12
Cadernos Espinosanos XXIV 92 93 a filosofia do jansenista, nós o interpretamos de maneira positiva, visto que são esses limites que impulsionam o saber, levando o homem a conceber novas proposições e teoremas na geometria e criar novas hipóteses na física. A HISTÓRIA DOS DISCURSOS SOBRE AS PAIXÕES NAS TUSCULANAS DE CÍCERO André Menezes Rocha * Resumo: Como as paixões apareciam na dialética de Platão? Como apareciam na escrita retórica? Como apareciam na lógica dos estoicos? Nas Tusculanas, Cícero examina formas diversas de discurso sobre as paixões e as virtudes em busca de fundamentos para a filosofia moral. Este exame, que se assemelha a uma história dos discursos antigos, também põe em confronto as grandes escolas materialistas da Antiguidade: a medicina hipocrática, o estoicismo, o cirenaísmo e o epicurismo. O estudo das Tusculanas de Cícero nos permite uma apreensão dos diferentes modos de discurso sobre as paixões que foram elaborados e utilizados durante a Antiguidade. Palavras-chave: paixão, razão, retórica, lógica, discurso, Antiguidade. A medicina do ânimo contra o sofrimento. O preâmbulo do livro III define a filosofia como a medicina do ânimo [medicina animi]. Como a medicina do corpo é a arte de curar as feridas e doenças do corpo, a medicina do ânimo é a arte de curar doenças e feridas do ânimo. Toda a classificação das perturbações e doenças do ânimo das Tusculanas é relativa à definição de saúde do ânimo que surge já no preâmbulo: a saúde do ânimo é a virtude [virtus]. O que é a virtude? “Em nossos engenhos existem sementes inatas das virtudes que, quando podem amadurecer e crescer, nos conduzem * Doutor em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da USP.

Andre

Embed Size (px)

DESCRIPTION

khbkjbkjbjk

Citation preview

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    92 93

    a filosofia do jansenista, ns o interpretamos de maneira positiva, visto que so esses

    limites que impulsionam o saber, levando o homem a conceber novas proposies e teoremas na geometria e criar novas hipteses na fsica.

    A hISTRIA dOS dIScURSOS SOBRE AS PAIxES NAS TUScUlANAS dE ccERO

    andr menezes rocha*

    Resumo: Como as paixes apareciam na dialtica de Plato? Como apareciam na escrita retrica? Como apareciam na lgica dos estoicos? Nas Tusculanas, Ccero examina formas diversas de discurso sobre as paixes e as virtudes em busca de fundamentos para a filosofia moral. Este exame, que se assemelha a uma histria

    dos discursos antigos, tambm pe em confronto as grandes escolas materialistas da Antiguidade: a medicina hipocrtica, o estoicismo, o cirenasmo e o epicurismo. O estudo das Tusculanas de Ccero nos permite uma apreenso dos diferentes modos de discurso sobre as paixes que foram elaborados e utilizados durante a Antiguidade. Palavras-chave: paixo, razo, retrica, lgica, discurso, Antiguidade.

    A medicina do nimo contra o sofrimento.

    O prembulo do livro III define a filosofia como a medicina do

    nimo [medicina animi]. Como a medicina do corpo a arte de curar as feridas e doenas do corpo, a medicina do nimo a arte de curar doenas e feridas do nimo. Toda a classificao das perturbaes e doenas do

    nimo das Tusculanas relativa definio de sade do nimo que surge j no prembulo: a sade do nimo a virtude [virtus]. O que a virtude?

    Em nossos engenhos existem sementes inatas das virtudes que, quando podem amadurecer e crescer, nos conduzem

    * Doutor em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da USP.

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    94

    Andr Menezes Rocha

    95

    vida de beatitude [ad beatam vitam]. (Cicero 1, Livro III, 2. Pgina 266).

    Estas sementes inatas, no entanto, no so cultivadas com o cuidado que permitiria prpria pregnncia da natureza faz-las nascer, crescer e florescer. Pelo contrrio, a cultura estabelecida, o sistema de instruo

    dos infantes aos jovens romanos, argumenta Ccero, resseca e sufoca as sementes inatas das virtudes.

    ... somos levados a professores que nos imbuem de vrios erros para que a verdade d licena vaidade e a natureza s opinies estabelecidas. (Cicero 1, Livro III, 2. Pgina 266).

    Alm do sistema educacional, Ccero aponta duas outras pragas que impedem o cultivo natural da virtude nos nimos: (a) os poetas que imbuem suas epopias com uma moral de incentivo falsa glria; (b) as

    opinies e valoraes morais das elites que acabam moldando a cultura: sobretudo a opinio de que a verdadeira glria [gloria] sentida pela obteno de riquezas e cargos de poder independentemente da virtude ou torpeza nas condutas.

    A metfora agrcola no gratuita: no modo de produo antigo, toda a produo econmica est ancorada no cultivo da terra. Ora, a arte agrcola no um artificialismo puro: pelo contrrio, o bom agricultor

    deve apenas criar as condies para que a prpria terra faa germinar as sementes. A medicina do nimo, igualmente, oferece as condies para que os nimos doentes deixem a natureza, com seu poder regenerador, agir e germinar as sementes das virtudes.

    A questo que perpassa a narrativa do dilogo a seguinte: o sbio contrai sofrimento [aegritudo]? A questo investigada em trs grandes momentos, correspondentes aos argumentos das trs escolas de moral mais

    influentes do materialismo helenista: a estoica, a epicurista e a cirenaica.

    Antes de examinar cada uma das trs escolas materialistas de filosofia moral, Ccero apresenta algumas distines nominais para buscar

    a definio de paixo, em um quadro mais amplo de definies que

    constituem o ncleo de sua medicina do nimo. (a) As definies iniciais.

    A primeira definio de Ccero nominal: a palavra paixo [pathos] na lngua grega significava doena e reunia assim indistintamente dois

    sentidos que a lngua latina separava, quais sejam, o sentido da perturbao do nimo [perturbatio] e o sentido da doena [morbo].

    Como dizer a paixo? Neste primeiro momento, Ccero aceita a identidade implcita na palavra grega para a paixo [pathos] e, no por acaso, a partir desta identidade inicia sua investigao pela moral dos estoicos. Como sabemos, precisamente a moral elaborada pelos primeiros estoicos erguida na aceitao de que toda paixo doena: desta tese s se pode concluir que toda atividade da reta razo exclui todo e qualquer movimento passional do nimo. Por isso a medicina do nimo estritamente estoica ser sempre uma cirurgia das paixes com o bisturi da lgica.

    Nada se fez enquanto no se impossibilitou a alma de senti-las. A sabedoria uma cirurgia das paixes. (Lebrun 2, Pgina 388.)

    A identidade, sob a categoria da paixo, tanto da doena [morbo] como da perturbao [perturbatio] est condicionada a uma identidade entre palavras mais gerais. Trata-se da identidade entre gnosiologia e medicina. As palavras so articuladas no seguinte esquema bipartido: (a) razo sanidade ou sade mental [sanitas]; (b) paixo insanidade ou

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    96

    Andr Menezes Rocha

    97

    doena mental [insania]. Ccero argumenta que o vnculo foi constitudo pelos ancestrais usurios da lngua latina.

    tico: O qu? Para ti parece que toda comoo do nimo [animi comotio] seja insnia [insania]? Marcos: Na verdade, no apenas para mim, mas tambm sei que assim pensavam os nossos ancestrais [maioribus nostris] muitos sculos antes de Scrates em quem a filosofia manou tudo

    o que concerne vida e aos costumes. (Cicero 1, Livro III, 8. Pgina 232).

    A identificao entre gnosiologia e medicina do nimo, portanto,

    no foi uma inveno grega. Ela existia nos ancestrais romanos muitos sculos antes de Scrates. Tratar-se-, em seguida, de verificar como o

    estoicismo romano recebeu esta identificao e erigiu a sua filosofia moral

    a partir das divises subsequentes.

    (b) Estoicos.

    Os estoicos no admitem que o nimo do sbio contraia sofrimento. Para extrair esta concluso, Ccero reproduz uma argumentao que consiste em mostrar a oposio e incompatibilidade entre o sofrimento [aegritudo] e cada uma das virtudes. Cada passo da argumentao, assim, consiste em opor proposies absolutamente contrrias, umas tendo como sujeito uma virtude singular, outras tendo como sujeito esta paixo singular que o sofrimento [aegritudo] ou o medo [timor] que como seu predicado inseparvel. Seja o exame da virtude que a fortaleza [fortitudo].

    Quem forte confiante [fidens]; (...) quem confiante

    no se atemoriza; com efeito, temer discrepa de confiar.

    Ora, em quem entra [cadit] o sofrimento, nele entra o temor

    [timor]; (...) Assim, o sofrimento [aegritudo] repugna fortaleza [fortitudine] (...) Ningum sbio [sapiens] se no for forte [fortis]; logo, o sofrimento no entra no sbio. (Cicero 1, Livro III, 15. Pgina 241 e 242).

    No preciso reproduzir aqui todos os momentos da argumentao, pois basta evidenciar a regra que os costura. Alm disso, a concluso sempre a mesma: o sofrimento no entra no nimo do homem sbio [vir sapiens] que vive na reta razo [recta ratio]. Esta negao absoluta, no obstante, engendra um contrassenso, qual seja, torna impossvel uma teraputica. A medicina do nimo poderia aparecer como intil no interior da filosofia moral estoica, a no ser

    que a amputao de todas as paixes seja tida como a terapia estoica. Ccero no apresenta abertamente este problema, mas veremos que ele busca contorn-lo no quarto livro das Tusculanas.

    Agora quero apenas realar o momento da argumentao em que Ccero rene todas as virtudes sob a frugalidade [frugalitas], pois pela sua etimologia que retomar as metforas agrcolas para tratar do cultivo das virtudes no nimo. No nimo do sbio [vir sapiens] se desenvolvem as sementes naturais das virtudes em ramos que se frutificam e estes frutos expelem os sofrimentos. Quais so as virtudes

    que se frutificam no nimo forte?

    ... trs virtudes, quais sejam, a fortaleza [fortitudinem], a justia [justitiam] e a prudncia [prudentiam] so abraadas pela frugalidade e ela o que h de comum entre as virtudes, pois todas so conectadas [nexae] e conjugadas [jugatae] entre si. Que se considere, assim, a frugalidade como a quarta virtude. O prprio da frugalidade [frugalitas] parece ser reger [regere] e sedar [sedare] o movimento do nimo apetente para conservar sempre uma constncia [constantia]

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    98

    Andr Menezes Rocha

    99

    moderada, em todas as coisas, contra as concupiscncias [adversantem libidini]. O vcio contrrio o desregramento [nequitia]. A frugalidade, em minha opinio, teve origem na palavra fruto [fruge]1, ou seja, no que a terra faz de melhor. (Cicero 1, Livro III, 17 e 18. Pginas 245 e 246).

    Precisamente por sustentar que as virtudes do sbio excluem de seu nimo todas as paixes, sobretudo as derivadas do sofrimento [aegritudo], a moral estoica no permite a elaborao de teraputica alguma. Sigamos agora o bisturi estoico na breve argumentao a partir da frugalidade.

    Quem frugal, ou seja, quem moderado e temperante, necessariamente constante [constans]; quem constante quieto [quietum]; quem quieto vazio [vacuum] de toda perturbao e, portanto, de sofrimento [aegritudine]. E o sbio tem tais virtudes; logo, o sofrimento passa bem longe

    do sbio. (Cicero 1, Livro III, 18. Pgina 246).

    A interrogao pela teraputica do sofrimento s tem incio aps o exame do estoicismo, antes do exame da moral epicurista e da moral cirenaica.

    (c) o princpio etiolgico.

    Na medicina, somente o conhecimento da causa de uma doena permite

    elaborar o remdio que ir combat-la para restabelecer a sade do corpo. Trata-se, no livro III, de estabelecer a etiologia do sofrimento [aegritudo].

    Temos que explicar a origem da dor que causa eficiente tanto do sofrimento [aegritudinem] no nimo, como do sofrimento [aegrotationem] no corpo. Como os mdicos julgam que a causa da doena deve ser encontrada para que

    sua cura seja encontrada, ns buscaremos a possibilidade de cura do sofrimento a partir de sua causa. (Cicero 1, Livro III, 25. Pgina 254).

    A teraputica, assim, depende da etiologia e o conhecimento causal das paixes constitui um ramo preciso da medicina, qual seja, a patologia. No caso da medicina do nimo, a etiologia proposta por Ccero est assentada numa tese universal: todas as paixes so causadas por opinies.

    Portanto a causa de todas a opinio, no apenas a causa de todo sofrimento [aegritudo], mas a causa de todas as paixes [perturbationum] que so muitas, mas todas classificadas a partir de quatro gneros. (Cicero 1, Livro

    III, 24 e 25. Pgina 254).

    Em seguida, Ccero apresenta a clebre definio geral de

    paixo que foi legada por Zeno. No trataremos dela aqui, pois ela ser tratada no contexto do livro IV. Aps o principio etiolgico ser aceito, patologia cabe investigar em cada paixo singular qual a opinio singular que lhe engendra.

    Qual a causa eficiente do sofrimento?

    Parece claro o seguinte: o sofrimento comea a existir quando algum grande mal parece nos afetar [adesse] ou se aproximar de ns. (Cicero 1, Livro III, 28. Pgina 258).

    A partir desta tese, Ccero distingue os epicuristas dos cineraicos. Epicuro sustentou a opinio de que todos os males percebidos geram sofrimento, ao passo que os cirenaicos sustentaram que apenas alguns males, quais sejam, os inesperados, geram sofrimento.

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    100

    Andr Menezes Rocha

    101

    (d) Epicurismo.

    Os epicuristas sustentam que a causa do sofrimento a dor [dolor]. Como remdio, sugerem o prazer [voluptas]. Propem que o nimo passe o seu tempo no deleite dos prazeres, sem se preocupar com imagens fantasmagricas de males futuros, sem as ansiedades que animam as imagens pavorosas dos infortnios.

    Julga que o alvio para os sofrimentos vem de duas coisas, quais sejam, desviar-se da contemplao da molstia [molestia] e dirigir o nimo para a contemplao dos prazeres [voluptates]. (Cicero 1, Livro III, 33. Pgina 266).

    Para Ccero, os epicuristas deixam de lado os princpios da teraputica do sofrimento que so a meditao sobre as causas dos males necessrios da condio humana e a premeditao sobre os infortnios que podem sobrevir, no para se entristecer com a contemplao dos males, mas para se exercer na filosofia.

    Quem pensa [cogitat] na natureza das coisas [rerum natura], nas variaes da vida e nas fraquezas dos homens no sofre [maeret], enquanto pensa, mas exerce ao mximo a funo da sabedoria. (Cicero 1, Livro III, 34. Pgina 267 e 268).

    Quem se dedica ao pensar tambm as dores e misrias da condio humana, segundo Ccero, cumpre o dever [offcio] da filosofia e encontra os remdios que curam os sofrimentos do nimo. Epicuro no os teria encontrado por se desviar destes problemas e se dedicar somente aos seus prprios prazeres. Desta maneira, Ccero se pe de acordo com os estoicos na recusa do epicurismo2.

    (e) Cirenaicos.

    Os cineraicos tambm estabelecem, como os epicuristas do texto de Ccero, que o sumo bem e sumo mal se encontram restringidos aos movimentos instantneos de prazer ou dor no corpo. Tais posies divergem da tese que abraada por Ccero e pelos senadores estoicos que so os destinatrios de seu texto: o sumo bem deve ser encontrado na virtude e o sumo mal a torpeza [turpitudo].

    Os cirenaicos, porm, acertaram quando buscaram os remdios para o sofrimento [aegritudo] na premeditao sobre os males: pequenas doses cotidianas de meditao sobre os males da condio humana so j dolorosas, mas vacinam o nimo contra o impacto das dores violentas que geram sofrimento. A teraputica cirenaica se desenvolveu a partir de uma divergncia sobre a causa do sofrimento: como vimos, para os cirenaicos, diversamente do que sustentavam os epicuristas, nem todos os males sobrevindos ao nimo geram sofrimento. Quais os males particulares que devem ser considerados como causas eficientes do sofrimento? Os males

    que causam impactos violentos e dolorosos no nimo, se o nimo jamais premeditou ou se vacinou contra tais males.

    Resta a sentena dos Cirenaicos que sustentam que o sofrimento s passa a existir se algo inopinado [necopinato] acontecer.(Cicero 1, Livro III, 55. Pgina 290).

    Para evitar o mal de que no tnhamos opinio, o mal inopinado [necopinado], basta ocupar o nimo com opinies sobre os males possveis da condio humana.

    Entretanto, Carnades lanou uma tese contrria que pe em dvida a eficcia da vacina cirenaica. Uma vez tenha o mal gerado o impacto

    doloroso no nimo, a vacina serve para minimizar o sofrimento, mas no

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    102

    Andr Menezes Rocha

    103

    permite cur-lo: a premeditao sobre os males pode ter mudado a relao do nimo com a dor, mas isso no basta para superar a prpria situao adversa que gera a dor e o sofrimento.

    Este discurso nada subtrai [detrahit] do prprio mal, mas apenas sugere que nada do que aconteceu escapava s opinies do nimo. (Cicero 1, Livro III, 55. Pgina 290).

    Trata-se do que poderamos chamar de uma moral da resignao. No interior desta moral, no entanto, Ccero inicia a argumentao que a supera. Ele inicia, como veremos, modificando ligeiramente a etiologia.

    Acompanhemos a transio.

    Os eventos inopinados [necopinata] no tm tanta fora assim para que todos os sofrimentos deles se originem; eles

    talvez nos deixem mais abalados [sunt gravius], mas no fazem que os acidentes nos paream males maiores [maiora]: eles nos parecem maiores por serem recentes e no por serem repentinos. (Cicero 1, Livro III, 55. Pgina 290).

    Os cirenaicos, assim, buscavam pensar na necessidade, na possibilidade ou na contingncia do evento que serve para determinar a causa eficiente do sofrimento. Ccero argumenta que a causa eficiente deve

    ser buscada na proximidade ou na distncia temporal.

    (f) o remdio de Ccero contra o sofrimento.

    A diferena na etiologia conduz diferenciao na teraputica. A causa do sofrimento, para Ccero, deve ser buscada numa opinio sobre a proximidade ou distncia temporal de eventos dolorosos.

    Quanto teraputica, ela tambm parecida com uma vacina.

    Ccero sustenta que o remdio, porm, em vez de ficar imaginando os

    males como os cirenaicos, consiste em concentrar suas foras no cultivo das virtudes para fortalecer o nimo antes que sobrevenham os infortnios.

    Com mxima ateno devemos perceber o seguinte: o tempo tem o poder de aplacar o sofrimento, mas a fora da cura no est no passar do tempo e sim na meditao cotidiana [cogitatione diuturna]. Com efeito, se a coisa permanece a mesma e o homem permanece o mesmo, como pode se modificar algo na dor se nada muda no condodo ou na coisa

    dolorosa? A meditao cotidiana que cura [medetur], no a cotidianidade. (Cicero 1, Livro III, 74. Pgina 312).

    Como a teraputica de Ccero? O nimo dedica suas foras ao cultivo das virtudes. Elas frutificam e se tornam os remdios naturais contra

    os males. O nimo se fortalece no por passar seu tempo nos prazeres fteis, como na figura vulgar do epicurismo, ou por passar seu tempo imaginando

    males e catstrofes futuras, como na figura dos resignados cirenaicos, mas

    por dedicar suas foras ao cultivo das virtudes.

    A retrica e a aplicao dos remdios para as paixes.

    A questo que estrutura o livro IV a seguinte: pode o sbio [sapiens] esvaziar [vacare] seu nimo de toda paixo [perturbatione]? Como tico j formula a questo para neg-la, Ccero lembra-o das concluses do dia anterior: sendo o sofrimento [aegrotatio] uma espcie de paixo [perturbatio], pelo menos o sofrimento no entra no nimo do sbio. Esta concluso do terceiro dia serve ainda como premissa para concluir que o medo [metus] tambm no entra, j que o medo inseparvel do sofrimento. Resta examinar, conclui Ccero, se o nimo do sbio pode se esvaziar das outras duas espcies de paixo [perturbationes]: a alegria

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    104

    Andr Menezes Rocha

    105

    [laetitia] e a concupiscncia [libido]. Este exame, porm, pode ser feito com duas estruturas discursivas

    diversas, quais sejam, a retrica que encontrada nos textos peripatticos e a dialtica que encontrada nos textos estoicos sobre as paixes.

    Crisipo e os estoicos, quando tratam das paixes do nimo, na maior parte se ocupam com distinguir e definir, mas seu

    discurso carece da oratria que cura [emendat] os nimos e lhes permite no padecer movimentos turbulentos; os

    Peripatticos, porm, muito ajudam no aplacar os nimos e deixam de lado as definies e divises. (Cicero 1, Livro

    IV, 9. Pgina 336).

    Ccero e tico decidem trabalhar com ambos os discursos, mas iniciam com o discurso dialtico, ou seja, com o exame da moral dos estoicos. No iremos aqui seguir no detalhe as dezenas de definies que

    so recolhidas e sistematizadas por Ccero a partir dos escritos estoicos. Faamos, no entanto, um inventrio das definies dos gneros que

    condicionam todas as espcies, antes de perguntar o que os antigos estoicos entendiam por definir uma paixo.

    (a) os estoicos e a dialtica aplicada nas paixes.

    A aplicao da dialtica moral, no discurso estoico, est condicionada a uma tese acerca da natureza do nimo, atribuda por Ccero a Pitgoras e Plato3, qual seja, a tese de que o nimo cindido em duas partes, uma participante da razo, onde a tranqilidade deve ser posta, outra que no participa da razo e nesta parte que devem ser postos como predicados os movimentos perturbatrios [motos turbidos], tais como a concupiscncia [libido] e a ira.

    Desta diviso segue que da parte irracional devem ser predicados

    todas as paixes [perturbationes] do nimo que se agrupam como espcies e subespcies de quatro gneros principais: o sofrimento [aegritudo], o medo [metus], a alegria [laetitia] e a concupiscncia [libido].

    A definio de Zeno a seguinte: a paixo

    [perturbatio], que ele nomeia pathos na lngua grega, no seno uma comoo do nimo [comotio] que avessa reta razo e contrria natureza. Alguns mais resumidamente dizem que a paixo uma apetncia muito veemente, querendo com isso dizer que arrasta para longe da constncia da natureza. Quanto s espcies [partes] de paixes, querem que sejam nascidas [nasci] das opinies acerca de dois bens e das opinies acerca de dois males, de tal maneira que sejam quatro: das opinies sobre bens nascem a concupiscncia [libidinem] e a alegria [laetitia], esta sendo opinio sobre bens presentes e aquela sobre bens futuros; das opinies sobre males julgam nascer o medo

    [metus] e o sofrimento [aegritudine], este de opinies sobre males presentes e aquele de opinies sobre males futuros. (Cicero 1, Livro IV, 11. Pgina 340).

    Observamos, pelas definies, que os estoicos estruturavam

    sua moral a partir da aceitao da tese de que a causa de toda paixo a opinio. Esta, alis, parece ser uma tese aceita por todas as escolas de moral da antigidade, ao menos tais como aparecem nas Tusculanas. O prprio Ccero, apesar de transitar mesmo entre os discursos opostos das diversas escolas de moral, jamais ope qualquer antinomia a esta tese: ela parece cair como uma luva para a escrita que se faz, qual a retrica de Aristteles, como arte de transitar entre as opinies contrrias e examinar como persuadem ou geram assentimento nos nimos.

    Com base nesta tese, com efeito, Ccero distinguiu a dialtica estoica da retrica aristotlica pelos seus efeitos no nimo. A retrica, sobretudo

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    106

    Andr Menezes Rocha

    107

    no estudo do gnero judicirio, estuda como as diversas opinies suscitam as paixes dos jurados e juzes pelos diversos exemplos e entimemas: por isto a retrica pode ser tanto veneno como remdio. A dialtica estoica, porm, erguida nas definies, no se dirige s paixes do nimo, pois s

    dialoga com aquela parte do nimo que se comunica com a razo csmica4 e que purificada de toda paixo [recta ratio]: por isso a dialtica no pode ser remdio para as paixes, por ser discurso que no dialoga com a parte passional do nimo.

    As definies, se hauridas da dialtica socrtica, devem conduzir

    ao conhecimento da essncia5 ou forma de cada paixo definida. Ora, este conhecimento estoico das definies das paixes s formal e no tem

    efeito afetivo ou tico algum sobre as paixes: apenas um outro discurso, o retrico, j no estruturado em definies da razo mas em opinies aceitas

    e lugares comuns da tradio, poder permitir a elaborao de remdios para as paixes. A moral dos estoicos, assim, servir de etiologia, mas a teraputica ser elaborada a partir da retrica de Aristteles.

    O exame das dezenas de definies que so deduzidas dos quatro

    gneros principais de paixes resulta na resposta negativa questo proposta por tico no incio do dilogo: o nimo do sbio jamais contrai qualquer paixo [perturbatio].

    O discurso estoico que conduz a esta concluso, atravs do sistema constitudo pelas diversas definies de paixes, opera, como na dialtica

    platnica em que se inspirou, com a regra das oposies absolutas. Em primeiro lugar a prpria bipartio do nimo, tese que fundamenta toda a moral estoica, exemplar destas oposies: de um lado a parte racional do nimo, de outro a parte passional do nimo; de um lado a razo, de outro

    a paixo. As categorias morais, no decurso das argumentaes dialticas, devero se enquadrar nas mesmas divises rgidas para que permaneam obedecendo regra do jogo discursivo. Assim, a virtude [virtus] e o vcio [vitiositas], pares de contrrios, sero dispostos segundo a diviso inicial:

    todas as virtudes devem ser predicados da parte racional do nimo e todos os vcios s podem ser predicados da parte irracional. O mesmo dizer, agora com proposies negativas: nenhuma paixo do nimo pode encontra-se como um predicado daquela parte chamada razo e, reciprocamente, nenhuma virtude pode ser encontrada naquela parte passional do nimo.

    Ccero termina o exame do estoicismo passando das paixes para o cultivo das virtudes. Ele rene, novamente, as virtudes sob a frugalidade [frugalitas]: o homem frugal moderado [moderatum], modesto [modestum], temperante [temperantem], constante [constantem].

    O homem sbio, seja ele quem for, no seno aquele que com moderao [moderatione] e constncia [constantia] tem o nimo em paz [placatus] consigo mesmo, de tal maneira que no se deixa abater por sofrimentos, nem se deixa cair em temores, nem arder com nsias na expectativa de concupiscncias ou comprazer-se com a fruio de futilidades. Este o sbio que procuramos, ou seja, o feliz [beatus], que nada encontra nas coisas humanas [rerum humanarum] que seja intolervel e digno de desprezo ou que seja to adorvel que valha a pena ali se perder. Com efeito, o que poderia haver de to grandioso nas coisas humanas que seja maior que notar a eternidade de todo o universo? (Cicero 1, Livro IV, 37. Pgina 336).

    Na dialtica dos estoicos, aparece como contrassenso e falsidade buscar, no interior das paixes, dialetizar a virtude e o vcio.

    Quando o nimo est vazio [vacuus] de paixes [perturbationes], torna-se perfeita e absolutamente feliz, ao passo que quando afastado e abstrado da razo perde no apenas a constncia, mas deveras tambm a sanidade [sanitas] (Cicero 1, Livro IV, 38. Pgina 369).

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    108

    Andr Menezes Rocha

    109

    Como todas as paixes so doenas e vcios, torna-se indizvel e impensvel, seguindo as regras deste discurso moral, partir das definies

    das paixes e buscar, numa dialtica ascendente, a conciliao entre algumas paixes alegres e as virtudes. Igualmente ilgico apareceria partir das definies das virtudes para deduzir, com um movimento descendente

    da dialtica, quais paixes poderiam com elas se conciliar.

    (b) os peripatticos e a aplicao da retrica nas paixes.

    Quando Ccero parte para o exame da retrica das paixes dos peripatticos, parece no abandonar este dogmatismo estoico. A teoria peripattica refutada e ridicularizada desde o incio precisamente a partir da virtude e do vcio.

    Quo molengas e fracos devem ser julgados tanto o discurso [oratio] como a maneira de pensar [ratio] dos Peripatticos, que dizem ser necessrio que os nimos sejam apaixonados [perturbari], contanto que tenham alguma moderao [modum] para alm da qual no seja oportuno progredir na paixo! Tu, ento, queres que os vcios moderem a si mesmos ou julgas que no h vcio algum em no obedecer [parere] razo? (Cicero 1, Livro IV, 38. Pgina 369).

    A parte irracional do nimo lugar onde s habitam vcios e estes no podem moderar a si mesmos. Se a razo pudesse entrar nestes domnios (ela no pode, pela tese da bipartio do nimo que inaugura a dialtica estoica das paixes), ela cairia num precipcio sem fundo.

    Quem busca moderao [modum] nos vcios, portanto, faz algo semelhante a um homem que se joga do penhasco de

    Leucata julgando poder, em meio queda, suspender-se de volta ao cimo. (Cicero 1, Livro IV, 41. Pgina 370).

    A refutao da moral aristotlica pressupe a dialtica dos estoicos, pois o seu ncleo a oposio entre virtude e vcio que, por sua vez, esto ligadas no discurso estoico tese da bipartio do nimo: razo idntica virtude e paixo idntica a vcio.

    Ccero examinar como os peripatticos argumentam para provar, no caso de cada paixo particular, a sua utilidade natural, ou seja, a sua finalidade natural para a vida moral dos homens. No cabe aqui seno

    indicar que, por todo o exame, Ccero refuta os peripatticos e os acusa de defender uma filosofia moral que exalta os vcios, ou seja, as paixes.

    Quando termina o exame do aristotelismo, reproduz o mesmo argumento com as metforas agrcolas que tecem a agricultura animi do estoicismo.

    Todas (as paixes) so originadas dos erros cujas razes devem ser arrancadas e extradas, no apenas aparadas e podadas. (Cicero 1, Livro IV, 57. Pgina 392).

    Mas logo aps tais sentenas sisudas que o discurso ciceroniano se esquiva habilmente do estoicismo. De fato, como falar em medicina do nimo fundada pela filosofia se, no quadro rgido do estoicismo, a razo

    no tem nada de comum com a paixo?6 Como poder o nimo doente tornar-se mdico de si mesmo se o seu nimo repleto de paixes no tambm movido por virtudes? A tese de que as sementes das virtudes so por natureza inatas em todos os nimos, tese apresentada no prembulo do livro III, no contradiz a tese estoica da rgida ciso do nimo? Com efeito, se o nimo do sbio vazio de paixes, o nimo do homem passional no dever tambm ser dito vazio de virtudes?

    Ccero contorna o problema atribuindo ao seu interlocutor, o

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    110

    Andr Menezes Rocha

    111

    epicurista tico, o desejo de conhecer os remdios para as paixes. A arte mdica de cura das paixes apresentada como til para um epicurista que convivesse com as paixes e no para um estoico que quisesse um nimo evacuado de toda e qualquer paixo.

    Dirigirei meu discurso para ti, tico, que simulas querer saber do sbio [de sapiente] querendo talvez saber de si mesmo (Cicero 1, Livro IV, 61. Pgina 394).

    Ora, esta estratgia no indica precisamente uma certa dialetizao da virtude e do vcio? As sementes da virtude, com efeito, devem ser encontrveis tambm nos nimos dos que no renunciam s paixes. Talvez indique, ainda, um certo tratamento dialtico do que seria irresolvel oposio entre epicurismo e estoicismo, sob a aparente opo exclusiva pela moral estoica.

    (c) A teraputica retrica.

    A teraputica est fundamentada no princpio etiolgico: toda paixo causada pela opinio. Embora nas definies estoicas, pela definio

    geral de paixo atribuda a Zeno, elas apaream como movimentos do nimo, a causa destes movimentos est restrita ao campo das opinies.

    Conhecemos a causa das paixes: todas elas nascem das opinies em juzos e no assentimento das volies s opinies. (Cicero 1, Livro IV, 82. Pgina 420).

    Encontrada a opinio que persuadiu o nimo a padecer na paixo particular em considerao, a teraputica consistir em contrapor a opinio contrria (qui pelo mtodo da antinomia cptica que conduzir, no limite, a suspender o juzo para no assentir sobre paixo alguma) que poder

    persuadir (pelo uso retrico da linguagem) o nimo a expelir a paixo e cultivar as virtudes.

    Tanto para o sofrimento [aegritudo] como para todas as outras doenas do nimo [animi morborum], h um s remdio que mostrar como so opinies que contramos por aceit-las voluntariamente. Esta aceitao errnea das opinies como se fosse a raiz de todos os males e a filosofia

    mostra como a raiz deve ser extrada. Nos entreguemos ao cultivo da filosofia para que nos curemos a ns mesmos.

    (Cicero 1, Livro IV, 84. Pgina 422).

    Tambm aqui no iremos reproduzir os exames da cada paixo singular, pois esto dispostas no texto de Ccero para consulta. Apenas indicamos, mais uma vez, que a teraputica est restrita ao campo das opinies: tudo se passa como se bastasse ao nimo se dispor s trocas de opinies, contraposio entre opinies contrrias que despertam paixes contrrias em seu nimo. No h, conjuntamente com este exame das relaes entre as opinies no discurso e as paixes no nimo, um exame das relaes entre os nimos e suas condies materiais de existncia, ou seja, no h abertura para pensar as relaes entre os movimentos dos nimos e os movimentos sociais e polticos. A inspirao na medicina hipocrtica, no obstante, deveria sugerir tal ampliao do exame para o campo dos ventos, dos rios, da terra e dos lugares.

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    112

    Andr Menezes Rocha

    113

    THE HISToRy oF THE DISCoURSES

    ABoUT PASSIoNS IN CICERoS TUSCULAN DISPUTATIoN

    Abstract: How passion shows itself in Platos dialectics? How in the texts of rhetoric? How in the Stoics logic? Cicero makes a skeptical examination of many forms of speeches on passions and virtues, in the Tusculan Disputation, searching for grounds for moral philosophy. This examination, which seems to be a history of all ancient texts on the matter, puts in confrontation the great schools of the ancient materialism: Hippocratic medicine, Stoicism, Cyreaism and Epicureanism. The lecture of Ciceros Tusculan can let us apprehend the different modes of discourse on passions and actions that were developed in Antiquity. keywords: passions, reason, rethoric, logic, discourse, Antiquity.

    REFERNCIAS BIBLIogRFICAS

    1. CICERO, M.T. Tusculanae Disputationes. With a english translation by E.J. King. Loeb Classical Library. Harvard University Press, 1971.

    2. LEBRUN, G. O conceito de paixo. In: A filosofia e sua histria. Organizao de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Maria Lcio M.O. Cacciola e Marta Kawano. Apresentao de Carlos Alberto de Moura. So Paulo, Cosacnayf, 2006.

    3. ___________. A neutralizao do prazer. In: A filosofia e sua histria. Organizao de

    Carlos Alberto Ribeiro de Moura, Maria Lcio M.O. Cacciola e Marta Kawano. Apresentao de Carlos Alberto de Moura. So Paulo, Cosacnayf, 2006.

    4. MEYER, M. Le philosophe et les passions. Esquisse dune histoire de la nature humaine. Librairie Gnrale Franaise, Paris, 1991.

    NoTAS

    1. Ablativo de [frux], substantivo que significa os frutos maduros que podem ser colhidos, os frutos que so timos para a fruio. Da mesma raiz, portanto, vem o verbo fruir [fruor]. 2. Esta recusa, no entanto, funda-se numa interpretao enganosa dos textos de

    Epicuro: a fruio dos prazeres, com efeito, no seno condio para a felicidade. Essas so as linhas que devem ser compreendidas com muita exatido: a satisfao

    das necessidades naturais do corpo pe fim ao mal-estar que elas me faziam sentir, e

    s ento - quando elas esto realizadas- que comea o prazer e que ele se afirma

    como um estado inteiramente positivo. O comentrio de Victor Brochard pe em evidncia a completa identidade da viso de Aristteles e Epicuro quanto a esse ponto preciso, dissipando assim os contrassensos cometidos por Ccero e muitos outros. verdade, escreve Brochard, que o prazer segundo Epicuro aparece quando desaparece a dor, mas no se reduz de maneira alguma a esse desaparecimento do negativo, que apenas uma condio de sua ocorrncia. (Lebrun 3, p.466).

    3. ...veterem illam equidem Pytagorae primum, dein Platonis descriptione sequar... (Cicero 1, Livro IV, 9. Pgina 338).4. Para os estoicos, a razo a natureza como um todo, no uma faculdade do indivduo:

    h uma parte do nimo individual que participa da razo se for exercitada.5. Aqui uma questo sobre a apropriao da dialtica pelos estoicos. A essncia, na dialtica platnica, sempre imutvel. As paixes do nimo, no entanto, so movimentos. Como pode, portanto, uma paixo ter essncia? Aqui preciso um estudo da lgica estoica, sobretudo sua teoria sobre as definies e proposies. As categorias,

    na lgica estoica, jamais expressam gneros ou espcies: elas s se referem a corpos singulares. Mas no s: elas no dizem algo imutvel, como a essncia na dialtica platnica. Elas dizem o movimento de um corpo particular: trata-se de um discurso lgico talhado para pensar as relaes entre os corpos na natureza. Os estoicos, por esta via, subvertem a dialtica platnica e com esta nova teoria das proposies elaboram definies de paixes singulares. Isto significa que entendem as essncias

    como particularidades em devir? Pois paixes do nimo so movimentos e defini-las

    oferecer o conhecimento de sua essncia. Verifiquemos como Lebrun nos mostra

    a questo tal como posta no interior da dialtica de Plato. Em primeiro lugar, se o prazer consiste numa gnese contnua, no poderia ser tlos, no poderia ser o fim ltimo do homem, j que por princpio desprovido de estabilidade, de ousia. Neste sentido, o hedonismo de Aristipo se autodestruiria e Plato no deixa de assinal-lo nesta passagem. Devemos agradecer, diz ele, a esses sbios que consideram o prazer uma gnesis incessante e lhe negam assim a ousia, sem a qual no se pode falar em fim (tlos). Se determinarmos o prazer maneira de Aristipo, absurdo transform-lo no bem supremo (e isso tudo o que deseja Plato). Mas h uma segunda consequncia, esta mais incmoda para o platonismo. Em segundo lugar, com efeito, se todo prazer gnesis, no haveria prazer que completasse uma deficincia, uma falta. E, por isso, a diferena entre prazeres puros e prazeres mistos, prazeres verdadeiros e falsos, se

  • Cadernos Espinosanos XXIV

    114 115

    encontra consideravelmente atenuada. (Lebrun 3 p. 458-459).

    6. Esta ciso entre razo e paixo, no entanto, no foi obra exclusiva do estoicismo, mas antes circulou por vrias escolas antigas, fossem idealistas ou materialistas. Michey Meyer procura traar sua gnese a partir da dialtica de Plato que elabora um saber racional sobre o pathos para enfrentar as questes da tica e da poltica. Para falar das paixes como Plato preciso estar alm, muito alm do obstculo que elas constituem. na ordem da razo que podemos discorrer sobre a paixo. Mas uma questo de fundo surge imediatamente: a quem se aplica esta ideia da paixo, se uns nada sabem das paixes e outros esto muito alm para delas falar? No so ambos, os homens ordinrios e os filsofos, estrangeiros na paixo, uns por t-las sem pensar

    e outros, pelo contrrio, por pensar e no t-las mais? No esto ambos mergulhados na mesma indiferena? Que sentido h em falar disso que uns no podem entender e outros no tm mais com que se preocupar? (Meyer 4, p. 25).

    O ElOgIO dA TOlERNcIA EM PIERRE BAylE

    maria ceclia almeida*

    Resumo: A obra de Pierre Bayle colaborou decisivamente para a formao do discurso filosfico sobre o conceito de tolerncia, noo central nas sociedades modernas. Os

    escritos de Bayle foram essenciais para a disseminao daquela idia pelos philosophes no sculo XVIII. Uma das principais teses defendidas por Bayle que a liberdade de conscincia e de opinio deve ser garantida aos indivduos. O Estado no deve perseguir por motivos religiosos e no deve haver violncia quando se trate de opinies que no geram perigo para a ordem pblica. A liberdade de conscincia tem por conseqncia uma tolerncia irrestrita que deve se estender a todas as confisses religiosas e at mesmo

    aos ateus. O propsito deste texto analisar alguns argumentos de Bayle na defesa da tolerncia, sobretudo no Commentaire Philosophique, com a inteno de evidenciar a novidade do tratamento do autor, que por meio de metforas e inverses, estabelece a tolerncia como algo importante e benfico para a sociedade poltica.

    Palavras-chave: liberdade de conscincia, lei, tolerncia, religio.

    Nos dias atuais, a tolerncia posta juridicamente como sustentculo dos direitos humanos (e da democracia)1. Se a sua presena em uma sociedade democrtica no mais questionada, e tida cada vez mais como desejvel, permanece entretanto a dificuldade em esclarecer

    as articulaes entre aquelas noes. Pode ser til para esse propsito um estudo sobre a histria do conceito de tolerncia, tendo em vista a ligao entre tolerncia e os direitos do homem e a prtica de sua defesa em um

    * Mestre em Filosofia pela Universidade de So Paulo; Doutoranda em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da Universidade de So Paulo, bolsista CAPES.