Upload
flora-menezes
View
58
Download
6
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Análise de canções atribuídas à Bossa Nova.
Citation preview
1
APNDICE
REPERTRIO COMENTADO DE CANES
A Bossa Nova sobrevive aos anos 90, iniciando-os com uma edio bilnge de
canes em "modernos song books", em cinco volumes. A coleo, organizada por
Almir Chediak, totaliza mais de 300 canes. Muitas foram excludas dos
comentrios, por razes diversas. Nem todas as escolhidas se justificam como
pertencentes Bossa Nova.
Apenas para referncia, os ttulos das canes na lista contm a indicao dos
volumes em algarismos romanos:
1. "A felicidade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)
2. A paz, de Joo Donato e Gilberto Gil (IV)
3. A r, de Joo Donato e Caetano Veloso (I)
4. Adriana, de Roberto Menescal e Lula Freire (I)
5. gua de beber , de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (I)
6. guas de maro, de Tom Jobim (II)
7. Ah se eu pudesse, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (I)
8. Alegria de viver, de Luiz Ea e Fernanda Quinder (III)
9. Amanhecendo, de Roberto Menescal e Lula Freire (I)
10. Amazonas, de Joo Donato e Lysias Enio (IV)
11. Amei tanto, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)
12. Amor certinho, de Roberto Guimares (V)
13. Amor de nada, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (III)
14. Amor em paz, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)
15. Anoiteceu, de Fracis Hime e Vinicius de Moraes (IV)
16. Anos dourados, de Tom Jobim e Chico Buarque (IV)
17. Aos ps da cruz, de Marino Pinto e Z Gonalves (V)
18. Apelo, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)
19. Aqui, ! , de Toninho Horta (V)
20. At parece, de Carlos Lyra (I)
21. Atrs da porta, de Francis Hime e Chico Buarque (I)
22. At quem sabe, de Joo Donato e Lysias nio (III)
23. Aula de matemtica, de Tom Jobim e Marino Pinto (III)
24. Baiozinho, de Eumir Deodato (V)
2
25. Balano zona sul, de Tito Madi (I)
26. Bananeira, de Joo Donato e Gilberto Gil (IV)
27. Barravento, de Srgio Ricardo (III)
28. Batida diferente, de Mauricio Einhorn e Durval Ferreira (IV)
29. Batucada surgiu, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)
30. Beijo partido, de Toninho Horta (IV)
31. Berimbau, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)
32. Bim-bom, de Joo Gilberto (I)
33. Bloco do eu sozinho, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (II)
34. Bolinha de papel, de Geraldo Pereira (V)
35. Bolinha de sabo, de Orlann Divo e Adilson Azevedo (IV)
36. Bons amigos, de Toninho Horta e Ronaldo Bastos (V)
37. Brigas nunca mais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (I)
38. Brisa do mar, de Joo Donato e Abel Silva (IV)
39. Caminho de pedra, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)
40. Caminhos cruzados, de Tom Jobim e Newton Mendona (I)
41. Cano do amanhecer, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes (II)
42. Cano do amor demais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (I)
43. Cano do nosso amor ,de Dalton Silveira (III)
44. Cano que morre no ar, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli (II)
45. Candeias, de Edu Lobo (IV)
46. Cansei de iluses, de Tito Madi (V)
47. Canto de Ossanha, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (III)
48. Canto triste, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes (III)
49. Carta ao Tom 74, de Toquinho e Vinicius de Moraes (I)
50. Cu e mar, de Johnny Alf (III)
51. Chega de saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)
52. Chora tua tristeza, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini (III)
53. Choro bandido, de Edu Lobo e Chico Buarque (V)
54. Chove l fora, de Tito Madi (V)
55. Chuva, de Durval Ferreira e Pedro Camargo (IV)
56. Coisa mais linda, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (II)
57. Comeou de brincadeira, de Pacfico Mascarenhas (I)
58. Consolao, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)
3
59. Corao vagabundo, de Caetano Veloso (IV)
60. Corcovado, de Tom Jobim (IV)
61. De onde vens, de Dori Caymmi e Nelson Motta (IV)
62. De palavra em palavra, de Miltinho, Maurcio Tapajs e Paulo C. Pinheiro (V)
63. Deixa, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)
64. Demais, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (I)
65. Derradeira primavera, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)
66. Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendona (II)
67. Desejo do mar, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (II)
68. Deus brasileiro, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)
69. Dindi, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (I)
70. Discusso, de Tom Jobim e Newton Mendona (I)
71. Domingo, azul de Billy Blanco (III)
72. Doralice, de Dorival Caymmi e Antonio Almeida (V)
73. Duas contas, de Garoto (V)
74. luxo s, de Ari Barroso e Luiz Peixoto
75. E nada mais, de Durval Ferreira e Lula Freire (III)
76. E vem o sol, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)
77. Ela carioca, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)
78. Embarcao, de Francis Hime e Chico Buarque (IV)
79. Enquanto a tristeza no vem, de Srgio Ricardo (I)
80. Entrudo, de Carlos Lyra e Ruy Guerra (V)
81. Esperana perdida, de Tom Jobim e Billy Blanco (III)
82. Esse mundo meu, de Srgio Ricardo e Ruy Guerra (I)
83. Estamos a, de Mauricio Einhorn, Durval Ferreira e Regina Werneck (IV)
84. Este seu olhar, de Tom Jobim (II)
85. Estrada branca, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (IV)
86. Estrada do sol, de Tom Jobim e Dolores Duran (I)
87. Eu preciso de voc, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (IV)
88. Eu sei que vou te amar, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (I)
89. Eu te amo, de Tom Jobim e Chico Buarque (IV)
90. Falsa baiana, de Geraldo Pereira (V)
91. Feio no bonito, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri (I)
92. Feitinha pro poeta, de Baden Powell e Lula Freire (II)
4
93. Fim de noite, de Chico Feitosa e Ronaldo Bscoli (II)
94. Foi a noite, de Tom Jobim e Newton Mendona (II)
95. Fotografia, de Tom Jobim (V)
96. Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (II)
97. Gente, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (III)
98. H-ba-l-l, de Joo Gilberto (I)
99. Influncia do jazz, de Carlos Lyra (I)
100. Insensatez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)
101. Intil paisagem, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (I)
102. Izaura, de Herivelto Martins e Roberto Roberti (V)
103. Lamento no morro, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (IV)
104. Lgia, de Tom Jobim (III)
105. Lobo bobo, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli (II)
106. Luiza, de Tom Jobim (III)
107. Maria ningum, de Carlos Lyra (I)
108. Mxima culpa, de Srgio Ricardo (III)
109. Meditao, de Tom Jobim e Newton Mendona (I)
110. Menina feia, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini (V)
111. Menina-moa, de Luiz Antnio (V)
112. Minha namorada, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (I)
113. Minha saudade, de Joo Donato e Joo Gilberto (II)
114. Moa flor, de Durval Ferreira e Lula Freire (IV)
115. Modinha, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (V)
116. Morrer de amor, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini (V)
117. Nan, de Moacyr Santos e Mario Telles (IV)
118. No diga no, de Tito Madi e Georges Henry (V)
119. Ns e o mar, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (I)
120. O amor chama, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (III)
121. O amor que acabou, de Chico Feitosa e Lula Freire (III)
122. O astronauta, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)
123. O barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (I)
124. O morro no tem vez, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)
125. O negcio amar, de Carlos Lyra e Dolores Duran (II)
126. O nosso amor, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (II)
5
127. O nosso olhar, de Srgio Ricardo (II)
128. O pato, de Neuza Teixeira e Jaime Silva (III)
129. O que amar, de Johnny Alf (II)
130. O que eu gosto de voc, de Silvio Cesar (V)
131. O que tinha de ser, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (II)
132. Olha Maria, de Tom Jobim, Chico Buarque e Vinicius de Moraes (V)
133. Onde est voc, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini (V)
134. Outra vez, de Tom Jobim (II)
135. Pernas, de Srgio Ricardo (III)
136. Poema azul, de Srgio Ricardo (I)
137. Pois , de Tom Jobim e Chico Buarque (IV)
138. Por causa de voc, de Tom Jobim e Dolores Duran (II)
139. Por toda a minha vida, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (IV)
140. Pouca durao, de Pacfico Mascarenhas (III)
141. Pra dizer adeus, de Edu Lobo e Torquato Neto (IV)
142. Pra que chorar, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)
143. Pra voc, de Silvio Cesar (V)
144. Praias desertas, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (III)
145. Preciso aprender a ser s, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)
146. Primavera, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (III)
147. Rapaz de bem, de Johnny Alf (II)
148. Razo de viver, de Eumir Deodato e Paulo Srgio Valle (I)
149. Retrato em branco e preto, de Tom Jobim e Chico Buarque (I)
150. Rio, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (III)
151. Rosa morena, de Dorival Caymmi (V)
152. Sabe voc, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (II)
153. Sabi, de Tom Jobim e Chico Buarque (IV)
154. Samba da bno, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)
155. Samba da pergunta, de Pingarilho e Marcos Vasconcelos (II)
156. Samba de Orfeu, de Luiz Bonf e Antnio Maria (IV)
157. Samba de Orly, de Toquinho, Chico Buarque e Vinicius de Moraes (V)
158. Samba de rei, de Pingarilho e Marcos Vasconcelos (I)
159. Samba de uma nota s, de Tom Jobim e Newton Mendona (I)
160. Samba de vero, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (III)
6
161. Samba do avio, de Tom Jobim (V)
162. Samba do carioca, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (II)
163. Samba do dom natural, de Pingarilho e Marcos Vasconcelos (V)
164. Samba em preldio, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)
165. Samba torto, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (II)
166. Samba triste, de Baden Powell e Billy Blanco (I)
167. Saudade fez um samba, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli (I)
168. Se tarde me perdoa, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli (II)
169. Se todos fossem iguais a voc, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (IV)
170. S dano samba, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (II)
171. S em teus braos, de Tom Jobim (I)
172. S por amor, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (II)
173. S tinha de ser com voc, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira (I)
174. Sonho de lugar, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (II)
175. Sonho de Maria, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (I)
176. Tamanco no samba, de Orlann Divo e Elton Menezes (IV)
177. Tambm quem mandou, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (III)
178. Tarde em Itapo, de Toquinho e Vinicius de Moraes (IV)
179. Telefone, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (II)
180. Tem d, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (I)
181. Tem d de mim, de Carlos Lyra (III)
182. Tema de amor por Gabriela, de Tom Jobim (V)
183. Tempo feliz, de Baden Powell e Vinicius de Moraes (IV)
184. Tereza da praia, de Tom Jobim e Billy Blanco (III)
185. Terra de ningum, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (II)
186. Tet, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (II)
187. Tintim por tintim, de Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques (V)
188. Triste, de Tom Jobim (III)
189. Tristeza de ns dois, de Mauricio Einhorn, Durval Ferreira e Bebeto (IV)
190. Tudo se transformou, de Paulinho da Viola (V)
191. ltima forma, de Baden Powell e Paulo Csar Pinheiro (IV)
192. Vagamente, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (II)
193. V, de Roberto Menescal e Lula Freire (I)
194. Verbos do amor, de Joo Donato e Abel Silva (IV)
7
195. Viagem, de Joo de Aquino e Paulo Cesar Pinheiro (V)
196. Viola enluarada, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle (IV)
197. Vivo sonhando, de Tom Jobim (III)
198. Voc, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli (I)
199. Voc e eu, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes (I)
200. Vou por a, de Baden Powell e Billy Blanco (I)
201. Wave, de Tom Jobim (III)
8
COMENTRIOS ANALTICOS DAS CANES
Volume I:
A r, de Joo Donato e Caetano Veloso
Este samba foi gravado em 1968 por Srgio Mendes e seu Brasil 66 no lbum
Look around.
A letra parcialmente um scattering sugerindo que h um ritmo sincopado
autctone (tropical) peculiar ao samba e tambm a outros gneros, similar ao coaxar
da r. Joo Gilberto gravou-a com o ttulo de O sapo, com silabao, sem os versos,
no LP Joo Gilberto (199.055, selo Philips).
Para que se perceba o samba, preciso pensar nas notas da melodia articuladas
de uma maneira determinada.
A instabilidade tonal deixa nele uma certa marca, pois no se estabelece tnica e
no se conclui na tnica, prevalecendo o modo drico.
A insistncia faz repetir obsessivamente o encadeamento Dm7 G7, que acaba
conduzindo a A7M, tom homnimo do relativo, praticamente uma modulao
inesperada no fim do perodo.
Considerado como bossa-nova, mas no muito tpico, neste samba o II V soa
no como uma forma de evitar a tnica, mas quase como uma base de improvisao,
que no caso aparece vocalizada, onomatopeica do rudo de uma r.
Adriana, de Roberto Menescal e Lula Freire
Cano em compasso quinrio 5/4 em d menor drico, permite que se suponha
que ela foi diretamente inspirada pela audio da produo de Dave Brubeck, do final
da dcada de 1950. O discos so Time out e Time further out1, este ltimo inclui um
texto de Brubeck na contracapa datado de agosto de 1961. O famoso Take five,
tema de Paul Desmond includo no Time out, era um grande sucesso.
A melodia de Adriana claramente estruturada num beat incomum nos
gneros brasileiros, e semelhante rtmica usada por Brubeck.
A harmonia chamou ateno pela forma de preparao do acorde da tnica Cm
feita pelo encadeamento II V, em que o segundo grau usa a quinta justa como no
1 Dave Brubeck Quartet. Time out CBS,37255 e Time further out CBS,37277
9
modo maior e no a quinta diminuta como no modo menor. Talvez, devidamente
verificado, este tipo de harmonizao drica tenha uma qualidade que ocorre mais nas
canes americanas que nas produzidas aqui.
gua de beber, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes
A melodia da cano, em si menor, totalmente incomum aos gneros urbanos
brasileiros (samba, bolero, etc.) quanto a vrios aspectos. No que diz respeito
ausncia de sensvel (l #) e sobretudo ao quinto grau, f# abaixado para f natural,
notamos que o centro tonal foi enfraquecido. Ao mesmo tempo que a repetio do
verso gua de beber, camar lembra algo de melodia de origem regional, com
maneiras de cantar e entonaes diferentes das do samba, tanto pelo intervalo de tera
menor quanto pelas notas repetidas de tnica. O quinto grau, abaixado para f natural,
lembra uma blue note2 e a escala de jazz. A ausncia de sensvel ou o VII grau natural
na escala menor tambm so fartamente encontrados nas peas de jazz.
Esta pea mereceria, posteriormente, uma anlise mais detalhada
Ah se eu pudesse, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli
A cano, em d maior, no estabelece tnica inicial. A primeira harmonia se
apoia sobre o Fm (IVm) (situao que pode ser interpretada tambm como IIm7(9)
V7(13) / bIII ) e a primeira nota do tempo forte a nona deste acorde. No freqente
encontrar-se harmonia de canes iniciando com encadeamento resolvendo num
acorde de emprstimo modal (IIm9 V13 / bIII ). Est clara a necessidade de se
evitar a estabilidade de uma tnica nos primeiros compassos.
No caso desta cano a tnica mal se apresenta nos acordes finais, cedendo a
concluso harmnica da pea para o homnimo do anti-relativo EM7. Nota-se que
estas situaes, incomuns nas canes populares de pocas anteriores, so, ao
contrrio, muito freqentes no repertrio da Bossa Nova.
Amanhecendo, de Roberto Menescal e Lula Freire
Uma outra forma de se evitar a obviedade da tnica inicial neutraliz-la com
harmonias e movimentos meldicos no diatnicos. No captulo sol, sal, sul
2 A blue note uma nota rebaixada de meio tom em relao s notas da diatnica. Alm das notas da diatnica so rebaixados tambm os intervalos de quinta
dos acordes, e, por extenso deste princpio e por analogia, outros intervalos imitam esta prtica.
10
Ruy Castro conta que entre 1960 e 1961 a dupla de parceiros se reuniu e produziu
muito, entre Rio e Cabo Frio3. Esta cano faz parte deste perodo, assim como a
anterior Ah se eu pudesse.
No tom de r maior, nela aparecem, j no segundo compasso aps a articulao
da tnica, intervalos da escala de r menor natural os VI e VII graus abaixados em
relao ao modo maior harmonizados com Am7, isto , o V grau menor, encontrado
na mesma escala. Esta harmonia poderia ser A7(#9), sendo o d natural da melodia a
nona aumentada, muito semelhante harmonia que se segue, Eb7 com a 13 (d
natural no canto). Esta situao demonstra claramente como o acorde de dominante
com resoluo 5 abaixo (no caso A7#9) pode ser substitudo por harmonia de 6
aumentada (Eb7), muitas vezes chamado de dominante de substituio ou subV.
Esta cano parece tpica da Bossa Nova, exaltando, na letra, a temtica do
amor-flor-mar, o qual ela estabelece ou do qual ela resulta. Canta todos os clichs de
natureza, considerados como caractersticos da Bossa Nova: rio lindo para o mar,
tantas nuvens brancas no azul, o dia traz mil cores diferentes neste amanhecer.
As situaes harmnicas tambm estabelecem ou resultam de um padro,
diverso de um samba convencional. A primeira estrofe poderia levar tnica, mas
evita esta concluso, substituindo-a por Am7, inserindo j na primeira estrofe um elo
para a segunda (Am7 D7), que introduzida com inclinao para o IV grau, o qual
por sua vez no se resolve e substitudo por um G#m7(b5) (#IVm7(b5)), preparando
o IVm6.
Talvez encontremos mais evidncias destes elementos nas canes assinadas
por Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli, do que nas assinadas por outros.
At parece, de Carlos Lyra
Samba bastante tpico rtmica e melodicamente. A alternncia da sncope com
as notas repetidas, logo na exposio do primeiro compasso, lembra um samba
convencional. A concluso da cano com tnica na melodia e no tempo forte
tambm refora uma esttica mais tradicional.
A nova vestimenta se apresenta na segunda seo, que apesar do movimento
meldico regular mostra harmonizaes com (13) e (b13) e relaes de intervalos
compostos com a harmonia, que so mais comuns na Bossa Nova.
3 CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. P.274
11
o samba totalmente presente na Bossa Nova, inclusive atravs da letra que
une samba, balano e mar.
Atrs da porta, de Francis Hime e Chico Buarque
Esta uma cano que se aproxima do gnero bolero e samba-cano, com
harmonia e melodia longa, e mais rebuscado do que o usual gnero.
O centro tonal (d) est bastante diludo, iniciando-se a exposio do motivo
temtico no IV grau. A tnica vai aparecer muitos compassos depois, na forma do
homnimo maior (C#7M). O acorde de tnica aparece no final da pea, que usa a
reafirmao da ltima frase para concluir em outra harmonia que no da tnica. Este
recurso encontrado em muitas das canes analisadas.
Pode-se conjecturar que as harmonias mais amplas e com muitas alteraes
produto da formao do compositor, que arranjador e pianista. Supe-se que o
compositor que cria ao violo mantm um padro de harmonizao diferente do
compositor que cria ao piano. Isto se aplica tambm a Tom Jobim.
Balano zona sul, de Billy Blanco
Esta cano se afasta do padro de outras j analisadas, porque expe uma
melodia simples, harmonizada com a tnica inicial bastante clara, apoiada na tera
maior do acorde. A simplicidade vai se estender at o final da cano, que conclui a
melodia com a nota da tnica (d), e com harmonia de tnica. Nem o motivo da
melodia nem o padro rtmico fazem senti-la com intensidade como sendo de um
gnero convencional de samba.
Entretanto a letra marca, com a palavra balano, a inteno de uma poca que
pensava na rtmica sincopada como algo capaz de fazer balanar as pessoas. A
associao do balano no andar com o balano do ritmo (o sambalano) foi muito
explorada nas letras da poca da Bossa Nova, sem que se possa dizer que era uma
peculiaridade exclusiva dos que a cultivaram. Muitas letras falam de balano, de
ritmo balanado significando algo parecido com o que no jazz se chama swing.
Alm de falar de balano a letra o localiza nos bairros da Zona Sul do Rio
(do Leme ao Leblon), pedao de geografia muito cantada na Bossa Nova.
Batucada surgiu, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle
A inteno de defender o samba e a batucada como cultura exclusiva da raa
negra torna frgil demais a cano. A ingenuidade da letra associa a raa de cor
12
branca falta de amor e morte. E, no lado racial oposto, os negros sorriem e so
cheios de amor. A batucada surgiu e nem um branco ficou, a no ser o prprio
compositor, cidado branco da Zona Sul do Rio.
Examinando-se a msica fica evidente um contraste inconcilivel entre a defesa
do samba de negros e uma melodia modal de forte tendncia pentatnica, sem a
sensvel do tom, aparentemente r drico. Esta omisso da sensvel, que ocorre em
outras canes como Berimbau e Consolao, de Baden Powell e Vinicius de
Moraes, faz pensar numa procura de supostas razes regionais e africanas, afastada
do gnero de samba preferentemente tonal. Esta discusso pode ser aprofundada e
trazer esclarecimentos bastante teis.
Bim-bom, de Joo Gilberto
Esta cano foi o lado dois do disco em 78 rotaes por minuto que lanou Joo
Gilberto em 1958 com o sucesso Chega de Saudade, de Tom Jobim e Newton
Mendona.
A simplicidade da melodia e da letra intencional. tambm uma forma de
apologia, que parece defender que o prazer puro do samba dispensa complicaes
harmnicas e meldicas e influncias malficas. Para evitar uma dependncia
completa da diatnica, aparece no segundo perodo musical uma inclinao para l
menor atravs do seu segundo grau Bm7, que, apresentado com a quinta justa por
razes meldicas, e contrastando com a quinta diminuta exigida no modo menor
harmnico, amplia um pouco o campo diatnico
Brigas nunca mais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes
A riqueza da relao melodia-harmonia lembra os recursos de outras tantas
canes, cujo motivo meldico contm notas repetidas (o modelo o Samba de uma
nota s) sustentada por uma harmonia rica e variada. A progresso descendente A6
G#7 G7M acompanha um motivo repetido com ritmo sincopado e afasta a melodia
do centro tonal j a partir do segundo compasso. O canto na sexta e na stima dos
acordes aparece mais variado e menos bvio que os motivos de outras canes como
Eu sei que vou te amar (melodia sobre a stima dos acordes diatnicos) e Garota
de Ipanema (sobre a nona do acorde de tnica). Os apoios harmnicos nos tempos
fortes que se seguem, acontecem sobre a dcima terceira abaixada F#7(b13) e sobre a
13
dcima primeira justa Bm7(9), mantendo um padro de intervalos compostos para
quase toda a cano.
Alm destas qualidades parece que a letra, apesar da harmonia um tanto
rebuscada, se pe de acordo falando desimpostadamente de um sentimentalismo na
vida cotidiana.
O sentido bem definido de samba, verificado nas sncopes e na rtmica de notas
repetidas, se faz com naturalidade, sem enfatizar a inteno de uma relao complexa
entre a melodia e a harmonia.
Caminhos cruzados, de Tom Jobim e Newton Mendona
Esta cano se aproxima do gnero do bolero, por ser um samba demasiado
lento. Apesar de ser curto, optou por uma melodia bem desenhada e apoiada por uma
harmonia rica e menos padronizada que as demais canes da Bossa Nova. Sendo a
tnica l, a inclinao para o homnimo do anti-relativo C#7M, surge como um
considervel afastamento da diatnica. A abundncia de acordes de sexta, tanto com
funo dominante (F#m6, Gm6) como com funo de subdominante (Em6, Dm6) e
de tnica (D6), do fora ao desenvolvimento da melodia e enfatiza o carter de
alguns gneros brasileiros ( preciso examinar melhor esta afirmao). A melodia que
inclina no primeiro perodo para C#7M, atravs da dominante G#7(13), reaparece na
reexposio apoiada por outra harmonia D#(b13)deEm6/G, que renova e revigora o
desenho meldico. Este movimento do baixo tem uma longa tradio na msica
brasileira, e pode se supor reconhecvel como caracterstico do choro e do samba
tradicional, nas instrumentaes dos conjuntos regionais. A culminncia meldica
dada pela relao de nona aumentada (si natural) harmonizada com G#7(b13). E o
acorde de D#(b13) usado como acorde de passagem, em situao incomum, entre o
IV grau D6 e o II grau invertido Em6/G.
A constatao das riqueza de harmonizao da prtica de msica popular, no
Brasil, deve ser enfatizada e demonstrada em pesquisas e estudos, haja vista que a ela
se referem tanto a bibliografia quanto os especialistas.
Cano do amor demais, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes
Uma das primeiras composies da dupla e ttulo do LP que Elizeth Cardoso
gravou para o selo Festa em 1958, ela se inclui neste que considerado o primeiro
disco da Bossa Nova. Ele contm uma faixa em que Joo Gilberto, com a famosa
14
batida de violo acompanha, a contragosto, Elizeth em Chega de Saudade e Outra
vez. O desentendimento entre os dois, durante os ensaios para a gravao, est
relatado por Ruy Castro4.
A composio revela muito mais sobre a trajetria da parceria de Tom e
Vinicius do que sobre o convvio musical de um grupo social na Bossa Nova. Por ser
uma balada, gnero distinto do samba, do bolero e do choro, sem um desenho rtmico
caracterstico, esta cano pode ser percebida como um clssico, tanto no sentido de
marco de referncia, quanto de proximidade com a msica de concerto. A carga
dramtica da letra, inclusive usando a segunda pessoa do singular tu, sustentada por
uma melodia em modo menor, bastante complicada e movimentada como se fosse um
recitativo, foge ao padro da cano popular difundida em rdios e discos. O
cromatismo da melodia, alternada por notas repetidas e pela presena no final de um
intervalo de quarta aumentada, e a sua culminncia, acentuada por um l#
harmonizado com um acorde Am7, dificilmente ocorrer em muitas canes ou se
repetir como clich.
O clima dramtico teria sido acentuado na interpretao de Elizeth Cardoso, no
s nesta como em todas as outras canes do LP, sendo este talvez o motivo de
conflito entre ela e Joo Gilberto.
Carta ao Tom 74, de Toquinho e Vinicius de Moraes
A mensagem, enviada de um momento (ano de 1974) no futuro dos
acontecimentos da Bossa Nova, celebra com nostalgia (Ah que saudade) as virtudes
do tempo em que se produziu Cano do amor demais, mencionada literalmente,
Garota de Ipanema, (nossa famosa garota) e Corcovado (um cantinho de cu e
o Redentor). E conclama a que, inspirado nestas virtudes, se reinvente os
sentimentos que aquele momento do passado teria descrito to bem.
Comeou de brincadeira, de Pacfico Mascarenhas
Tpico samba da Bossa Nova, tanto a letra quanto a msica propem uma
exposio do motivo de notas repetidas, sem impostaes, que se estabelece desde a
primeira frase, numa anacruse que se dirige para a stima r do acorde de tnica
Eb7M, sob as palavras mais ou menos foi assim. Estes so recursos que pretendem
4 idem.p.177
15
demonstrar uma informalidade, como que uma renncia forma, e a impresso de que
a letra no passa da descrio de uma situao em estilo coloquial, renunciando
tambm a tratar a cano como se fosse uma obra com forma definida, com comeo
meio e fim, ou seja, exposio, reexposio e coda. As notas repetidas so uma
referncia e um indcio de que o Samba de uma nota s foi no s bem digerido
como apreendido e transformado em idioma.
Consolao, de Baden Powell e Vinicius de Moraes
Ela pertence a uma linha de sambas, produto da parceria que se encontrou para
trabalhar em 19625, sem a softness dos sambas lentos da Bossa Nova. A extenso das
sncopes, abrangendo todo o compasso, e s vezes at alm da barra de compasso
(verificar o refro no incio da pea), caracteriza ritmicamente um samba
convencional, diferente do estilo de sncopes mais curtas usado em outras canes da
Bossa Nova.
As letras de Vinicius se adaptam bem esttica meio regionalista das peas
de Baden Powell (o mesmo acontece em Berimbau). A ausncia de sensvel, ou o
stimo grau abaixado do modo menor, situa a pea num ambiente, ao qual pode se
atribuir um colorido modal. A combinao, muito usada pela dupla, de modalismo,
samba convencional e letra com temtica sentimental, obteve sucesso.
Nesta cano, como em outras, o gnero samba se revela completamente na
segunda seo, em que o modalismo , por pouco tempo, abandonado, e a harmonia
surge com a apresentao do acorde A7, que contm a sensvel da tnica l. O fato
gerador da sensao de um samba mais reconhecvel deve-se provavelmente a este
retorno provisrio a uma linguagem mais diatnica.
Deixa, de Baden Powell e Vinicius de Moraes
Como o anterior, tambm um samba mais convencional, no tanto
bossanovista, criado na mesma poca. Ele faz parte do famoso LP Opinio de Nara
de 1965. Nele, vrias entonaes reforam a linguagem consagrada, como a frase
final, tpica de um sambo. O intervalo de oitava descendente, motvico, um dos
ingredientes que nos faz reconhec-lo como grande samba. , por uma exagerada
coincidncia, o mesmo intervalo, s que invertido, do motivo de O sol nascer, de
5 idem. p.306.
16
Cartola e lton Medeiros, de 1964. Este samba est includo no disco que Nara
gravou para o selo Elenco naquele ano. Intervalos to pouco econmicos quanto a
oitava aparecem nos motivos musicais de outros sambas da dupla como Tem d,
Amei tanto, Pra quer chorar e Tempo feliz.
Entretanto h pretenses de modernizao da linguagem, que se revelam na
relao melodia-harmonia. Aparece a nona aumentada, na forma de uma conservao
da sensvel abaixada sol, apoiada pela harmonia tonal E7(#9), na trade arpejada de l
menor harmonizada dissonantemente por E7(b9), e no intervalo de quinta justa em
que ambas as nota d e f so intervalos compostos do acorde E7(b13).
Demais, de Tom Jobim e Aloysio de Mendona
Parceria de 1959, assim como Eu preciso de voc e Dindi, Tom Jobim no
produziu muitos sambas com Aloysio de Oliveira. Nestas canes as sncopes
caractersticas esto ausentes e, ritmicamente, elas se aproximam mais das baladas e
dos fox-trotes americanos com que Aloysio deve ter se familiarizado, na sua longa
estadia em Los Angeles, produzindo musicais para Hollywood.
Deus brasileiro, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle
Neste samba a melodia procura perigosamente escapar da diatnica com
cromatismos e uma inclinao ao sexto grau do modo menor bVI7M que parece fruto
de um clculo que constrange a melodia.
Fruto tambm de clculo, a letra faz a apologia do brasileiro cordial que no
sabe o que a guerra e s tem amor, no tem preconceito de cor e no se importa
com prestgio social e financeiro. Neste paraso perdido todos so livres e felizes.
Discusso, de Tom Jobim e Newton Mendona
Se se pretendesse indicar uma cano modelar para o samba bossa-nova, esta
seria uma forte candidata. Ela se inclui no LP tambm modelar O amor, o sorriso e a
flor, de 1960, cujo ttulo um verso do samba Meditao.
O desenho motvico se apoia nas stimas dos acordes desde o primeiros
compassos. A melodia construda sobre a stima de C7M, de Dm7, Em7, etc. A
repetio do motivo em graus ascendentes bastante convencional, assim como a sua
harmonizao dada pela progresso C7M, Eb, Dm7, D#, Em7, que um clich.
17
A letra, desenvolvendo uma retrica sentimental, criou um estilo, muito
cultivado na poca, que evitava fortemente o tom melodramtico dos sambas
habitualmente veiculados pelo rdio, considerados pesados. Pode-se pensar aqui em
composies de Herivelto Martins como Caminhemos e de Antnio Maria como
Ningum me ama, ningum me quer.
Dindi, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira
Balada com uma longa introduo que lembra as canes americanas, esta
mais uma parceria com Aloysio de Oliveira, que se tornou um grande sucesso. Como
as outras parcerias, no expressa os ritmos idiomticos do samba, da marcha ou do
choro.
Srgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, foi um crtico acerbo da Bossa Nova, e
acusou Tom Jobim de plgio. Tentou corrigir a situao, contando numa entrevista
que o plgio pode ser involuntrio6. Dindi, segundo ele, semelhante a Love for
sale de Cole Porter.
Enquanto a tristeza no vem, de Srgio Ricardo
O tom de modernidade do samba do paulista Srgio Ricardo quer falar da
realidade feia da favela, com a esperana de fazer nascer l uma rosa.
A falta de apoio na tnica inicial e o carter instvel da exposio tornam difcil
a percepo do centro tonal da pea. Ele deve ser sol menor, que s aparece claro no
ltimo compasso. A melodia caminha constrangida pela harmonia e vice-versa. As
relaes entre elas no so as que se v nas canes de Tom Jobim, Roberto Menescal
e Carlos Lyra, mais prximas de intervalos impostos por uma lgica tonal. A esttica
aqui mais rspida, se se pode dizer assim, e torna endurecida a relao melodia-
harmonia.
A progresso harmnica que sustenta a melodia de notas fundamentais dos
acordes em Cm7 e Fm7, e no final a tnica harmonizada com Gm6, contrasta
fortemente com a violenta dissonncia do arpejo de Cm apoiado pelo acorde de
Db7M, numa inclinao inesperada ao II grau abaixado.
Esse mundo meu, de Srgio Ricardo
6 Divulgada no programa do Show do Crioulo Doido, no Teatro Toneleros, em 1968.
18
O mesmo tom de modernidade apresentado no samba Enquanto a tristeza no
vem aparece neste outro samba.
Igualmente, o mesmo constrangimento entre melodia e harmonia pode ser
observado. A percepo do centro tonal da pea no difcil e at bvio. O motivo
inicial, baseado nos I, II, III graus de d maior, chega a ser deliberadamente
despojado. No entanto a harmonia, F7M Dm7 G74 C7, parece colocada
intencionalmente para desestabilizar a sensao de obviedade e de despojamento. Isto
, temos uma melodia bvia e linear em d maior, harmonizada em f.
A letra praticamente um manifesto contra a apropriao dos meios de
produo por uma s classe. A escravido, antes s no reino e agora no mundo
inteiro, impede o amor. Ele acrescenta uma disposio de lutar contra esta situao
com qualquer arma disponvel, inclusive as armas da cultura religiosa negra.
O engajamento do samba to forte que vincula a prtica musical prtica
poltica, expressando uma opo pela luta dos dominados contra os dominadores.
Estrada do sol, de Tom Jobim e Dolores Duran
Uma das vrias parcerias da dupla, este samba-cano de 1958 e destoa dos
demais, cuja temtica sempre tratava das desiluses amorosas. Tom Jobim, em incio
de carreira, parecia ter recentemente descoberto a possibilidade de harmonizar com o
encadeamento II V. marcante a seqncia cromtica no incio da segunda seo,
cujos elos se encadeiam por semitom descendente Bbm7 Eb7, Am7 D7, Abm7
Db7, e que do ao conjunto um agradvel colorido de afastamento da tnica.
Eu sei que vou te amar, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes
A melodia marcante desta cano revela a descoberta de Tom Jobim de como
usar e abusar das stimas nos acordes. Todo o motivo da exposio estruturado
sobre as stimas dos acordes, em notas repetidas. Este procedimento composicional
pode servir para demonstrar uma inteno esttica a de buscar sistematicamente na
relao melodia-harmonia os intervalos de stimas, nonas, dcimas primeiras e
dcimas terceiras. Esta prtica j podia ser observada nas canes das dcadas
anteriores, nas peas e canes de Custdio Mesquita, Noel Rosa, Pixinguinha,
Garoto e Ari Barroso. No entanto, nos compositores da gerao em que surgiu a
Bossa Nova, esta prtica exclusiva e constitui uma opo estilstica. A relao
19
melodia-harmonia s utiliza as fundamentais, as teras e as quintas dos acordes como
ltima alternativa. Esta cano pode servir para testar esta hiptese.
Na mesma entrevista em que Srgio Porto falou da semelhana de Dindi com
Love for sale de Cole Porter, mencionou tambm a semelhana de Eu sei que vou
te amar e Dancing in the dark, sucesso americano gravado por Frank Sinatra7.
E vem o sol, de Marcos Valle Paulo Srgio Valle
Uma das primeiras composies da dupla, de 1963, tem como tema da letra os
motes da Bossa Nova conhecidos como amor-flor-mar ou sol-sal-sul.
A pea uma espcie de samba mais rpido do que os sambas lentos e suaves
como Brigas nunca mais, gua de beber e Discusso. A melodia se encaixa
com a harmonia e os seus cromatismos e alteraes de quinta diminuta, no acorde
A7(b5), do colorido pea e facilitam a inclinao para o sexto grau do modo menor
Bb7M atravs de uma dominante de substituio, iniciando uma curtssima segunda
seo do samba.
interessante o movimento interno da melodia sugerida pela progresso
harmnica F#74 F#7(b5) Bm7. A quarta, dissonncia que deve se resolver
descendentemente, parece subir em direo quinta diminuta, e a quinta diminuta em
direo quinta justa.
Feio no bonito, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri
Este samba foi gravado por Nara Leo LP Nara com o ttulo de O morro (feio,
no bonito) . A sua introduo lembra mais uma vez as canes de Gershwin e
Cole Porter, bem mais reduzida neste caso. Sente-se nela uma clara inteno de crtica
s temticas dos concursos das escolas de samba, com a saudao Salve as belezas
desse meu Brasil. Esta uma frmula tpica resultante das regras que haviam sido,
no regime de fora do Estado Novo, estabelecidas pelo DIP para a temtica das
escolas.
Dentro de um formato de samba convencional, os autores negam as belezas da
situao de pobreza e carncia da vida nas favelas. E pedem, para o morro, uma outra
histria, diferente daquela que eles puderam constatar.
7 idem
20
Carlos Lyra conheceu Gianfrancesco Guarnieri no Teatro de Arena em So
Paulo8, e as suas parcerias sempre estiveram ligadas ao esprito dos Centros Populares
de Cultura da UNE.
interessante notar que a progresso harmnica inicial Am6 G#(b13)
C7/G muito semelhante que Tom Jobim utilizou no incio de Corcovado,
composio famosa por sintetizar o esprito da Bossa Nova.
H-ba-l-l, de Joo Gilberto
Produo da dcada de 50, um ritmo latino do gnero do beguine, cuja
simplicidade da letra contrasta com a melodia e a harmonia mais fortemente do que
na cano Bim-bom, da mesma poca.
A inclinao para F7M, o III do homnimo menor na segunda seo,
prolongada e pode ser considerada quase que um novo trecho em outro centro tonal,
diferente do inicial. Seria uma pea modulante.
A harmonizao inicial II-V aparece tambm em Bim-bom e parece criar uma
regularidade na forma de adiar a apresentao da tnica.
Influncia do jazz, de Carlos Lyra
significativa a apresentao desta composio no concerto de Bossa Nova
(new brazilian jazz) do Carnegie Hall em novembro de 19629. Parece um ato de
coragem poltica faz-lo justamente por conter uma crtica modernizao do samba
e sua contaminao pelo jazz.
A idia de que o samba tem que se virar para se livrar da influncia da jazz
uma afirmao que merece ser desenvolvida num captulo especfico de tese. Para que
o comentrio no se restrinja s exortaes da letra, vale observar a construo do
motivo rtmico-meldico da cano e da sua harmonizao. Todos os seus elementos
contem expresses de ambigidade que se afastam e se aproximam de uma pea de
msica popular com perfil moderno e de identidade brasileira.
8 BARCELLOS, Jaluza. CPC da UNE. Rio: Nova Fronteira, 1994.p.96
9 CASTRO, Ruy. Op.cit. p.320
21
Intil paisagem, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira
Como em Demais e Dindi, a parceria conseguiu, melhor do que nunca,
reunir com sucesso o tema da natureza e do sentimentalismo. de fato original, em
relao ao tratamento de todas as outras composies da linha amor-flor-mar, nas
quais a natureza se soma ao sentimental. Esta se distingue por opor a natureza e o
estado de esprito da decepo amorosa.
A pea insiste na esttica da balada, preferida pela dupla, e que no caracteriza
nem ritmo e nem gnero tpico brasileiro. No entanto possvel execut-la em ritmo
bem lento, com uma batida sincopada mais prxima do bolero que do samba lento.
A relao melodia-harmonia optou pela sofisticao, pelo entortamento da
linguagem musical, aquele mesmo tipo combatido por Carlos Lyra em Influncia do
jazz. O motivo inicial com trs mnimas ascendentes, em trs compassos, mostra a
necessidade de uma expresso harmnica forte, opondo o movimento do baixo em
linha descendente. O movimento contrrio das vozes do canto e do baixo levam
escolha de uma harmonia complexa, A6 Fm6/Ab G7M(#11).
O movimento contrrio colocado em vozes extremas ocorre, na Bossa Nova,
menos freqentemente do que o oblquo, aquele em que notas repetidas do canto so
acompanhadas por harmonia movimentada ascendente ou descendentemente (Samba
de uma nota s, Pois , Bonita, Brigas nunca mais, etc.). Este movimento, o
oblquo, aparece mais adiante nesta mesma cano, quando uma melodia interna se
movimenta descendentemente para sustentar a melodia parada (Dm Dm7M Dm7
Dm6)
A incluso do acorde de nona aumentada, usado intencionalmente, parece
caracterstico da esttica de Tom Jobim. B7(#9) e E7(#9) no so acidentes para a
resoluo de problemas com a conduo do modo menor descendente, como aquele
encontrado no acorde C7(#9) em S tinha de ser com voc (Tom Jobim e Aloysio
de Oliveira), e Deixa (Baden Powell e Vinicius de Moraes). So dominantes
consecutivas encadeadas com nonas aumentadas na melodia. Este recurso apelidado
pelos msicos como entortamento da linguagem musical e da harmonia.
Maria Ningum, de Carlos Lyra
Carlos Lyra insiste na introduo modulante (l maior) para uma cano em f
maior. O gnero aparentado ao choro e no ao samba.
A pea foge a todo rebuscamento dos recursos harmnicos e meldicos da
Bossa Nova. A melodia e a harmonias so simples, sem nenhum entortamento. O
22
motivo inicial est construdo sobre a tera do acorde de tnica, como qualquer outra
melodia simples de choro ou samba. O esquema harmnico I V7/II II V I
absolutamente banal, sobre uma mtrica tambm banal.
Se h um estatuto esttico para a Bossa Nova, aqui ele foi inteiramente
ignorado.
Meditao, de Tom Jobim e Newton Mendona
O amor, o sorriso e a flor um clssico e um cone da Bossa Nova.
Por todas as razes se pode idealizar que esta cano seria o modelo
paradigmtico da Bossa Nova, se esta fosse a tica do estudo: pela melodia, pela
harmonia, pela letra, e at pelo marco referencial do LP de Joo Gilberto, cujo ttulo
O amor, o sorriso e a flor um verso da cano. Na capa est reproduzida a sua
assinatura, e na contracapa h um texto de Tom Jobim, que assinou a direo musical.
No texto Tom descreve como foi a preparao do disco em 1960, na companhia de
Joo Gilberto no seu stio na serra10.
A cano provavelmente de 195811, ano em que Tom e Newton Mendona
produziram tambm Foi a noite e Caminhos cruzados.
O tema convida a uma celebrao oposta aos melodramas de Ningum me
ama, ningum me quer, de Antnio Maria ou Caminhemos, de Herivelto Martins.
O clima mais cool, e o tom da letra distinto, se afastando tanto da vulgaridade
quanto do lugar comum das canes populares.
O encadeamento harmnico inicial II-V/III, seguido do I grau, e que motvico,
serviu de padro para outras canes, como Eu preciso aprender a ser s, de Marcos
Valle e Paulo Srgio Valle, cuja harmonia inicial A7M D#m7 G#7 A7M.
O encadeamento Cm7-F7-Bm7, cuja cifra analtica IVm7-bVII7-III, tambm
um clich recorrente em sambas e outras canes.
Minha namorada, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes
Cano produzida anos depois das primeiras parcerias da dupla, transformou-se
tambm num clssico desde sua gravao pelo Quarteto em Cy em 196712.
10 O amor, o sorriso e a flor MOFB. 3.151, Odeon.
11 CASTRO, Ruy. Op.cit. p.204
12 VINICIUS/CAYMMI Elenco ME 23, 1967
23
O motivo meldico principal enfatiza as stimas com notas repetidas, muito
semelhante ao clssico Eu sei que vou te amar, e pode ser percebida como um
samba-cano, com elementos de bolero e de balada.
Alguns encadeamentos harmnicos usam recursos mais complexos como a
dominante de substituio, muito mais explorada agora. Ela se apresenta no
encadeamento C7-B7-F(b13)-A7M, que pode ser analisado como V7 em relao de
semitom com o V7/V7-bVI(b13)-I7M. C7 dominante de substituio da dominante
secundria B7. Aparece tambm no encadeamento G#m7(11)-G7(#11)-F#m7, cuja
anlise IIm7 encadeado por semitom com o V7, dominante do VIm7, com resoluo
por semitom. Ainda aparece como dominante por semitom do II grau abaixado no
encadeamento B7(9)-Bb7M.
Pode-se dizer que esta composio pertence a uma poca em que a busca por
harmonizaes mais rebuscadas significava enriquecimento esttico.
Ns e o mar, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli
Samba lento tpico da Bossa Nova e da parceria, tem o motivo inicial exposto
com a tnica no primeiro compasso. Para evitar a obviedade diatnica aparece logo
no segundo compasso Am7, que o quinto grau do modo menor natural, uma
dominante fraca. Recurso semelhante usado em Amanhecendo. Estas
composies da dupla foram, a maioria, produzidas no incio dos anos 60, inspiradas
no tema sol-sal-sul.
O vocabulrio harmnico bastante amplo e as situaes musicais do espao,
por exemplo, para o emprego de Bb7(13) (bVI7(13) na modulao para o modo
menor na segunda seo, e o Ab (bIV) preparando o quarto grau Gm7.
O astronauta, de Baden Powell e Vinicius de Moraes
Inspirada no feito do cosmonauta russo Iuri Gagarin, o primeiro viajante do
espao que descobriu que a Terra toda azul, ele segue uma esttica que combina o
ritmo do samba convencional com recursos de enriquecimento harmnico da Bossa
Nova. O motivo meldico se repete por trs compassos reforando a nota l, que, por
movimento oblquo, se sustenta sobre harmonia movimentada C6(9) de Eb de Dm7.
O barquinho, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli
24
Grande sucesso da dupla e marco do esprito bossanovista, que consagrou a
ideologia sol-sal-sul.
Composta tambm no incio dos anos 60, a pea simples e conclui-se numa
nica seo. O prprio Menescal contou em entrevista13 que ela foi criada num
momento de pescaria em que o barco em que estavam, ele, Bscoli e Nara Leo,
parou por algumas horas no mar de Cabo Frio. O motivo rtmico lembra, segundo ele,
o rudo do motor de um barco que est falhando. A propsito deste acontecimento,
Roberto Menescal afirmou que importante que na criao possam ser reconhecidas
situaes comuns a muita gente. Esta seria uma funo da msica.
A gravao do samba por Maysa Matarazzo foi um grande sucesso veiculado
nas rdios14. Foi gravado tambm, na mesma poca, por Joo Gilberto15.
O motivo musical principal se repete por graus descendentes e se estrutura sobre
as stimas e as nonas de acordes estveis F7M, I7M, e Eb7M, bVII7M.
Poema azul, de Srgio Ricardo
Esta cano tambm foge temtica preferida pelo compositor, o social. uma
pea curta e simplssima sobre a natureza, porm com um vocabulrio harmnico
rebuscado. Apesar de to curta, o stimo grau bem explorado, e aparece com F7M
(bVII7M) e F7(#11) (bVII7(#11).
Alm destas observaes, deve ser dito que ela no lembra nenhum dos gneros
brasileiros usados na poca da Bossa Nova.
Pra que chorar, de Baden Powell e Vinicius de Moraes
Lanado em 1962, este samba segue a mesma linha esttica dos demais,
Consolao, Deixa, etc. Os sambas da dupla parecem incorporar com
naturalidade harmonias um pouco mais avanadas para padres rtmicos e meldicos
mais convencionais. No se disfaram o centro tonal nem a diatnica, que exposta
com simplicidade.
A banalidade tambm evitada de maneira despretensiosa, empregando-se
acordes diminutos G# (#IV) e Bb(b13) (bVI(b13); G#m7(b5) (#IVm7(b5), usado
13 Entrevista a Armando Nogueira no canal SporTV, que foi ao ar dia 30/09/97.
14 CASTRO, Ruy. Op.cit. p.275. A rdio citada a Jornal do Brasil.
15 Idem, ibidem.
25
de forma inusitada, precedendo um Bm6, dominante de A7(#5); e ainda uma
subdominante interpolada entre A7(#5) e D7(b9).
Preciso aprender a ser s, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle
Provavelmente criada em 196416, este foi um dos maiores e mais permanentes
sucessos da dupla. Alm da semelhana harmnica com Meditao de Tom Jobim e
Newton Mendona, j mencionada em anlise anterior, este samba-cano possui uma
letra com muitos atrativos e que perfeitamente adequada aos motivos musicais. O
gnero, a letra, a melodia e a harmonia se encontram em cooperao.
No h rebuscamento nem intenes musicais ousadas. At mesmo o acorde de
nona aumentada E7(#9) est na sua funo primordial de conduzir inclinao para o
modo menor homnimo.
Razo de viver, de Eumir Deodato e Paulo Srgio Valle
Pianista da gerao mais jovem da Bossa Nova (como os irmos Valle), esta
composio produto do tempo em que Eumir Deodato ainda vivia no Brasil. Hoje
cidado americano totalmente adaptado e arranjador de sucesso nos EEUU, tem suas
atividades como compositor da Bossa Nova associada sua convivncia como msico
em shows que incluem sua participao como pianista na histrica noite de 1960, na
Faculdade de Arquitetura na Praia Vermelha17.
A cano Razo de viver no se adapta a uma classificao dentro de um
gnero brasileiro, mas desenvolve uma melodia bastante tpica de cano produzida
no Brasil na poca da Bossa Nova. O motivo musical, construdo em intervalos de
quintas, permite uma grande movimentao harmnica, transpondo-se por graus
descendentes. Acontece at uma inusitada inclinao para D7M (II7M) e um
encadeamento Bb7m-Eb7(9) (II-V), resolvendo por semitom, em situao bastante
afastada do centro tonal d.
O compasso inicial, harmonizado por uma dominante secundria, compromete
de forma acentuada a estabilidade tonal e permite que a melodia seja conduzida,
posteriormente, para qualquer tnica. uma demonstrao, das mais radicais, de
descompromisso com um centro tonal.
16 Idem, p.357.
17 idem. p.263-264
26
Retrato em branco e preto, de Tom Jobim e Chico Buarque
Chico Buarque fez Sabi de parceria com Tom Jobim em 1968. Esta parceria
rendeu provavelmente alguns dos momentos mais importante da msica popular no
Brasil. Retrato em branco e preto sem dvida um desses momentos.
O motivo cheio de cromatismos da melodia no s adequado como refora e
d sentido ao contedo dramtico e filosfico da poesia. A relao intervalar de tera
diminuta na exposio, espcie renovada de bordadura dupla da quinta r do acorde,
que se repete obsessivamente, d a medida exata do caminho sem sada, cheio de
pedras e passos exaustivamente conhecidos.
A harmonizao acentua o contedo dramtico da melodia com acordes de nona
aumentada D7(#9) (V7(#9) e A7(13) (V7(13); e de dominante de substituio
Ab7(#11) (V7/I). A inclinao para o tom da dominante maior D7M incomum e
inesperado, pela stima maior que contrasta como a stima menor da dominante
principal de R maior.
Samba de uma nota s, de Tom Jobim e Newton Mendona
Tom Jobim teve na companhia do seu parceiro, o pianista Newton Mendona
desaparecido em 1960, uma poca muito produtiva. Foi no final da dcada de 1950,
quando foram criadas vrias canes de sucesso da dupla, como Meditao,
Desafinado, Discusso e Caminhos cruzados.
A msica utiliza, na sua forma mais clssica e consagrada, o recurso da melodia
sem movimento, compensada pela harmonia movimentada por graus descendentes em
semitom. O resultado, que produz dissonncias de dcimas primeiras justas e
aumentadas, marcou um elemento de composio que inspirou muitos msicos,
conforme j comentado nas canes Brigas nunca mais e Intil paisagem.
Os versos se propem a defender uma esttica musical, e levanta a bandeira da
simplicidade meldica, da forma meldica sinttica que exclui a construo de frases
muito movimentadas que podem no dar em nada. Este princpio, que o samba
defende, foi levado ao p da letra em muitas outras ccomposies com melodias de
notas repetidas e mbito bem reduzido, numa listagem que inclui Discusso, Intil
paisagem, O astronauta, O barquinho, Saudade fez um samba, etc.
27
Stanislaw Ponte Preta apontou a semelhana do Samba de uma nota s com a
introduo da cano Night and day, de Cole Porter, na mesma entrevista em que
falou de Dindi, outra cano de Tom Jobim18.
Samba de rei, de Pingarilho e Marcos Vasconcelos
Um dos recursos de composio mais bsicos a utilizao de fragmentos de
escalas e arpejos para a construo de melodias. A histria da msica est recheada de
modelos adequados para todas as pocas e gneros.
Na Bossa Nova este recurso tambm foi muito explorado, com a banalizao do
uso de stimas, nonas, dcimas primeiras e dcimas terceiras. Nas melodias de
Consolao, de Baden Powell e Vinicius de Moraes e Razo de viver, Eumir
Deodato e Paulo Srgio Valle os arpejos sobre estes intervalos compem o motivo
principal. Mas, nota-se que podem ser ainda mais abundantes em trechos no
temticos, nos desenvolvimentos e nas ligaes entre perodos e frases de muitas
outras canes.
O motivo meldico que serve de tema musical para o Samba de rei
composto sobre um arpejo ascendente de quatro sons, que inicialmente inclui a nona
do acorde de Em7(9). No entanto, o que chama a ateno na pea, pela peculiaridade,
o fato de que a melodia vai repetindo esta clula sobre diferentes graus, com
deslocao da mtrica provocando hemiolas que subvertem totalmente os apoios
convencionais necessrios clareza dos arpejos. Os tempos so apoiados s vezes
sobre a primeira nota do arpejo, s vezes sobre a terceira e s vezes sobre a ltima
nota.
Alm dos problemas de afinao que as alteraes sucessivas provocam, esta
deslocao constante exigir dos executantes e do cantor uma grande segurana
rtmica. Ela constitui um outro tipo de entortamento muito apreciado pelos msicos,
desta vez no na relao melodia-harmonia mas na seo rtmica.
Samba em preldio, de Baden Powell e Vinicius de Moraes
Clssico em dois sentidos, esta pea sugere uma discusso sobre a oposio
erudito/popular, virada do avesso. Alm de ser um clssico da msica popular ela
pretende se impor tambm como pea instrumental, nas mos de um hbil
18 ver nota 5.
28
instrumentista como Baden Powell, e reverenciar a msica de concerto, a msica
clssica, com um motivo musical inspirado em Villa-Lobos, acrescido de ares de
polifonia.
O denominao preldio francamente bachiana e villalobiana.
Samba triste, de Baden Powell e Vinicius de Moraes
Esta pea fiel linha de simplicidade das peas compostas pela parceria. um
samba convencional como os demais da dupla, Consolao, Deixa, etc.
O tema da poesia sentimental e despretensioso, e se mostra at cndido na sua
articulao com o motivo musical. A melodia inicial apoiada por um acorde
diminuto seguido de outro, os quais se colocam ingenuamente na funo de criar o
clima de tristeza exigido pelas palavras.
Saudade fez um samba, de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli
As notas repetidas desta pea tem por objetivo aparente manter a melodia
discreta, sem grandes manifestaes expressivas, convencionalmente reveladas por
intervalos maiores que uma segunda. Melodias com intervalos de segundas e semitons
desencorajam qualquer tentativa de canto impostado. o que tambm ocorre em
outras canes como Discusso, de Tom Jobim e Newton Mendona, que foi
composta anteriormente e que tem melodia por segundas muito semelhante, se no
idntica.
O cantor lrico Plcido Domingo, numa entrevista dada ao canal de TV Globo
News, quando perguntado se gostaria de gravar msica popular brasileira, apontou a
dificuldade de se escolher canes que no tivessem, como na Bossa Nova, um
mbito meldico to reduzido.
O motivo musical de Saudade fez um samba reafirma a escolha das nonas,
intervalos compostos, usados aqui como intervalos estveis, para estruturar a melodia.
A imobilidade meldica serve mais a um tipo determinado de expresso do que a
contrastes puramente musicais da relao melodia-harmonia.
um bom exemplo de esttica que pretende neutralizar a nfase em arroubos
romnticos, tpicos das canes de desiluso amorosa e de dor de cotovelo.
O samba figura tambm como a expresso particular de uma desavena entre os
parceiros Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli. Este procurou o compositor Carlos
Lyra para se queixar do amigo e habitual parceiro, e colocou na letra a sua queixa.
29
S em teus braos, de Tom Jobim
O compositor deixa de lado seus habituais parceiros e cria letra e msica. Ela
est includa no repertrio do LP de Joo Gilberto O amor, o sorriso e a flor,
Uma das referncias para os msicos a de que esta cano possui uma
harmonia muito semelhante Discusso, composio seno da mesma poca, pelo
menos de poca prxima. No mnimo uma semelhana harmnica entre as duas
evidente: o encadeamento A7(b13)-Bb7M-Bbm6, que acontece exatamente nos
mesmos compassos nas duas canes, no sexto, stimo e oitavo. Isto torna possvel
at que um mesmo acompanhamento, ao violo por exemplo, sirva para as duas
melodias.
Sonho de Maria, de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle
Desta vez os irmos parceiros resolveram aparentemente fazer proselitismo das
injustias sociais.
No entanto, bem examinada, talvez a letra esteja apenas descrevendo uma
situao ocorrida proximamente, uma histria real, que comoveu a dupla, no
havendo outro propsito seno o de descrev-la.
A pea no tem um conjunto musical muito coerente. Depois de vrias
inclinaes vizinhas a d maior, a sua concluso se faz em sol maior, deixando
dvidas se o centro tonal mesmo sol ou se modulante, com centro tonal d
dirigindo-se depois a sol.
S tinha de ser com voc, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira
Este samba estreou no show O remdio bossa de 26 de outubro de 1964 no
Teatro Paramount em So Paulo. um dos poucos sambas da dupla, que em geral
parece ter preferido canes sem caracterizao de gnero brasileiro.
A harmonizao rica e sofisticada, cheia de sutilezas, apoiada na idia de
repetio meldica com variao harmnica. O motivo inicial harmonizado e
rearmonizado com C7(#9)-F7M e Gb7(#11)-Cm7, possibilidades distintas para um
mesmo movimento da melodia. Em outro momento a melodia harmonizada com
D7(b9)-G7(13)-G7(b13)-C7(b9), e rearmonizada com as dominantes consecutivas
Bb7-Eb7-Ab7(13)-Db7(9)-G7(#5); mais adiante, na reexposio, a mesma melodia
harmonizada pela terceira vez com Ab7(13)-Db7M-C7(#5).
30
Talvez esta seja a cano que rene o material harmnico mais variado e rico de
toda esta srie. um momento em que a anlise harmnica pode dar sua contribuio
para a anlise da Bossa Nova em geral.
Tem d, de Baden Powell e Vinicius de Moraes
Reafirmando as preferncias estticas da dupla pela simplicidade, este samba
quase um exemplo de despojamento.
A inclinao para o IV grau logo no segundo compasso exprime, sem hesitao,
a ausncia de sofisticao e a escolha de um discurso musical direto, imediato. A
concluso do primeiro perodo com nota e harmonia da tnica, acrescenta-lhe um
sentido afirmativo e bvio. As duas cesuras no segundo perodo, que sugerem um
breque, o aproximam ainda mais de um samba mais popular, que renunciou a
qualquer sofisticao.
V, de Roberto Menescal e Lula Freire
O samba parece desinteressante com exceo do fato de que pretende, supe-se,
responder aos artistas engajados. uma exortao para que eles abram seus olhos
para o amor e a natureza, resumida na letra a flor e mar: a defesa explcita do
ideal esttico bossanovista amor-flor-mar.
explcito tambm nas crticas a tanta reunio, provavelmente alguma
reunio de carter poltico em alguma organizao, e a quem tanto fala,
provavelmente pessoas que so prolixas ou que fazem proselitismo. Replica ainda a
crtica alienao das letras que falam de flor, uma flor no vai alienar.
Voc, de Roberto Menescal e Ronaldo Bscoli
Seria este samba a essncia do que h de brega na Bossa Nova?
Apesar das sncopes no motivo da melodia, dificilmente se sente um samba
pulsando sob elas. A questo da percepo est sempre to vinculada s
subjetividades, que uma simples sensao pode no ser suficiente para definir
categorias estticas. .
Seria possvel fazer a anlise de Voc para esclarecer como ritmicamente ela
pode nos afastar ou no da pulsao do samba.
Os argumentos da anlise musical restritiva no deve nos levar a abandonar a
discusso sobre o gosto esttico, porque gosto se discute e socialmente constitudo.
31
A definio de que de bom ou mal gosto pode ser relativizada se pensarmos que, no
momento da gravao, um arranjo determinado pode mudar totalmente o sentido de
da pea.
Voc e eu, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes
Este samba tem andamento mais vivo que Minha namorada e Primavera, da
mesma dupla, mas foi tambm um sucesso e mereceu muitas gravaes. Maysa
Matarazzo colocou-a no seu repertrio, e Joo Gilberto incluiu-a no seu segundo LP.
A harmonizao tem algo em comum com Meditao, de Tom Jobim e
Newton Mendona e Eu preciso aprender a ser s, de Marcos Valle e Paulo Srgio
Valle. O acorde de tnica inicial D6(9) (I6(9), tem uma bordadura harmnica com
C#7(#9) (VII7). Nas outras duas canes o acorde de VII7 aparece precedido de um
IIm7, o que no desfaz as semelhanas harmnicas nas trs canes.
Vou por a, de Baden Powell e Aloysio de Oliveira
Esta cano em modo menor, de clima nostlgico, foge ao esprito dos sambas
que Baden Powell comps com Vinicius de Moraes. quase uma seresta, cantando
uma dor de cotovelo de forma simples mas profundamente triste.
32
Volume II:
guas de maro, de Tom Jobim
Este grande sucesso de Tom Jobim, do qual uma das gravaes mais famosas
foi a realizada em 1974 em Los Angeles para o LP Elis & Tom, sintetiza as
qualidades e peculiaridades dos sambas escritos por ele. A sncope suave, que revive a
Bossa Nova e refora o estilo do samba lento, urbano, se mantm distante do samba
de batucada, num momento em que a temtica amor-flor-mar j havia sido
abandonada. Tom Jobim inicia com esta cano uma srie de letras preocupadas com
a natureza, que manteve at a sua morte em 1996. Dedicou a este tema o lbum
Urubu, gravado em Nova York em 1975, e mais tarde o Passarim de 1987.
O mbito intervalar da melodia, nos limites de uma tera maior, repetido
exausto pelo motivo principal, reafirma o gosto pelo samba lento com melodia
montona, tpico da Bossa Nova, alm de representar a idia do canto do pssaro
matita-per. As notas repetidas da segunda frase mantm a idia de melodia com
economia mxima de intervalos.
A Bossa Nova anacrnica convivia com um panorama musical, no qual o
prprio "tropicalismo" j estava completamente absorvido.
Amei tanto, de Baden Powell e Vinicius de Moraes
Escrito provavelmente na mesma poca (por volta de 1963de1964) que outros
sambas da parceria como Deixa, Formosa, Tempo feliz. O motivo meldico
que introduz a cano articula-se num intervalo de quartas e quintas que enfatizam a
frase cantada "amei tanto". Os sambas de Baden e Vinicius sempre escapam ao
padro esperado para canes do estilo Bossa Nova, no que diz respeito a notas
repetidas, economia intervalar e neutralizao de qualquer tipo de nfase. Assim
como em outros sambas a rtmica muita mais do samba convencional do que de um
samba suave como guas de maro, por exemplo.
Intervalos mais amplos como quartas, quintas e mesmo oitavas so
caractersticos desta produo, como se v em Deixa, Tem d e Pra que chorar.
Amei tanto confirma o gosto da dupla de parceiros.
33
Apelo, de Baden Powell e Vinicius de Moraes
Este um dos sambas mais conhecidos e de maior sucesso da dupla, sobretudo
nas vozes do Quarteto em Cy e de Elizeth Cardoso, que o gravou em 196619.
Ao contrrio dos sambas da dupla, mencionados antes, este economiza
intervalos e limita o mbito da melodia do tema, que motvico, ao semitom. Ele
lembra Insensatez, de Tom Jobim (1961), que tem um motivo meldico semelhante.
A harmonizao deste samba no foge linha de simplicidade dos sambas da
dupla, sem inclinaes sofisticadas ou alteraes ousadas nos acordes e na melodia.
Apesar de ter escolhido uma melodia econmica, com intervalos repetidos, tpica das
melodias em estilo bossanovista mais bvias, a harmonia no contrasta em
rebuscamentos, aparecendo apenas algumas dominantes de substituio (com sextas
aumentadas) e uma inclinao simplssima para a subdominante principal, o IV grau
R menor.
Berimbau , de Baden Powell e Vinicius de Moraes
um dos sambas mais conhecidos da dupla, um clssico na linha dos
afro~sambas, que abandona momentaneamente as letras com temtica sentimental,
como em Apelo, Deixa e o Astronauta, e esboa, em estilo que no
compromete, uma tmida apologia das razes brasileiras. Ao mesmo tempo enaltece os
valores da tica e da moral do indivduo num tom filosfico ("Quem homem de bem
no trai"), em que o homem do povo que tem a disposio de lutar ("Capoeira que
bom no cai").
A melodia econmica, uma sntese das notas repetidas de Desafinado com o
intervalo de semitom de Apelo, d o tom de simplicidade sem utilizao de
harmonias complicadas, ao contrrio se lana na aventura modal com a tnica
alternada com uma insistente dominante menor (Dm7 de Am7). O sabor harmnico
mais ousado fica por conta da tnica r harmonizada pelo acorde Eb7M, no fim da
segunda seo, para evitar a cadncia conclusiva A7 Dm7 no sinal de repetio.
Gravado por Nara Leo no LP Nara (Elenco ME-10, 1964), aparece tambm no
mesmo ano no LP do Quarteto em Cy para a etiqueta Forma (FM 4).
Bloco do eu sozinho , de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle
19 As datas de composio aqui indicadas so as que esto fixadas por SEVERIANO,J. e MELLO, Zuza H. A cano no tempo. 2.v. Rio: editora 34, 1998.
34
O gnero carnavalesco foi revisitado constantemente manifestando mais
preocupaes sociais do que intenes de ser executado nos bailes e rdios nos quatro
dias de folia. Os temas e gneros carnavalescos sempre foram aproveitados, de
maneira mais ou menos apologtica, como tema de cano com preocupaes sociais.
Pode-se mencionar, nesta linha, muitas canes, como Entrudo, Marcha da quarta-
feira de cinzas, O morro no tem vez e Zelo, dentre muitas outras.
Como Marcha da quarta-feira de cinzas, Bloco do eu sozinho uma
marcha-rancho que descreve um tipo conhecido do carnaval carioca com intenes
poticas e literrias ("No bloco do eu sozinho sou a seda do estandarte, sou a ginga da
baiana, sou a cala de zuarte"). A msica de Marcos Valle um pouco rebuscada e
torna a melodia difcil, se for imaginada uma assimilao imediata. Na sua parceria
com Paulo Srgio Valle a linguagem musical praticamente a mesma, porm a
temtica das letras so em geral mais prximas da temtica amor-flor-mar e no da
cano de apologia do popular.
Cano do amanhecer , de Edu Lobo e Vinicius de Moraes
Esta cano est includa no primeiro disco de Edu Lobo para a Elenco Edu
Lobo por Edu Lobo, de 1965.
A denominao de cano indica, neste caso, um gnero prximo seresta e
balada, diferente do samba ou de outros ritmos mais marcadamente regionais.
As ousadias meldicas desta cano revelam uma tendncia da dcada de 1960
que se reconhece nos compositores como Edu Lobo e outros. O cromatismo
intencional e freqente pode ser, para efeito de anlise, avaliado como uma
necessidade esttica de escapar obviedade diatnica. A alterao da direo
meldica atravs da cromatizao pode fundamentar a hiptese de uma tendncia
geral s melodias rebuscadas e de difcil execuo que pode ser notada no s na
Bossa Nova, como na produo dos compositores mineiros como Milton Nascimento,
L Borges e, sobretudo, Toninho Horta.
O cromatismo da sua melodia pode provocar receios nos cantores amadores e
at nos profissionais. No entanto a fora desta tendncia sofisticao meldica e
harmnica se generalizou, de uma certa maneira e numa certa poca, indicando a
existncia de pblico e de espao consistente para este tipo de produo.
O cromatismo marcante se faz acompanhar de uma harmonia tambm rebuscada
e modulante, onde est presente uma inclinao atravs de nona aumentada. A cano
35
pode ser listada entre as canes modulantes que se encontram no repertrio da
msica popular brasileira de o tom inicial D menor e, depois de inclinaes
sucessivas para L menor, Mi menor, R menor e D menor, modula e conclui em R
maior, atravs de uma progresso ascendente. Alm da concluso inusitada em tom
afastado, a cano ainda tem uma coda estrutural no anti-relativo maior F#.
Cano que morre no ar , de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli
Mais uma balada com a denominao de cano, esta tambm modulante. O
tom inicial Fa# maior, o qual parece no ter amedrontado o compositor e violonista
Carlos Lyra, revelando j talvez nesta escolha a tendncia ao rebuscamento. A
necessidade de uma esttica mais cromatizante com modulao a tom afastado
evidente, considerando-se que a melodia se apoia alternadamente em F# maior e R
maior, tonalidades afastadas, e acaba concluindo em R maior.
A ousadia no se resume escolha da tonalidade e da modulao. A
harmonizao segue a mesma linha e emprega um acorde de dominante com nona
menor e nona aumentada na harmonizao da escala descendente com b7 e b6.
Coisa mais linda , de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes
O samba, veiculado em 1961, uma Bossa Nova tpica, se que se pode
afirmar isto. O tom da letra coloquial: "Coisa mais bonita voc, assim, justinho
voc ". Ela contrasta fortemente com um samba-cano de Adelino Moreira e
Nelson Gonalves, que fez sucesso no mesmo ano, cuja letra foi toda escrita na
segunda pessoa do singular: "Fica comigo esta noite, que no te arrependers".
Alm da letra, como Bossa Nova tpica, ele requer um estilo de cantar suave
para se somar batida lenta e suave do samba Bossa Nova. Este modo de tocar e de
cantar aos poucos constituiu um conjunto de clichs, que tornaram reconhecveis as
canes identificadas como Bossa Nova.
A harmonizao tambm caracterstica, introduzindo uma tenso harmnica
com a ttrade diminuta A, no segundo compasso. um acorde que, nesta situao,
prepararia uma inclinao para F# menor, a qual no se consuma e, por elipse,
resulta numa cadeia de dominantes consecutivas.
Desafinado , de Tom Jobim e Newton Mendona
Este o samba mais emblemtico da Bossa Nova.
36
Gravado pela primeira vez por Joo Gilberto em 1959, considerado inovador.
Ele representa e explicita a necessidade de ruptura esttica e de renovao da cano
em relao s suas prticas anteriores.
A harmonia alterada, apoiando uma melodia com intervalos no diatnicos,
apresentada pela primeira vez, proporcionou uma linha de conflito e de seleo entre
os que adotavam a esttica da incipiente Bossa Nova e os que a rejeitariam por esta
mesma esttica.
A Bossa Nova como estilo e como esttica dependeu, para existir, do conflito e
da rejeio dos padres que determinam o seu estatuto. Sem a reao das vozes
impostadas dos cantores mais convencionais, associadas s letras empoladas dos
sambas-canes, em face do ritmo suave e intimista do novo produto, no se
produziria um conflito de padres estticos to transparente. Para que se considerasse
a ocorrncia de ruptura e renovao era essencial o surgimento de uma reao
contrria explicitada.
A dificuldade de se estabelecer os padres de um estilo musical distinto, um
novo estatuto de cano, pode ser explicada pelo fato de que estilos musicais so,
quase sempre, associados marca autoral, ao nome que assina a obra, como o seu
ponto de origem. No entanto imprecisa na cano popular a indicao do ponto de
origem da produo. O compositor, o escritor da cano, o songwriter, apenas um
momento do processo. No se pode afirmar que o estilo de cantar e de tocar violo de
Joo Gilberto foi determinado pelo estilo de cano escrita por Tom Jobim. O mesmo
se aplica ao arranjo que teria sido produzido para a gravao. A rejeio ao arranjo
com grande orquestra, ou pelo menos com cordas e metais, praticado para
acompanhar os sambas-canes e o repertrio mais convencional, no estava prescrito
nas canes, caso em que se inclui Desafinado. A maneira de tocar o violo e de
cantar de Joo Gilberto pode ter sido bem anterior criao deste samba, que
provavelmente se direcionava exclusivamente para a sua voz nem para o seu estilo de
acompanhamento.
O estilo da Bossa Nova no est inscrito exclusivamente nas canes, ele
depende tambm do gnero de arranjo e da maneira de entoar a melodia. Absorvida a
nova maneira de cantar e arranjar o produto final, que est alm da melodia
harmonizada e da letra escrita, muita msica deve ter sido produzida
intencionalmente. Esta inteno talvez no tenha sido completamente planejada em
Desafinado, a no ser pela meno ao modo "desafinado" de cantar, que se explica
37
como sendo "Bossa Nova", um modo "natural" de desafinar, que no deve ser
"classificado como anti-musical".
A sua forma musical segue algumas convenes que se reconhecem na prtica
de sambas e choros anteriores, at mesmo do prprio Tom Jobim, como o prprio
Chega de Saudade e Aula de matemtica. So ao todo trs sees em F maior: a
exposio de "Se voc disser que eu desafino amor", a parte central, que uma
elaborao simples, com inclinaes aos tons vizinhos do III grau L maior e menor e
do V grau D maior de "O que voc no sabe nem sequer pressente", e a
reexposio "S no poder falar assim do meu amor".
Nesta estrutura convencional cabem, sem sobressaltos, as dissonncias que
enriquecem melodia e harmonia. A necessidade de cromatizar, alterar, "entortar" a
diatnica, mencionada na Cano do amanhecer, de Edu Lobo e Vinicius de
Moraes, se confirma aqui. A meno ao desafinado aparece logo no segundo
compasso com a quinta diminuta do acorde de dominante, que parecia um desafio
para a entoao de profissionais e amadores. A nota real da diatnica r aparece
pouco antes na melodia da primeira frase, o que refora a dissonncia quando ela
alterada para rb. Este recurso utilizado novamente na frase seguinte em que
aparece a nota mi, logo depois alterada para mib. Outra dissonncia forte aparece na
terceira frase, em que a inclinao para o homnimo do VI grau, R maior, faz surgir
um do# (harmonizado com D7M) articulado a um mib (D7(b9), produzindo um
intervalo de tera diminuta, bastante inusitado para cantores. Assim como o o
intervalo de stima maior descendente r o mib, que entoado pela palavra anti-
musical. Este intervalo no menos musical que nenhum outro, mas mais enftico e
expressivo que os intervalos perfeitos e consonantes da diatnica.
A harmonia tambm se lana em ousadias como o acorde de nona aumentada
(E7(#9) que apoia a palavra "argumentar" na terceira frase da repetio variada da
exposio. Mais ousada ainda a progresso que se segue na quarta frase,
harmonizando a nota mi, eixo da melodia: A7M de Ab7 (#5) de G7(13) de Gb7(b13).
Alm destas situaes o que se encontra a harmonizao habitualmente rica e mais
ou menos padronizada que o compositor usava nesta poca, como os diminutos de
passagem e os emprstimos modais do modo menor, harmonias j praticadas e
bastante testadas em outras canes. A nova maneira de cantar e de se acompanhar ao
violo no impediu que a estrutura do samba e a sua harmonia permanecessem
fortemente convencionais.
38
Desejo do mar , de Marcos Valle e Paulo Srgio Valle
Pode-se dizer que este samba lento resultado dos clichs estabelecidos para a
Bossa Nova. A melodia inicia com a stima do acorde de II grau (Am7) da tonalidade
Sol M. Os encadeamentos II-V se alternam: Am7-D7-Bm7-E7. A seguir aparece um
acorde de emprstimo modal Cm7(IVm) que forma com F7(bVII7) um relao da
mesma espcie que II-V. A harmonizao apenas quebra um pouco a sucesso de
clichs com a inclinao para bVI7M (Eb7M) na cadncia final. A tnica do tom
principal, Sol maior, s aparece no ltimo compasso, uma situao muito freqente
nas canes analisadas.
O tema da cano, declarado no prprio ttulo, uma confirmao de todos os
clichs de letras sobre amor e mar.
A forma bastante livre e a estrutura da frase quadrada convencional de quatro
compassos, na exposio da melodia, logo abandonada por um pequeno
desenvolvimento que conduz, em poucos compassos, ao final. No se v nenhuma
preocupao com a construo musical, uma vez que o motivo inicial cede ligar ao
desenvolvimento totalmente independente. O tipo de frase utilizada no
desenvolvimento bastante comum e pode ser encontrada em vrias canes.
O motivo inicial apresenta uma semelhana talvez excessiva com outro motivo
empregado na cano Poema azul de Srgio Ricardo.
Este seu olhar , de Tom Jobim
Esta cano de 1959 tem duas sees sem repeties nem desenvolvimento ou
parte central. A segunda seo de "Mas a iluso quando se desfaz" de apenas a
repetio variada da primeira de "Este seu olhar quando encontra o meu".
um samba lento que tem talvez como sua mais forte qualidade o fato de que
certas convenes harmnicas e rtmicas foram to exploradas na poca que so hoje
reconhecidas como tpicas da Bossa Nova.
A progresso harmnica inicial constitui um dos clichs mais testados e usados
nas canes populares em geral: F7M-F#-Gm7-G#-Am7-A7(b13)-B7M, que pode
ser analisado como I7M-#I-IIm7-#II-IIIm7-III7(b13)-IV7M. O samba Discusso,
de Tom Jobim e Newton Mendona, da mesma poca, tem uma progresso harmnica
muito semelhante de C7M-Eb-Dm7-D#-Em7-E7(b13)-F7M, que pode ser analisado
como I7M-bIII-IIm7-#II-IIIm7-III7(b13)-IV7M. Semelhanas tambm podem ser
39
observadas no samba S em teus braos, de Tom Jobim, faixa do LP O amor , o
sorriso e a flor.
Feitinha pro poeta , de Baden Powell e Lula Freire
Este samba, gravado em 1965 pelo Jongo Trio, tambm tpico da Bossa
Nova, a comear pela linguagem usada no ttulo, referente ao poeta Vinicius de
Moraes. A forma de diminutivo est presente num dos versos de Vinicius, "justinho
voc", para o samba Coisa mais linda, de parceria com Carlos Lyra. A linguagem
coloquial, no impostada, pode ser notada em muitas canes desta poca.
O que se pode estranhar nesta cano o fato de que a sua primeira frase no
tem carter expositivo, transmitindo talvez a sensao de que o incio foi omitido.
Muitas canes da mesma poca tem sido analisadas do ponto de vista do incio da
exposio. A ocorrncia de notas e harmonias de outros graus que no da tnica tem
a finalidade de evitar a obviedade da tnica inicial, o que no ocorre aqui. O que
falta primeira frase uma qualidade expositiva que se encontra nas demais
canes mencionadas. Ela no uma idia completa, inteira.
A estrutura musical se reduz a uma nica frase que se repete, em diferentes
graus da tonalidade, do princpio ao fim, sem nenhuma outra seo conclusiva ou
contratante.
No talvez um samba completo, e se assemelha mais a um esboo ou a um
ensaio de uma idia musical.
Fim de noite , de Chico Feitosa e Ronaldo Bscoli
Esta cano, de 1960, apesar de to simples quanto a anterior, fez sucesso e
marcou uma poca. O tema musical, exposto na primeira frase, uma idia completa
construda em duas partes, a primeira leva a uma harmonia instvel, do II grau, e a
segunda estabilidade da tnica. Ela tampouco apresenta uma segunda seo ou
episdio contrastante. A idia musical desenvolvida com recursos mnimos de
mudanas na direo meldica ascendente ou descendente.
Jairo Severiano coloca-a sob a classificao de samba, mas algumas de suas
gravaes a colocam muito mais como um samba-cano. O seu lirismo faz pensar
na Bossa Nova, embora sinta-se um grande contraste com os grandes clssicos que
se tornaram conhecidos na mesma poca , como Corcovado, Samba de uma nota
s e Meditao.
40
Foi a noite, de Tom Jobim e Newton Mendona
Um dos primeiros sambas-canes da dupla, foi gravado em 1956 para a Odeon
por Sylvinha Telles, em 78 rpm. Foi um sucesso marcante para o compositor
iniciante Tom Jobim. Segundo Jairo Severiano20, causou impacto na poca, tendo
sido recebido como uma maneira nova de compor.
Apesar de ser uma cano simples de apenas dois perodos, ela bem
construda musicalmente. A exposio iniciada em acorde instvel de dominante
(G7/4) uma ocorrncia que se repete como um padro para a Bossa Nova, sendo
que esta anterior a outras canes com este tipo de incio.
marcante o ponto culminante, no segundo perodo, harmonizado com
F#m7(b5)-Fm6, podendo ser analisado como IV#m7(b5)-IVm6, sendo o ponto de
maior tenso de toda a cano.
Garota de Ipanema , de Tom Jobim e Vinicius de Moraes
Um dos sambas mais famosos da dupla, foi apresentado pela primeira vez na
boate Au Bon Gourmet, em Copacabana, em 2 de agosto de 1962. O show
protagonizado por Tom, Vinicius e Joo Gilberto, foi a estria tambm de outras
composies da dupla, as ltimas, como S dano samba e Samba do avio.
O samba tornou-se um cone de um "estilo carioca" de compor e de viver, e tem
uma lista de gigantesca de artistas que o gravaram, brasileiros e de outras
nacionalidades. Talvez seja uma das canes brasileiras mais gravadas em todos os
tempos.
Os seus ingredientes so a melodia iniciada no segundo grau, bastante
econmica em intervalos, com um motivo que se repete com mudanas da harmonia.
Este estilo pode ser reconhecido em muitas outras canes, com as quais pode-se
criar uma srie, como Samba de uma nota s, que uma espcie de modelo,
Saudade fez um samba, Apelo, Brigas nunca mais, Discusso, Insensatez,
Falando de amor, Feio no bonito, Meditao, O barquinho, Voc e eu,
Bonita, Entrudo, Samba do carioca, Fotografia, guas de maro,
Corcovado, A r, Minha, S dano samba, O morro no tem vez,
20 Op.cit.p.322.I v.
41
Berimbau, Canto de Ossanha, Aula de matemtica, E nada mais, Lgia,
Tem d de mim, Samba do carioca, etc.
A sua forma a tradicional ternria: a primeira seo, que se repete com
variaes na terceira seo, com ponto culminante prximo concluso.
A seo central contm material novo com melodia mais movimentada
contrastando com a economia do motivo inicial. Esta forma comum a muitas
canes, com as quais pode-se constituir tambm uma srie. Soma-se melodia
mais movimentada a suavizao do ritmo do samba atravs das quilteras, o que
tambm caracterstico das sees centrais das peas. Esta peculiaridade foi descrita
no comentrio sobre o samba Amei tanto.
Lobo bobo , de Carlos Lyra e Ronaldo Bscoli
Samba com letra leve e bem-humorada, com estrutura simples de trs sees. A
primeira constituda por dois perodos, um suspensivo e outro conclusivo, onde se
localiza o ponto culminante. O perodo conclusivo repetido depois da segunda
seo, formando a terceira, sua repetio idntica. A segunda seo se destaca usando
material novo