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28 -- Teoria da literatura: Fundamentos - Andre Gardel UNIDADE 2 CONCEITOS DE lITERATURA E TEORIA lITERARIA - FUNC;6ES DA LITE RATU RA Somos levados a ter contato com um texto literario por diversas razoes, Assim ao acaso, ao sabor da mem6ria, pod emos Iistar algumas: • a curiosidade despertada pela leitura de uma crftica de jornal ou revista; uma dica de um amigo sabre uma obra que todos de seu drculo social estao lendo; 0 desejo de abandonar 0 peso da vida diaria por algumas horas sob 0 dornlnio de uma especie de vivencia imaginaria; • a vontade silenciosa de ler e refletir sobre coisas belas e tocantes; • a tentativa de ampliarmos nossa cultura geral na leitura das obras classkas: • a busca por uma maior cornpreensao crftica a respeito de nosso mundo ao redor; a de encontrar algumas verdades preciosas para duvidas ,recorrentes; ,';'" 0 simples fate de querer saber mais, conhecer mais, viver mais. Voce percebeu? Um rapido levantamento casual de motivos que nos levam aos Iivros de literatura, e ja podemos vislumbrar varies angulos de conforrnacao do fen6meno literario. Eque, inevitavelmente, a natureza plural da Iiteratura, produtora de conhecimentos e dotada do poder de incorporar rnultiplos saberes sem perder a sua unidade ultima.' possibilita a concepcao de inurneras funcoes, tanto para 0 leitor quanta para 0 autor, que mudam de acordo com as relacoes de uso e cria<;ao que dela os homens fazem atraves da hist6ria. 1 unidade ultima - homogeneidade resultante da soma de todas as identidades nela contldas. "'., I ! I. I ... ::t I ',l!' I::'S' '.-, .• I l I (]) /\t l"l r.:F Unidade 2 -- 29 Antes de definirmos quais sao as principais funcoes que uma obra literaria pode ter, vamos tentar responder a algumas perguntas a partir de nossas experiencias particulares com a literatura? 1. Que texto literario marcou rnais a sua vida? Tente lembrar os motivos pelos quais isso aconteceu. Qual 0 assunto abordado? 2. Ao ler uma obra Iiteraria. 0 que voce busca encontrar? Valores morais, puro prazer e entretenimento, pensamentos objetivos para ajudar na vida pratica? Tudo isso junto? Algo mais? 3. Um poema perde a sua forca quando nao aborda temas elevados e/ou rornanticos? Por que? 4. 0 que deve ser mais importante numa narrativa, os fatos que sao contados no enredo ou 0 modo como 0 narrador nos apresenta esses mesmos fatos? 5. Voce acha que a obra literaria deve sempre estar a service de uma causa social, politica ou religiosa? Ou ela pode se bastar em si mesma, em seu universe estetico- particular? Explique. Podemos dizer que dentro da tradicao da reflexao literaria no Ocidente temos, grosse modo, tres Iinhas basicas de pensamento, no que diz respeito as funcoes da literatura: • os que acreditam que a criacao literaria tem uma funcao utilitaria, isto e, que deve estar a service de causas, ideias e objetivos extraliterarios: • os que defendem a autonomia da experiencla litera ria, afirmando que esta nao tem qualquer outra finalidade alern de proporcionar prazer estetico: • os que acham que a arte 'iterarla s6 se realiza em sua natureza. espedfica se assumir a sua condicao plural, mantendo uma escritura artlstica? que dialoga com um complexo de valores e ' funcoes devarias ordens e procedencias. 2 universe estetico - modo pr6prio de construcao de uma obra de arte em particular. 3 escritura artfstica - texto escrito com arte, que se distingue de um texto meramente informativo. \

André Gardel Unidade 2 - Funções Da Literatura

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Teoria da Literatura

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28--Teoria da literatura: Fundamentos - Andre Gardel

UNIDADE 2

CONCEITOS DE lITERATURA E TEORIA lITERARIA - FUNC;6ES DA LITERATURA

Somos levados a ter contato com um texto literario por diversas razoes, Assim ao acaso, ao sabor da mem6ria, podemos Iistar algumas:

• a curiosidade despertada pela leitura de uma crftica de jornal ou revista;

• uma dica de um amigo sabre uma obra que todos de seu drculo social estao lendo;

• 0 desejo de abandonar 0 peso da vida diaria por algumas

horas sob 0 dornlnio de uma especie de vivencia imaginaria;

• a vontade silenciosa de ler e refletir sobre coisas belas e tocantes;

• a tentativa de ampliarmos nossa cultura geral na leitura das obras classkas:

• a busca por uma maior cornpreensao crftica a respeito de nosso mundo ao redor;

• a ~nsia de encontrar algumas verdades preciosas para duvidas ,recorrentes;

,';'"

• 0 simples fate de querer saber mais, conhecer mais, viver mais.

Voce percebeu? Um rapido levantamento casual de motivos

que nos levam aos Iivros de literatura, e ja podemos vislumbrar varies

angulos de conforrnacao do fen6meno literario. Eque, inevitavelmente, a natureza plural da Iiteratura, produtora de conhecimentos e dotada

do poder de incorporar rnultiplos saberes sem perder a sua unidade ultima.' possibilita a concepcao de inurneras funcoes, tanto para 0

leitor quanta para 0 autor, que mudam de acordo com as relacoes de uso e cria<;ao que dela os homens fazem atraves da hist6ria.

1 unidade ultima - homogeneidade resultante da soma de todas as identidades nela contldas.

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r.:F Unidade 2 -- 29

Antes de definirmos quais sao as principais funcoes que uma obra literaria pode ter, vamos tentar responder a algumas perguntas a partir de nossas experiencias particulares com a literatura?

1. Que texto literario marcou rnais a sua vida? Tente lembrar os motivos pelos quais isso aconteceu. Qual 0 assunto abordado?

2. Ao ler uma obra Iiteraria. 0 que voce busca encontrar? Valores

morais, puro prazer e entretenimento, pensamentos objetivos

para ajudar na vida pratica? Tudo isso junto? Algo mais?

3. Um poema perde a sua forca quando nao aborda temas

elevados e/ou rornanticos? Por que?

4. 0 que deve ser mais importante numa narrativa, os fatos que sao

contados no enredo ou 0 modo como 0 narrador nos apresenta

esses mesmos fatos?

5. Voce acha que a obra litera ria deve sempre estar a service de

uma causa social, politica ou religiosa? Ou ela pode se bastar em si mesma, em seu universe estetico- particular? Explique.

Podemos dizer que dentro da tradicao da reflexao litera ria no Ocidente temos, grosse modo, tres Iinhas basicas de pensamento, no

que diz respeito as funcoes da literatura:

• os que acreditam que a criacao literaria tem uma funcao

utilitaria, isto e, que deve estar a service de causas, ideias e

objetivos extraliterarios:

• os que defendem a autonomia da experiencla litera ria, afirmando que esta nao tem qualquer outra finalidade alern

de proporcionar prazer estetico:

• os que acham que a arte 'iterarla s6 se realiza em sua natureza.

espedfica se assumir a sua condicao plural, mantendo uma escritura artlstica? que dialoga com um complexo de valores e '

funcoes devarias ordens e procedencias.

2 universe estetico - modo pr6prio de construcao de uma obra de arte em particular. 3 escritura artfstica - texto escrito com arte, que se distingue de um texto meramente informativo.

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30--Teoria da Literatura: Fundamentos - Andre Gardel

(ada uma dessas linhas-mestras sofre variacoes e perspectivas diferentes, dentro das modulacoes do pensamento sobre a pratica daescritura, de acordo com as rnudancas das modas e momentos da hist6ria e da literatura. Com isso, saber por que se escreve, qual a finalidade de tal gesto, para que serve esse

ate criativo nas relacoes socia is e

existenciais dos homens, se torna um autentico jogo de xadrez, em que as

pecas tern funcoes fixas mas podem variar e combinar os movimentos de difercntes - e quase infinitas

- maneiras.

(Sidney Silva)

Alguns te6ricos pensam a questao a partir de conceitos como desejo de evasao.s anseio de imortalidade, funcao ludica do esplrito.> empenho de compromisso ideoI6gico ... outros enfatizam ainda que a Iiteratura leva a descoberta au intui~ao da verdade artlstica.f a afirrnacao de valores culturais, e que funciona como instrumento para uma visao critica da realidade etc. Todos esses modos de se aproximar do problema sao leqitirnos e metodologicamente importantes. Mas

optamos par citar alguns autores fundamentais para compreendermos as linhas basicas de que falamos anteriormente.

o assunto que estamos tratando esta ficando claro para voce? Que tal responder a algumas perguntas sobre 0 que foi dito ate aqui?

4 desejo de evasao - desejo de fuga da realidade. das relacoos sociais, do peso de viver. 5fun~ao !udica do espirito - 0 ate de escrever como um jogo que desperta e excita 0 espirito,

causando um prazer intelectual. 6 verdade artistica - verdade criada pela arte, oriunda da cxistencia de uma outra realidade que nao

a nossa cotidiana, que dialoga com a vida mas que se organiza por valores e formas esteticas.

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Unidade 2-- 31

1. Quando procuramos definir as funcoes da literatura, estamos

tentando entende-Ia de que maneira?

2. Tente explicar, com suas pr6prias palavras, as tres linhas-mestras que norteiam nosso modo de abordagem das

funcoes Iiterarias.

3. Existem outros modos de trabalhar a questao da funcionalidade

em literatura? Quais?

4. A metMora do funcionamento do jogo de xadrez foi usada

com que finalidade no texto?

A primeira linha de reflexao crltica sobre as funcoes da literatura

que tentaremos entender e a que ve a obra com uma func;ao utilitaria. Um dos pioneiros na abordagem da questao na tradic;ao ocidental foi

o fil6sofo qreqo Platao (428/427 a.C.-348/347 a.C). Preocupado que estava na construcao das bases de um Estado ideal, concebe uma arte dirigida segundo os interesses da polis, nome dado pelos gregos antigos as suas cidades-Estados. Portanto, uma arte a service de valores morais e pedag6gicos de formacao de uma especie de cidadao modelo,

regido apenas pelas "boas" leis, como nos eapresentado no livro III de

A Republica: _ Por conseguinte, nao teremos de vigiar apenas os poetas, obrigando-os a expressar a imagem do bem em suas obras ou a nao divulqa-las entre n6s; sera precise fiscalizar igualmente os demais artistas e impedir que exibam as formas do vtcio, da intemperanc;a, da vileza ou da indecencia na escultura, na adificacao e nas outras artes criadoras. E aos que nao se conformarem a esta regra sera proibido exercer sua arte em nossa cidade, para que nao venham a corromper 0 gosto dos cidadaos. (PlATAO, 198-, p. 109)

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32 -- Teoria da Literatura: Fundamentos - Andre Gardel

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{ ~Platao e 0 autor da maxima "tudo 0 que e bom ebelo", seguindo 0

pensamento de seu mestre Socrates, inaugurando a ideia de que a .~

literatura tem a funcao de servir de meio para a realizacao de outros ;;

~ '{valores, a seu ver, mais elevados: filosoficos, politicos, religiosos. Para &

~tanto, epreciso "fiscalizar" e "proibir" os artistas que com sua arte possam '<l

"corromper 0 gosto dos cidadaos", ou seja, um poder externo ao criador ~ deve cercear a sua liberdade inventiva em nome de ideais e interesses do i Estado, em nome de urna etica superior. A fun<;ao ,da literatura, com isso, Iea de submissao total as atividades gerais do homem. >I;

Este tipo de projec;ao fundonal para a esc rita literaria - e para as artes como um todo - assumiu formas diferentes atraves dos tempos, I

i~ chegando a Modernidade, por exemplo, nas exigencias de engajamento

politico-social mais ortodoxas dos modelos artlsticos das escolas do ~

Realismo Socialista,7 tanto de esquerda quanto de direita. Tais propostas '~

?levaram - quando nao obrigaram - os escritores, muitas vezes, a abdicar *f ';',Jl

7 realismo socialista - nome dado, originariamente, ao rnetodo literario imposto as letras russas ;>,. .~\

pelo Partido Comunista durante 0 periodo mais radical da Revolucao Sovietica, iniciada em 1917. Para saber mais sobre 0 Realismo SociaJista, acesse: 1 hltD ://www.ita\JcultLlral.org.br/

Ao entrar na pagina principal. escolha a opcao EncicfopMia de Artes Visuais (veja mais), depois a opcao Termos e Conceitos (fista compfeta), Finalmente, busque ReaJismoSocialista.

Unidade 2 -- 33

de suas verda des expressivas em nome de quest6es de "ordem superior", como propagandas ideoloqicas ou simplifica<;6es esteticas banalizantes de suas escrituras, para serem melhor compreendidos pelas massas.

Nunca e demais frisar que toda vez que os valores esteticos se deixam escravizar por valores considerados de utilidade publica, de puritanismos religiosos, se prendem a ideologias totalitarias ou tentam ser fieis a fatos e verdades hist6ricas, e temos urn tipo de arte que se quer apenas interessada," a service de causas outras que neguem a sua forca expressiva ultima, quem sai perdendo, na maior parte dos cases, e a Iiteratura. Consequenternente, 0 leitor, a sociedade, 0 mundo, a vida.

1. Voce acha que a arte deve sempre ser guiada por bons idea is? a que significam bons ideais para voce? a que Platao quer dizer com a frase "tudo que eborn e belo"? ,

2. a artista pode expressar o que quiser em suas obras? Voce acha necessario qualquer tipo de censura?

3. a que deve reger a cria<.;ao artistica, a ernocao, a razao, valores morais? Todos esses aspectos juntos, apenas alguns deles, outros valores?

4. Um escritor deve simplificar ao maximo sua linguagem para ser compreendido pelo maier nurnero de pessoas posslvel? au deve usar os recursos disponlveis d~ lingua para, em primeiro lugar, reafirrnar a forca de seu estilo? .. ".

5. a ditado popular afirma que "

gosto nao se discute, como voce entende entao 0 receio de Platao de que 0 gosto dos cidadaos possa ser corrompido?

6. Voce concorda que a Iiteratura sai perdendo se os valores . esteticos se deixam escravizar por ideais utilitarlos? De slJa;':':; opiniao sobre 0 assunto. ..~. "l~;f\i.~;!f~,t.;

c': ..'."..,:"';d;., .. ~~.

8 arte interessada - tipo de arte que preza, em primeiro lugar. atividades sociais, educacionais, • politicas etc., e que nao prioriza apenas os valores esteticos,

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(Carlos Pereira)

34-- Teoria da literatura: Fundamentos - Andre Gardel ··~I.. Que tal agora passarmos a trabalhar com a linha de pensamento ..

que acredita que a funcao litera ria por excelencia ea de ordem estetica? '«.·I~·:·:Mas antes de abordarmos 0 momenta em que esse toplco ganha ,:

forma definitiva na historia litera ria, e precise entender a passagem de

um extrema ao outro da questao, Enecessario que saibamos quais as

rnudancas, os movimentos reflexivos que levaram a arte a ser pensada :~ t1como objeto autonorno, e nao mais como mere instrumento de defesa

de valores pedaqoqicos, morais, politicos, socia is. '"·1*~ Cabe a um outro filosofo grego, Aristoteles (384 a.C.-322 a.C}, ':.~

l .~conternporanso e ex-discfpulo de Platao, a fama de introduzir e . '

sublinhar a importancia do prazer estetico como funcao propria da

poesia. Em sua Arte Poetics, 0 Estagirita,9 como tarnbem era chamado iAristoteles, nao subjuga mais totalmente a literature a moral, nao ;;

~

}confunde juizos esteticos com juizos eticos, afirma que a beleza e

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independente e a obra exterior ao artista, ernbora sempre coloque iJ;,I

os elementos racionais como mais importantes do que os sensiveis. .~

Contudo, as funcoes hedonlsticas.!c de frulcao e prazer artisticos, estao 't;.f ,;'imuito ligadas ainda a funcoes praticas especfficas, como podemos .~ .Jjperceber na seguinte frase do mestre grego: ~.' ~.

Dizemos que nao se deve empregar a rnusica para .~

um s6 fim (acao imediata, afrouxamento e diversao), ~ mas e necessario faze-Ia servir a educacao e a ;i purificacao. (ARIST6TELES, 198-, p. 279)

As duas funcoes coexistem no pensamento de Aristoteles, A obra ·I~··''.'.'.. ~ .~ como organismo, como estrutura autonorna de elementos formais que

gera e pede uma forma de prazer toda particular para sua realizacao i ~

plena, mas que, ao mesmo tempo, tarnbern modifica a vida moral ~

e interior do homem por meio de um efeito purificador de natureza k'

:~ psiccloqlca-intelectual chamado catarse, que sera minuciosamente ~~,

l.~desenvolvido em nossas Unidades posteriores. Pol' ora convern definir ~ .\

t'11-, .~9 estagirita - habitante de Estagira, cidade da Macedonia. '':} ~~10 hedonlstica - fun~ao que se baseia no hedonismo, doutrina que considera que 0 prazer

individual e imediato e0 unico bem posslvel, principio e fim da vida moral. ~

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Unidade 2 -- 35

catarse apenas como uma purqacao.t ' uma sublimacao das pelxoes humanas em estado bruto, levando asensatez e ao equilibrio de animo,

realizada pelo uso artlstico da razao e da linguagem poetics.

As palavras do Estagirita permanecem e reverberam ainda por

muito tempo na historia literaria ocidental. 0 poeta e pensador

latino Horacio, na terceira epistola de sua Arte Poetics, que influenciou

fortemente as teorias literarias do Renascimento 12 e do

Neoclassicismo,13 a Epfstola aos Pisces, assevera nos versos 333-334

que a poesia tem uma dupla funcao, ser doce e util: "Os poetas desejam

ou ser uteis, ou deleitar, ou dizer coisas ao mesmo tempo aqradaveis e

proveitosas para a vida." (HORAClO, 1997, p. 65). Padre Antonio Vieira

(apud ABDALA JUNIOR; PASCHOALlN, 1985, p. 58), 0 grande orador

barroco portuques, resgata do pensamento aristotelico mais um dado

fundamental para definir as funcoes de um serrnao exemplar, levar 0

leitor/ouvinte a a<;ao pratica de sua doutrina: 0 pregador deve "ensinar,

deleitar, mover" .

Estamos indo rapido demais? Vamos testar nossa cornpreensao do que foi dito ate aqui?

1. Quais sao os dois extremos das funcoes literarias sugeridas

pelo texto? Voce acha que sao reflexoes que levam para

caminhos verdadeiramente opostos? Explique.

2. Qual a rnudanca principal que Aristoteles postula em relacao as ideias de seu mestre Platao? 0 que permanece igual?

Podemos falar em dupla funcao artfstica?

11 purga~ao - purificacao: termo que Arist6teles toma de ernprestirno a medicina e que quer significar limper, retirar a parte estragada de uma doenca.

12 Renascimento - rnovirnento que pregava a volta a cultura qreco-romana, a filosofia humanistica, e que esteve em voga na Europa durante 0 seculo XVI. Para saber um pouco rnais sobre 0 Renascimento, visite: http:Uwww.historianc~.br/homcl

Ao entrar na paqina principal, escolha as opcoes Modema e Renascimento Cultural, 13 neoclassicismo - um dos movimentos modernos que retoma os prindpios esteticos da

Antiquidade Classics. Visite 0 mesmo site ja indicado na nota 12 e conheca um pouco mais . sobre 0 Neoclassicismo. Ao entrar na paqina principal, escolha as opcoes Da Arte e Neoclassico .

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36--Teoria da Literatura: Fundamentos - Andre Gardel

3. 0 que voce entendeu por catarse? As paix6es humanas em estado brute - 6dios, ciurnes furiosos, cega violencia do amor - ao serem presenciadas em arte de modo fictkio, podem gerar, a seu ver, a purqacao dos vicios e excessos, sendo superadas e filtradas, levando a quem Ie, ouve ou ve um espetaculo a uma libertacao, a um estado de espirito equilibrado nas situacoes adversas da vida?

4. Os termos empregados por Horacio para definir as funcoes da literatura - ser, a um s6 tempo, "doce e util" - correspondem integralmente ao pensamento de. Arist6teles? Voce percebe alguma diferenca? Que dado fundamental Padre Antonio Vieira recupera da poetics aristotelica?

'.i1:,'Ate aqui tudo bem? Podemos seguir? A passagem definitiva para ~~~

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a autonomia do principio do prazer estetico como finalidade da arte, sem a necessidade de quaisquer outros valores - politicos, cognitivos, rnorais - para justificar a sua existencia, tem como marco 0 surgimento das doutrinas do filosofo alemao Immanuel Kant (1724-1804), que em 1790 publica a sua Critica da facu/dade de ju/gar. 14 A experiencia estetica para 0 pensador tem uma finalidade sem fim, levando sempre

l:'lila uma satisfacao desinteressada. 0 que isto quer dizer? Que a arte nao "

tem outra fun~ao senao propiciar a pura conternplacao de sua' propria orqanizacao formal, nascida de sua natureza sensivel, estimulando as faculdades do sujeito consciente, 0 entendimento e a irnaqinacao, sem que importe a existencia concreta do objeto em si, 0 que vai conduzir a um prazer estetico sem objetivos utilitarios ou hedonistas.

Calma! Nao se assuste com tanta teoria, vamos seguir raciocinando. Nao se trata de um jogo vazio de formas sem conteudos, isolando 0

poeta do mundo e da vida em nome de um ideal de pureza artistica w.

superior e sublime, muito embora as teorias da arte pela arte decorrentes :?"

de uma rna compreensao do pensamento kantiano muitas vezes tenham incorrido nesse erro. Trata-se, pelo contrario, de afirmar, por meio da

. '\~14 lnforrnacoes colhidas em JAPIASSU; MARCONDES, 1989, verbete Kant, Immanuel. p. 143. "it ,{!:K'

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Unidade 2 - 37

experiencia estetica, a singularidade da condicao humana no mundo, aumentando 0 sentimento de cornunlcacao e pertencimento do homem ao fenorneno externo, avida como um todo.

Como esse processo ocorre? Retirando a potencia do sujeito, que deixa de ser absoluto e centralizador na sua relacao com 0

objeto artistico, a obra, vista agora como 0 elemento fundamental que desperta um tipo de vivencia especial humana. Ao sublinhar a interacao de sensibilidade e reflexao, entendimento e imaqinacao vivida na experiencia estetica, Kant quer afirmar a importancia desse contato, em que forces sensfveis e de juizo sao postas em a~ao simultaneamente, para a existencia do homem no mundo. Tal pensamento aparece de modo exemplar na voz poetica de Fernando Pessoa: "0 que em mim sente esta pensando."

o sujeito nao usa 0 objeto para realizar apenas seus desejos de entretenimento, gozo ludico, impulsos vitais, como na funcao hedonistica; nao usa 0 objeto par qualquer interesse de ordem pratica, religiosa, cientifica ou moral, como na funcao utilitaria. Nao, A experiencia estetica so se realiza se 0 sujeito sair de si e receber 0 objeto como um organismo autonorno, desinteressado e proximo, que se modifica e modifiea 0 sujeito a cada novo contato, nurna relacao essencial e original de constituicao mutua.

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(Murilo Marques)

38 -- Teoria da Literatura: Fundamentos - Andre Gardel

Ufa! Quantos conceitos! Vamos tentar amarrar tudo numa

conclusao agora? A obra de arte, por organizar e selecionar

esteticamente formas sensiveis em sua natureza, colocando em segundo lugar todos os outros valores que a visitam, apela

simultaneamente para nossos sentidos, nosso entendimento e nossa

irnaqinacao, e acaba por nos levar a vivenciar uma experiencia (estetica)

que nos obriga a sair do tunel absoluto da subjetividade, a aceitar a

diferenca e encontrar identidades inesperadas que nos recriam para a

vida enos recolocam no mundo, fazendo do mundo a nossa verdadeira

casa. 0 poeta alemao Goethe (GOETHE apud OS6RIO, 1999, p. 229)

sintetizou a complexidade dessas ideias em palavras simples e

brilhantes: "Nao se pode fugir ao mundo de modo mais segura do que

pela arte; nenhuma forma de prender-se a ele e maissegura do que

ela."

1. Tente lembrar e definir as experiencias esteticas que voce ja teve e vem tendo em sua vida. Coloque isso no papel com suas

pr6prias palavras.

2. Quando voce ve um quadro, uma escultura, um objeto de arquitetura, uma paisagem deslumbrante, quando Ie um

poema, um romance, um conto, uma novela, quando ouve

uma cancao, uma IT1u.sica instrumental, um canto de um

passaro, voce percebe-que esta sentindo, pensando e . ~. imaginando ao mesmo tempo? Com isso, recriando sua

sensibilidade no mundo?

3. Leia e releia as sabias palavras de Goethe e tente trocar ideias

com as pessoas ao seu redor sobre 0 significado delas. Sempre

que tiver uma experiencia estetica, tente entender as palavras

do poeta alernao na pratica.

Esse verdadeiro grito de libertacao da arte emitido por Kant propiciou uma serie de novas reflexoes sobre 0 fenorneno. Contudo, 0

dado mais importante gerado por esse fato foi a aceitacao de multiples funcoes para a literatura a partir da certeza de sua forca especifica

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Unidade 2 -- 39

pr6pria e unidade estetica ultima. Ha, desse modo, uma inversao de valores do que se pensara da obra ate entao. A experiencia estetica

passa a ser 0 criterio mais adequado para a avaliacao do objeto artistico, colocando em segundo plano, na condicao de acess6rios, os outros valores

e funcoes,

Vamos ver como tais ldeias se desdobram no pensamento

conternporaneo, especificamente nas reflexoes do semioloqo.' 5 escritor,

te6rico da cultura e da li teratura Umberto Eco (1932-). No artigo

Sobre algumas fun~6es da literatura, depois de asseverar que os textos

llterarlos sao poderes imateriais que a humanidade produziu sem

finalidade pratica, "par amor de si mesma", e que sao lidos "sem que ninquern nos obrigue a faze-lo" (ECO, 2003, p. 9), Eco lista tres funcoes

"que a literatura assume para nossa vida individual e para a vida social":

1. A literatura rnantern em exercicio, antes de tudo, a lingua como patrim6nio coletivo. (ECO, 2003, p. 10)

2. A leitura das obras literarias nos obriga a urn exercicio de fidelidade e de respeito na liberdade da interpretacao. (ECO, 2003, p. 12)

3. [...] a verdadeira funcao educativa da literatura [...] nao se reduz a transrnissao de ideias morais, boas ou mas que sejam, ou a transforrnacao do sentido do bela. (ECO, 2003, p.19) [A] educacao ao Fado'6 e a morte e uma das funcoes principais da Iiteratura. (ECO, 2003, p. 21)

Vemos aqui, no corpo de ideias de Eco, uma confirrnacao do que

falamos anteriorrnente: a aceitacao do pr6prio da literatura, "bem que [...]

nao deve servir para nada" (ECO, 2003, p. 10), e a condicao basica para

qualquer teorizacao, trazendo a reboque funcoes individuais e sociais

diversas. Sem duvida, a mais estimulante e a que ve 0 texto litera rio como uma oducacao para 0 destine e para a morte. 0 leitor descobre, por

15 semi61ogo _ estudioso da semiologia, ciencia geral que quer abarcar todos os sistemas de

signos da vida social do homem. , 6 fado _ destino, sorte, estrela; 0 que necessariamente tem de ser: vaticinio, decreto do destino.

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40 -- Teoria da Literatura: Fundamentos - Andre Gardel

meio da constatacao de que 0 que foi escrito nao pode ser modificado, que tem que aceitar 0 destino d05 personagens, que as coisas acontecem como acontecem, vivendo artisticamente a frustracao da impossibilidade de muda-las. 0 que seria a educacao ultima da literatura: ensinar a aceitar a vida e a morte, ensinar a morrer e a viver, ao som do multiple cantico de sereias feitas de palavras.

Para finalizarmos temporariamente nosso debate sobre as funcoes da literatura, vamos responder a algumas perguntas com 0 intuito de fazermos uma revisao geral do que foi visto?

1. 0 que leva voce a se interessar pela leitura de urn livro? A experiencia sempre foi prazerosa?

2. Fale sobre as tres linhas basicas de pensamento das funcoes da literatura na tradicao ocidental.

3. Aristoteles foi disdpulo de Platao na Academia, mas depois

fundou seu Liceu e transpos novas fronteiras da reflexao teorica. Quais as sernelhancas e dessernelhancas entre 0 pensamento dos dois?

4. 0 que significam cis conceitos de autonomia e desinteresse para a experienda estetica segundo Kant?

5. Explique 0 pensamento de Umberto Eco sobre a literatura.

Referencias:

ABDALA JUNIOR, Benjamin; PASCHOALlN, Maria Aparecida. social da Iiteratura portuguesa. Sao Paulo: Atica, 1985.

Hist6ria

ARISTOTELES. Arte Ret6rica e Arte Poetics. Traducao de Antonio Pinto Carvalho. lntroducao e notas de Jean Voilquin e Jean Capelle. Rio de Janeiro: Ediouro, [198-].

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Unidade 2 -- 41

AR1STOTELES; HORAClO; LONGINO. A poetica clsssice. Traducao de Jaime Bruna. tntroducao de Roberto de Oliveira Brandao. Sao Paulo: Cultrix, 1997.

ECO, Umberto. Sobre algumas funcoes da literatura. In: __. Sobre a Iiteratura. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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