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Cadernos de Semiótica Aplicada Vol. 2 n.2, dezembro de 2004 http://www.fclar.unesp.br/grupos/casa/CASA-home.html Análise Semiótica da Canção “Hino de Duran”, de Chico Buarque de Holanda Semiotic Analysis of the Song “Hino de Duran”, by Chico Buarque de Holanda Sylvio Frederico Dias Martins DL/FFLCH/USP Resumo: Resumo: Este trabalho faz um exame das estruturas tensivas, narrativas e discursivas inscritas na canção “Hino de Duran”, de Chico Buarque de Holanda, bem como do plano de expressão criado pela melodia, analisando ainda em que medida este repercute nas escolhas do plano do conteúdo da letra. Palavras-chave: Semiótica – Canção – Música Popular Brasileira – Chico Buarque de Holanda Abstract: Abstract: This piece examines the tensive narrative and discoursive structures of "Hino de Duran", a song composed by Chico Buarque de Holanda. The expression plane created by the tune is looked at, with an analysis of the extent which this plane interferes with contents choice. Key Words: Semiotics – Popular Song – Brazilian Pop Music – Chico Buarque de Holanda

Análise Semiótica Hino de Duran

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Hino de Duran

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  • Cadernos de Semitica AplicadaVol. 2 n.2, dezembro de 2004

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    Anlise Semitica da Cano Hino deDuran, de Chico Buarque de Holanda

    Semiotic Analysis of the Song Hino deDuran, by Chico Buarque de Holanda

    Sylvio Frederico Dias MartinsDL/FFLCH/USP

    Resumo: Resumo: Este trabalho faz um exame das estruturas tensivas, narrativas ediscursivas inscritas na cano Hino de Duran, de Chico Buarque de Holanda, bemcomo do plano de expresso criado pela melodia, analisando ainda em que medida esterepercute nas escolhas do plano do contedo da letra.Palavras-chave: Semitica Cano Msica Popular Brasileira Chico Buarque deHolanda

    Abstract: Abstract: This piece examines the tensive narrative and discoursive structuresof

    "Hino de Duran", a song composed by Chico Buarque de Holanda. Theexpression plane created by the tune is looked at, with an analysis ofthe extent which this plane interferes with contents choice.

    Key Words: Semiotics Popular Song Brazilian Pop Music Chico Buarque deHolanda

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    1. Introduo

    A cano utilizada para anlise neste trabalho o Hino de Duran, de autoria de ChicoBuarque de Holanda, faixa do lbum pera do Malandro, lanado em 1979. A versoconta ainda com a participao instrumental da banda A Cor do Som. As msicas dolbum fazem parte da pea homnima, estreada um ano antes, no Rio de Janeiro.O texto da pera do Malandro, sobre a malandragem no bairro da Lapa, no Rio deJaneiro da poca da Segunda Guerra Mundial, baseia-se na pera dos Trs Vintns, deBertold Brecht e Kurt Weill, de 1928, adaptada, por sua vez, da pera dos Mendigos, deJohn Gay, de 1728. A obra de Brecht/Weill foi inspirada no mundo dos gngsteres deChicago, de onde, talvez, vieram os nomes ingleses das muitas personagens no texto deChico Buarque, supostamente para ambientar melhor a influncia americana na capitalda Repblica nos anos 40.Apesar de a pera do Malandro estar inscrita no perodo da ditadura de Getlio Vargas, importante lembrar que ela foi escrita durante a ditadura militar iniciada em 1964,poca tambm de grande represso e de violao das liberdades individuais. ChicoBuarque soube enfrentar a censura, buscando mecanismos para ludibri-la, quer nacriao de um heternimo Julinho da Adelaide , quer no abuso de metforas e outrasestruturas retricas para expressar-se.

    No sero levados em considerao nesta anlise, entretanto, o contexto histrico ano ser aquele inscrito no prprio texto em anlise, quando possvel nem a questo damsica dentro do contexto maior da pera do Malandro, como, por exemplo, asisotopias apreensveis pelo comportamento e dilogos da personagem Duran.A anlise partir das estruturas narrativas e discursivas para ento tratar das estruturasfundamentais ou tensivas. Uma vez feito o exame do plano do contedo da letra dacano, a ele vir somar-se o do plano de expresso da melodia , e de que modo esteltimo corrobora e mesmo confirma a anlise do primeiro, a fim de verificar a msicacomo um todo de sentido.

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    2. Apresentao da Letra1

    HINO DE DURANChico Buarque

    Se tu falas muitas palavras sutisSe gostas de senhas, sussurros, ardisA lei tem ouvidos pra te delatarNas pedras do teu prprio lar.

    Se trazes no bolso a contravenoMuambas, baganas e nem um tostoA lei te vigia, bandido infelizCom seus olhos de raio-X.

    Se vives nas sombras, freqentas poresSe tramas assaltos ou revoluesA lei te procura amanh de manhCom seu faro de dobermann.

    E se definitivamente a sociedade s te tem desprezo e horrorE mesmo nas galeras s nocivo, s um estorvo, s um tumorA lei fecha o livro, te pregam na cruzDepois chamam os urubus.

    Se pensas que burlas as normas penaisInsuflas, agitas e gritas demaisA lei logo vai te abraar, infratorCom seus braos de estivador.

    Se pensas que pensas, ests redondamente enganado... (improviso)

    3. Estruturas Narrativas

    Para que a organizao narrativa de um texto possa ser apreendida, necessriodescrever o espetculo, determinar seus participantes e o papel que representam(Barros, 1990: 16). A narrativa composta por uma estrutura cannica (sintaxe) quedever ser preenchida semanticamente.A sintaxe narrativa prope duas concepes: a dos actantes passando portransformaes que alteram seus estados e a da instituio e quebra de contrato entre umdestinador e um destinatrio.

    1 - Termo usado aqui na mesma concepo de Tatit (1999: 13), como o componente lingstico

    da cano popular. Do componente lingstico, optou-se pela anlise do plano do contedo, apenas. Oplano de expresso estudado ser o da melodia.

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    Nos enunciados elementares da narrativa h sempre uma relao entre um sujeito e umobjeto. nesses enunciados que os investimentos fazem do objeto um objeto-valor.Na cano de Chico Buarque, h primeiramente um enunciado de estado de conjunoentre um sujeito tu e o objeto libertao, valor ltimo da contraveno, cujo semavem impresso em palavras sutis, sussurros, ardis, baganas, freqentas pores,tramas revolues, insuflas, agitas, etc., num tempo presente gnmico; tal

    enunciado hipottico, j que nele se emprega a conjuno se, a qual indica umacondio necessria para que seja realizado ou no o programa narrativo, e que se repeteao longo de todas as estrofes.Caso as condies acima sejam satisfeitas, haver um novo enunciado de estado, destavez de disjuno, entre o tu e seu objeto-valor. Trata-se, na verdade, de ser aconjuno (ou a mera tentativa de conjuno) a condio necessria para a disjunosubseqente. Ento, plausvel e lcito pensar que o estado inicial (recuperado porcatlise) tambm de disjuno, a qual vista como a fora-motriz que faz o tuquerer entrar em conjuno com sua libertao, atravs das contravenes que pratica.Entretanto, como esses dados j fazem parte do campo da manipulao, vamos nos aterainda aos enunciados de estado e de fazer. Os de estado ficam assim resumidos:

    Estado disjuntivo: S (tu) Ov (libertao) [recuperado por catlise]Estado conjuntivo: S (tu) Ov (libertao) [hiptese enunciada]Estado disjuntivo: S (tu) Ov (libertao) [hipottico, como conseqncia possvel]Outro tipo de relao estabelecido por transformaes que regem os enunciados deestado, marcando a passagem de uma juno outra e constituindo os enunciados defazer ou programas narrativos (PNs).No PN1 da cano, o sistema poltico cerceia as liberdades individuais e coletivas a fimde manter uma suposta ordem das coisas. Na viso do prprio sistema, o caos, adesordem, podem vir a ser institudos (ou re-institudos) por indivduoscontraventores, e o modo de reorganizar o mundo a partir da pretensa anarquia,livrando-se dela, restringir ao mximo a liberdade, mesmo que para isso sejanecessrio destruir determinados indivduos (como o tu) ou eliminar os grupos aosquais pertenam, como se ver no PN3.No PN2, que pode ou no ocorrer, o prprio sujeito tu, numa aquisio porapropriao, tenta conquistar ou mesmo simplesmente obter sua libertao.

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    Entretanto, para atingir seu objetivo, necessrio lutar contra o sistema vigente, alterara ordem estabelecida e, enfim, desobedecer.O PN3 est condicionado realizao do PN anterior. Para voltar ordem inicialapregoada pelo sistema, necessria a eliminao dos obstculos que representamqualquer perigo manuteno de seu status, nos quais se inclui o sujeito tu.Ainda caberia um PN0, anterior aos trs, em que a sociedade estaria desfrutando daliberdade plena, num estado de relaxamento.Uma possvel leitura da letra da msica encar-la como tendo o predomnio damanipulao, a qual j pr-estipula uma sano pragmtica. Assim, a narrativa possuiriaduas seqncias narrativas (SNs) encaixadas, delas destacando-se a produzida pelodestinador lei (em SN2), subordinada SN1, conforme mostra o esquema a seguir:

    SN1

    Manipulao Competncia Performance Sano

    SN2 Manipulao Competncia Performance Sano

    Centro da Narrativa

    (Figura 1 Seqncias Narrativas)

    O papel actancial de destinador-manipulador da SN1 no fica muito claro, podendo serpreenchido pela sociedade em busca de valores libertadores ou pelo prprio actante tuatrado pelo vislumbre de sua libertao individual ou de seu grupo, que, nesse caso,ocuparia dois papis simultaneamente, o segundo deles como o sujeito do fazer.Tambm no se esclarece, at aqui, qual foi o tipo de manipulao empregada.Sabe-se que o sujeito tu adquiriu a competncia necessria para executar suaperformance, de clara desobedincia; caso contrrio, no seria necessria a SN2, quecontm a manipulao propriamente expressa na letra da msica e que mais interessaanalisar, pois o centro de toda a narrativa.

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    na SN2, portanto, que o destinador-manipulador intimida o sujeito tu, para que esteno faa determinadas coisas, no tenha certas atitudes, no se comporte dessa oudaquela maneira; de outro modo, ser sancionado negativamente pela lei, sinnimo daordem imposta pelo sistema, que antecipadamente j interpreta tal performance emnome da ideologia dominante, julga as aes do sujeito e os valores a elas relacionadose o penaliza pragmaticamente com delao, priso e morte.Por outro lado, possvel ler a narrativa de outro modo, mais simples, que envolveapenas uma nica SN. A casa do destinador-manipulador continua preenchida, como emSN1, ou pelo sujeito tu, que aspira sua libertao individual ou representa um gruposocial com os mesmos desejos, ou pela sociedade. Tal sujeito adquire competncia, mas,ao buscar seu objeto, se defronta com o anti-sujeito lei (ou at mesmo umantidestinador), por seu turno representante de outro grupo social, o dominante, quetenta impedi-lo de realizar sua performance por meio de ameaas. Desse modo, a SN2da primeira leitura nada mais que o percurso desse anti-sujeito (ou antidestinador). pertinente crer que, em qualquer caso, o sujeito tu vinha praticando as aescontraventoras que a lei tenta impedir, j que, do contrrio, as ameaas, amanipulao por intimidao, o constrangimento imposto, no fariam sentido.Se o que ocorre , de fato, a manipulao de um destinador em SN2, como na primeiraleitura, ou a interferncia de um anti-sujeito (ou de um antidestinador) de uma SN nica,como na segunda leitura, perde relevncia; entretanto, a partir desse ponto que aanlise passar a estar centrada. Alm do que, em ambos os casos, as penalidades seroexercidas pelo mesmo actante lei (ou ordem ou sistema): ou se constituir dojulgamento do destinador sobre o destinatrio ou da prpria ao do anti-sujeito/antidestinador contra o sujeito.O sujeito tu possui papel actancial do sujeito do querer-fazer e do saber-fazer sujeitocompetente , mas tambm do no-poder-fazer, diante do crer-ser, do poder-ser e dopoder-fazer do anti-sujeito, o que o frustra.O anti-sujeito lei possui o do dever, querer, saber e poder-fazer, sendo, portanto, umsujeito realizado, porm tambm ameaado pela fora antagnica, a qual tenta bloquearou anular. Visto como um manipulador, esse actante tenta levar o destinatrio tu acrer nas penalidades preditas, caso no se afaste de seu comportamento infrator.No embate entre as duas posies contrrias, o sujeito tu precisa lutar contra a ordemestabelecida, momento em que ele se v prestes a sofrer uma punio, da qual foiprevenido. Mas s mesmo a sua possvel performance garantir a mudana da ordem

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    para que essa punio deixe de existir (nos termos como apresentada), instituindoassim uma nova ordem, a da libertao. Nessa utopia, o nico caminho mesmo o dacontraveno e do enfrentamento, apesar disso ser apenas uma indicao do que podevir a acontecer.

    Num exame das paixes simples a partir do estado inicial da espera, definida pelacombinao do querer-ser com o crer-ser (Barros, 2001: 62), encontra-se o sujeito tuinsatisfeito com o estado das coisas (querer-ser + no-crer-ser + saber-no-poder-ser),passando possivelmente a inseguro (querer-ser + crer-no-ser + saber-poder-no-ser) nodiscorrer da cano (E mesmo nas galeras s nocivo, s um estorvo, s um tumor). Asegurana (querer-ser + no-crer-no-ser + saber-no-poder-no-ser) e a confiana(querer-ser + crer-ser + saber-poder-ser) so paixes apenas pressupostas pelo percurso,marcadas pela anteposio da conjuno se ao verbo (Se tu falas; se trazes; se vives) epelo enfrentamento potencial.

    Diferentes so a quinta estrofe (Se pensas que burlas as normas...) e o comeo da sexta(Se pensas que pensas... [improviso]), em que o sujeito visto como incompetente (no-saber-fazer), ainda que como parte de uma provocao.Contrariamente, o anti-sujeito passa a impresso de confiante e seguro de si, e suainsegurana e insatisfao so pressupostas pela determinao ou no do sujeito tu emseguir seu plano adiante.Caminhos produtivos nunca partem do relaxamento, pois se assim fosse tenderiam a setornar repetitivos, pouco criativos e sem motivao; estar insatisfeito e passar pela

    inquietao e insegurana procura de alvio o caminho que leva ao prazer, ao deleite(Id.: 63), criao. Mas tambm no por muito tempo.

    4. Estruturas discursivas

    No nvel discursivo, as estruturas narrativas so recobertas pelo sujeito da enunciao,que as concretiza com escolhas de pessoa, tempo, espao e de figuras, criando odiscurso.A sintaxe discursiva estuda as relaes do enunciador com o discurso enunciado e doenunciador com o enunciatrio; por causa desta ltima, tambm chamada de campo damanipulao consciente, uma vez que o enunciador se utiliza de estratgias que criamefeitos de verdade ou realidade para convencer o enunciatrio (Fiorin, 1988: 18).

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    A enunciao definida como ato de produzir enunciados; como esse ato nico eirreprodutvel, deve-se recuperar suas marcas no produto da enunciao, o enunciado.As marcas encontradas no enunciado revelam os actantes, o espao e o tempo daenunciao, mas que no so a enunciao propriamente dita; antes, caracterizam aenunciao enunciada. Se essas marcas no aparecerem, temos o enunciado enunciado.O Hino de Duran caracteriza-se pela forte presena de uma enunciao enunciada:apesar de no haver as marcas da pessoa eu, ela est presente, pois se algum diz umtu, esse algum s pode ser um eu, uma primeira pessoa que se constitui a partir dasegunda. Por meio da debreagem actancial, o eu constri o mundo ao seu redor e a simesmo. No caso, um mundo de bandidos, de lei e seus agentes porta-vozes.A debreagem tambm temporal. Entretanto, o verbo no presente no se refere apenasao momento do agora, mas ainda aos que j passaram e aos que ainda vo acontecer.Trata-se de um presente onitemporal ou gnmico, em que o momento de referncia e odo acontecimento so ilimitados (Id.: 150). De fato, o presente utilizado paraenunciar verdades eternas ou que se pretendem como tais (Id.: 151), como o caso dalei que se impe ou daqueles que se anunciam como seu representante, enunciando-a.Mesmo assim, preciso diferenciar dois momentos distintos no Hino de Duran.Apesar de o tempo verbal presente estar estendido para frente e para trs, antes e depoisdo momento do agora, possvel depreender um momento da ao do tu (omomento em que tu falas, trazes, vives, tramas, etc.), nas oraes condicionais, e omomento da ao da lei, como imediatamente posterior quele, tanto de modoexplcito (A lei te procura amanh de manh; A lei logo vai te abraar) comopressuposto por encadeamento lgico (Se trazes no bolso (...) a lei te vigia).A separao entre esses dois momentos marca uma mudana nas forias, de umacontinuao da parada para uma parada da parada2 .Existe, na cano, uma embreagem actancial, momento em que ocorre a neutralizaoentre o tu e o vs. Embora se dirija a cada um em particular, a enunciao enunciadaimplica a todos (Fiorin, 1999: 97) na mesma situao.O principal contedo do conjunto enunciativo a tentativa de dissuaso do tu inscritono texto em relao sua atuao transgressiva ao sistema sociopoltico.

    2 - Uma explicao pormenorizada dessa passagem ser tratada no prximo tpico.

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    Na formulao dos valores e sua organizao dentro de um percurso, surge o tema doengajamento poltico, convertido pelo percurso narrativo do sujeito que transforma aalienao ou um estado inerte em contestao de um sistema opressor.A letra trata tambm dos temas do preconceito, destacado pela marginalizao doengajado poltico (A sociedade s te tem desprezo e horror); da corrupo, uma vez quea aplicao da lei no escrupulosamente imparcial quando h dinheiro envolvido(Muambas, baganas, e nem um tosto); do crime, que coloca o contraventor comum e omilitante poltico no mesmo patamar (Se tramas assaltos ou revolues); da religio, nacriao de novos mitos a partir dos existentes (Te pregam na cruz).Recobrindo os temas com traos sensoriais, os investimentos figurativos no objeto-valorda libertao de um regime opressivo passam a ser aes de falar palavras sutis, gostarde senhas, trazer no bolso a contraveno, viver nas sombras, freqentar pores, burlarnormas, etc., no percurso do sujeito, e de delatar, vigiar, procurar, abraar, pregar nacruz, no do anti-sujeito, que tem como objeto-valor a manuteno da ordemestabelecida. (Lembremo-nos de que esse papel pode ainda caber ao destinador-julgadorno nvel narrativo, sob outra perspectiva.) O sujeito e anti-sujeito so representados,respectivamente, pelo ator bandido infeliz e por outro com seus olhos de raio-X, faro dedobermann e braos de estivador. O tempo da ao do anti-sujeito vai do concomitanteao amanh de manh e ao logo. O espao o da sombra, dos pores ou do prprio lar,no caso do ator tu; no do eu, so todos os lugares, visto como algo/algum ubquo:a prpria lei. Com essa recorrncia s imagens do mundo, o enunciatrio as reconhece etende a crer na verdade do discurso. Salientamos mais uma vez que a anlise acima sevale da ao hipottica do tu e da conseqente aplicao da lei.Formada pela redundncia de traos figurativos, pela associao de figurasaparentadas (Barros, 1990: 74), a principal isotopia figurativa construda no Hino deDuran a da guerra. Guerra contra a ditadura, para um, e contra qualquer atorevolucionrio, para outro. Nesta ltima, particularmente, a isotopia criada pelopercurso figurativo de toda a letra apresenta uma reiterao completa de traossensoriais ultra-apurados: a audio (tem ouvidos), a viso (seus olhos), o olfato (seufaro), paladar (dos urubus) e o tato (seus braos), apresentados um a cada estrofe, naconformao de uma verdadeira monstruosidade blica, que mistura low-tech (raio-X)com a antropomorfizao do inumano (lei) e a subseqente zoomorfizao dessehumano (que traz em urubu e dobermann suas principais figuras), qual se somaa fora bruta do estivador.

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    5. Estrutura tensiva

    Como h no Hino de Duran dois percursos narrativos antagnicos o do sujeito tuem busca de sua libertao e o do anti-sujeito lei que o tenta impedir, para que sejamantido o estado das coisas e apesar de o hino ser de Duran, o ponto de vista que setem aqui adotado o do tu: a anlise est mais voltada s suas necessidades, vontades,fazeres e possveis conseqncias.

    Assim, no exame dos valores fricos, tambm haver sempre uma oposio entre osrelacionados a cada um deles, do mesmo modo que, numa partida de futebol entre umtime A e um time B, o que normalmente euforia para A (um gol feito) disforia paraB (um gol tomado), e vice-versa, o que no altera o sentido geral traduzido pelas foriasnem prejudica os valores inscritos na cano.A escolha feita pelo enunciador em empregar o presente onitemporal mostra um sujeitotensivo se valendo da segmentao, responsvel pela durao. Os verbos falas,gostas, trazes, vives, tramas, pensas, etc., presentes nos dois primeiros versosdas estrofes 1, 2, 3 e 5, marcam uma continuidade no plano profundo e recobrem oprograma narrativo do sujeito tu no nvel narrativo. Uma exceo feita na quartaestrofe, que no mostra um fazer, mas sim um ser do sujeito, o qual tambm traz amarca da continuidade (e mesmo nas galeras s nocivo, s um estorvo, s um tumor).J os verbos nos dois segundos versos de todas as estrofes (relacionados lei) trazemas demarcaes, responsveis pelas extremidades no caso, finais. Se no as trazempropriamente, pode-se dizer que os advrbios que os modificam (amanh de manh,logo) indicam tal tendncia, j que os versos denotam, no plano narrativo, as aes queo mesmo sujeito possivelmente sofrer (delao, perseguio, priso e morte).Na letra de Chico Buarque, as continuidades mostram um estado de disforia (relativo aotu), o qual ser seguido por um outro de no-disforia, para o tu. O enunciadorassume, portanto, a expanso (na continuao da parada), ligada ao fazer do sujeito. Aceleridade, por outro lado, importante para se atingir rapidamente o estado seguinte,que demarca o ponto de chegada a ao sofrida pelo sujeito (parada da parada). Dessemodo, garante-se a aplicao imediata do castigo, o que corresponde, na melodia, a umefeito de rito instantneo.A mesma passagem de um estado disfrico a um no-disfrico se repete a cada estrofe.No entanto, apesar de no haver muita gradao entre um estado e outro muito pelo

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    contrrio, ela se d como um salto , as diversas aes do anti-sujeito da narrativa vo,no desenrolar da letra, criando uma gradao, que aumenta o poder de argumentao dodestinador. Essa gradao, correspondente interposio do anti-sujeito (ou ameaas dodestinador), so a delao, a vigia, a procura e a morte, respectivamente nas estrofesprimeira quarta. Na quinta, fala-se de um aprisionamento, havendo, portanto, umrelaxamento dessa gradao.Um quadro geral tensivo da cano de Chico Buarque o seguinte:

    (reteno) (relaxamento) [marginalizao Continuao da parada Continuao da continuao [liberdade] e/ou revoluo]

    | Parada da continuao Parada da parada

    [tolhimento] (conteno) (distenso) [delao, perseguio,

    priso e morte]

    (Figura 2 Quadro tensivo)

    As posies ocupadas pela continuao da continuao e pela parada da continuao,respectivamente euforia e no-euforia, no esto presentes na letra, mas apenas

    pressupostas. Algum que j se encontra num estado de reteno porque passou poruma conteno e, anteriormente, por um relaxamento.

    A msica j comea por um momento de reteno, quando o sujeito narrativo tu estpossivelmente em plena ao, quer seja revolucionria, quer seja de delitos. A etapaseguinte a distenso, recoberta na narrativa pelo sujeito numa posio passiva: quandoele delatado, perseguido, preso e morto, se que tudo isso realmente acontece. Amorte, vista como momento final de uma tenso mxima, a nica passagem possvelpara uma retomada do incio do ciclo: a liberdade. Isso na opinio do enunciador.Digresses parte, pode ser que no nvel narrativo, ele supere o anti-sujeito e atinjaaquele estado de plenitude por meio de sua prpria luta.As funes emissivas, que garantem a identidade entre sujeito e objeto e entredestinador e destinatrio, instalam um continuum nas relaes objetais e subjetais, e,contrariamente, as funes remissivas colocam a descontinuidade frica nessas relaes(Tatit, 1999: 139).

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    A letra de Chico Buarque traz o confronto entre os valores emissivos e remissivos, namedida em que as aes do sujeito devem desencadear re-aes no anti-sujeito. Assim,os valores remissivos nada mais so que resposta aos emissivos. Enquanto estes tmdurao, aqueles, continuidade.Todas as escolhas missivas repercutem no plano de expresso assumido pela melodia,como se ver a seguir.

    6. Do plano de expresso

    A primeira coisa que chama a ateno na melodia que a semelhana das estrofes 1, 2,3 e 5 instaura a tematizao, de valor emissivo. A tematizao extensa, j que abarcacomplemente cada segmento.Outro fato a presente so os saltos, cujo valor remissivo. O salto descendente de 12semitons serve como um preparo para o salto ascendente principal em 16 semitons, oqual, assim posto, se torna ainda mais extremado.

    lar.

    tar

    te la

    pra de vi dos

    lei pe teu tem dras pr

    A ou Nas do prio

    (Figura 3 Salto)

    Tem-se, de imediato, a interao de valores emissivos e remissivos, ainda que osltimos estejam dentro dos anteriores, quer dizer, que os saltos pertenam tematizaoexistente entre as estrofes.

    Enquanto a emisso est mais ligada ao fazer do sujeito narrativo, o valor remissivo dossaltos prende-se ao fazer do anti-sujeito. Como a voz inscrita na cano a de um

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    enunciador, os saltos garantem a acelerao necessria para este atingir a emoo doenunciatrio, que tambm passa a crer na dissuaso, no confronto, na ameaa.Entretanto, a anlise da melodia tambm mostra que as estrofes 1 e 2 so idnticas,assim como a 3 e a 5. Entre esses dois grupos, ocorrem duas pequenas variaes, umano segundo e outra no terceiro verso de cada uma das estrofes dos dois grupos. Nogrupo de estrofes 1 e 2, o segundo verso apresenta uma nota trs semitons acimadaquela encontrada na mesma posio no grupo de estrofes 3 e 5. No terceiro verso, oprimeiro grupo tem uma nota quatro semitons acima da correspondente no segundogrupo.

    Assim como h uma identidade entre o sujeito e o objeto na narrativa, um temameldico identifica-se com outro tema meldico, numa espcie de fuso. No processode tematizao, ocorre, pois, a identidade entre um tema englobante e outro englobado.Desdobramentos so pequenas variaes dentro de um tema que se repete e geralmenteindicam uma alteridade. Trata-se, portanto, de um indcio de que a identidade nanarrativa entre o sujeito e objeto j est em descompasso, causado pela ao do anti-sujeito, caso ocorra, j que toda ao hipottica, ou mesmo pela manipulao dodestinador. Em outras palavras, a alteridade deixa subjacente a existncia de umdistanciamento sujeito/objeto, o que pode servir de estratgia de manipulao doenunciador no nvel discursivo. A compatibilidade entre a letra e a melodia quasesimultnea.

    Diferente a quarta estrofe, que nos dois primeiros versos contm a fuga completa daquadratura mtrica do resto da cano3, aproximando-os mais da entonao da fala quede algo organizado melodicamente. Essa figurativizao enunciativa, que reaproxima acano da fala, explode as leis emissivas e remissivas, neutralizando de certa forma aconcentrao e a extenso. Nos dois versos citados, apenas trs notas musicais entramem jogo (mesmo assim, uma delas ocorre apenas uma nica vez), ficando, assim, amelodia a servio da letra, como ocorre na fala. O efeito criado por essa busca decontornos inditos, de funo intensa, o da iluso enunciativa e est ligado prpriasituao.

    Ainda com relao quarta estrofe, a previsibilidade criada pelos saltos no final detodas as demais estrofes destruda.

    3 - O mesmo ocorre no esboo de uma sexta estrofe, que tanto no encarte do disco como no

    song book so chamados de improviso.

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    Posio do salto previsto

    cruz

    pre na

    te gam

    pois os cha u

    De mam ru- bus.

    (Figura 4)

    A expectativa de um salto que no ocorre, contrariamente ao que ocorre com os saltosem si que atingem de forma apressada a emoo , cria o efeito contrrio:desacelerado, de espera, correspondente no plano do contedo prpria morte.

    7. Consideraes finais

    A anlise do Hino de Duran aqui elaborada, longe de querer esgotar as possibilidadesde leitura da cano, pretende ser um passo apenas na aplicao da semitica tensiva aum corpus musical, e dever servir de base para a investigao de outros materiaiscujos planos de expresso assumam relevncia. importante frisar que a anlise no levou em conta o contexto histrico a que a perase refere (comeo dos anos 40) nem aquele em que foi produzida (final dos 70); topouco se interessou pela relao entre esses dois momentos histricos. Um exameacurado da intertextualidade e da interdiscursividade poder, em outra circunstncia, serlevado em considerao, a partir das pistas inscritas na letra desta e de outras canes dapera.

    A anlise partiu das estruturas relativas ao plano do contedo, qual se juntou a doplano de expresso manifestado pela melodia. O exame deste ltimo veio confirmar oempreendido ao longo da organizao narrativa, discursiva e tensiva, firmando a canocomo um todo de sentido, alm de abrir novos horizontes para a compreenso dasmanifestaes de um modo geral.

  • CASA Vol. 2.n.2, dezembro de 2004

    http://www.fclar.unesp.br/grupos/casa/CASA-home.html

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