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André Bazin e a política das imagens no pós-guerra: Malraux, Clément e Rossellini VICTOR SANTOS VIGNERON DE LA JOUSSELANDIÈRE * A experiência política da ocupação alemã e do regime de Vichy não chegou a constituir um gênero, mas foi uma tópica constantemente retomada pelo cinema francês. De O silêncio do mar (1949, dir. Jean-Pierre Melville) ou A travessia de Paris (1956, dir. Claude Autant- Lara) a O último metrô (1980, dir. François Truffaut) e Adeus, meninos (1987, dir. Louis Malle), o tema seria retomado pelas duas gerações de cineastas ativas nas décadas seguintes à Liberação. Num nível mais direto de implicação política, a polarização entre colaboracionismo e resistência foi decisiva, ao menos no curto prazo, para definir certas trajetórias no interior do campo da produção cultural. Henri-Georges Clouzot, por exemplo, foi proibido de trabalhar com cinema até 1947 por conta do caráter suspeito de seu filme Sombra do pavor (1943), onde a delação joga um papel central. O fuzilamento de Robert Brasillach, coautor de uma influente História do cinema francês (1935, reeditada em 1943), indica que o campo da crítica também não passaria alheio a esse momento. Mas seria possível encontrar um nexo criativo, análogo ao que se estabeleceu no cinema, entre a experiência da Ocupação e a produção crítica? Num texto publicado em 1975, François Truffaut parece acenar com essa possibilidade. Já constituído como diretor, ele evocava a Paris ocupada nos seguintes termos: Penetrando em geral de maneira fraudulenta nas salas de cinema, normalmente com a cumplicidade de um colega ele entrava pagando por seu lugar e me abria por dentro a porta de emergência eu era levado a passar o tempo do entreato fechado nos banheiros, esperando que as luzes da sala fossem apagadas para escolher um lugar no escuro. Eu era obrigado às vezes a esperar o fim da projeção das “Atualidades” pois, para evitar que elas fossem vaiadas e escarnecidas, elas não eram mostradas na escuridão. Desses longos períodos forçados no WC, eu guardei na memória uma pichação patriótica que, apesar de sua relativa brincadeira, permaneceu para mim inesquecível: “Hitler, o valentão do universo/Terá os pés gelados nesse inverno.” Isso se passava algumas semanas antes da batalha de Stalingrado. (TRUFFAUT, 1975: 21. Tradução minha.) * Mestre e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

André Bazin e a política das imagens no pós-guerra ......4 a um prolongado anonimato, até seu lançamento em 19453.Após escrever uma resenha para o Parisien libéré, Bazin publicaria

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André Bazin e a política das imagens no pós-guerra: Malraux, Clément e Rossellini

VICTOR SANTOS VIGNERON DE LA JOUSSELANDIÈRE*

A experiência política da ocupação alemã e do regime de Vichy não chegou a constituir

um gênero, mas foi uma tópica constantemente retomada pelo cinema francês. De O silêncio

do mar (1949, dir. Jean-Pierre Melville) ou A travessia de Paris (1956, dir. Claude Autant-

Lara) a O último metrô (1980, dir. François Truffaut) e Adeus, meninos (1987, dir. Louis Malle),

o tema seria retomado pelas duas gerações de cineastas ativas nas décadas seguintes à

Liberação. Num nível mais direto de implicação política, a polarização entre colaboracionismo

e resistência foi decisiva, ao menos no curto prazo, para definir certas trajetórias no interior do

campo da produção cultural. Henri-Georges Clouzot, por exemplo, foi proibido de trabalhar

com cinema até 1947 por conta do caráter suspeito de seu filme Sombra do pavor (1943), onde

a delação joga um papel central. O fuzilamento de Robert Brasillach, coautor de uma influente

História do cinema francês (1935, reeditada em 1943), indica que o campo da crítica também

não passaria alheio a esse momento. Mas seria possível encontrar um nexo criativo, análogo ao

que se estabeleceu no cinema, entre a experiência da Ocupação e a produção crítica?

Num texto publicado em 1975, François Truffaut parece acenar com essa possibilidade.

Já constituído como diretor, ele evocava a Paris ocupada nos seguintes termos:

Penetrando em geral de maneira fraudulenta nas salas de cinema, normalmente com

a cumplicidade de um colega – ele entrava pagando por seu lugar e me abria por

dentro a porta de emergência – eu era levado a passar o tempo do entreato fechado

nos banheiros, esperando que as luzes da sala fossem apagadas para escolher um

lugar no escuro. Eu era obrigado às vezes a esperar o fim da projeção das

“Atualidades” pois, para evitar que elas fossem vaiadas e escarnecidas, elas não

eram mostradas na escuridão. Desses longos períodos forçados no WC, eu guardei

na memória uma pichação patriótica que, apesar de sua relativa brincadeira,

permaneceu para mim inesquecível: “Hitler, o valentão do universo/Terá os pés

gelados nesse inverno.” Isso se passava algumas semanas antes da batalha de

Stalingrado. (TRUFFAUT, 1975: 21. Tradução minha.)

* Mestre e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo e bolsista

da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

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Poucas linhas depois, o cineasta faz referência a Lucien Rebatet, crítico que desempenhara na

França um papel de destaque na perseguição aos cineastas judeus1. Assim, a Ocupação teria

deixado marcas no cinema e na crítica, ainda que sob um signo negativo: ao banimento dos

judeus e à perseguição aos membros da Resistência deve-se acrescentar a emigração dos

grandes diretores dos anos 1930 (Jean Renoir, René Clair etc.), a proibição dos filmes

estadunidenses, o controle das diversas formas de diversão (os noticiários alemães apresentados

com as luzes acesas) e mesmo o fornecimento irregular de energia elétrica. Tal conjuntura teria

possibilitado uma renovação dos quadros do cinema francês, emblematizada por um filme como

Os anjos do pecado (1943, dir. Robert Bresson). No entanto, o próprio Truffaut restringe a

marca da ocupação nos filmes da época a esse aspecto negativo. Nem pétainista, nem portador

de mensagens subversivas codificadas, o cinema francês seria então marcado sobretudo pela

evasão, pelo recurso a gêneros como os filmes históricos ou filmes fantásticos, cujo modelo

seria Les visiteurs du soir (1942, dir. Marcel Carné). Se há um mérito político entre os diretores

franceses, também este se manifestaria de uma forma negativa: nenhum produtor local se

envolveu na produção de qualquer filme de propaganda em favor do inimigo (TRUFFAUT,

1975: 28-29).

Essas considerações encontram-se no prefácio de Le cinéma français de l’Occupation

et de la Résistance, coletânea de artigos publicados por André Bazin entre 1943 e 1946. A

respeito desse material, Truffaut nota que ele proporciona um quadro incompleto da Ocupação,

seja pelo início tardio da produção do autor, seja pela periodicidade caótica dos órgãos de

imprensa da época (TRUFFAUT, 1975: 11). Sequer a produção fílmica seria devidamente

contemplada pelo crítico, sendo necessário o emprego de uma obra de Roger Régent, Cinéma

de France (1948), para elaborar as notas explicativas que acompanham os textos de Bazin. No

entanto, e esta é a hipótese básica do presente trabalho, é possível argumentar que a implicação

subjetiva do crítico com a experiência da ocupação pode ser considerada constitutiva de sua

produção escrita. Nesse momento, vendo interrompida sua carreira no magistério, Bazin

integrou-se à Maison des Lettres, centro de estudos dirigido por Pierre-Aimée Touchard e que

1 Truffaut nota que o “rebatismo” seria a seu turno incorporado sob a “depuração do cinema francês” que se seguiu

à Liberação (TRUFFAUT, 1975: 24-25). Esse comentário ecoa ainda a polêmica levantada nos anos 1950, quando

o então jovem crítico de cinema aproximou-se de figuras associadas ao colaboracionismo, como o próprio Rebatet

(BAECQUE, 2010: 224-226).

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tinha por objetivo constituir um espaço de resistência intelectual ao regime de Vichy e à

Ocupação. Após manifestar interesse pela literatura moderna, o crítico iniciou sua aproximação

com o cinema ao criar um cineclube clandestino junto com Jean-Pierre Chartier e ao publicar

seus primeiros artigos em Information universitaire, ainda na Paris ocupada (ANDREW, 2013:

31-51). Paralelamente a essas definições quanto ao campo a que se dedicaria até o fim de sua

vida, o momento ainda foi marcado pelo primeiro contato com a obra de Jean-Paul Sartre e pelo

afastamento em relação à Juventude Estudantil Católica. O problema da intervenção do sujeito

na sociedade, frente ao espírito de acomodação que tomou grande parte da intelectualidade sob

a Ocupação, encontra-se na raiz dessas transformações individuais, que desembocariam numa

atividade pedagógica desenvolvida por meio de uma intensa atividade cineclubista e das

pequenas notas publicadas no Parisien liberé a partir de 1944. Diga-se de passagem, não deixa

de ser sintomático que em seu prefácio Truffaut opte por marcar sua proximidade com Bazin

não pela referência à relação quase filial que teria início anos depois, mas pela atmosfera

comum à criança e ao crítico, atmosfera em que emergiu uma nova forma de se relacionar com

as imagens. A forma como Bazin aborda três filmes em que são narrados acontecimentos

políticos de sua época – a Guerra Civil espanhola, a Resistência francesa e a Liberação italiana

– servirá de guia para refletir sobre essa transformação.

Esperança

André Malraux foi um dos intelectuais franceses mais identificados com a Resistência.

Personalidade constituída entre aventureirismo, engajamento e alguma dose de ficção, ficou

bastante conhecido no universo literário local com a publicação de A condição humana (1933),

em que narra o massacre dos comunistas na China em 1927, a mando de Chiang Kai-shek2.

Entre 1936 e 1937, Malraux se engajou na defesa da República espanhola, experiência que deu

origem à publicação de A esperança, em 1937. No ano seguinte ele iniciaria a adaptação

cinematográfica de seu romance, já sob o avanço da ofensiva franquista. As condições precárias

em que foram feitas as filmagens, assim como o triunfo fascista na Espanha e a ocupação alemã

na França submeteram o filme, montado com uma parcela do material inicialmente projetado,

2 O livro foi precedido por Os conquistadores (1928) e O caminho real (1930), cujo tema é o combate à presença

europeia na China e no Sudeste Asiático.

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a um prolongado anonimato, até seu lançamento em 19453. Após escrever uma resenha para o

Parisien libéré, Bazin publicaria um artigo mais detalhado a respeito do filme, “A propos de

l’Espoir ou du style au cinéma” (1945, Poésie)4.

É sabido o papel desempenhado pelos escritos de Malraux nos anos de formação de

Bazin. Junto com Sartre e Pierre Teilhard de Chardin, ele constituiu uma das principais

referências do autor nos anos de formação de sua crítica cinematográfica (ANDREW, 2013:

53-71). Se no Esboço de uma psicologia do cinema (1946) Malraux percorre a história da arte

no Ocidente para nela inserir o cinema como seu mais recente desdobramento, Bazin faz um

movimento análogo ao ver na busca pela semelhança uma tendência iniciada no Renascimento

que incidiria no desenvolvimento do registro fotográfico e cinematográfico. No entanto, o

exame proposto por Bazin a respeito das relações entre o cinema e as artes plásticas permite

identificar uma grande distância quanto ao papel atribuído ao cinema pelos dois intelectuais

(ANDREW, 2011; UNGARO, 2000: 59-82). A leitura do comentário de Bazin sobre Esperança

permite esclarecer algumas dessas diferentes concepções quanto ao estatuto da imagem

cinematográfica.

A tensão entre A esperança e Esperança, entre romance e filme, recobre uma discussão

acerca das relações entre procedimentos literários e procedimentos fílmicos. O artigo se encerra

com as seguintes considerações:

Fará Malraux outros filmes? O que ele dará quando se tiver submetido a todas as

exigências de uma matéria cinematográfica que até aqui ele dominou, violentou, com

uma intuição extraordinária da maioria de suas leis profundas. O que daria, em

outros termos, Malraux em Hollywood, onde já Faulkner, Hemingway e outros

trabalham para o cinema. Nós não desejamos que a experiência seja levada tão longe

mas nós esperamos com uma curiosidade apaixonada que Malraux filme em Paris,

com todos os recursos da técnica, sem panes de eletricidade e sem bombardeios, a

Condição humana. (BAZIN, 1998: 237. Tradução minha.)

A referência a William Faulkner e a Ernest Hemingway revela um dos aspectos da formação

crítica de Bazin, voltada inicialmente para essa fração da literatura moderna. E é por meio desse

3 Esperança seria lançado juntamente com Zero de conduta (1933, dir. Jean Vigo), interditado na época de seu

lançamento. 4 A manutenção do título no original indica que o artigo ainda não possui, salvo engano, tradução em português.

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conjunto de autores que o crítico procura marcar sua discordância em relação a um aspecto

central do filme, sua contaminação pelo estilo literário de Malraux. É nesse sentido que se dá o

“domínio” da matéria cinematográfica, “violentada” por parte do diretor-escritor.

Conceito central nesse artigo, o estilo seria um tema recorrente na obra baziniana. Por

meio desse conceito, entra-se no coração da reivindicação de um caráter autoral da criação

cinematográfica, e, por meio dele, da própria legitimidade do campo. É interessante a esse

propósito lembrar algumas das primeiras intervenções de Bazin no campo do cinema. Em “Por

uma crítica cinematográfica” (1943-1944, L’Écho des étudiants), fica evidente a preocupação

de operar no interior da crítica francesa da época, sobretudo contra o culto da vedete, com o fito

de restabelecer o nível existente quando da eclosão do cinema sonoro (BAZIN, 2016: 196-198).

A esse respeito, a afirmação de estilos individualizados, em que se reconhecia o trabalho de tal

ou qual diretor, permitia anexar o cinema ao campo artístico mais prestigiado pela crítica

francesa, a literatura. Nos mesmos anos, sob a torrente de filmes estadunidenses liberados após

o fim do boicote imposto na Ocupação, à recepção fria que marcava boa parte da crítica5 seria

contraposta uma aplicação da ideia de “estilo” aos filmes do outro lado do Atlântico. Tal

reflexão seria desenvolvida por um conjunto de críticos, muitos dos quais se articulariam mais

tarde nos Cahiers du cinéma, e teria sua formulação mais acabada no artigo “Nascimento de

uma nova vanguarda: a caméra-stylo” (1948, L’Écran français). Se a “política dos autores” da

década de 1950 viria a radicalizar essa postura, já na década de 1940 autores como Bazin,

Astruc, Roger Leenhardt, Jacques Doniol-Valcroze, Pierre Kast ou Éric Rohmer buscavam

traços de um estilo no coração da indústria cultural6.

Essa discussão já aparece no artigo sobre o filme de Malraux. Entre os procedimentos

técnicos empregados em Esperança, o crítico destaca inicialmente o intenso uso que se faz da

elipse (BAZIN, 1998: 225-228). Esse conceito, que coloca a ausência como elemento central

no cinema, é de grande importância na primeira crítica baziniana, indicando a marca deixada

pela leitura de Roger Leenhardt (JOUBERT-LAURENCIN, 2014: 30-32). Porém, Bazin

5 A crise aberta pela recepção de Cidadão Kane (1941, dir. Orson Welles) é um dos capítulos mais interessantes

nesse sentido, inclusive pela implicação de Bazin na defesa do filme (BAECQUE, 2010: 123-130). 6 Nesse sentido, o debate indireto travado entre Bazin e Sartre é extremamente interessante. Em “La technique de

Citizen Kane” (1947, Les Temps modernes), Bazin apropria-se dos procedimentos críticos aplicados por Sartre em

relação a autores como Faulkner ou John Dos Passos para fazer um elogio ao filme de Orson Welles. Em linhas

gerais, tratava-se de indicar as implicações metafísicas das opções técnicas feitas nesse filme (UNGARO, 2000:

107-128).

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observa que o filme em questão passa por cima da distinção existente entre o emprego da elipse

em literatura e em cinema. O desejo da literatura moderna (são citados Malraux, Faulkner e

Albert Camus) de introduzir, pela elipse, a descontinuidade temporal e espacial de modo a

impedir ao leitor de organizar o real segundo uma lógica de aparências, contrariaria a tendência

do cinema da época em buscar a continuidade espaço-temporal. Construído com base na

descontinuidade, inclusive do ponto de vista narrativo, A esperança seria adaptada para o

cinema com base na manutenção desse procedimento. E a obscuridade a que certas passagens

do filme foram dessa forma submetidas entraria em choque com a vocação popular que Bazin

reivindica para a arte cinematográfica (BAZIN, 1998: 229). Ainda assim, é possível falar num

estilo propriamente cinematográfico de Malraux, isto é, colocá-lo na condição de autor de

filmes. Em outras palavras, é possível afirmar que Esperança se constitui numa adaptação

autônoma em relação ao livro, muito em função do uso que o diretor faz das comparações.

Segundo Bazin, “Malraux felizmente não tentou, como o fez mais ou menos para a elipse,

transcrever literalmente a comparação” (BAZIN, 1998: 232, tradução minha). Isso se dá,

sobretudo, com a associação de dois fatos reais, através de sua justaposição no filme (exemplo:

girassóis fanados/morte do funcionário fascista). Essa seria a base mais autêntica do exercício

cinematográfico do romancista francês.

O lançamento conjunto de Esperança e Zero de conduta teria o mérito de apresentar ao

público francês dois autores essenciais. Reatar com a grande tradição do cinema francês dos

anos 1930, emblematizada sobretudo pelos últimos filmes de Renoir anteriores ao início da

Segunda Guerra Mundial (BAZIN, 2016: 101-113), supõe uma série de escolhas, que não

podem deixar de ser chamadas políticas. Por um lado, evidentemente, o filme foi concebido

como uma peça de propaganda a favor da República espanhola no contexto da Guerra Civil.

No entanto, e este é o ponto dessas reflexões, Esperança se encadeia, em seu desdobramento

crítico, a uma determinada maneira de se encarar o fenômeno fílmico, que passa por uma

reflexão sobre seus vínculos com o campo literário, onde o problema da adaptação joga um

papel central. Se isso aponta para o desejo de constituição de um domínio autônomo e legítimo

de reflexão, o que era ponto pacífico na crítica francesa, a distância tomada por Bazin em

relação ao uso literário da elipse, já dá algumas pistas de sua relação mais profunda com a

continuidade espaço-temporal suposta nas imagens (ROSEN, 2001: 3-41), continuidade que

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podemos chamar de “realista”, desde que com isso não se passe por cima do trabalho autoral

desenvolvido pelo diretor. O emprego de procedimentos como a profundidade de campo, o

plano-sequência, a libertação das sequências de qualquer função dramática, estão no coração

dessa perspectiva.

A batalha dos trilhos

Em seu texto referido acima, Truffaut ressalta que o período da Ocupação ainda estava

por ser abordado de uma maneira objetiva. A distância necessária a uma avaliação equilibrada

desse momento começaria a ser marcada com a morte de Charles de Gaulle (1970) e com o

aparecimento de um documentário como A tristeza e a piedade (1969, dir. Marcel Ophüls)

(TRUFFAUT, 1975: 11-12). No entanto, os esforços de produção de narrativas que abordassem

o tema não se fizeram esperar, de modo que, já nos primeiros anos após a Liberação, a França

ocupada foi tema de um conjunto de filmes, o que não passou despercebido aos olhos de Bazin.

Assim como ocorrera em outros países (Itália, URSS etc.), o tema seria trabalhado entre 1945

e 1946 nos filmes de Christian-Jacque, René Chanas, René Clément, Henri Calef, Yves Allégret

e Louis Daquin (BAZIN, 1975: 145-162). Diante dessa produção, suas críticas no Parisien

libéré e em Gavroche alinham aos poucos o que seriam as particularidades francesas diante

desse tema. Por um lado, filmes como Boule de suif (1945, dir. Christian-Jacque) e Patrie (1946,

dir. L. Daquin), seriam marcados pelo recurso a narrativas recuadas no tempo, a Guerra Franco-

Prussiana (1870) e a revolta dos flamengos contra o domínio espanhol (século XVI),

respectivamente. A insistência desses filmes na atualidade dos acontecimentos por eles tratados,

no entanto, seria contaminada pelo didatismo desse tipo de produção. Um filme como Jericho

(1946, dir. H. Calef) nos dá algumas pistas sobre um ponto chave a respeito dessa rejeição em

bloco da produção francesa sobre a Ocupação. O filme, baseado no material elaborado por um

dos principais roteiristas da época, Charles Spaak, seria prisioneiro justamente dessa hipertrofia

da palavra no desenvolvimento da narrativa. Em contraposição a esse filme “literário”, o crítico

utiliza o exemplo do que para ele seria a grande exceção na produção francesa, A batalha dos

trilhos (1946, dir. R. Clément). Diferentemente dos demais, esse filme associou à atualidade do

conteúdo, a atualização do estilo narrativo.

Ironicamente, Clément seria um dos alvos privilegiados por Truffaut em seu demolidor

artigo “Uma certa tendência do cinema francês” (1954, Cahiers du cinéma), justamente pelos

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motivos alegado por Bazin para se opor aos filmes sobre a ocupação (BAECQUE, 2010: 161-

196). A crítica seria centrada num modelo institucionalizado, ironicamente denominado

“tradição da qualidade”, emblematizada por filmes como Sinfonia pastoral (1946, dir. Jean

Delannoy), aliás premiado no Festival de Cannes, que segundo o crítico corroboraria a mesmice

dos filmes locais. Roteiristas como Jean Aurenche, Pierre Bost e mesmo Spaak desenvolveriam,

nos filmes dirigidos por Delannoy, Clément, Autant-Lara, Allégret, a variação de um mesmo

modelo, baseado em critérios acima de tudo literários, desprezando assim a técnica

cinematográfica (TRUFFAUT, 2005: 257-276). A tais roteiristas e diretores, o jovem crítico

oporia o cinema de autores, exemplificado pela referência a Renoir, Bresson, Jean Cocteau,

entre outros. Se essa polêmica alimentaria o processo de passagem geracional que se processava

na década de 1950 (e que não pode ser reduzido à eclosão da Nouvelle Vague), é interessante

que, em seu texto, Truffaut procure respaldo na autoridade de Bazin, por meio da referência a

“O diário de um pároco de aldeia e a estilística de Robert Bresson” (1951, Cahiers du cinéma),

onde Bazin já fazia uma defesa da adaptação “propriamente cinematográfica” do romance de

Georges Bernanos, concluindo com uma referência irônica a Aurenche e Bost (BAZIN, 2014:

154).

O ataque a Clément é um dos pontos que dividiria Truffaut e Bazin, que defende não

apenas o diretor, mas ainda reconhece o valor histórico do modelo de adaptação literária

representado por Aurenche e Bost. Em “Des romans et des films: Monsieur Ripois avec ou sans

nemesis” (1954, Esprit), publicado poucos meses depois do libelo do jovem crítico, Bazin

indica que aqueles roteiristas representaram um estágio fundamental no desenvolvimento da

adaptação romanesca na França. Com eles teria surgido a preocupação com alguma fidelidade,

ainda que limitada pelo seu caráter eminentemente literário (o que diz muito, diga-se de

passagem, sobre o predomínio desse campo na topografia artística francesa). O filme em

questão nessa resenha, Monsieur Ripois (1954, dir. R. Clément) seria um passo além nessa

tendência uma vez que, na adaptação do livro de Louis Hemon, o diretor tenha demonstrado

num cuidado com certos procedimentos, principalmente o uso “neorrealista” de uma câmera

dissimulada nas ruas de Londres (BAZIN, 1998: 162-165). Mas apesar de seus méritos,

Monsieur Ripois não atingiria a fatura de um filme inacabado como A batalha dos trilhos.

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Diante da produção russa ou de um filme como A última porta (1945, dir. Leopold

Lindtberg), A batalha dos trilhos seria o único exemplar da produção francesa acerca da

Resistência digno de nota. Em artigo publicado em 1946, em Gavroche, Bazin nota que esse

filme sobre o trabalho de sabotagem da rede ferroviária praticado durante a Ocupação é na

verdade uma versão desenvolvida de um documentário (BAZIN, 1998: 143-146). Desde já, o

crítico nota que o filme trabalha com uma matéria propriamente cinematográfica, a ferrovia

sendo associada seja a um conjunto de filmes, como L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat

(1895, dir. Auguste e Louis Luimère), seja a um procedimento como o travelling. Associada ao

desdobramento formal e mecânico advindo do tema, o diretor ainda teria se aproximado

fortemente da psicologia ansiosa que marca a Resistência. Se a intriga é insuficiente enquanto

desenvolvimento dramático, ela é largamente compensada pela construção dessa atmosfera.

Aliás, essa incompletude é justamente um dos elementos que dão valor ao filme: distante da

construção narrativa “correta” proporcionada pelo roteiro de Spaak em Jericho, em A batalha

dos trilhos Clément e o operador Henri Alekan priorizam a câmera, o silêncio em contraposição

à palavra, para trabalhar o tema (BAZIN, 1975: 154-156)7. Mesmo em relação aos demais

filmes de Clément, essa sua primeira produção serviria de parâmetro. Na conclusão do já

referido artigo sobre Monsieur Ripois, Bazin nota que o limite desse filme reside justamente

em se render ao exercício vazio do estilo, de modo a colocar os procedimentos acima do

material e do tema trabalhado, diferentemente do que ocorre com filmes como A batalha dos

trilhos ou ainda Brinquedo proibido (1952, dir. R. Clément) (BAZIN, 1998: 168). Assim, as

sucessivas análises dos filmes de Clément são um modelo para a discussão sobre as fronteiras

legítimas ao exercício do estilo no cinema (RAMOS, 1998).

Paisà

Se, em Monsieur Ripois, Bazin observa o emprego de alguns procedimentos que se

aproximam do neorrealismo (mas também de Vigo e de Dziga Vertov), como a filmagem em

7 Ainda que a Alekan seja feita a restrição da opção por uma imagem aveludada, algo luxuosa, que seria estranha

ao espírito do filme, sendo preferível a opção de Louis Page, em Esperança, por uma fotografia cinza, uniforme e

dura, mais próxima da atualidade (BAZIN, 1998: 146).

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externas, essa observação não passaria da identificação de uma aproximação pontual. Mais

intensa seria a relação cultivada por um filme como Farrebique (1946, dir. Georges Rouquier)

com relação aos filmes da “escola italiana da Liberação” (BAZIN, 1998: 31). No entanto, de

uma maneira geral, é possível dizer que os procedimentos que marcaram o neorrealismo italiano

não teriam deitado suas raízes no cinema francês8. Essa afirmação careceria de alguns

esclarecimentos suplementares, uma vez que os procedimentos elencados num ensaio como “O

realismo cinematográfico da escola italiana da Liberação” (1948, Esprit) parecem ser

insuficientes para dar conta dos novos diretores que ali emergiriam na década de 1950, como

Frederico Fellini e Michelangelo Antonioni (BAECQUE, 1991: 241-245). No entanto,

considerando que o conjunto de artigos aqui discutidos foi publicado na segunda metade da

década de 1940, é o caso de se ater às primeiras considerações de Bazin a respeito da “escola

italiana”, ainda que sua interação com os diretores e com a crítica local seja muito intensa nos

anos subsequentes (UNGARO, 2000: 189-214).

No artigo citado, Bazin atribui logo de cara ao neorrealismo italiano uma função análoga

à do cinema russo da década de 1920, como ponta de lança no combate ao esteticismo no cinema

(BAZIN, 2014: 281). No que toca ao cinema soviético, a referência a O encouraçado Potemkin

(1925, dir. Serguei Eisenstein) indica já que o embate a toda forma de expressionismo (e, no

seu tempo, ao expressionismo alemão, ao “caligarismo”) não inclui a tendência “neoformalista”

do cinema soviético, que seria duramente criticada anos depois, em “O mito de Stalin no cinema

soviético” (1950, Esprit). Se essa indicação linda com a tensão política cada vez mais forte no

seio da crítica de cinema na França, que explodiria no início da década de 1950, a crítica de

Bazin ao realismo socialista se articula ainda à afirmação paralela do neorrealismo como terreno

de embate a qualquer tentação esteticista que contrariasse a própria vocação da imagem

cinematográfica.

No entanto, mais provocadora ainda, no artigo de 1948 sobre a “escola italiana da

Liberação”, é a aproximação entre o neorrealismo italiano e a produção estadunidense recente,

por meio da referência a Cidadão Kane, que aliás é acompanhada de um comentário sobre

Farrebique (BAZIN, 2014: 293-295). A opção feita ali por Bazin é analisar em paralelo o filme

8 A filmagem em externas, no entanto, que seria tematizada de maneira sistemática por Bazin ao longo da década

de 1950, inclusive de um ponto de vista econômico, seria fundamental na renovação que teria lugar no cinema

local no final da década (SZANIAWSKI, 2011).

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de Welles e Paisà (1946, dir. Roberto Rossellini) para identificar algumas linhas da tendência

realista dos anos 1940 em geral, bem como algumas especificidades de sua vertente italiana.

Uma apresentação análoga dessa tendência, de resto, permaneceria presente num texto como

“Evolução da linguagem cinematográfica” (síntese de artigos publicados entre 1950 e 1955),

onde os caminhos diferentes trilhados pelo neorrealismo e pelo cinema de Welles e de William

Wyler seriam fundamentais na afirmação dessa nova marca geral dos filmes (BAZIN, 2014:

103-112). De volta ao artigo de 1948, Bazin afirma que Cidadão Kane marcaria, com relação

à decupagem clássica hollywoodiana um uso intenso da profundidade de campo9. Dada a

ausência de direcionamento do olhar, caberia ao espectador a tarefa de dar significado aos

elementos da cena, de construir suas relações (LABARTHE, 2005).

Outro caminho foi tomado em Paisà. Assim como ocorrera com os filmes de Malraux

e de Clément, o comentário de Bazin a respeito da obra de Rossellini centra-se em seus

procedimentos técnicos. Se a opção de Welles pelo trabalho com a profundidade de campo o

impedira, dadas as condições técnicas da época, de filmar ao ar livre, esse é um dos principais

traços distintivos do neorrealismo em geral, incluindo Paisà. A excelência técnica dos filmes

estadunidenses contrasta, portanto, com a precariedade constitutiva da produção italiana da

Liberação. No entanto, se a impossibilidade de registrar o som implicava numa perda de

realismo por parte do cinema italiano, esse obstáculo (ou essa despreocupação com a captação

do som) também conferiu aos cineastas locais a possibilidade de dar maior mobilidade às

câmeras, que tomaram, assim, o espaço público (BAZIN, 2014: 295). Isso permitiria ao

neorrealismo abrir-se de forma cada vez maior aos “fragmentos da realidade”. E aqui, mais uma

vez, Bazin faz referência ao romance moderno (os nomes são familiares a esta altura: Camus,

Malraux, Hemingway, Faulkner, Dos Passos), que segundo ele teria inaugurado essa tendência

de minimizar o dado gramatical em favor da apresentação de fragmentos do real. No que toca

ao cinema, essa implicação com a realidade levaria a uma libertação do acontecimento fílmico

em relação a um encadeamento dramático, tendência que seria levada às últimas consequências

em Umberto D. (1952, dir. Vittorio De Sica):

9 Essa leitura seria estendida a outros filmes de Welles, sobretudo Soberba (1942) no ensaio mais alentado sobre

o diretor publicado por Bazin em 1950 (BAZIN, 2005: 79-93). A respeito de Wyler, a grande referência nesse

sentido é o artigo “William Wyler ou le janséniste de la mise en scène” (1948, La Revue du cinéma).

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Mas a unidade da narrativa do filme não é o episódio, o acontecimento, a surpresa,

o caráter dos protagonistas, ela é a sucessão dos instantes concretos da vida, sendo

que não se pode dizer que um é mais importante que o outro: já que a igualdade

ontológica deles destrói, em seu próprio princípio, a categoria dramática. Uma

sequência prodigiosa, que permanecerá como um dos ápices do cinema, ilustra

perfeitamente esta concepção da narrativa, e logo, da mise en scène: é o despertar

da empregada que a câmera se limita a olhar em suas mínimas ocupações matinais:

rodando, ainda sonolenta, na cozinha, jogando água nas formigas que invadem a pia,

moendo o café... O cinema torna-se aqui o contrário dessa “arte da elipse” à qual

facilmente gostamos de acreditar que ele está fadado. (BAZIN, 2014: 351)

Como se pode ver, Umberto D. indica para o horizonte a que os procedimentos neorrealistas

levam, isto é, a uma ênfase na continuidade temporal da vida, liberta não apenas de suas amarras

dramáticas, mas da própria concepção do filme como elipse. Da mesma forma que, diante de

certas sequências de Os melhores anos de nossas vidas (1946, dir. W. Wyler) o público

desempenha um papel ativo diante da imagem cinematográfica, é possível entrever aqui sua

libertação tendencial em relação a qualquer enquadramento analítico preestabelecido por um

encadeamento dramático10. Nesse sentido, é possível inclusive retomar o argumento avançado

por Gilles Deleuze, segundo o qual a definição de “neorrealismo” operada por Bazin não se

daria por referência ao conteúdo social desse conjunto de filmes, mas por meio de critérios

formais estéticos; o real, agora, não era mais representado ou produzido, mas visado

(DELEUZE, 2005: 9). E é nesse sentido, pelo abandono da concepção tradicional de roteiro,

pela ruptura com os efeitos dramáticos, que um filme como Noites de Cabíria (1957, dir. F.

Fellini) alcança a separação entre acontecimentos e causalidade, de modo a obstar qualquer

evolução nas personagens, merecendo ser elencado no interior do neorrealismo (BAZIN, 2014:

353-361)11.

Considerações finais – a crítica de cinema na “era da suspeita”

10 Bazin procura, ao final de “O realismo cinematográfico e a escola italiana da Liberação” estabelecer algumas

hipóteses acerca das relações entre o novo cinema italiano e o romance estadunidense (BAZIN, 2014: 304-306). 11 O artigo em questão, “Cabíria, ou a viagem aos confins do neorrealismo” contém, já em seu título, uma

provocação frente à suspeita levantada, sobretudo pela crítica italiana, a respeito do conservadorismo de Fellini,

uma vez que o nome faz referência a Viagem ao fim da noite (1932), do escritor conservador Louis-Ferdinand

Céline.

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Em 1950, Nathalie Sarraute publicaria em Les Temps modernes o ensaio “A era da

suspeita” (SARRAUTE, 2004: 57-79). A autora nota ali que o público leitor perdeu a confiança

depositada nos autores do século XIX. Tal confiança tinha como elemento-chave a

verossimilhança sobre a qual repousavam as narrativas. O leitor que já passou, em termos

geracionais, por Joyce, Proust ou Freud, desconfia do “objeto real” apresentado nos livros,

donde a queda da narrativa impessoal e sua substituição pela primeira pessoa, forma de

circunscrever seu tema a si próprio. Também o autor desconfia agora de seu público, da

tendência do leitor à tipificação. Mas essa tendência seria ainda mais geral segundo Sarraute.

Inda que o cinema tenda a apropriar-se do terreno deixado pela literatura (o que faz a fotografia

em relação à pintura), ele se veria implicado nesse mesmo contexto de suspeita, sendo tomado

de assalto pelas novas formas de narrativa. Exemplo disso, segundo a autora, seria a introdução

da noção de “testemunha” nos filmes. Tomado por uma suspeita análoga em relação à

verossimilhança expressa, por exemplo, num realismo baseado na “reprodução” da realidade, a

posição de Bazin não deve ser compreendida apenas em relação à defesa de uma certa tendência

cinematográfica12, mas se inscreve ainda de uma maneira mais direta numa determinada

maneira de desdobrar o discurso cinematográfico. Se é possível afirmar a existência de um

universo diretamente político na prática crítica baziniana, este se insere, sobretudo, numa

investigação das instâncias (a profundidade de campo, a explosão do encadeamento dramático)

que permitiriam restituir os filmes à pólis, a uma ação do público (WATTS, 2011). Modalidade

de crítica, aliás, relegada à obsolescência pela institucionalização acadêmica.

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12 Outras tendências – o cinema de animação ou o trabalho com material de arquivo, por exemplo – colocariam

grandes desafios à perspectiva baziniana.

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