    mais convencionais. No se disfaram o centro tonal nem a diatnica, que exposta

    com simplicidade.

    A banalidade tambm evitada de maneira despretensiosa, empregando-se

    acordes diminutos G# (#IV) e Bb(b13) (bVI(b13); G#m7(b5) (#IVm7(b5), usado

    13 Entrevista a Armando Nogueira no canal SporTV, que foi ao ar dia 30/09/97.

    14 CASTRO, Ruy. Op.cit. p.275. A rdio citada a Jornal do Brasil.

    15 Idem, ibidem.

  • 25

    de forma inusitada, precedendo um Bm6, dominante de A7(#5); e ainda uma

    subdominante interpolada entre A7(#5) e D7(b9).

    Preciso aprender a ser s, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle

    Provavelmente criada em 196416, este foi um dos maiores e mais permanentes

    sucessos da dupla. Alm da semelhana harmnica com Meditao de Tom Jobim e

    Newton Mendona, j mencionada em anlise anterior, este samba-cano possui uma

    letra com muitos atrativos e que perfeitamente adequada aos motivos musicais. O

    gnero, a letra, a melodia e a harmonia se encontram em cooperao.

    No h rebuscamento nem intenes musicais ousadas. At mesmo o acorde de

    nona aumentada E7(#9) est na sua funo primordial de conduzir inclinao para o

    modo menor homnimo.

    Razo de viver, de Eumir Deodato e Paulo Srgio Valle

    Pianista da gerao mais jovem da Bossa Nova (como os irmos Valle), esta

    composio produto do tempo em que Eumir Deodato ainda vivia no Brasil. Hoje

    cidado americano totalmente adaptado e arranjador de sucesso nos EEUU, tem suas

    atividades como compositor da Bossa Nova associada sua convivncia como msico

    em shows que incluem sua participao como pianista na histrica noite de 1960, na

    Faculdade de Arquitetura na Praia Vermelha17.

    A cano Razo de viver no se adapta a uma classificao dentro de um

    gnero brasileiro, mas desenvolve uma melodia bastante tpica de cano produzida

    no Brasil na poca da Bossa Nova. O motivo musical, construdo em intervalos de

    quintas, permite uma grande movimentao harmnica, transpondo-se por graus

    descendentes. Acontece at uma inusitada inclinao para D7M (II7M) e um

    encadeamento Bb7m-Eb7(9) (II-V), resolvendo por semitom, em situao bastante

    afastada do centro tonal d.

    O compasso inicial, harmonizado por uma dominante secundria, compromete

    de forma acentuada a estabilidade tonal e permite que a melodia seja conduzida,

    posteriormente, para qualquer tnica. uma demonstrao, das mais radicais, de

    descompromisso com um centro tonal.

    16 Idem, p.357.

    17 idem. p.263-264

  • 26

    Retrato em branco e preto, de Tom Jobim e Chico Buarque

    Chico Buarque fez Sabi de parceria com Tom Jobim em 1968. Esta parceria

    rendeu provavelmente alguns dos momentos mais importante da msica popular no

    Brasil. Retrato em branco e preto sem dvida um desses momentos.

    O motivo cheio de cromatismos da melodia no s adequado como refora e

    d sentido ao contedo dramtico e filosfico da poesia. A relao intervalar de tera

    diminuta na exposio, espcie renovada de bordadura dupla da quinta r do acorde,

    que se repete obsessivamente, d a medida exata do caminho sem sada, cheio de

    pedras e passos exaustivamente conhecidos.

    A harmonizao acentua o contedo dramtico da melodia com acordes de nona

    aumentada D7(#9) (V7(#9) e A7(13) (V7(13); e de dominante de substituio

    Ab7(#11) (V7/I). A inclinao para o tom da dominante maior D7M incomum e

    inesperado, pela stima maior que contrasta como a stima menor da dominante

    principal de R maior.

    Samba de uma nota s, de Tom Jobim e Newton Mendona

    Tom Jobim teve na companhia do seu parceiro, o pianista Newton Mendona

    desaparecido em 1960, uma poca muito produtiva. Foi no final da dcada de 1950,

    quando foram criadas vrias canes de sucesso da dupla, como Meditao,

    Desafinado, Discusso e Caminhos cruzados.

    A msica utiliza, na sua forma mais clssica e consagrada, o recurso da melodia

    sem movimento, compensada pela harmonia movimentada por graus descendentes em

    semitom. O resultado, que produz dissonncias de dcimas primeiras justas e

    aumentadas, marcou um elemento de composio que inspirou muitos msicos,

    conforme j comentado nas canes Brigas nunca mais e Intil paisagem.

    Os versos se propem a defender uma esttica musical, e levanta a bandeira da

    simplicidade meldica, da forma meldica sinttica que exclui a construo de frases

    muito movimentadas que podem no dar em nada. Este princpio, que o samba

    defende, foi levado ao p da letra em muitas outras ccomposies com melodias de

    notas repetidas e mbito bem reduzido, numa listagem que inclui Discusso, Intil

    paisagem, O astronauta, O barquinho, Saudade fez um samba, etc.

  • 27

    Stanislaw Ponte Preta apontou a semelhana do Samba de uma nota s com a

    introduo da cano Night and day, de Cole Porter, na mesma entrevista em que

    falou de Dindi, outra cano de Tom Jobim18.

    Samba de rei, de Pingarilho e Marcos Vasconcelos

    Um dos recursos de composio mais bsicos a utilizao de fragmentos de

    escalas e arpejos para a construo de melodias. A histria da msica est recheada de

    modelos adequados para todas as pocas e gneros.

    Na Bossa Nova este recurso tambm foi muito explorado, com a banalizao do

    uso de stimas, nonas, dcimas primeiras e dcimas terceiras. Nas melodias de

    Consolao, de Baden Powell e Vinicius de Moraes e Razo de viver, Eumir

    Deodato e Paulo Srgio Valle os arpejos sobre estes intervalos compem o motivo

    principal. Mas, nota-se que podem ser ainda mais abundantes em trechos no

    temticos, nos desenvolvimentos e nas ligaes entre perodos e frases de muitas

    outras canes.

    O motivo meldico que serve de tema musical para o Samba de rei

    composto sobre um arpejo ascendente de quatro sons, que inicialmente inclui a nona

    do acorde de Em7(9). No entanto, o que chama a ateno na pea, pela peculiaridade,

    o fato de que a melodia vai repetindo esta clula sobre diferentes graus, com

    deslocao da mtrica provocando hemiolas que subvertem totalmente os apoios

    convencionais necessrios clareza dos arpejos. Os tempos so apoiados s vezes

    sobre a primeira nota do arpejo, s vezes sobre a terceira e s vezes sobre a ltima

    nota.

    Alm dos problemas de afinao que as alteraes sucessivas provocam, esta

    deslocao constante exigir dos executantes e do cantor uma grande segurana

    rtmica. Ela constitui um outro tipo de entortamento muito apreciado pelos msicos,

    desta vez no na relao melodia-harmonia mas na seo rtmica.

    Samba em preldio, de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    Clssico em dois sentidos, esta pea sugere uma discusso sobre a oposio

    erudito/popular, virada do avesso. Alm de ser um clssico da msica popular ela

    pretende se impor tambm como pea instrumental, nas mos de um hbil

    18 ver nota 5.

  • 28

    instrumentista como Baden Powell, e reverenciar a msica de concerto, a msica

    clssica, com um motivo musical inspirado em Villa-Lobos, acrescido de ares de

    polifonia.

    O denominao preldio francamente bachiana e villalobiana.

    Samba triste, de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    Esta pea fiel linha de simplicidade das peas compostas pela parceria. um

    samba convencional como os demais da dupla, Consolao, Deixa, etc.

    O tema da poesia sentimental e despretensioso, e se mostra at cndido na sua

    articulao com o motivo musical. A melodia inicial apoiada por um acorde

    diminuto seguido de outro, os quais se colocam ingenuamente na funo de criar o

    clima de tristeza exigido pelas palavras.

    Saudade fez um samba, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli

    As notas repetidas desta pea tem por objetivo aparente manter a melodia

    discreta, sem grandes manifestaes expressivas, convencionalmente reveladas por

    intervalos maiores que uma segunda. Melodias com intervalos de segundas e semitons

    desencorajam qualquer tentativa de canto impostado. o que tambm ocorre em

    outras canes como Discusso, de Tom Jobim e Newton Mendona, que foi

    composta anteriormente e que tem melodia por segundas muito semelhante, se no

    idntica.

    O cantor lrico Plcido Domingo, numa entrevista dada ao canal de TV Globo

    News, quando perguntado se gostaria de gravar msica popular brasileira, apontou a

    dificuldade de se escolher canes que no tivessem, como na Bossa Nova, um

    mbito meldico to reduzido.

    O motivo musical de Saudade fez um samba reafirma a escolha das nonas,

    intervalos compostos, usados aqui como intervalos estveis, para estruturar a melodia.

    A imobilidade meldica serve mais a um tipo determinado de expresso do que a

    contrastes puramente musicais da relao melodia-harmonia.

    um bom exemplo de esttica que pretende neutralizar a nfase em arroubos

    romnticos, tpicos das canes de desiluso amorosa e de dor de cotovelo.

    O samba figura tambm como a expresso particular de uma desavena entre os

    parceiros Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli. Este procurou o compositor Carlos

    Lyra para se queixar do amigo e habitual parceiro, e colocou na letra a sua queixa.

  • 29

    S em teus braos, de Tom Jobim

    O compositor deixa de lado seus habituais parceiros e cria letra e msica. Ela

    est includa no repertrio do LP de Joo Gilberto O amor, o sorriso e a flor,

    Uma das referncias para os msicos a de que esta cano possui uma

    harmonia muito semelhante Discusso, composio seno da mesma poca, pelo

    menos de poca prxima. No mnimo uma semelhana harmnica entre as duas

    evidente: o encadeamento A7(b13)-Bb7M-Bbm6, que acontece exatamente nos

    mesmos compassos nas duas canes, no sexto, stimo e oitavo. Isto torna possvel

    at que um mesmo acompanhamento, ao violo por exemplo, sirva para as duas

    melodias.

    Sonho de Maria, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle

    Desta vez os irmos parceiros resolveram aparentemente fazer proselitismo das

    injustias sociais.

    No entanto, bem examinada, talvez a letra esteja apenas descrevendo uma

    situao ocorrida proximamente, uma histria real, que comoveu a dupla, no

    havendo outro propsito seno o de descrev-la.

    A pea no tem um conjunto musical muito coerente. Depois de vrias

    inclinaes vizinhas a d maior, a sua concluso se faz em sol maior, deixando

    dvidas se o centro tonal mesmo sol ou se modulante, com centro tonal d

    dirigindo-se depois a sol.

    S tinha de ser com voc, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira

    Este samba estreou no show O remdio bossa de 26 de outubro de 1964 no

    Teatro Paramount em So Paulo. um dos poucos sambas da dupla, que em geral

    parece ter preferido canes sem caracterizao de gnero brasileiro.

    A harmonizao rica e sofisticada, cheia de sutilezas, apoiada na idia de

    repetio meldica com variao harmnica. O motivo inicial harmonizado e

    rearmonizado com C7(#9)-F7M e Gb7(#11)-Cm7, possibilidades distintas para um

    mesmo movimento da melodia. Em outro momento a melodia harmonizada com

    D7(b9)-G7(13)-G7(b13)-C7(b9), e rearmonizada com as dominantes consecutivas

    Bb7-Eb7-Ab7(13)-Db7(9)-G7(#5); mais adiante, na reexposio, a mesma melodia

    harmonizada pela terceira vez com Ab7(13)-Db7M-C7(#5).

  • 30

    Talvez esta seja a cano que rene o material harmnico mais variado e rico de

    toda esta srie. um momento em que a anlise harmnica pode dar sua contribuio

    para a anlise da Bossa Nova em geral.

    Tem d, de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    Reafirmando as preferncias estticas da dupla pela simplicidade, este samba

    quase um exemplo de despojamento.

    A inclinao para o IV grau logo no segundo compasso exprime, sem hesitao,

    a ausncia de sofisticao e a escolha de um discurso musical direto, imediato. A

    concluso do primeiro perodo com nota e harmonia da tnica, acrescenta-lhe um

    sentido afirmativo e bvio. As duas cesuras no segundo perodo, que sugerem um

    breque, o aproximam ainda mais de um samba mais popular, que renunciou a

    qualquer sofisticao.

    V, de Roberto Menescal e Lula Freire

    O samba parece desinteressante com exceo do fato de que pretende, supe-se,

    responder aos artistas engajados. uma exortao para que eles abram seus olhos

    para o amor e a natureza, resumida na letra a flor e mar: a defesa explcita do

    ideal esttico bossanovista amor-flor-mar.

    explcito tambm nas crticas a tanta reunio, provavelmente alguma

    reunio de carter poltico em alguma organizao, e a quem tanto fala,

    provavelmente pessoas que so prolixas ou que fazem proselitismo. Replica ainda a

    crtica alienao das letras que falam de flor, uma flor no vai alienar.

    Voc, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli

    Seria este samba a essncia do que h de brega na Bossa Nova?

    Apesar das sncopes no motivo da melodia, dificilmente se sente um samba

    pulsando sob elas. A questo da percepo est sempre to vinculada s

    subjetividades, que uma simples sensao pode no ser suficiente para definir

    categorias estticas. .

    Seria possvel fazer a anlise de Voc para esclarecer como ritmicamente ela

    pode nos afastar ou no da pulsao do samba.

    Os argumentos da anlise musical restritiva no deve nos levar a abandonar a

    discusso sobre o gosto esttico, porque gosto se discute e socialmente constitudo.

  • 31

    A definio de que de bom ou mal gosto pode ser relativizada se pensarmos que, no

    momento da gravao, um arranjo determinado pode mudar totalmente o sentido de

    da pea.

    Voc e eu, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes

    Este samba tem andamento mais vivo que Minha namorada e Primavera, da

    mesma dupla, mas foi tambm um sucesso e mereceu muitas gravaes. Maysa

    Matarazzo colocou-a no seu repertrio, e Joo Gilberto incluiu-a no seu segundo LP.

    A harmonizao tem algo em comum com Meditao, de Tom Jobim e

    Newton Mendona e Eu preciso aprender a ser s, de Marcos Valle e Paulo Srgio

    Valle. O acorde de tnica inicial D6(9) (I6(9), tem uma bordadura harmnica com

    C#7(#9) (VII7). Nas outras duas canes o acorde de VII7 aparece precedido de um

    IIm7, o que no desfaz as semelhanas harmnicas nas trs canes.

    Vou por a, de Baden Powell e Aloysio de Oliveira

    Esta cano em modo menor, de clima nostlgico, foge ao esprito dos sambas

    que Baden Powell comps com Vinicius de Moraes. quase uma seresta, cantando

    uma dor de cotovelo de forma simples mas profundamente triste.

  • 32

    Volume II:

    guas de maro, de Tom Jobim

    Este grande sucesso de Tom Jobim, do qual uma das gravaes mais famosas

    foi a realizada em 1974 em Los Angeles para o LP Elis & Tom, sintetiza as

    qualidades e peculiaridades dos sambas escritos por ele. A sncope suave, que revive a

    Bossa Nova e refora o estilo do samba lento, urbano, se mantm distante do samba

    de batucada, num momento em que a temtica amor-flor-mar j havia sido

    abandonada. Tom Jobim inicia com esta cano uma srie de letras preocupadas com

    a natureza, que manteve at a sua morte em 1996. Dedicou a este tema o lbum

    Urubu, gravado em Nova York em 1975, e mais tarde o Passarim de 1987.

    O mbito intervalar da melodia, nos limites de uma tera maior, repetido

    exausto pelo motivo principal, reafirma o gosto pelo samba lento com melodia

    montona, tpico da Bossa Nova, alm de representar a idia do canto do pssaro

    matita-per. As notas repetidas da segunda frase mantm a idia de melodia com

    economia mxima de intervalos.

    A Bossa Nova anacrnica convivia com um panorama musical, no qual o

    prprio "tropicalismo" j estava completamente absorvido.

    Amei tanto, de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    Escrito provavelmente na mesma poca (por volta de 1963de1964) que outros

    sambas da parceria como Deixa, Formosa, Tempo feliz. O motivo meldico

    que introduz a cano articula-se num intervalo de quartas e quintas que enfatizam a

    frase cantada "amei tanto". Os sambas de Baden e Vinicius sempre escapam ao

    padro esperado para canes do estilo Bossa Nova, no que diz respeito a notas

    repetidas, economia intervalar e neutralizao de qualquer tipo de nfase. Assim

    como em outros sambas a rtmica muita mais do samba convencional do que de um

    samba suave como guas de maro, por exemplo.

    Intervalos mais amplos como quartas, quintas e mesmo oitavas so

    caractersticos desta produo, como se v em Deixa, Tem d e Pra que chorar.

    Amei tanto confirma o gosto da dupla de parceiros.

  • 33

    Apelo, de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    Este um dos sambas mais conhecidos e de maior sucesso da dupla, sobretudo

    nas vozes do Quarteto em Cy e de Elizeth Cardoso, que o gravou em 196619.

    Ao contrrio dos sambas da dupla, mencionados antes, este economiza

    intervalos e limita o mbito da melodia do tema, que motvico, ao semitom. Ele

    lembra Insensatez, de Tom Jobim (1961), que tem um motivo meldico semelhante.

    A harmonizao deste samba no foge linha de simplicidade dos sambas da

    dupla, sem inclinaes sofisticadas ou alteraes ousadas nos acordes e na melodia.

    Apesar de ter escolhido uma melodia econmica, com intervalos repetidos, tpica das

    melodias em estilo bossanovista mais bvias, a harmonia no contrasta em

    rebuscamentos, aparecendo apenas algumas dominantes de substituio (com sextas

    aumentadas) e uma inclinao simplssima para a subdominante principal, o IV grau

    R menor.

    Berimbau , de Baden Powell e Vinicius de Moraes

    um dos sambas mais conhecidos da dupla, um clssico na linha dos

    afro~sambas, que abandona momentaneamente as letras com temtica sentimental,

    como em Apelo, Deixa e o Astronauta, e esboa, em estilo que no

    compromete, uma tmida apologia das razes brasileiras. Ao mesmo tempo enaltece os

    valores da tica e da moral do indivduo num tom filosfico ("Quem homem de bem

    no trai"), em que o homem do povo que tem a disposio de lutar ("Capoeira que

    bom no cai").

    A melodia econmica, uma sntese das notas repetidas de Desafinado com o

    intervalo de semitom de Apelo, d o tom de simplicidade sem utilizao de

    harmonias complicadas, ao contrrio se lana na aventura modal com a tnica

    alternada com uma insistente dominante menor (Dm7 de Am7). O sabor harmnico

    mais ousado fica por conta da tnica r harmonizada pelo acorde Eb7M, no fim da

    segunda seo, para evitar a cadncia conclusiva A7 Dm7 no sinal de repetio.

    Gravado por Nara Leo no LP Nara (Elenco ME-10, 1964), aparece tambm no

    mesmo ano no LP do Quarteto em Cy para a etiqueta Forma (FM 4).

    Bloco do eu sozinho , de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle

    19 As datas de composio aqui indicadas so as que esto fixadas por SEVERIANO,J. e MELLO, Zuza H. A cano no tempo. 2.v. Rio: editora 34, 1998.

  • 34

    O gnero carnavalesco foi revisitado constantemente manifestando mais

    preocupaes sociais do que intenes de ser executado nos bailes e rdios nos quatro

    dias de folia. Os temas e gneros carnavalescos sempre foram aproveitados, de

    maneira mais ou menos apologtica, como tema de cano com preocupaes sociais.

    Pode-se mencionar, nesta linha, muitas canes, como Entrudo, Marcha da quarta-

    feira de cinzas, O morro no tem vez e Zelo, dentre muitas outras.

    Como Marcha da quarta-feira de cinzas, Bloco do eu sozinho uma

    marcha-rancho que descreve um tipo conhecido do carnaval carioca com intenes

    poticas e literrias ("No bloco do eu sozinho sou a seda do estandarte, sou a ginga da

    baiana, sou a cala de zuarte"). A msica de Marcos Valle um pouco rebuscada e

    torna a melodia difcil, se for imaginada uma assimilao imediata. Na sua parceria

    com Paulo Srgio Valle a linguagem musical praticamente a mesma, porm a

    temtica das letras so em geral mais prximas da temtica amor-flor-mar e no da

    cano de apologia do popular.

    Cano do amanhecer , de Edu Lobo e Vinicius de Moraes

    Esta cano est includa no primeiro disco de Edu Lobo para a Elenco Edu

    Lobo por Edu Lobo, de 1965.

    A denominao de cano indica, neste caso, um gnero prximo seresta e

    balada, diferente do samba ou de outros ritmos mais marcadamente regionais.

    As ousadias meldicas desta cano revelam uma tendncia da dcada de 1960

    que se reconhece nos compositores como Edu Lobo e outros. O cromatismo

    intencional e freqente pode ser, para efeito de anlise, avaliado como uma

    necessidade esttica de escapar obviedade diatnica. A alterao da direo

    meldica atravs da cromatizao pode fundamentar a hiptese de uma tendncia

    geral s melodias rebuscadas e de difcil execuo que pode ser notada no s na

    Bossa Nova, como na produo dos compositores mineiros como Milton Nascimento,

    L Borges e, sobretudo, Toninho Horta.

    O cromatismo da sua melodia pode provocar receios nos cantores amadores e

    at nos profissionais. No entanto a fora desta tendncia sofisticao meldica e

    harmnica se generalizou, de uma certa maneira e numa certa poca, indicando a

    existncia de pblico e de espao consistente para este tipo de produo.

    O cromatismo marcante se faz acompanhar de uma harmonia tambm rebuscada

    e modulante, onde est presente uma inclinao atravs de nona aumentada. A cano

  • 35

    pode ser listada entre as canes modulantes que se encontram no repertrio da

    msica popular brasileira de o tom inicial D menor e, depois de inclinaes

    sucessivas para L menor, Mi menor, R menor e D menor, modula e conclui em R

    maior, atravs de uma progresso ascendente. Alm da concluso inusitada em tom

    afastado, a cano ainda tem uma coda estrutural no anti-relativo maior F#.

    Cano que morre no ar , de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli

    Mais uma balada com a denominao de cano, esta tambm modulante. O

    tom inicial Fa# maior, o qual parece no ter amedrontado o compositor e violonista

    Carlos Lyra, revelando j talvez nesta escolha a tendncia ao rebuscamento. A

    necessidade de uma esttica mais cromatizante com modulao a tom afastado

    evidente, considerando-se que a melodia se apoia alternadamente em F# maior e R

    maior, tonalidades afastadas, e acaba concluindo em R maior.

    A ousadia no se resume escolha da tonalidade e da modulao. A

    harmonizao segue a mesma linha e emprega um acorde de dominante com nona

    menor e nona aumentada na harmonizao da escala descendente com b7 e b6.

    Coisa mais linda , de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes

    O samba, veiculado em 1961, uma Bossa Nova tpica, se que se pode

    afirmar isto. O tom da letra coloquial: "Coisa mais bonita voc, assim, justinho

    voc ". Ela contrasta fortemente com um samba-cano de Adelino Moreira e

    Nelson Gonalves, que fez sucesso no mesmo ano, cuja letra foi toda escrita na

    segunda pessoa do singular: "Fica comigo esta noite, que no te arrependers".

    Alm da letra, como Bossa Nova tpica, ele requer um estilo de cantar suave

    para se somar batida lenta e suave do samba Bossa Nova. Este modo de tocar e de

    cantar aos poucos constituiu um conjunto de clichs, que tornaram reconhecveis as

    canes identificadas como Bossa Nova.

    A harmonizao tambm caracterstica, introduzindo uma tenso harmnica

    com a ttrade diminuta A, no segundo compasso. um acorde que, nesta situao,

    prepararia uma inclinao para F# menor, a qual no se consuma e, por elipse,

    resulta numa cadeia de dominantes consecutivas.

    Desafinado , de Tom Jobim e Newton Mendona

    Este o samba mais emblemtico da Bossa Nova.

  • 36

    Gravado pela primeira vez por Joo Gilberto em 1959, considerado inovador.

    Ele representa e explicita a necessidade de ruptura esttica e de renovao da cano

    em relao s suas prticas anteriores.

    A harmonia alterada, apoiando uma melodia com intervalos no diatnicos,

    apresentada pela primeira vez, proporcionou uma linha de conflito e de seleo entre

    os que adotavam a esttica da incipiente Bossa Nova e os que a rejeitariam por esta

    mesma esttica.

    A Bossa Nova como estilo e como esttica dependeu, para existir, do conflito e

    da rejeio dos padres que determinam o seu estatuto. Sem a reao das vozes

    impostadas dos cantores mais convencionais, associadas s letras empoladas dos

    sambas-canes, em face do ritmo suave e intimista do novo produto, no se

    produziria um conflito de padres estticos to transparente. Para que se considerasse

    a ocorrncia de ruptura e renovao era essencial o surgimento de uma reao

    contrria explicitada.

    A dificuldade de se estabelecer os padres de um estilo musical distinto, um

    novo estatuto de cano, pode ser explicada pelo fato de que estilos musicais so,

    quase sempre, associados marca autoral, ao nome que assina a obra, como o seu

    ponto de origem. No entanto imprecisa na cano popular a indicao do ponto de

    origem da produo. O compositor, o escritor da cano, o songwriter, apenas um

    momento do processo. No se pode afirmar que o estilo de cantar e de tocar violo de

    Joo Gilberto foi determinado pelo estilo de cano escrita por Tom Jobim. O mesmo

    se aplica ao arranjo que teria sido produzido para a gravao. A rejeio ao arranjo

    com grande orquestra, ou pelo menos com cordas e metais, praticado para

    acompanhar os sambas-canes e o repertrio mais convencional, no estava prescrito

    nas canes, caso em que se inclui Desafinado. A maneira de tocar o violo e de

    cantar de Joo Gilberto pode ter sido bem anterior criao deste samba, que

    provavelmente se direcionava exclusivamente para a sua voz nem para o seu estilo de

    acompanhamento.

    O estilo da Bossa Nova no est inscrito exclusivamente nas canes, ele

    depende tambm do gnero de arranjo e da maneira de entoar a melodia. Absorvida a

    nova maneira de cantar e arranjar o produto final, que est alm da melodia

    harmonizada e da letra escrita, muita msica deve ter sido produzida

    intencionalmente. Esta inteno talvez no tenha sido completamente planejada em

    Desafinado, a no ser pela meno ao modo "desafinado" de cantar, que se explica

  • 37

    como sendo "Bossa Nova", um modo "natural" de desafinar, que no deve ser

    "classificado como anti-musical".

    A sua forma musical segue algumas convenes que se reconhecem na prtica

    de sambas e choros anteriores, at mesmo do prprio Tom Jobim, como o prprio

    Chega de Saudade e Aula de matemtica. So ao todo trs sees em F maior: a

    exposio de "Se voc disser que eu desafino amor", a parte central, que uma

    elaborao simples, com inclinaes aos tons vizinhos do III grau L maior e menor e

    do V grau D maior de "O que voc no sabe nem sequer pressente", e a

    reexposio "S no poder falar assim do meu amor".

    Nesta estrutura convencional cabem, sem sobressaltos, as dissonncias que

    enriquecem melodia e harmonia. A necessidade de cromatizar, alterar, "entortar" a

    diatnica, mencionada na Cano do amanhecer, de Edu Lobo e Vinicius de

    Moraes, se confirma aqui. A meno ao desafinado aparece logo no segundo

    compasso com a quinta diminuta do acorde de dominante, que parecia um desafio

    para a entoao de profissionais e amadores. A nota real da diatnica r aparece

    pouco antes na melodia da primeira frase, o que refora a dissonncia quando ela

    alterada para rb. Este recurso utilizado novamente na frase seguinte em que

    aparece a nota mi, logo depois alterada para mib. Outra dissonncia forte aparece na

    terceira frase, em que a inclinao para o homnimo do VI grau, R maior, faz surgir

    um do# (harmonizado com D7M) articulado a um mib (D7(b9), produzindo um

    intervalo de tera diminuta, bastante inusitado para cantores. Assim como o o

    intervalo de stima maior descendente r o mib, que entoado pela palavra anti-

    musical. Este intervalo no menos musical que nenhum outro, mas mais enftico e

    expressivo que os intervalos perfeitos e consonantes da diatnica.

    A harmonia tambm se lana em ousadias como o acorde de nona aumentada

    (E7(#9) que apoia a palavra "argumentar" na terceira frase da repetio variada da

    exposio. Mais ousada ainda a progresso que se segue na quarta frase,

    harmonizando a nota mi, eixo da melodia: A7M de Ab7 (#5) de G7(13) de Gb7(b13).

    Alm destas situaes o que se encontra a harmonizao habitualmente rica e mais

    ou menos padronizada que o compositor usava nesta poca, como os diminutos de

    passagem e os emprstimos modais do modo menor, harmonias j praticadas e

    bastante testadas em outras canes. A nova maneira de cantar e de se acompanhar ao

    violo no impediu que a estrutura do samba e a sua harmonia permanecessem

    fortemente convencionais.

  • 38

    Desejo do mar , de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle

    Pode-se dizer que este samba lento resultado dos clichs estabelecidos para a

    Bossa Nova. A melodia inicia com a stima do acorde de II grau (Am7) da tonalidade

    Sol M. Os encadeamentos II-V se alternam: Am7-D7-Bm7-E7. A seguir aparece um

    acorde de emprstimo modal Cm7(IVm) que forma com F7(bVII7) um relao da

    mesma espcie que II-V. A harmonizao apenas quebra um pouco a sucesso de

    clichs com a inclinao para bVI7M (Eb7M) na cadncia final. A tnica do tom

    principal, Sol maior, s aparece no ltimo compasso, uma situao muito freqente

    nas canes analisadas.

    O tema da cano, declarado no prprio ttulo, uma confirmao de todos os

    clichs de letras sobre amor e mar.

    A forma bastante livre e a estrutura da frase quadrada convencional de quatro

    compassos, na exposio da melodia, logo abandonada por um pequeno

    desenvolvimento que conduz, em poucos compassos, ao final. No se v nenhuma

    preocupao com a construo musical, uma vez que o motivo inicial cede ligar ao

    desenvolvimento totalmente independente. O tipo de frase utilizada no

    desenvolvimento bastante comum e pode ser encontrada em vrias canes.

    O motivo inicial apresenta uma semelhana talvez excessiva com outro motivo

    empregado na cano Poema azul de Srgio Ricardo.

    Este seu olhar , de Tom Jobim

    Esta cano de 1959 tem duas sees sem repeties nem desenvolvimento ou

    parte central. A segunda seo de "Mas a iluso quando se desfaz" de apenas a

    repetio variada da primeira de "Este seu olhar quando encontra o meu".

    um samba lento que tem talvez como sua mais forte qualidade o fato de que

    certas convenes harmnicas e rtmicas foram to exploradas na poca que so hoje

    reconhecidas como tpicas da Bossa Nova.

    A progresso harmnica inicial constitui um dos clichs mais testados e usados

    nas canes populares em geral: F7M-F#-Gm7-G#-Am7-A7(b13)-B7M, que pode

    ser analisado como I7M-#I-IIm7-#II-IIIm7-III7(b13)-IV7M. O samba Discusso,

    de Tom Jobim e Newton Mendona, da mesma poca, tem uma progresso harmnica

    muito semelhante de C7M-Eb-Dm7-D#-Em7-E7(b13)-F7M, que pode ser analisado

    como I7M-bIII-IIm7-#II-IIIm7-III7(b13)-IV7M. Semelhanas tambm podem ser

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    observadas no samba S em teus braos, de Tom Jobim, faixa do LP O amor , o

    sorriso e a flor.

    Feitinha pro poeta , de Baden Powell e Lula Freire

    Este samba, gravado em 1965 pelo Jongo Trio, tambm tpico da Bossa

    Nova, a comear pela linguagem usada no ttulo, referente ao poeta Vinicius de

    Moraes. A forma de diminutivo est presente num dos versos de Vinicius, "justinho

    voc", para o samba Coisa mais linda, de parceria com Carlos Lyra. A linguagem

    coloquial, no impostada, pode ser notada em muitas canes desta poca.

    O que se pode estranhar nesta cano o fato de que a sua primeira frase no

    tem carter expositivo, transmitindo talvez a sensao de que o incio foi omitido.

    Muitas canes da mesma poca tem sido analisadas do ponto de vista do incio da

    exposio. A ocorrncia de notas e harmonias de outros graus que no da tnica tem

    a finalidade de evitar a obviedade da tnica inicial, o que no ocorre aqui. O que

    falta primeira frase uma qualidade expositiva que se encontra nas demais

    canes mencionadas. Ela no uma idia completa, inteira.

    A estrutura musical se reduz a uma nica frase que se repete, em diferentes

    graus da tonalidade, do princpio ao fim, sem nenhuma outra seo conclusiva ou

    contratante.

    No talvez um samba completo, e se assemelha mais a um esboo ou a um

    ensaio de uma idia musical.

    Fim de noite , de Chico Feitosa e Ronaldo Bscoli

    Esta cano, de 1960, apesar de to simples quanto a anterior, fez sucesso e

    marcou uma poca. O tema musical, exposto na primeira frase, uma idia completa

    construda em duas partes, a primeira leva a uma harmonia instvel, do II grau, e a

    segunda estabilidade da tnica. Ela tampouco apresenta uma segunda seo ou

    episdio contrastante. A idia musical desenvolvida com recursos mnimos de

    mudanas na direo meldica ascendente ou descendente.

    Jairo Severiano coloca-a sob a classificao de samba, mas algumas de suas

    gravaes a colocam muito mais como um samba-cano. O seu lirismo faz pensar

    na Bossa Nova, embora sinta-se um grande contraste com os grandes clssicos que

    se tornaram conhecidos na mesma poca , como Corcovado, Samba de uma nota

    s e Meditao.

  • 40

    Foi a noite, de Tom Jobim e Newton Mendona

    Um dos primeiros sambas-canes da dupla, foi gravado em 1956 para a Odeon

    por Sylvinha Telles, em 78 rpm. Foi um sucesso marcante para o compositor

    iniciante Tom Jobim. Segundo Jairo Severiano20, causou impacto na poca, tendo

    sido recebido como uma maneira nova de compor.

    Apesar de ser uma cano simples de apenas dois perodos, ela bem

    construda musicalmente. A exposio iniciada em acorde instvel de dominante

    (G7/4) uma ocorrncia que se repete como um padro para a Bossa Nova, sendo

    que esta anterior a outras canes com este tipo de incio.

    marcante o ponto culminante, no segundo perodo, harmonizado com

    F#m7(b5)-Fm6, podendo ser analisado como IV#m7(b5)-IVm6, sendo o ponto de

    maior tenso de toda a cano.

    Garota de Ipanema , de Tom Jobim e Vinicius de Moraes

    Um dos sambas mais famosos da dupla, foi apresentado pela primeira vez na

    boate Au Bon Gourmet, em Copacabana, em 2 de agosto de 1962. O show

    protagonizado por Tom, Vinicius e Joo Gilberto, foi a estria tambm de outras

    composies da dupla, as ltimas, como S dano samba e Samba do avio.

    O samba tornou-se um cone de um "estilo carioca" de compor e de viver, e tem

    uma lista de gigantesca de artistas que o gravaram, brasileiros e de outras

    nacionalidades. Talvez seja uma das canes brasileiras mais gravadas em todos os

    tempos.

    Os seus ingredientes so a melodia iniciada no segundo grau, bastante

    econmica em intervalos, com um motivo que se repete com mudanas da harmonia.

    Este estilo pode ser reconhecido em muitas outras canes, com as quais pode-se

    criar uma srie, como Samba de uma nota s, que uma espcie de modelo,

    Saudade fez um samba, Apelo, Brigas nunca mais, Discusso, Insensatez,

    Falando de amor, Feio no bonito, Meditao, O barquinho, Voc e eu,

    Bonita, Entrudo, Samba do carioca, Fotografia, guas de maro,

    Corcovado, A r, Minha, S dano samba, O morro no tem vez,

    20 Op.cit.p.322.I v.

  • 41

    Berimbau, Canto de Ossanha, Aula de matemtica, E nada mais, Lgia,

    Tem d de mim, Samba do carioca, etc.

    A sua forma a tradicional ternria: a primeira seo, que se repete com

    variaes na terceira seo, com ponto culminante prximo concluso.

    A seo central contm material novo com melodia mais movimentada

    contrastando com a economia do motivo inicial. Esta forma comum a muitas

    canes, com as quais pode-se constituir tambm uma srie. Soma-se melodia

    mais movimentada a suavizao do ritmo do samba atravs das quilteras, o que

    tambm caracterstico das sees centrais das peas. Esta peculiaridade foi descrita

    no comentrio sobre o samba Amei tanto.

    Lobo bobo , de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli

    Samba com letra leve e bem-humorada, com estrutura simples de trs sees. A

    primeira constituda por dois perodos, um suspensivo e outro conclusivo, onde se

    localiza o ponto culminante. O perodo conclusivo repetido depois da segunda

    seo, formando a terceira, sua repetio idntica. A segunda seo se destaca usando

    material novo