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André Bazin e a política das imagens no pós-guerra: Malraux, Clément e Rossellini
VICTOR SANTOS VIGNERON DE LA JOUSSELANDIÈRE*
A experiência política da ocupação alemã e do regime de Vichy não chegou a constituir
um gênero, mas foi uma tópica constantemente retomada pelo cinema francês. De O silêncio
do mar (1949, dir. Jean-Pierre Melville) ou A travessia de Paris (1956, dir. Claude Autant-
Lara) a O último metrô (1980, dir. François Truffaut) e Adeus, meninos (1987, dir. Louis Malle),
o tema seria retomado pelas duas gerações de cineastas ativas nas décadas seguintes à
Liberação. Num nível mais direto de implicação política, a polarização entre colaboracionismo
e resistência foi decisiva, ao menos no curto prazo, para definir certas trajetórias no interior do
campo da produção cultural. Henri-Georges Clouzot, por exemplo, foi proibido de trabalhar
com cinema até 1947 por conta do caráter suspeito de seu filme Sombra do pavor (1943), onde
a delação joga um papel central. O fuzilamento de Robert Brasillach, coautor de uma influente
História do cinema francês (1935, reeditada em 1943), indica que o campo da crítica também
não passaria alheio a esse momento. Mas seria possível encontrar um nexo criativo, análogo ao
que se estabeleceu no cinema, entre a experiência da Ocupação e a produção crítica?
Num texto publicado em 1975, François Truffaut parece acenar com essa possibilidade.
Já constituído como diretor, ele evocava a Paris ocupada nos seguintes termos:
Penetrando em geral de maneira fraudulenta nas salas de cinema, normalmente com
a cumplicidade de um colega – ele entrava pagando por seu lugar e me abria por
dentro a porta de emergência – eu era levado a passar o tempo do entreato fechado
nos banheiros, esperando que as luzes da sala fossem apagadas para escolher um
lugar no escuro. Eu era obrigado às vezes a esperar o fim da projeção das
“Atualidades” pois, para evitar que elas fossem vaiadas e escarnecidas, elas não
eram mostradas na escuridão. Desses longos períodos forçados no WC, eu guardei
na memória uma pichação patriótica que, apesar de sua relativa brincadeira,
permaneceu para mim inesquecível: “Hitler, o valentão do universo/Terá os pés
gelados nesse inverno.” Isso se passava algumas semanas antes da batalha de
Stalingrado. (TRUFFAUT, 1975: 21. Tradução minha.)
* Mestre e doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo e bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
2
Poucas linhas depois, o cineasta faz referência a Lucien Rebatet, crítico que desempenhara na
França um papel de destaque na perseguição aos cineastas judeus1. Assim, a Ocupação teria
deixado marcas no cinema e na crítica, ainda que sob um signo negativo: ao banimento dos
judeus e à perseguição aos membros da Resistência deve-se acrescentar a emigração dos
grandes diretores dos anos 1930 (Jean Renoir, René Clair etc.), a proibição dos filmes
estadunidenses, o controle das diversas formas de diversão (os noticiários alemães apresentados
com as luzes acesas) e mesmo o fornecimento irregular de energia elétrica. Tal conjuntura teria
possibilitado uma renovação dos quadros do cinema francês, emblematizada por um filme como
Os anjos do pecado (1943, dir. Robert Bresson). No entanto, o próprio Truffaut restringe a
marca da ocupação nos filmes da época a esse aspecto negativo. Nem pétainista, nem portador
de mensagens subversivas codificadas, o cinema francês seria então marcado sobretudo pela
evasão, pelo recurso a gêneros como os filmes históricos ou filmes fantásticos, cujo modelo
seria Les visiteurs du soir (1942, dir. Marcel Carné). Se há um mérito político entre os diretores
franceses, também este se manifestaria de uma forma negativa: nenhum produtor local se
envolveu na produção de qualquer filme de propaganda em favor do inimigo (TRUFFAUT,
1975: 28-29).
Essas considerações encontram-se no prefácio de Le cinéma français de l’Occupation
et de la Résistance, coletânea de artigos publicados por André Bazin entre 1943 e 1946. A
respeito desse material, Truffaut nota que ele proporciona um quadro incompleto da Ocupação,
seja pelo início tardio da produção do autor, seja pela periodicidade caótica dos órgãos de
imprensa da época (TRUFFAUT, 1975: 11). Sequer a produção fílmica seria devidamente
contemplada pelo crítico, sendo necessário o emprego de uma obra de Roger Régent, Cinéma
de France (1948), para elaborar as notas explicativas que acompanham os textos de Bazin. No
entanto, e esta é a hipótese básica do presente trabalho, é possível argumentar que a implicação
subjetiva do crítico com a experiência da ocupação pode ser considerada constitutiva de sua
produção escrita. Nesse momento, vendo interrompida sua carreira no magistério, Bazin
integrou-se à Maison des Lettres, centro de estudos dirigido por Pierre-Aimée Touchard e que
1 Truffaut nota que o “rebatismo” seria a seu turno incorporado sob a “depuração do cinema francês” que se seguiu
à Liberação (TRUFFAUT, 1975: 24-25). Esse comentário ecoa ainda a polêmica levantada nos anos 1950, quando
o então jovem crítico de cinema aproximou-se de figuras associadas ao colaboracionismo, como o próprio Rebatet
(BAECQUE, 2010: 224-226).
3
tinha por objetivo constituir um espaço de resistência intelectual ao regime de Vichy e à
Ocupação. Após manifestar interesse pela literatura moderna, o crítico iniciou sua aproximação
com o cinema ao criar um cineclube clandestino junto com Jean-Pierre Chartier e ao publicar
seus primeiros artigos em Information universitaire, ainda na Paris ocupada (ANDREW, 2013:
31-51). Paralelamente a essas definições quanto ao campo a que se dedicaria até o fim de sua
vida, o momento ainda foi marcado pelo primeiro contato com a obra de Jean-Paul Sartre e pelo
afastamento em relação à Juventude Estudantil Católica. O problema da intervenção do sujeito
na sociedade, frente ao espírito de acomodação que tomou grande parte da intelectualidade sob
a Ocupação, encontra-se na raiz dessas transformações individuais, que desembocariam numa
atividade pedagógica desenvolvida por meio de uma intensa atividade cineclubista e das
pequenas notas publicadas no Parisien liberé a partir de 1944. Diga-se de passagem, não deixa
de ser sintomático que em seu prefácio Truffaut opte por marcar sua proximidade com Bazin
não pela referência à relação quase filial que teria início anos depois, mas pela atmosfera
comum à criança e ao crítico, atmosfera em que emergiu uma nova forma de se relacionar com
as imagens. A forma como Bazin aborda três filmes em que são narrados acontecimentos
políticos de sua época – a Guerra Civil espanhola, a Resistência francesa e a Liberação italiana
– servirá de guia para refletir sobre essa transformação.
Esperança
André Malraux foi um dos intelectuais franceses mais identificados com a Resistência.
Personalidade constituída entre aventureirismo, engajamento e alguma dose de ficção, ficou
bastante conhecido no universo literário local com a publicação de A condição humana (1933),
em que narra o massacre dos comunistas na China em 1927, a mando de Chiang Kai-shek2.
Entre 1936 e 1937, Malraux se engajou na defesa da República espanhola, experiência que deu
origem à publicação de A esperança, em 1937. No ano seguinte ele iniciaria a adaptação
cinematográfica de seu romance, já sob o avanço da ofensiva franquista. As condições precárias
em que foram feitas as filmagens, assim como o triunfo fascista na Espanha e a ocupação alemã
na França submeteram o filme, montado com uma parcela do material inicialmente projetado,
2 O livro foi precedido por Os conquistadores (1928) e O caminho real (1930), cujo tema é o combate à presença
europeia na China e no Sudeste Asiático.
4
a um prolongado anonimato, até seu lançamento em 19453. Após escrever uma resenha para o
Parisien libéré, Bazin publicaria um artigo mais detalhado a respeito do filme, “A propos de
l’Espoir ou du style au cinéma” (1945, Poésie)4.
É sabido o papel desempenhado pelos escritos de Malraux nos anos de formação de
Bazin. Junto com Sartre e Pierre Teilhard de Chardin, ele constituiu uma das principais
referências do autor nos anos de formação de sua crítica cinematográfica (ANDREW, 2013:
53-71). Se no Esboço de uma psicologia do cinema (1946) Malraux percorre a história da arte
no Ocidente para nela inserir o cinema como seu mais recente desdobramento, Bazin faz um
movimento análogo ao ver na busca pela semelhança uma tendência iniciada no Renascimento
que incidiria no desenvolvimento do registro fotográfico e cinematográfico. No entanto, o
exame proposto por Bazin a respeito das relações entre o cinema e as artes plásticas permite
identificar uma grande distância quanto ao papel atribuído ao cinema pelos dois intelectuais
(ANDREW, 2011; UNGARO, 2000: 59-82). A leitura do comentário de Bazin sobre Esperança
permite esclarecer algumas dessas diferentes concepções quanto ao estatuto da imagem
cinematográfica.
A tensão entre A esperança e Esperança, entre romance e filme, recobre uma discussão
acerca das relações entre procedimentos literários e procedimentos fílmicos. O artigo se encerra
com as seguintes considerações:
Fará Malraux outros filmes? O que ele dará quando se tiver submetido a todas as
exigências de uma matéria cinematográfica que até aqui ele dominou, violentou, com
uma intuição extraordinária da maioria de suas leis profundas. O que daria, em
outros termos, Malraux em Hollywood, onde já Faulkner, Hemingway e outros
trabalham para o cinema. Nós não desejamos que a experiência seja levada tão longe
mas nós esperamos com uma curiosidade apaixonada que Malraux filme em Paris,
com todos os recursos da técnica, sem panes de eletricidade e sem bombardeios, a
Condição humana. (BAZIN, 1998: 237. Tradução minha.)
A referência a William Faulkner e a Ernest Hemingway revela um dos aspectos da formação
crítica de Bazin, voltada inicialmente para essa fração da literatura moderna. E é por meio desse
3 Esperança seria lançado juntamente com Zero de conduta (1933, dir. Jean Vigo), interditado na época de seu
lançamento. 4 A manutenção do título no original indica que o artigo ainda não possui, salvo engano, tradução em português.
5
conjunto de autores que o crítico procura marcar sua discordância em relação a um aspecto
central do filme, sua contaminação pelo estilo literário de Malraux. É nesse sentido que se dá o
“domínio” da matéria cinematográfica, “violentada” por parte do diretor-escritor.
Conceito central nesse artigo, o estilo seria um tema recorrente na obra baziniana. Por
meio desse conceito, entra-se no coração da reivindicação de um caráter autoral da criação
cinematográfica, e, por meio dele, da própria legitimidade do campo. É interessante a esse
propósito lembrar algumas das primeiras intervenções de Bazin no campo do cinema. Em “Por
uma crítica cinematográfica” (1943-1944, L’Écho des étudiants), fica evidente a preocupação
de operar no interior da crítica francesa da época, sobretudo contra o culto da vedete, com o fito
de restabelecer o nível existente quando da eclosão do cinema sonoro (BAZIN, 2016: 196-198).
A esse respeito, a afirmação de estilos individualizados, em que se reconhecia o trabalho de tal
ou qual diretor, permitia anexar o cinema ao campo artístico mais prestigiado pela crítica
francesa, a literatura. Nos mesmos anos, sob a torrente de filmes estadunidenses liberados após
o fim do boicote imposto na Ocupação, à recepção fria que marcava boa parte da crítica5 seria
contraposta uma aplicação da ideia de “estilo” aos filmes do outro lado do Atlântico. Tal
reflexão seria desenvolvida por um conjunto de críticos, muitos dos quais se articulariam mais
tarde nos Cahiers du cinéma, e teria sua formulação mais acabada no artigo “Nascimento de
uma nova vanguarda: a caméra-stylo” (1948, L’Écran français). Se a “política dos autores” da
década de 1950 viria a radicalizar essa postura, já na década de 1940 autores como Bazin,
Astruc, Roger Leenhardt, Jacques Doniol-Valcroze, Pierre Kast ou Éric Rohmer buscavam
traços de um estilo no coração da indústria cultural6.
Essa discussão já aparece no artigo sobre o filme de Malraux. Entre os procedimentos
técnicos empregados em Esperança, o crítico destaca inicialmente o intenso uso que se faz da
elipse (BAZIN, 1998: 225-228). Esse conceito, que coloca a ausência como elemento central
no cinema, é de grande importância na primeira crítica baziniana, indicando a marca deixada
pela leitura de Roger Leenhardt (JOUBERT-LAURENCIN, 2014: 30-32). Porém, Bazin
5 A crise aberta pela recepção de Cidadão Kane (1941, dir. Orson Welles) é um dos capítulos mais interessantes
nesse sentido, inclusive pela implicação de Bazin na defesa do filme (BAECQUE, 2010: 123-130). 6 Nesse sentido, o debate indireto travado entre Bazin e Sartre é extremamente interessante. Em “La technique de
Citizen Kane” (1947, Les Temps modernes), Bazin apropria-se dos procedimentos críticos aplicados por Sartre em
relação a autores como Faulkner ou John Dos Passos para fazer um elogio ao filme de Orson Welles. Em linhas
gerais, tratava-se de indicar as implicações metafísicas das opções técnicas feitas nesse filme (UNGARO, 2000:
107-128).
6
observa que o filme em questão passa por cima da distinção existente entre o emprego da elipse
em literatura e em cinema. O desejo da literatura moderna (são citados Malraux, Faulkner e
Albert Camus) de introduzir, pela elipse, a descontinuidade temporal e espacial de modo a
impedir ao leitor de organizar o real segundo uma lógica de aparências, contrariaria a tendência
do cinema da época em buscar a continuidade espaço-temporal. Construído com base na
descontinuidade, inclusive do ponto de vista narrativo, A esperança seria adaptada para o
cinema com base na manutenção desse procedimento. E a obscuridade a que certas passagens
do filme foram dessa forma submetidas entraria em choque com a vocação popular que Bazin
reivindica para a arte cinematográfica (BAZIN, 1998: 229). Ainda assim, é possível falar num
estilo propriamente cinematográfico de Malraux, isto é, colocá-lo na condição de autor de
filmes. Em outras palavras, é possível afirmar que Esperança se constitui numa adaptação
autônoma em relação ao livro, muito em função do uso que o diretor faz das comparações.
Segundo Bazin, “Malraux felizmente não tentou, como o fez mais ou menos para a elipse,
transcrever literalmente a comparação” (BAZIN, 1998: 232, tradução minha). Isso se dá,
sobretudo, com a associação de dois fatos reais, através de sua justaposição no filme (exemplo:
girassóis fanados/morte do funcionário fascista). Essa seria a base mais autêntica do exercício
cinematográfico do romancista francês.
O lançamento conjunto de Esperança e Zero de conduta teria o mérito de apresentar ao
público francês dois autores essenciais. Reatar com a grande tradição do cinema francês dos
anos 1930, emblematizada sobretudo pelos últimos filmes de Renoir anteriores ao início da
Segunda Guerra Mundial (BAZIN, 2016: 101-113), supõe uma série de escolhas, que não
podem deixar de ser chamadas políticas. Por um lado, evidentemente, o filme foi concebido
como uma peça de propaganda a favor da República espanhola no contexto da Guerra Civil.
No entanto, e este é o ponto dessas reflexões, Esperança se encadeia, em seu desdobramento
crítico, a uma determinada maneira de se encarar o fenômeno fílmico, que passa por uma
reflexão sobre seus vínculos com o campo literário, onde o problema da adaptação joga um
papel central. Se isso aponta para o desejo de constituição de um domínio autônomo e legítimo
de reflexão, o que era ponto pacífico na crítica francesa, a distância tomada por Bazin em
relação ao uso literário da elipse, já dá algumas pistas de sua relação mais profunda com a
continuidade espaço-temporal suposta nas imagens (ROSEN, 2001: 3-41), continuidade que
7
podemos chamar de “realista”, desde que com isso não se passe por cima do trabalho autoral
desenvolvido pelo diretor. O emprego de procedimentos como a profundidade de campo, o
plano-sequência, a libertação das sequências de qualquer função dramática, estão no coração
dessa perspectiva.
A batalha dos trilhos
Em seu texto referido acima, Truffaut ressalta que o período da Ocupação ainda estava
por ser abordado de uma maneira objetiva. A distância necessária a uma avaliação equilibrada
desse momento começaria a ser marcada com a morte de Charles de Gaulle (1970) e com o
aparecimento de um documentário como A tristeza e a piedade (1969, dir. Marcel Ophüls)
(TRUFFAUT, 1975: 11-12). No entanto, os esforços de produção de narrativas que abordassem
o tema não se fizeram esperar, de modo que, já nos primeiros anos após a Liberação, a França
ocupada foi tema de um conjunto de filmes, o que não passou despercebido aos olhos de Bazin.
Assim como ocorrera em outros países (Itália, URSS etc.), o tema seria trabalhado entre 1945
e 1946 nos filmes de Christian-Jacque, René Chanas, René Clément, Henri Calef, Yves Allégret
e Louis Daquin (BAZIN, 1975: 145-162). Diante dessa produção, suas críticas no Parisien
libéré e em Gavroche alinham aos poucos o que seriam as particularidades francesas diante
desse tema. Por um lado, filmes como Boule de suif (1945, dir. Christian-Jacque) e Patrie (1946,
dir. L. Daquin), seriam marcados pelo recurso a narrativas recuadas no tempo, a Guerra Franco-
Prussiana (1870) e a revolta dos flamengos contra o domínio espanhol (século XVI),
respectivamente. A insistência desses filmes na atualidade dos acontecimentos por eles tratados,
no entanto, seria contaminada pelo didatismo desse tipo de produção. Um filme como Jericho
(1946, dir. H. Calef) nos dá algumas pistas sobre um ponto chave a respeito dessa rejeição em
bloco da produção francesa sobre a Ocupação. O filme, baseado no material elaborado por um
dos principais roteiristas da época, Charles Spaak, seria prisioneiro justamente dessa hipertrofia
da palavra no desenvolvimento da narrativa. Em contraposição a esse filme “literário”, o crítico
utiliza o exemplo do que para ele seria a grande exceção na produção francesa, A batalha dos
trilhos (1946, dir. R. Clément). Diferentemente dos demais, esse filme associou à atualidade do
conteúdo, a atualização do estilo narrativo.
Ironicamente, Clément seria um dos alvos privilegiados por Truffaut em seu demolidor
artigo “Uma certa tendência do cinema francês” (1954, Cahiers du cinéma), justamente pelos
8
motivos alegado por Bazin para se opor aos filmes sobre a ocupação (BAECQUE, 2010: 161-
196). A crítica seria centrada num modelo institucionalizado, ironicamente denominado
“tradição da qualidade”, emblematizada por filmes como Sinfonia pastoral (1946, dir. Jean
Delannoy), aliás premiado no Festival de Cannes, que segundo o crítico corroboraria a mesmice
dos filmes locais. Roteiristas como Jean Aurenche, Pierre Bost e mesmo Spaak desenvolveriam,
nos filmes dirigidos por Delannoy, Clément, Autant-Lara, Allégret, a variação de um mesmo
modelo, baseado em critérios acima de tudo literários, desprezando assim a técnica
cinematográfica (TRUFFAUT, 2005: 257-276). A tais roteiristas e diretores, o jovem crítico
oporia o cinema de autores, exemplificado pela referência a Renoir, Bresson, Jean Cocteau,
entre outros. Se essa polêmica alimentaria o processo de passagem geracional que se processava
na década de 1950 (e que não pode ser reduzido à eclosão da Nouvelle Vague), é interessante
que, em seu texto, Truffaut procure respaldo na autoridade de Bazin, por meio da referência a
“O diário de um pároco de aldeia e a estilística de Robert Bresson” (1951, Cahiers du cinéma),
onde Bazin já fazia uma defesa da adaptação “propriamente cinematográfica” do romance de
Georges Bernanos, concluindo com uma referência irônica a Aurenche e Bost (BAZIN, 2014:
154).
O ataque a Clément é um dos pontos que dividiria Truffaut e Bazin, que defende não
apenas o diretor, mas ainda reconhece o valor histórico do modelo de adaptação literária
representado por Aurenche e Bost. Em “Des romans et des films: Monsieur Ripois avec ou sans
nemesis” (1954, Esprit), publicado poucos meses depois do libelo do jovem crítico, Bazin
indica que aqueles roteiristas representaram um estágio fundamental no desenvolvimento da
adaptação romanesca na França. Com eles teria surgido a preocupação com alguma fidelidade,
ainda que limitada pelo seu caráter eminentemente literário (o que diz muito, diga-se de
passagem, sobre o predomínio desse campo na topografia artística francesa). O filme em
questão nessa resenha, Monsieur Ripois (1954, dir. R. Clément) seria um passo além nessa
tendência uma vez que, na adaptação do livro de Louis Hemon, o diretor tenha demonstrado
num cuidado com certos procedimentos, principalmente o uso “neorrealista” de uma câmera
dissimulada nas ruas de Londres (BAZIN, 1998: 162-165). Mas apesar de seus méritos,
Monsieur Ripois não atingiria a fatura de um filme inacabado como A batalha dos trilhos.
9
Diante da produção russa ou de um filme como A última porta (1945, dir. Leopold
Lindtberg), A batalha dos trilhos seria o único exemplar da produção francesa acerca da
Resistência digno de nota. Em artigo publicado em 1946, em Gavroche, Bazin nota que esse
filme sobre o trabalho de sabotagem da rede ferroviária praticado durante a Ocupação é na
verdade uma versão desenvolvida de um documentário (BAZIN, 1998: 143-146). Desde já, o
crítico nota que o filme trabalha com uma matéria propriamente cinematográfica, a ferrovia
sendo associada seja a um conjunto de filmes, como L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat
(1895, dir. Auguste e Louis Luimère), seja a um procedimento como o travelling. Associada ao
desdobramento formal e mecânico advindo do tema, o diretor ainda teria se aproximado
fortemente da psicologia ansiosa que marca a Resistência. Se a intriga é insuficiente enquanto
desenvolvimento dramático, ela é largamente compensada pela construção dessa atmosfera.
Aliás, essa incompletude é justamente um dos elementos que dão valor ao filme: distante da
construção narrativa “correta” proporcionada pelo roteiro de Spaak em Jericho, em A batalha
dos trilhos Clément e o operador Henri Alekan priorizam a câmera, o silêncio em contraposição
à palavra, para trabalhar o tema (BAZIN, 1975: 154-156)7. Mesmo em relação aos demais
filmes de Clément, essa sua primeira produção serviria de parâmetro. Na conclusão do já
referido artigo sobre Monsieur Ripois, Bazin nota que o limite desse filme reside justamente
em se render ao exercício vazio do estilo, de modo a colocar os procedimentos acima do
material e do tema trabalhado, diferentemente do que ocorre com filmes como A batalha dos
trilhos ou ainda Brinquedo proibido (1952, dir. R. Clément) (BAZIN, 1998: 168). Assim, as
sucessivas análises dos filmes de Clément são um modelo para a discussão sobre as fronteiras
legítimas ao exercício do estilo no cinema (RAMOS, 1998).
Paisà
Se, em Monsieur Ripois, Bazin observa o emprego de alguns procedimentos que se
aproximam do neorrealismo (mas também de Vigo e de Dziga Vertov), como a filmagem em
7 Ainda que a Alekan seja feita a restrição da opção por uma imagem aveludada, algo luxuosa, que seria estranha
ao espírito do filme, sendo preferível a opção de Louis Page, em Esperança, por uma fotografia cinza, uniforme e
dura, mais próxima da atualidade (BAZIN, 1998: 146).
10
externas, essa observação não passaria da identificação de uma aproximação pontual. Mais
intensa seria a relação cultivada por um filme como Farrebique (1946, dir. Georges Rouquier)
com relação aos filmes da “escola italiana da Liberação” (BAZIN, 1998: 31). No entanto, de
uma maneira geral, é possível dizer que os procedimentos que marcaram o neorrealismo italiano
não teriam deitado suas raízes no cinema francês8. Essa afirmação careceria de alguns
esclarecimentos suplementares, uma vez que os procedimentos elencados num ensaio como “O
realismo cinematográfico da escola italiana da Liberação” (1948, Esprit) parecem ser
insuficientes para dar conta dos novos diretores que ali emergiriam na década de 1950, como
Frederico Fellini e Michelangelo Antonioni (BAECQUE, 1991: 241-245). No entanto,
considerando que o conjunto de artigos aqui discutidos foi publicado na segunda metade da
década de 1940, é o caso de se ater às primeiras considerações de Bazin a respeito da “escola
italiana”, ainda que sua interação com os diretores e com a crítica local seja muito intensa nos
anos subsequentes (UNGARO, 2000: 189-214).
No artigo citado, Bazin atribui logo de cara ao neorrealismo italiano uma função análoga
à do cinema russo da década de 1920, como ponta de lança no combate ao esteticismo no cinema
(BAZIN, 2014: 281). No que toca ao cinema soviético, a referência a O encouraçado Potemkin
(1925, dir. Serguei Eisenstein) indica já que o embate a toda forma de expressionismo (e, no
seu tempo, ao expressionismo alemão, ao “caligarismo”) não inclui a tendência “neoformalista”
do cinema soviético, que seria duramente criticada anos depois, em “O mito de Stalin no cinema
soviético” (1950, Esprit). Se essa indicação linda com a tensão política cada vez mais forte no
seio da crítica de cinema na França, que explodiria no início da década de 1950, a crítica de
Bazin ao realismo socialista se articula ainda à afirmação paralela do neorrealismo como terreno
de embate a qualquer tentação esteticista que contrariasse a própria vocação da imagem
cinematográfica.
No entanto, mais provocadora ainda, no artigo de 1948 sobre a “escola italiana da
Liberação”, é a aproximação entre o neorrealismo italiano e a produção estadunidense recente,
por meio da referência a Cidadão Kane, que aliás é acompanhada de um comentário sobre
Farrebique (BAZIN, 2014: 293-295). A opção feita ali por Bazin é analisar em paralelo o filme
8 A filmagem em externas, no entanto, que seria tematizada de maneira sistemática por Bazin ao longo da década
de 1950, inclusive de um ponto de vista econômico, seria fundamental na renovação que teria lugar no cinema
local no final da década (SZANIAWSKI, 2011).
11
de Welles e Paisà (1946, dir. Roberto Rossellini) para identificar algumas linhas da tendência
realista dos anos 1940 em geral, bem como algumas especificidades de sua vertente italiana.
Uma apresentação análoga dessa tendência, de resto, permaneceria presente num texto como
“Evolução da linguagem cinematográfica” (síntese de artigos publicados entre 1950 e 1955),
onde os caminhos diferentes trilhados pelo neorrealismo e pelo cinema de Welles e de William
Wyler seriam fundamentais na afirmação dessa nova marca geral dos filmes (BAZIN, 2014:
103-112). De volta ao artigo de 1948, Bazin afirma que Cidadão Kane marcaria, com relação
à decupagem clássica hollywoodiana um uso intenso da profundidade de campo9. Dada a
ausência de direcionamento do olhar, caberia ao espectador a tarefa de dar significado aos
elementos da cena, de construir suas relações (LABARTHE, 2005).
Outro caminho foi tomado em Paisà. Assim como ocorrera com os filmes de Malraux
e de Clément, o comentário de Bazin a respeito da obra de Rossellini centra-se em seus
procedimentos técnicos. Se a opção de Welles pelo trabalho com a profundidade de campo o
impedira, dadas as condições técnicas da época, de filmar ao ar livre, esse é um dos principais
traços distintivos do neorrealismo em geral, incluindo Paisà. A excelência técnica dos filmes
estadunidenses contrasta, portanto, com a precariedade constitutiva da produção italiana da
Liberação. No entanto, se a impossibilidade de registrar o som implicava numa perda de
realismo por parte do cinema italiano, esse obstáculo (ou essa despreocupação com a captação
do som) também conferiu aos cineastas locais a possibilidade de dar maior mobilidade às
câmeras, que tomaram, assim, o espaço público (BAZIN, 2014: 295). Isso permitiria ao
neorrealismo abrir-se de forma cada vez maior aos “fragmentos da realidade”. E aqui, mais uma
vez, Bazin faz referência ao romance moderno (os nomes são familiares a esta altura: Camus,
Malraux, Hemingway, Faulkner, Dos Passos), que segundo ele teria inaugurado essa tendência
de minimizar o dado gramatical em favor da apresentação de fragmentos do real. No que toca
ao cinema, essa implicação com a realidade levaria a uma libertação do acontecimento fílmico
em relação a um encadeamento dramático, tendência que seria levada às últimas consequências
em Umberto D. (1952, dir. Vittorio De Sica):
9 Essa leitura seria estendida a outros filmes de Welles, sobretudo Soberba (1942) no ensaio mais alentado sobre
o diretor publicado por Bazin em 1950 (BAZIN, 2005: 79-93). A respeito de Wyler, a grande referência nesse
sentido é o artigo “William Wyler ou le janséniste de la mise en scène” (1948, La Revue du cinéma).
12
Mas a unidade da narrativa do filme não é o episódio, o acontecimento, a surpresa,
o caráter dos protagonistas, ela é a sucessão dos instantes concretos da vida, sendo
que não se pode dizer que um é mais importante que o outro: já que a igualdade
ontológica deles destrói, em seu próprio princípio, a categoria dramática. Uma
sequência prodigiosa, que permanecerá como um dos ápices do cinema, ilustra
perfeitamente esta concepção da narrativa, e logo, da mise en scène: é o despertar
da empregada que a câmera se limita a olhar em suas mínimas ocupações matinais:
rodando, ainda sonolenta, na cozinha, jogando água nas formigas que invadem a pia,
moendo o café... O cinema torna-se aqui o contrário dessa “arte da elipse” à qual
facilmente gostamos de acreditar que ele está fadado. (BAZIN, 2014: 351)
Como se pode ver, Umberto D. indica para o horizonte a que os procedimentos neorrealistas
levam, isto é, a uma ênfase na continuidade temporal da vida, liberta não apenas de suas amarras
dramáticas, mas da própria concepção do filme como elipse. Da mesma forma que, diante de
certas sequências de Os melhores anos de nossas vidas (1946, dir. W. Wyler) o público
desempenha um papel ativo diante da imagem cinematográfica, é possível entrever aqui sua
libertação tendencial em relação a qualquer enquadramento analítico preestabelecido por um
encadeamento dramático10. Nesse sentido, é possível inclusive retomar o argumento avançado
por Gilles Deleuze, segundo o qual a definição de “neorrealismo” operada por Bazin não se
daria por referência ao conteúdo social desse conjunto de filmes, mas por meio de critérios
formais estéticos; o real, agora, não era mais representado ou produzido, mas visado
(DELEUZE, 2005: 9). E é nesse sentido, pelo abandono da concepção tradicional de roteiro,
pela ruptura com os efeitos dramáticos, que um filme como Noites de Cabíria (1957, dir. F.
Fellini) alcança a separação entre acontecimentos e causalidade, de modo a obstar qualquer
evolução nas personagens, merecendo ser elencado no interior do neorrealismo (BAZIN, 2014:
353-361)11.
Considerações finais – a crítica de cinema na “era da suspeita”
10 Bazin procura, ao final de “O realismo cinematográfico e a escola italiana da Liberação” estabelecer algumas
hipóteses acerca das relações entre o novo cinema italiano e o romance estadunidense (BAZIN, 2014: 304-306). 11 O artigo em questão, “Cabíria, ou a viagem aos confins do neorrealismo” contém, já em seu título, uma
provocação frente à suspeita levantada, sobretudo pela crítica italiana, a respeito do conservadorismo de Fellini,
uma vez que o nome faz referência a Viagem ao fim da noite (1932), do escritor conservador Louis-Ferdinand
Céline.
13
Em 1950, Nathalie Sarraute publicaria em Les Temps modernes o ensaio “A era da
suspeita” (SARRAUTE, 2004: 57-79). A autora nota ali que o público leitor perdeu a confiança
depositada nos autores do século XIX. Tal confiança tinha como elemento-chave a
verossimilhança sobre a qual repousavam as narrativas. O leitor que já passou, em termos
geracionais, por Joyce, Proust ou Freud, desconfia do “objeto real” apresentado nos livros,
donde a queda da narrativa impessoal e sua substituição pela primeira pessoa, forma de
circunscrever seu tema a si próprio. Também o autor desconfia agora de seu público, da
tendência do leitor à tipificação. Mas essa tendência seria ainda mais geral segundo Sarraute.
Inda que o cinema tenda a apropriar-se do terreno deixado pela literatura (o que faz a fotografia
em relação à pintura), ele se veria implicado nesse mesmo contexto de suspeita, sendo tomado
de assalto pelas novas formas de narrativa. Exemplo disso, segundo a autora, seria a introdução
da noção de “testemunha” nos filmes. Tomado por uma suspeita análoga em relação à
verossimilhança expressa, por exemplo, num realismo baseado na “reprodução” da realidade, a
posição de Bazin não deve ser compreendida apenas em relação à defesa de uma certa tendência
cinematográfica12, mas se inscreve ainda de uma maneira mais direta numa determinada
maneira de desdobrar o discurso cinematográfico. Se é possível afirmar a existência de um
universo diretamente político na prática crítica baziniana, este se insere, sobretudo, numa
investigação das instâncias (a profundidade de campo, a explosão do encadeamento dramático)
que permitiriam restituir os filmes à pólis, a uma ação do público (WATTS, 2011). Modalidade
de crítica, aliás, relegada à obsolescência pela institucionalização acadêmica.
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12 Outras tendências – o cinema de animação ou o trabalho com material de arquivo, por exemplo – colocariam
grandes desafios à perspectiva baziniana.
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