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I. A desmaterialização da riqueza Reinaldo A. Carcanholo Anexo 1 de “A dialética da mercadoria: guia de leitura” Como vimos, já no primeiro parágrafo d'O Capital, Marx se pergunta o que é riqueza na época capitalista. E sua resposta é: mercadoria. Não se trata de uma definição; de algo que, dito agora, fica determinado para sempre. Trata-se, simplesmente, de uma constatação, a partir da observação direta da realidade. É claro que a resposta poderia ser que riqueza, na nossa sociedade, é o dinheiro, pois isso é visível; mas, na verdade, o dinheiro é um poder de compra sobre mercadorias e, assim, a resposta adequada, em última instancia, é a do parágrafo anterior. Dessa maneira, a observação da mercadoria permite concluir, como também já vimos, que a riqueza capitalista está constituída pela, consiste na unidade dialética, contraditória, entre o valor-de-uso e o valor (na aparência seria o valor-de-troca) 1 : R c = M = Como qualquer unidade dialética (e como qualquer conceito), não se trata de um objeto, mas é um processo de desenvolvimento. Em outras palavras, a mercadoria é o processo de desenvolvimento da contradição entre seu valor-de-uso (como conteúdo material) e o seu valor (forma social e histórica). O desenvolvimento da mercadoria ocorre na medida em que a sociedade mercantil desenvolve-se ou, o que significa aqui a mesma coisa, se expande; ocorre na medida em que as relações mercantis são cada vez mais generalizadas na sociedade, cada vez que os agentes econômicos tornam-se mais dependentes do mercado, das relações mercantis. Obviamente que, na sociedade capitalista atual, a mercadoria é mercadoria muito mais desenvolvida que aquela existente na sociedade feudal, por exemplo. É muito mais desenvolvida, também, que a que existiu no capitalismo de 50 anos atrás. 1 "A mercadoria, como valor-de-uso, satisfaz uma necessidade particular e constitui um elemento específico da riqueza material. Mas, o valor da mercadoria mede o grau de sua força de atração sobre todos os elementos dessa riqueza e, por conseguinte, a riqueza social do seu possuidor." (Marx, cap. III, 147)[159]{112}{“...”}<252-253> V u V conteúdo material forma social e histórica

Anexo I Desmaterialização Riqueza

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I. A desmaterialização da riqueza

Reinaldo A. Carcanholo Anexo 1 de “A dialética da mercadoria:

guia de leitura”

Como vimos, já no primeiro parágrafo d'O Capital, Marx se pergunta o que é riqueza na época capitalista. E sua resposta é: mercadoria. Não se trata de uma definição; de algo que, dito agora, fica determinado para sempre. Trata-se, simplesmente, de uma constatação, a partir da observação direta da realidade.

É claro que a resposta poderia ser que riqueza, na nossa sociedade, é o dinheiro,

pois isso é visível; mas, na verdade, o dinheiro é um poder de compra sobre mercadorias e, assim, a resposta adequada, em última instancia, é a do parágrafo anterior. Dessa maneira, a observação da mercadoria permite concluir, como também já vimos, que a riqueza capitalista está constituída pela, consiste na unidade dialética, contraditória, entre o valor-de-uso e o valor (na aparência seria o valor-de-troca)1:

Rc = M = Como qualquer unidade dialética (e como qualquer conceito), não se trata de um

objeto, mas é um processo de desenvolvimento. Em outras palavras, a mercadoria é o processo de desenvolvimento da contradição entre seu valor-de-uso (como conteúdo material) e o seu valor (forma social e histórica).

O desenvolvimento da mercadoria ocorre na medida em que a sociedade

mercantil desenvolve-se ou, o que significa aqui a mesma coisa, se expande; ocorre na medida em que as relações mercantis são cada vez mais generalizadas na sociedade, cada vez que os agentes econômicos tornam-se mais dependentes do mercado, das relações mercantis. Obviamente que, na sociedade capitalista atual, a mercadoria é mercadoria muito mais desenvolvida que aquela existente na sociedade feudal, por exemplo. É muito mais desenvolvida, também, que a que existiu no capitalismo de 50 anos atrás.

1 "A mercadoria, como valor-de-uso, satisfaz uma necessidade particular e constitui um elemento específico da riqueza material. Mas, o valor da mercadoria mede o grau de sua força de atração sobre todos os elementos dessa riqueza e, por conseguinte, a riqueza social do seu possuidor." (Marx, cap. III, 147)[159]{112}{“...”}<252-253>

Vu V

conteúdo material

forma social e histórica

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Não devemos perder de vista que as relações mercantis apresentam-se em expansão e que essa expansão culmina no e pelo capitalismo, mas não se detém; prossegue. É claro que existem momentos de retrocesso no avanço mercantil, mas a tendência é a expansão. Quando o momento de retrocesso conclui, tende a regressar a expansão. Em outras palavras, a simples existência de relações mercantis faz com que exista na sociedade, no interior dela mesma, o germe da expansão mercantil. A mercadoria funciona como um vírus que, existindo, tende a expandir-se. É, na sociedade, como o câncer; produz-se a metástase. O câncer social mercantil generaliza-se infinitamente; ou melhor até destruir-se como câncer, por intervenção humana consciente, ou até destruir o próprio corpo em que está instalado, a sociedade, e, assim, destruir-se a si mesmo.

Essa expansão mercantil significa várias coisas que nos interessam aqui: a

primeira é que o número de mercadorias existentes na sociedade se amplia indefinidamente. Muitos produtos que não operavam como mercadoria, passam a fazê-lo. Verificar isso é muito fácil, se pensarmos em cidades do interior, vinte ou trinta anos atrás e compararmos com a situação atual, em particular, nas grandes cidades. Por outra parte, coisas que em lugares menos avançados do ponto de vista mercantil são obtidos por doação (alimentos, como algumas frutas, e até água para beber), constituem mercadorias nos centros maiores. Inclusive coisas que não são produto do trabalho humano, por contágio, tendem a se transformar, no capitalismo atual, cada vez mais em mercadorias, como a consciência humana e a honra.

Um outro tipo de implicação da expansão mercantil está constituído pelo avanço

da dependência dos indivíduos frente ao mercado; a sujeição do ser humano, de sua vida, cada vez mais à lógica implacável do mercado. Nas sociedades pré-mercantis, mesmo quando da existência da forma simples do valor (estudada anteriormente), embora existindo relações de intercâmbio casuais, nenhuma dependência dos produtores podia ser observada. Com o tempo, com o desenvolvimento mercantil, cresce progressivamente a dependência do homem ao mercado, até chegar ao capitalismo, quando sua dependência é já muito grande. Na etapa atual, de capitalismo bastante avançado, a sujeição do agente é praticamente total e continua avançando cada vez mais.

Na verdade, olhando de diferentes ângulos, trata-se de um mesmo processo de

desenvolvimento: o das relações mercantis, o da mercadoria, o do valor e o da forma do valor. As diferentes formas do valor, da forma simples até a forma preço, estudadas no texto inicial, são uma das caras desse processo. Esse processo único, com diferentes caras, chamamos de “desenvolvimento mercantil”.

O desenvolvimento mercantil consiste, explica-se e, ao mesmo tempo, implica o

desenvolvimento da contradição valor/valor-de-uso. O que significa isso? O valor passa progressivamente de pólo dominado pelo valor-de-uso, a pólo dominante, e essa dominação não é uma simples abstração sem manifestações concretas. Ao contrário, manifesta-se no fato de que a lógica do funcionamento da sociedade (o sócio-metabolismo), a ação do dia-a-dia dos agentes, se no início do surgimento mercantil está determinada pelo valor-de-uso, passa progressivamente a ser dominada pelo valor.

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Quais são as diferentes formas do valor, na seqüência do seu desenvolvimento? Elas são: a forma simples ou fortuita, a total ou desdobrada, a geral e a dinheiro. Esquematizemos esse desenvolvimento, mostrando a caraterística da mercadoria (da unidade contraditória que ela representa) em cada uma de suas fases:

No gráfico, o processo de desenvolvimento da mercadoria aparece representado

por um crescimento em tamanho de V (valor) e em um decrescimento em Vu (valor-de-uso), pretendendo mostrar que progressivamente o valor vai ganhando importância dentro da unidade contraditória dialética e que, pelo contrário, o valor-de-uso perde cada vez mais importância. Sugere-se graficamente o que acontece na história das relações mercantis: a partir de certo momento, o valor, de aspecto dominado na contradição, passa a ser dominante. Vimos, anteriormente (nos parágrafos 105 e seguintes do texto inicial), que de início o valor preocupa-se em distinguir-se do valor-de-uso. E o faz cada vez de maneira mais competente, ao passar das formas iniciais do valor para formas mais avançadas. Em seguida, seu desiderato, sua vontade é passar a ser o pólo dominante; a dominar o valor-de-uso.

Para melhor entender de maneira intuitiva o processo de dominação descrito,

basta comparar os extremos: uma sociedade pré-mercantil, na forma simples, na que o valor não tem quase nenhum significado, ao contrário, praticamente não existe (só existe como embrião) e que o intercâmbio, além de fortuito aparece como troca de presentes; e a sociedade capitalista atual, em que o valor-de-uso aparece altamente dominado pelo valor. Nesta, muitas vezes, o indivíduo estima a utilidade de um objeto, quanto maior seja seu valor. O valor-de-uso fica, nesse caso, determinado totalmente ou quase totalmente pelo valor2.

2 Uma motocicleta, por exemplo, é considerada melhor e mais bonita, quanto maior o seu valor. Duas peças de roupa exatamente iguais, produzida no mesmo lugar, com os mesmos materiais, maquinas e mãos, diferenciam-se pela etiqueta ou pela sofisticação ou não da loja em que foram compradas. Qual delas é, em geral, considerada mais bela ou mais útil? O desconforto objetivo produzido pelo uso de certas mercadorias é, muitas vezes, mais do que compensado pelo fato de que seu valor é elevado e faz do seu portador alguém mais bem visto.

Vu V

Vu V

Vu V

Vu V

Vu

V

forma simples forma total forma geral forma dinheiro Capitalismoatual

surgimento do capital na sua forma produtiva

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Se o valor inicialmente, na forma simples, aparece como praticamente

inexistente e como inserido no valor-de-uso, chega, no capitalismo a ser dominante e a considerar o valor-de-uso como aspecto seu. Este existe como totalmente dominado. O valor passa, de uma dimensão que procura inicialmente sua simples diferenciação frente ao valor-de-uso, a ser seu dominador. E cada vez mais, o domina.

Esse processo constitui o que chamamos “desmaterialização progressiva da

riqueza capitalista”. Isso por uma razão muito simples. A riqueza capitalista é mercadoria e esta está constituída pela unidade dialética mencionada. O valor-de-uso é o seu conteúdo material e fica determinado pelas características (conteúdo e forma) materiais de cada mercadoria. O valor é sua dimensão social. O domínio deste sobre aquele implica a desmaterialização do conceito riqueza capitalista, desmaterialização da mercadoria.

A desmaterialização da riqueza é um processo muito avançado no capitalismo

dos nossos dias; mas ele não concluiu, prossegue. Nos parágrafos finais do texto inicial (em particular no 133 e 134) procurávamos explicar que a mercadoria, no seu desenvolvimento, procura a destruição do valor-de-uso, e que essa obsessiva busca é eterna e que ela não poderá jamais alcançar seu desígnio. Por que a mercadoria jamais pode lograr a destruição do valor-de-uso, por mais que se aproxime disso? Isso é impossível, pois a destruição do valor-de-uso implica a destruição do próprio ser humano e, assim, do próprio valor, por ser este uma relação social entre homens. A destruição do valor-de-uso seria a do valor, a da mercadoria e a da sociedade. É possível no entanto que, por ação humana consciente, extirpe-se o câncer, destrua-se o valor e que a sociedade continue existindo.

Como se manifesta esse processo de destruição do valor-de-uso, de

desmaterialização, no dinheiro? É justamente no dinheiro, e posteriormente no capital, em que se manifesta de maneira mais aguda e evidente o processo de desmaterialização da riqueza mercantil. Nos dias atuais, para quase todas as suas funções, o dinheiro apresenta-se completamente desmaterizado, desprovido de todo valor de uso3. Pelo menos nas suas funções de meio de circulação e meio de pagamento ele existe como um simples lançamento contábil (nas contas correntes, cartões de crédito etc.). Mas, desde muito antes, desde a sua gênese, nos princípios da forma de equivalente, já se apresenta o processo de desmaterialização. Vejamos.

Na forma simples ou fortuita do valor, o valor se manifesta, como vimos, através

do valor-de-uso de outra mercadoria (B), distinta da primeira (A). Nesse caso, o equivalente confunde-se diretamente com o valor-de-uso de B. Na forma total, o valor aparece como igual ao valor-de-uso de qualquer mercadoria que exista na sociedade. Por isso, a forma equivalente, embora exista como valor-de-uso, já mostra que lhe é absolutamente indiferente o tipo de valor-de-uso sobre o qual se encarna, através do qual se manifesta o valor. É justamente no equivalente geral que fica mais claro o processo de desmaterialização. Ele consiste em que uma mercadoria foi eleita como a representante geral do valor e é justamente sua materialidade, sem dúvida, que serve de material de expressão. No entanto, e isso é muito importante, o vendedor de qualquer

3 Salvo o que Marx chama de valor-de-uso formal, isto é, o de servir como dinheiro.

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mercadoria aceita o equivalente geral em troca, não porque deseje o valor-de-uso dele, mas porque ele é aceito por todos os demais produtores de mercadorias. Aceita o equivalente por ter ele aceitação universal. Por isso, podemos afirmar, e é isso que Marx faz, que, na relação de troca, o equivalente não se apresenta com seu valor-de-uso, mas como puro representante do valor. Embora o valor-de-uso ali esteja, não está mais; o valor-de-uso, dialeticamente, está e não está ali. É a sua desmaterialização. É por isso que Marx afirma, em passagem já citada anteriormente (parágrafo 105):

"A forma que aparece depois, C (forma geral), expressa os valores do mundo das mercadorias numa única e mesma mercadoria, adrede separada ... Então, o valor de cada mercadoria ... se distingue não só do valor-de-uso dela mas de qualquer valor-de-uso ..." (Marx, p. 74)[88]{66}<193>

Marx afirma que o valor da mercadoria distingue-se não só do seu próprio valor-de-uso, mas de todo valor-de-uso, inclusive daquele próprio da mercadoria que opera como equivalente geral, simplesmente porque o vendedor da mercadoria, ao aceitar o equivalente em troca da sua, não está interessado no valor-de-uso deste.

Essa desmaterialização continua no dinheiro (ouro), mas ainda a materialidade continua ali. O processo fica muito mais evidente, quando mais avançado, no dinheiro de curso forçoso e no dinheiro de crédito (que são as formas que conhecemos atualmente e que são estudadas por Marx no livro III d'O Capital).

A desmaterialização total e absoluta do dinheiro já está concluída nos nossos dias? Ela continua seu curso?

Por mais impressionante que seja a desmaterialização do dinheiro já alcançada, ela ainda não chegou ao fim. Ela prossegue seu curso e, com certeza, a desmaterialização total, embora ansiosamente buscada pela lógica do capital, jamais poderá ser alcançada4. O capitalismo deverá desaparecer antes5: o objetivo final do capital jamais poderá ser alcançado e, talvez por isso, sua ânsia, voracidade e insegurança sejam cada vez maiores.

O fato de que, nos nossos dias, a desmaterialização do dinheiro não seja total e

completa pode ser observado, no nível mundial, no fato de que o ouro ainda continua a cumprir um papel como meio de pagamento em última instância. Em particular, nas crises, os agentes recusam-se a aceitar o dinheiro de crédito, o dólar em particular, e buscam refúgio no ouro e em outras mercadorias substantivas. No entanto, nas suas funções de medida dos valores, meio de circulação, meio de pagamento, padrão de preços, o dinheiro atual apresenta-se total e completamente desprovido de materialidade.

Finalmente, convém uma referência ao capital financeiro atual, por nós

denominado capital especulativo parasitário6. Ele nos mostra (se é que não ficou claro) 4 Da mesma forma que para a riqueza capitalista, a desmaterialização total e completa é impossível, como já dissemos. 5 As agudas crises financeiras dos nossos dias são a manifestação mais cabal dessa contradição do sistema: o desejo incontido do capital pela desmaterialização e sua impossibilidade completa. 6 Cf. Carcanholo & Nakatani (1999) e Carcanholo (2001).

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que, atualmente, muito mais importante que sua dimensão material (valor-de-uso), a riqueza consiste em domínio sobre trabalho alheio, sobre seres humanos. A riqueza capitalista é, para Marx, domínio de seres humanos sobre seres humanos; constitui uma relação social de domínio. Inicialmente se expressa claramente através dos objetos; progressivamente se torna abstrata e, cada vez menos, exige a matéria constituída pelos valores-de-uso para manifestar-se.

Nos alucinados dias do capitalismo em que vivemos, com domínio da

especulação sobre a produção, o valor aparece sobretudo como capital financeiro (ou melhor, como capital especulativo e parasitário). O domínio sobre a maioria da humanidade aparece exercido por algo fantasmagórico e abstrato, sem cor nem matéria, mas capaz de tudo, capaz de determinar nossa vida ou nossa morte. A riqueza capitalista aparece como se tivesse sido total e completamente desmaterializada.