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Tradução de Markus Hediger 1. O FILME “ROBLE DE OLOR” DE RIGOBERTO LÓPEZ “Roble de Olor” (Carvalho de cheiro), um filme do diretor cubano Rigoberto López Pego, de 2003, apresentou o nome de Cornelio Souchay, juntamente com o de Ursula Lambert, a um público internacional. O filme o retrata como o proprietário idealista de uma fazenda de café que perde a vida em confronto com uma sociedade hostil e romantiza sua relação com Ursula Lambert, uma mulata haitiana livre, que, acusada de bruxaria e abolicionismo, defende im- petuosamente sua herança religiosa e revolucionária afro-caribenha em Tribu- nal. No fim do filme, uma porta-voz explica à audiência: “A ação nesse filme é fictícia, mas o amor entre Ursula Lambert e Cornelio Souchay era real.” Em 7 de novembro de 2004, Rigoberto López me escreveu: “O filme é ficcional e não retrata a biografia real de Cornelio Souchay e Ursula Lambert. No entanto, o filme se inspirou na relação amorosa real do casal da primeira metade do século XIX e na fazenda de café de Angerona, fundada por eles e cujas ruínas ainda podem ser visitadas. Portanto, o filme é uma ficção histórica, uma me- táfora. A tradição oral da região preservou a lenda do amor entre o alemão Cornelio Souchay e a haitiana Ursula Lambert. Em 1987, Leonardo Padura pu- blicou, no jornal Juventud Rebelde, “El Romance de Angerona”, que conta a len- dária história do alemão e da haitiana que fundaram a plantação de café mais próspera da Cuba ocidental no século XIX.” 1 Em uma entrevista a Granma Internacional , de 2003, Rigoberto López ex- plicou em maior detalhe aquilo que ele chama de um projeto do “realismo mágico”: “Em consonância com minha obra, com meu mundo poético, há algum tempo tenho nutrido o desejo de fazer um filme que aborde as ideias e o pen- samento que subjazem a um tema. [...] Roble de olor é um filme sobre a cons- trução e defesa de uma utopia, sobre a defesa de uma identidade, e nele há ANGERONA: FATOS E FICÇõES SOBRE A FAZENDA DE CAFé DE CORNELIO SOUCHAY E URSULA LAMBERT EM CUBA Guenther Roth sociologia&antropologia | v.02.04: 211 –239, 2012

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Tradução de Markus Hediger

1. O FILME “ROBLE DE OLOR” DE RIGOBERTO LÓPEZ

“Roble de Olor” (Carvalho de cheiro), um filme do diretor cubano Rigoberto López Pego, de 2003, apresentou o nome de Cornelio Souchay, juntamente com o de Ursula Lambert, a um público internacional. O filme o retrata como o proprietário idealista de uma fazenda de café que perde a vida em confronto com uma sociedade hostil e romantiza sua relação com Ursula Lambert, uma mulata haitiana livre, que, acusada de bruxaria e abolicionismo, defende im-petuosamente sua herança religiosa e revolucionária afro-caribenha em Tribu-nal. No fim do filme, uma porta-voz explica à audiência: “A ação nesse filme é fictícia, mas o amor entre Ursula Lambert e Cornelio Souchay era real.” Em 7 de novembro de 2004, Rigoberto López me escreveu: “O filme é ficcional e não retrata a biografia real de Cornelio Souchay e Ursula Lambert. No entanto, o filme se inspirou na relação amorosa real do casal da primeira metade do século XIX e na fazenda de café de Angerona, fundada por eles e cujas ruínas ainda podem ser visitadas. Portanto, o filme é uma ficção histórica, uma me-táfora. A tradição oral da região preservou a lenda do amor entre o alemão Cornelio Souchay e a haitiana Ursula Lambert. Em 1987, Leonardo Padura pu-blicou, no jornal Juventud Rebelde, “El Romance de Angerona”, que conta a len-dária história do alemão e da haitiana que fundaram a plantação de café mais próspera da Cuba ocidental no século XIX.”1

Em uma entrevista a Granma Internacional, de 2003, Rigoberto López ex-plicou em maior detalhe aquilo que ele chama de um projeto do “realismo mágico”: “Em consonância com minha obra, com meu mundo poético, há algum tempo tenho nutrido o desejo de fazer um filme que aborde as ideias e o pen-samento que subjazem a um tema. [...] Roble de olor é um filme sobre a cons-trução e defesa de uma utopia, sobre a defesa de uma identidade, e nele há

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um discurso contra a intransigência... contra a intolerância... é uma história semelhante à nossa – à do povo cubano” (Castaneda, 2003).

O filme tem causado controvérsias. Alguns críticos o chamaram de te-lenovela sem sentido e afirmaram que o filme é incorreto, tanto política quan-to historicamente. Outros acataram sua agenda política e cultural como uma representação simbólica das relações raciais cubanas e gostaram especialmen-te da afirmação corajosa de Ursula Lambert de sua identidade afro-caribenha (Casals, 2004). Em “El Romance de Angerona”, Leonardo Padura atribuiu a Ur-sula um papel tão crucial no estabelecimento do cafezal que chegou a falar de um “magnífico império haitiano-alemão”, uma expressão que desde então foi repetida por outros escritores.2

Em filmes, romances, comentários e noticiários, bem como em alguns relatos históricos, ficção, fatos e desinformações têm sido misturados. Enquan-to cineastas e poetas gozam de certa liberdade poética, os historiadores pro-curam descobrir fatos, que, no entanto, incluem também o impacto cultural e político exercido pelas ficções. O filme e o romance partiram de alguns fatos históricos para a invenção imaginativa. A intenção de Leonardo Padura era imaginar uma relação amorosa sensual, que seria consumada na fundação colaborativa de uma grande fazenda, porém, Rigoberto López (e Eugenio Her-nandez Espinosa) tomaram esse romance como ponto de partida para criar uma mensagem política sobre a autodefinição nacional cubana e haitiana no passado e no presente. O interesse do novelista e do cineasta foi despertado por alguns documentos publicados no fim da década de 1980, no Boletin del

Archivo Nacional de Havana, que reavivaram o interesse público pela história e pelo local de Angerona, que havia sido fundado em 1813 e batizado com o nome da deusa romana do silêncio.

Em 1989, as ruínas de Angerona foram declaradas monumento nacional.3 A fazenda fica poucos quilômetros a oeste de Havana, nas proximidades de Artemisa, uma pequena cidade com o nome desta deusa grega. O guia turísti-co Cuba. Moon Handbooks, de 2004, contém uma fotografia dos arcos frontais da mansão decaída, mostrados na abertura do filme. O guia identifica correta-mente Cornelio Souchay como fundador, mas confunde a estátua de mármore em frente à mansão com a de Artemis; a estátua foi roubada em 2001, mas há muito já havia perdido seu braço direito erguido, cujos dedos selavam os lábios (Baker, 2004: 509). James A. Michener (1907-1997) também confundiu a deusa quando o historiador cubano Manuel Moreno Fraginals lhe mostrou as ruínas. Desinformado, Michener especulou sobre quem poderia ter construído esse enorme complexo (ver Michener & Kings, 1989: 85-89).

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2. URSULA LAMBERT E CORNELIO SOUCHAY

Na medida em que as fontes o permitirem, tentarei desvelar os fatos da his-tória de Angerona e da família Souchay.4 Devido à ausência de evidências his-tóricas concretas, a história de Ursula Lambert e Cornelio Souchay incentiva especulações tendenciosas e o embelezamento literário. Relações íntimas de mulatas e negras livres com homens europeus e criollos representavam uma parte significativa da sociedade caribenha e são explicados, apenas em parte, pela escassez de mulheres brancas.5 Aliás, a mitologia da mulata se tornou uma parte importante da identidade cubana (Cuba mulata), refletida no exten-so corpo literário que se iniciou com os primeiros romances abolicionistas dos meados do século XIX, especialmente pela obra Cecilia Valdés, de Cirilo Villa-verde (ver, por exemplo, Kutzinski, 1993; Fischer, 2004; Rodenas, 1999 e 1994). Ursula Lambert é descrita de maneira variada, como “una mulata libre de asombrosa inteligencia”, “una mujer negra, hermosa y distinguida”, “una negra haitiana libre” e “una negra libre de origen haitiano-africano”, “la bella mesti-za haitiana” (ver, a este respeito, Karen Brito Breijo, “Historia entre ruinas”, Havana Tropico (website); Reynaldo Gonzalez, La Jiribilla, no 128; “Todo no es verdad en filme Roble de Olor”, Cubarte, maio de 2004; Cubaencuentro.com, 29 out. 2003; Excelencias Turisticas del Caribe, 2005, 5).

A meu saber, não existem documentos pessoais que lancem luz sobre a natureza da relação entre Ursula Lambert e Cornelio Souchay – com duas exceções importantes: em seu sucinto testamento de 4 de setembro de 1835, Cornelio afirmou que, além de seus outros documentos, Ursula possuía um envelope selado com instruções específicas referentes às suas provisões tes-tamentárias. Após sua morte, Ursula jurou diante do juiz Francisco Rubio Cam-po não possuir esse envelope, apenas o testamento geral de uma única página, que fazia menção apenas a ela e a Enrique Gatke, Rafael Diaz, Francisco Alva-rez y Espinosa e Petro Calderon, os executores. O juiz certificou seu juramen-to porque ela declarou não saber escrever (porque dijo no saber).6 Não sabemos o que se encontrava naquele envelope, mas Cornelio mudou seu testamento em 11 de junho de 1837, um dia antes da sua morte, aos quase 53 anos de idade. No testamento de 1835, ele havia declarado que apenas os documentos com o acréscimo manuscrito “roble de olor” deveriam ser reconhecidos como válidos. (No filme, essas três palavras assumem o papel de um sinal secreto entre os dois amantes.) No codicilo de 1837, Cornelio concedeu a Ursula uma pensão vitalícia de 1.200 pesos por ano, com a condição de que ela não reivin-dicaria os 20 mil pesos que ele lhe devia. O fato de ele ter tentado, em face da sua morte, tomar providências para o bem de Ursula sugere uma relação pes-soal significativa ou, pelo menos, um sentimento de dívida pessoal. Revela o papel especial desempenhado por Ursula em Angerona e reforça as afirmações de que o cafezal teria sido uma criação bem-sucedida de ambos.

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De fato, no início da década de 1830, Ursula Lambert tornou pública sua contribuição em um desafio legal, altamente incomum para uma mulher em sua posição desvantajosa. Cornelio estipulou a pensão sob a condição de que ela abrisse mão de sua reivindicação aos 20 mil pesos, que ele devia a ela e que ele havia usado, com o consentimento dela, para quitar uma dívida. Pre-viamente, ele havia reconhecido a dívida em um acordo com credores, apro-vado pelas autoridades em 16 de fevereiro de 1833. Quando um advogado de outros credores excluiu a reivindicação de Ursula pelo fato de ela não ocupar nenhuma posição oficialmente reconhecida, ela se defendeu com a ajuda de seu advogado, que a representou dizendo: “Não vejo por que o fato de alguém me dever 20 mil pesos deva ser tão repugnante pela única razão de eu ser uma mulher [...]. Os serviços de uma mulher podem ser mais lucrativos do que os de qualquer homem […]. Minha obra deve ser descrita de forma que explique o quanto ela contribuiu à produtividade e aos lucros da plantação.”7

De acordo com Berta Martinez, Ursula veio a Angerona em maio de 1822, para administrar os assuntos domésticos (vivienda) e assumir uma função de grande importância para a produtividade do cafezal: a supervisão da enferma-ria e do pavilhão das crianças (casa de los criollitos), onde estas viviam até dez anos de idade. Seu salário foi de 150 (ou 200) pesos por mês, que também in-cluíam os custos do treinamento das mulheres que cuidavam dos doentes (ver Fraginals, 1976: 152). Após a morte de Cornelio, ela aparenta ter ficado mais algum tempo em Angerona, antes de retomar seus negócios em Havana, onde morreu por volta de 1860 (ver Breijo, 2001). De acordo com Maria del Carmen Barcia, quando Ursula morreu, era dona de uma casa, de muitos objetos de ouro, coral e diamantes, mas também de 21 escravos e de 4.000 pesos em di-nheiro (sobre o artigo de Maria del Carmen Barcia, ver Acosta, 2005).

Ursula Lambert, cujo ano de nascimento é desconhecido, chegou a Ha-vana em uma idade bastante jovem, com milhares de famílias de refugiados franceses e criollos, que haviam fugido de Santo Domingo – algumas delas tra-zendo consigo bens e escravos. Eles transformaram Cuba no novo centro de produção de café. Padura alega que Ursula Lambert – seu último nome sendo mais frequente na língua francesa do que o primeiro – viera da “fazenda pa-ternal El Cabo” e conseguira trazer consigo algum capital, com o qual ela fun-dou uma empresa de roupas e perfumes em Havana. Se isso for verdade, surge a pergunta se ela poderia ter sido a filha – legítima ou ilegítima – de um dono de plantação e de uma escrava mulata. Nesse caso, ela teria pertencido aos gens de couleur, que era um grupo importante em Santo Domingo (Dayan, 1995: 224). Mas suas origens (familiares) permanecem obscuras.

Dizem que Cornelio encontrou Ursula em 1809, em Havana. Como ho-mem europeu solteiro, de 25 anos de idade, sem bens e sem ascendência fa-miliar localmente reconhecida, o imigrante francês protestante de linhagem huguenote não podia (nem queria) se aproximar das filhas católicas pias da

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elite agrícola e mercantil. Como mulata livre do Santo Domingo francófono, Ursula ocupava uma posição social vulnerável e possuía oportunidades limi-tadas. Socialmente marginalizados, mesmo que de formas diferentes, e des-comprometidos, eles estavam livres para se juntarem em benefício mútuo.8

3. OS PRIMEIROS ANOS DE CORNELIO SOUCHAY

EM CUBA E O INíCIO DE ANGERONA

Ao contrário das décadas de sua vida em Cuba, quase nada sabemos sobre os primeiros anos de vida de Cornelio. Ele nasceu em 21 de outubro de 1784, em Hanau (Hesse), onde havia uma pequena residência da corte e grande popula-ção de refugiados huguenotes. Registrado como Corneille, seu nome em alemão era Cornelius. Ele e seus irmãos ficaram órfãos cedo. Em 1787, seu pai, Isaac Pierre (1748-?), levou seu próprio pai, o ourives de Hanau, Esay Souchay, à ru-ína, abandonou sua família e desapareceu na Rússia. Pouco depois, a mãe de Cornelius morreu. Após a ruína da família, o avô Esay se mudou para Lübeck com os netos, onde se originou um novo ramo da família Souchay. Como era comum na época, o jovem Cornelius foi morar com parentes; sua tia, Marian-ne Souchay (1766-1838), era casada com Ludwig von Kapff (1765-1841), um comerciante de vinho em Bremen (Doehner, 1961: 42, 47 e 50). Como órfão sem capital inicial, ele nada tinha a perder quando decidiu tentar sua sorte na América. Veio, como um dos muitos refugiados da era napoleônica, por motivos econômicos ainda antes da abertura geral da América Latina, inclusive da Cuba espanhola e de Porto Rico, a empreendedores estrangeiros. Cornelius deixou Bremen em 1804, quando tinha 20 anos de idade, e tentou a sorte primeiro em Baltimore e na Filadélfia, antes de se mudar para Havana, em 1807, e se tornar Don Cornelio.

Baltimore mantinha bons vínculos comerciais com Santo Domingo e, semelhante a Havana, transformou-se em abrigo para os refugiados francófo-nos da vitoriosa revolução dos escravos da década de 1790. O número de hai-tianos era grande, já que “boas relações comerciais entre os plantadores e comerciantes de Maryland e plantadores caribenhos fizeram de Baltimore um destino previsível para os émigrés. Centenas de negros e mulatos, dos quais muitos se identificavam ou pertenciam à classe de plantadores caribenhos pelas suas simpatias, autointeresse, educação e riqueza, constituíam uma por-ção significativa das sucessivas ondas de imigração franco-caribenha.” (ver Morrow, 2000: 123).

Segundo Padura, Souchay começou como funcionário na conhecida em-presa Antonio de Frias & Compañia, em Havana, mas em poucos anos tornou--se sócio anônimo. A firma importava farinha de trigo dos Estados Unidos, mas seus maiores lucros eram, na realidade, obtidos através do comércio legal e ilegal de escravos africanos: “Na verdade, era o segundo maior comerciante de

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escravos de Cuba” (Padura, 1967). Novos sócios injetavam seu capital na firma, que, sucessivamente, veio a ser chamada de Frias, Gutierrez, Morland y Compañia e Frias, Morland y Compañia. Cornelio supostamente chegou a possuir 25% da companhia, mas manteve isso em segredo por causa da política de imigração e comércio inconstante do governo.

Após algum tempo, Cornelio começou a desenvolver o plano de se tornar dono de uma fazenda com escravos de sua propriedade. Em agosto de 1813, “Don Cornelio Suesé [Souchay]” comprou de Maria Blaza Bosmeniel em San Marcos de la Artemisa terra pelo preço de 14 mil pesos, a serem pagos em parcelas de mil pesos por ano, com juros de 5%. Já que um cafeeiro precisava de quatro anos para começar a dar frutos e já que escravos e terra foram acres-centados apenas gradualmente, Angerona não pode ter sido um empreendi-mento grande antes do início da década de 1820 (Thomas, 1971: 130 e ss). Mas depois disso, ocorreu uma rápida expansão. Em 1828, Angerona era considera-da o segundo maior cafezal (entre mais de dois mil) da ilha. Em Havana, Cor-nelio continuou sendo sócio das empresas de Frias, de 1814 a 1825, e exerceu a função de liquidante após a morte de Antonio de Frias. Era comum parcerias serem dissolvidas ou reorganizadas a cada tantos anos, mas igualmente comuns eram endividamentos altos e falências frequentes de plantadores e comercian-tes, já que as exportações de café e açúcar e também a importação ilegal de escravos estavam sujeitas a grandes e rápidas flutuações em preço e volume. As hipotecas e dívidas de Cornelio não eram nada incomuns. Em 1830, ele, a viúva e os herdeiros de Don Antonio se viram forçados a vender para “Roberto Oliver em Baltimore a sexta parte do valor que cada um deles possuía do ca-fezal de Santa Amelia, situado em Sabanilla de Vivos y Muertos, com 95 negros ou escravos de ambos os sexos, de todas as idades e nacionalidades […] a um preço de 18.030 pesos cada […]. Esta era a dívida da defunta Frias & Co.” (ver Klein, 1978: 225).

Para alguém como Cornelio Souchay, que não crescera numa sociedade escravocrata, tornar-se um proprietário de escravos era um grande passo, mes-mo que este fosse relativizado por seu (suposto) envolvimento com o comércio de escravos. Para Ursula Lambert, no entanto, a escravidão sempre havia sido uma realidade da vida. Não existe evidência direta que revelasse o que os dois pensavam em relação às antinomias éticas da escravidão. Isso contrasta com o racismo ideológico, praticado e documentado por parte do sobrinho e suces-sor de Cornelio, André Souchay (1812-1853), que não conhecia receios éticos. Em 1845, o globe-trotter Carl Heinrich Graf von Goertz passou três semanas em Angerona (Goertz, 1852, vol. 2: 213). Ele relata que André teria alegado, sem o menor peso de consciência, uma superioridade moral e cultural do alemão sobre os escravos e criollos.

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4. O REv. ABIEL ABBOT INSPECIONA A “FAZENDA

HUMANA MODELO” DE ANGERONA

Isso suscita a questão se Don Cornelio, ao contrário do seu sobrinho, era ex-cepcional em seus impulsos humanitários (aspecto este que o filme aumenta ao ponto de um sonho utópico). A alegação frequente da perspectiva e prática humanitária de Cornelio tem sua origem no único relato de uma testemunha ocular, o reverendo Abiel Abbot (1770-1828), pastor da Primeira Igreja (Congre-gacional) de Beverly, Massachusetts, que visitou Angerona em abril e maio de 1828. (Não reconhecendo a deusa romana, ele escreveu o nome de forma erra-da: “Angenora ou Argenora”). Seu relato se distingue radicalmente do de Go-ertz. Ao contrário da afirmação de André de que Cornelio teria sido “um solitário, que desincentivava visitas pelo fato de ter chamado sua propriade de Angerona e erguido uma estátua da deusa do silêncio. […] e permitindo que sua avenida de beleza incomparável fosse invadida por sebes espinhentas” (Goertz, 1852, vol. 2: 213), Abbot conheceu Cornelio como pessoa “tão comuni-cativa quanto um espírito investigativo possa desejar… Já que essa vasta pro-priedade é administrada de acordo com princípios um tanto originais, alguns diriam até excêntricos, no entanto com excelente sucesso; e já que muitas das providências custosas apresentam um caráter supreendentemente humano com resultados de excelente disciplina, vários dos meus amigos que conhecem o dono me apresentaram a ela. Felizmente, o fazendeiro, que também é comer-ciante, se encontrava na propriedade.” (Abbot, 1829: 140-144). A conclusão à qual Abbot chegou foi: “O melhor comentário sobre essas providências é que é impossível encontrar um grupo de negros mais saudáveis, musculosos e ati-vos em toda a ilha – como muitos têm observado.”

O relato cuidadoso de Abbot demonstra que as práticas de Cornelio Sou-chay, eram uma mistura de sentimento humanitário e cálculo racional, e ine-vitavelmente revela os lados mais obscuros comparados aos lados mais “claros” daquilo que certamente era um humanitarismo particularmente rígido. Como era de se esperar, a contribuição de Ursula Lambert se manifesta apenas de forma muito indireta. Abbot se mostrou especialmente impressionado pela “enfermaria esplêndida”, que ainda estava sendo construída: “o subsolo está pronto, e o andar principal está quase completo…. [ela] reflete gosto e huma-nidade […]. O prédio será completado com um terceiro andar na parte central, dividido em duas salas, a principal sendo destinada à enfermeira-chefe do estabelecimento” – que seria Ursula – “e a outra à farmácia” (Abbot, 1829: 143). O subsolo não continha apenas quartos de isolamento para os pacientes com doenças contagiosas, mas também aposentos para homens e mulheres, apesar de serem “espaçosos e bem ventilados”, e um depósito que, “no caso de um levante, pode ser usado como local de confinamento” (Abbot, 1829: 143).

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Entre as medidas de Cornelio, em parte pragmáticas, em parte humanas, estavam também as trinta cabanas que ele construíra no campo como proteção contra aguaceiros repentinos. Abbot observou que “o proprietário cuidadosa-mente evita extenuar seus negros, para não lotar sua enfermaria” (Abbot, 1829: 144). Mas o trabalho era suspenso completamente apenas em 1 de janeiro, quando os escravos recebiam roupa nova e um perdão de castigos. Esse dia “é totalmente dedicado à alegria e festividade […] e durante um dia do ano os escravos podem ser tudo, menos mestres” (Abbot, 1829: 145).

Abbot julgou de forma benevolente os alojamentos dos negros, cercados, com seu enorme portão de ferro. “Quando a população da fazenda crescer conforme os desejos do seu dono, essa praça será uma pequena cidade negra, com ruas que se cruzam em ângulos retos.” Isso indica que Cornelio pretendia adquirir ainda mais escravos do que o número atual de 450. Abbot concordou com seu confinamento: “À noite, o portão fica efetivamente trancado […]. A segurança representa uma vantagem tanto para os escravos como para os mes-tres; portanto, é uma questão de humanidade. Essa medida promove a regula-ridade de conduta e hábitos, evita furtos e conspirações e a maioria dessas delinquências, que têm como consequência a caça por homens e cachorros, o açoite e, às vezes, a pena capital.”9

Abbot ficou impressionado com os esforços higiênicos no “hospital obstétrico e na sala para os criollos jovens, um lugar interessante e populoso. Primeiro, você entra num pátio cercado por um muro revestido de gesso, em cima do muro há cacos de vidro. Esse pátio tem um chão liso como um pátio para secar café, para que os criollos nele não encontrem nenhuma sujeira que possam comer, o que eles tendem a fazer e que incha suas barrigas e destrói muitos deles. Aqui, vimos duas fileiras de berços bem ocupadas e uma criatura de apenas 15 anos sentada entre dois dos berços, tomando conta dos seus filhos gêmeos. Em todo o cercado havia 95 creoles com menos de dez anos” (Abbot, 1829: 142). O número de crianças parecia extraordinariamente alto, tendo em vista a alta taxa de mortalidade infantil e o infanticídio comum. O cálculo de custo e benefício de Souchay era o oposto do cálculo de muitos fazendeiros no Caribe, que preservavam a antiga tradição de forçar os escravos homens a trabalharem até morrer de exaustão por causa do reabastecimento africano aparentemente inesgotável. Mas quando o reabastecimento se tornou menos fácil, as escravas se tornaram mais valiosas. “Na medida em que aumentam as dificuldades para a importação de escravos da África, dedica-se mais atenção às mulhers grávidas para preservar o estoque da plantação […]. Elas são dispen-sadas do trabalho durante um mês antes e depois do nascimento para cuida-rem de si mesmas e do filho, e durante meses, enquanto os outros trabalham, recebem algumas horas por dia para a mesma finalidade” (Abbot, 1929: 41).

Para os escravos, o infanticído e o suicído eram expressões supremas de resistência (ver Bush, 1990; Morrissey, 1989). Cornelio tentou salvar o má-

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ximo de crianças possível, se necessário com ameaças, mas seu objetivo prag-mático era o aumento de sua mão de obra. Em vista do seu sucesso admirável de manter as crianças vivas, Abbot recomendou seu método a outros planta-dores. Crianças saudáveis podiam começar a trabalhar relativamente cedo. Em sua segunda visita a Angerona, em maio de 1828, Abbot admirou a construção de uma represa no rio San Juan, que devia aumentar a produtividade de uma serraria. Os capatazes negros (contramayorales), “cada um com seu distintivo de autoridade na mão [o chicote]… apressando os passos de seus homens com palavras de animação […] as mãos, de homens e mulheres, garotos e moças, com cestos sobre suas cabeças, carregavam seu peso, proporcional à sua força, como um bando de bibiaguas à procura de comida.”10 O inventário de 1838, que documenta todos os escravos com seus nomes, lista 25 garotos entre cinco e dez anos como trabalhadores de campo e 22 moças crioles entre sete e dez anos de idade.

Entre os aspectos que deixaram Abbot impressionado estavam também os elegantes alojamentos particulares de Cornelio, que incluíam uma bibliote-ca com mais ou menos quinhentos livros em várias línguas e uma coleção de pinturas. Livros eram uma raridade na maioria das plantações creoles. A es-cultura de um espírito das águas na sala de jantar fornecia água para lavar as mãos. Mas Cornelio não havia construído uma mansão separada, no estilo sulista norte-americano. As ruínas impressionantes da larga arcada com suas quatro colunas dóricas, retratadas em tantas fotografias, talvez lembrem uma mansão no sul dos EUA. No entanto, Cornelio integrou seus alojamentos par-ticulares, as oficinas, depósitos, moinhos e enfermarias em um único e grande complexo. Assim, cercou-se de muitas das operações mais importantes do seu empreendimento. Aqui trabalhavam muitos dos seus homens hábeis (38, se-gundo o inventário), que incluíam carpinteiros, pedreiros, fabricantes de car-roças, tecelões, ferreiros e um costureiro, um tanoeiro e um pintor; entre as mulheres havia uma dúzia de costureiras, lavadeiras e cozinheiras. A algazar-ra deve ter sido grande, conferindo uma nota irônica à deusa do silêncio em frente ao prédio. “Em suma”, Abbot concluiu em sua segunda carta sobre An-gerona, “vi […] nenhuma estância melhor administrada do que esta, que con-tém a promessa de um dia ser uma linda e esplêndida batey de operários, com cada conveniência e cada luxo que uma imaginação oriental possa desejar.”11 Mas seu destino seria outro.

Em vista da alta taxa de mortalidade naquela época, Cornelio, com pou-co mais de 40 anos de idade, tomou providências para seu próprio enterro: “O senhor S. preparou seu último leito, na entrada norte da sua estância; e o caixão, observou, logo seria construído de madeira incorruptível.” Ele também informou Abbot sobre um plano curioso: “Em breve, ele pretende contratar um músico, que selecionará e instruirá uma banda composta de 40 dos seus negros, para que ela o entretenha em seus anos de declínio e toque melodias tristes

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em seu funeral.” É difícil saber se ele estava falando sério. Havia, porém, um propósito sério por trás do seu jazigo particular. Como protestante, Cornelio era forçado a reconhecer as duras realidades da discriminação religiosa. Até a década de 1870, o casamento, o batismo e especialmente o enterro em solo sagrado eram oficialmente negados a milhares de protestantes (ver Martinez--Fernandez, 1992). Cornelio pode ter se convertido ao catolicismo, como muitos outros protestantes alemães, a fim de se tornar um comerciante e dono de terras estabelecido, mas no fim ele fugiu às exigências rituais de um enterro católico. Como dono de uma fazenda, ele aparentemente tinha a opção de ser enterrado em suas próprias terras. Quando ele morreu, em 2 de junho de 1837, na cidade de Pueblo Jesus del Monte (perto de Havana), seus amigos e sócios agiram rapidamente. Em 16 de junho, o padre da paróquia vizinha, Manuel José Brita y Guerra (de Cayajabos, hoje Coyajabado), emitiu um certificado de se-pultamento, afirmando que, devido à rápida decomposição do corpo, uma au-toridade superior havia permitido um enterro privado “sem o ofício da remissão […] e sem os últimos sacramentos, que não foram administrados nem requeridos” (ver Du Buchet, 1987: 42). No mesmo dia, os executores de Corne-lio, o herdeiro André(s) Souchay e o licenciado Don Rafael Diaz entregaram seu testamento a Don Lorenzo de Larrazabal da Escribania de Guerra em Havana, desculpando-se por seu atraso e explicando que o corpo de Cornelio precisava ser levado rapidamente de Pueblo Jesus del Monte para sua estância (Du Buchet, 1989: 58). Assim, encontrou-se uma solução para enterrar um fazendeiro fran-cês protestante.

5. ANGERONA E SEUS vIZINHOS DONOS DE ESCRAvOS

– NA REALIDADE E NA FICÇÃO (NA vISÃO DE MARY PEABODY)

Ao descrever as práticas relativamente humanas de Cornelio Souchay, Abbot nada relata sobre como se sentia em relação à escravidão como instituição. Existe, no entanto, outro documento literário sobre como seus vizinhos, Robert e Laurette Morrell, resolveram seus conflitos resultantes de sua vida como donos de escravos. Eventualmente, haveria até um tratado ficcional de Corne-lio Souchay e Ursula Lambert. Abbot escreveu seu relato sobre Angerona no cafezal vizinho de La Recompensa, onde ele se submetera aos cuidados médi-cos do seu anfitrião, Dr. Robert Morrel, enquanto explorava a vizinhança. Em 1834/5, as cartas de Abbot serviram a Mary e Sophia Peabody (1806-1887, 1809-1871) como guia para a ilha (Marshall, 2005: 274), quando passaram mais de 15 meses em La Recompensa; Sophia como paciente e Mary como professora par-ticular da filha adolescente Luisa, mas principalmente dos filhos mais novos Carlito e Eduardo (Marshall, 2005: 275 e cap. 24). As observações precisas de Mary sobre os horrores da escravidão a transformaram em uma abolicionista

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dedicada, enquanto sua irmã preferiu fechar os olhos.12 As irmãs, ainda antes dos seus anos de fama, escreveram muitas cartas em La Recompensa, e Mary começou a ficcionalizar suas dolorosas experiências em um romance abolicio-nista, Juanita, publicado postumamente apenas em 1887 para proteger a repu-tação da família Morrell (ver Peabody Mann, [1887] 2000). Mas o romance pretendia refletir a “vida real em Cuba”, como dizia o subtítulo. Assim, a linha divisória entre fatos e ficção permaneceu obscura.13

As cartas de Mary Peabody explicam por que ela hesitara em publicar o romance enquanto os Morrell ainda estavam vivos, pois ele relata vividamen-te o que é superficialmente mascarado como ficção. Mary escreveu para sua irmã Elizabeth, em Boston, apresentando um retrato revelador dos Morrell e da sua defesa da escravidão e dos castigos físicos em interesse próprio:14 “Em termos intelectuais, o Dr. M. é um excelente avaliador do estado das nações, mas creio que não se interessa de todo pelos seus interesses vitais, dado que consiga vender bem seu próprio café – se esse aspecto estiver correndo bem, ele não se importa com quem estiver lutando ou conquistando – ele é um homem sem pátria, e apesar de admirar e ter orgulho da América, ele não possui o que eu chamaria de amor patriae. A senhora Morrell tem uma visão muito pragmática – e de forma alguma filosófica – da sociedade. Ela julga as pessoas por suas ações públicas – e julga muito bem, considerando suas pre-missas” (11 de maio de 1834, Berg Collection, arquivo nº 24). A senhora Morrell tentou defender as ações do seu marido quando suspeitou que Mary a estava julgando de forma injusta de uma perspectiva de forasteira do norte: “Ela dis-se que nenhuma palavra jamais poderia refletir o que ela havia sofrido – mas que seu princípio sempre tem sido de nunca interferir. Ela disse que, para qualquer pessoa na minha situação, seria impossível avaliar o que precisava ser feito para preservar a ordem – eu lhe disse que não pretendia julgá-la – e que a pior parte da escravidão não era o volume de trabalho ou nem mesmo o castigo necessário – mas a extrema degradação da raça” (21 de agosto de 1834, Berg Collection).

Como as cartas de Cuba relatam repetidamente, os plantadores vizinhos faziam muitas visitas, jantavam e bebiam juntos.15 Cornelio Souchay não é mencionado como convidado ou anfitrião, provavelmente por causa do seu relacionamento com Ursula Lambert, mas vários nomes mencionados pelas irmãs Peabody parecem ter tido vínculos com os Souchay em outros contextos. Assim, “Monsieur Henri”, dono do cafezal Independencia, era o Don Nicolas Henrique, um dos dois homens “de amizade e confiança” (“dos personas de su

amistad y confianza”), que avaliaram as propriedades de Cornelio após sua mor-te em 1837. Com Don Jose Jacobo Lufriú, do cafezal Buen Retiro, Cornelio Sou-chay fez a avaliação de outra estância. O amigável senhor Morland de Havana aparenta ter sido associado (ou membro da família) à firma Frias, Morland y Compañia, da qual Souchay era sócio.

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Se Angerona não fazia parte do agitado círculo social (de visitas) dos Peabody, a plantação foi possivelmente o destino de uma excursão de inspe-ção.16 No romance, o cafezal e seus habitantes são facilmente reconhecíveis sob o nome de “La Ascensión”, mesmo que esta plantação seja uma imagem composta por várias estâncias. Mary estava a par das opiniões de Abbot sobre essa “fazenda modelo” (Juanita: 72), mas evidentemente sabia mais do que suas cartas revelavam, seja de observação própria ou testemunhos indiretos. Abbot não havia mencionado Cornelio Souchay, nem como alemão, nem como soltei-ro, e não havia falado de Ursula Lambert de todo, mas Mary faz com que sua heroína Helen Wentworth não só encontre o alemão “Conde von Müller”, mas também a mulata “Mariana”; e a anfitriã de Helen, a Marquesa Rodriguez, ob-serva de forma impressionante: “O Conde von Mueller reina sobre 500 escravos, e Mariana reina sobre o Conde von Mueller” (Juanita: 72). A visita à plantação modelo se transforma em um desfecho que revela o lado obscuro do cálculo racional do tratamento humano.

A história se desdobra da seguinte maneira:

La Ascensión, que a Marquesa propôs visitar, era a residência do Conde von Mueller, um dos poucos alemães a serem encontrados na ilha. O acesso a partir desta entrada singular se dava por uma avenida de mangueiras e tamarindeiras […]. Quando chega-ram à porta, uma enorme cabeça com turbante sobre um rosto de mulato rechonchudo, agradável e de dimensões proporcionais apareceu numa janela e sumiu rapidamente, mas antes os visitantes puderam ver nitidamente os brincos e o colar de ouro maciço. Alguns instantes mais tarde, uma senhora corpulenta, vestida com um longo manto de linho branco, ricamente adornado e enfeitado por laços, apareceu na galeria. O Conde von Mueller não estava em casa, e um bando de crianças negras e nuas, que corriam pela sacada, foram enviados à sua procura […].

“Ele não tem família?” “Sim, se você puder chamar de família meia dúzia dessas pequenas coisas amarelas. Seus filhos legítimos estão sendo educados na Europa, pois sua esposa morreu antes de sua chegada, e ele conseguiu juntar algum dinheiro para eles. Mas duvido que ele também volte para lá, pois transformou-se em um criollo no que diz respeito a hábitos domésticos, e ele se orgulha de sua plantação modelo.”17

Chocada com aquilo que esses hábitos aparentavam ser, Helen ficou feliz ao saber da existência de uma fazenda modelo e nutriu a esperança de que um homem nascido fora das instituições da escravidão tivesse uma noção de humanidade melhor daquela que até mesmo um espanhol honorável teria adquirido. […] Após pouco tempo, o Conde von Mueller apareceu, um alemão robusto e espadaúdo, careca e de olhos azuis. A Marquesa era muito querida por ele, porque ela admirava sua plantação e tinha o costume de mostrá-la a seus hóspedes para que estes vissem seus feitos […]. Era evidente que o Conde seguia uma política diferente. Ainda assim suas riquezas eram o objeto de inveja de todos (Juanita: 73).

Mas após louvar a enfermaria impressionante, o hospital e a sala de se-leção de café envidraçada – uma descrição semelhante à de Abbot – Mary intro-duz um episódio violento: o treinamento brutal e sangrento de um cão de caça para capturar dois negros. Isso destrói as ilusões da heroína e a leva ao des-maio. Na voz de seu autor, Mary conclui:

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A Marquesa havia admirado o Conde von Mueller por sua benevolência e sua aparente justiça. Mas como a benevolência se comporta com o fato de um homem, educado em uma sociedade livre, se mudar para um país com escravidão com o propósito de ganhar dinheiro a um custo tão alto? A política do Conde era, como já dissemos, cuidar da saúde do seu povo, pois acreditava que o retorno seria maior, e sua benevolência para com os homens brancos o induziu a treinar seus cachorros tão bem para que não atacassem ninguém além dos fugitivos; mas as regras da sua plantação eram muito rígidas, o trabalho que cobrava era muito severo, os castigos por delinquências eram terríveis […]. Nem mesmo hospitais e salas de seleção impediam a necessidade de usar violência para extrair o volume de trabalho exigido. […] Os olhos azuis [do Conde] podiam ser mansos e amigáveis quando olhavam para um amigo admirador, mas eram impiedosos quando olhavam para o escravo cujo sangue e energia ele transformava em ouro (Juanita: 75).

A cena aterrorizante do confronto entre o cão de caça e os dois escravos pode ter acontecido em outro local, mas Mary Peabody queria expor os horro-res sempre presentes até mesmo na melhor “plantação modelo”. Cães assus-tadores certamente existiam em Angerona. André, o sucessor de Cornelio Souchay, organizou para o entretenimento do Conde Goertz uma perseguição simulada, forçando seus escravos a assumirem o papel dos fugitivos (Goertz, 1852: 227).

6. A vISITA DE CIRILO vILLAvERDE E jACINTO DE SALAS

Y QUIROGA A ANGERONA: LUZ E SOMBRA

Em 1839, dois anos após a morte de Cornelio, dois escritores vieram visitar Angerona, quando a propriedade já estava nas mãos de André Souchay e os vestígios do trabalho de Ursula haviam desaparecido. Cirilo Villaverde (1812-1894), o primeiro romancista cubano, apareceu em companhia do pintor de paisagens Alejandro Moreau e do padre Francisco Ruiz, professor no seminário de San Carlos. Ele também admirou a estrutura física da plantação: “O prédio principal é uma magnífica obra de arte e evoca um templo grego […]. Toda a estância é bem projetada, tudo é convenientemente separado, espaçoso, e grande parte dela é luxuosa.” (apud Mendez, 1952: 279). Com a recente chega-da da esposa de André, Berta, e do seu irmão Hermann, a plantação parecia ter uma estranha atmosfera alemã. Isso ofuscou o legado de Cornelio e Ursula. Em seu Romance de Angerona, Leonardo Padura repreendeu Villaverde por ignorar as obras de Ursula: “Em 1839, a morena já não se encontrava mais em Ange-rona, e para os herdeiros de Souchay, esta engenhosa e linda mulher nunca serviu como aquela inspiração que ela havia sido durante todos esses anos para o alemão rosado.”

Com um toque satírico, Villaverde lembrou uma refeição na sala de jan-tar com os três alemães: “Conversamos até as duas da manhã com esses donos taciturnos e melancólicos, presos nesta grande sala. Suas paredes eram total-

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mente verdes, os móveis escuros projetavam suas sombras sobre tudo e as velas não conseguiam penetrá-las. A sala tinha quatro portas, e a jovem mulher alemã, que não conseguia ficar parada e ainda usava a roupa da sua pátria, corria para lá e para cá, aparecia e desaparecia como que por magia, fazendo isso e aquilo, sem que seus passos pudessem ser ouvidos ou sem que a porta fizesse qualquer barulho. Espontaneamente me lembrei de cenas semelhantes nas histórias fantásticas de E. T. A. Hoffmann. Meu espírito foi transportado para países que nunca havia visitado. Na verdade, toda a fazenda tem uma aura estrangeira, as máquinas que economizam mão de obra e tempo durante o plantio e a colheita, os móveis, a prisão, o hospital, os jardins – tudo exala um gosto e um espírito empreendedor estrangeiros e uma preservação daqui-lo que fora trazido de fora – ou seja, é um lugar profundamente alemão.” (apud Mendez, 1952: 269 e ss).

O outro visitante em 1839 foi o escritor espanhol Jacinto de Salas y Quiroga (1813-1849), que viu muita luz e sombra: “O mestre do estabelecimen-to [Don André] nos recebeu com a maior cortesia e urbanidade. Com muito prazer ele nos mostrou todos os prédios e me explicou não só os usos de cada um, mas também os procedimentos para a produção de café, fazendo-me assim um favor especial.” Para Salas, o cenário exterior era algo como um paraíso na terra, mas ele também se comiserou dos escravos. Em Cuba, isso levou à su-pressão do livro que ele publicou em Madri no ano seguinte. Salas lamentou:

Naquela fazenda mais do que em qualquer outro lugar, tive a oportunidade de lamentar o estado de completa ignorância em que seus escravos são mantidos. Uma das últimas operações da produção do café consiste em espalhar numa mesa muito extensa um grande volume de grãos de café. Muitos negros, sentados lado a lado, os separam em diferentes classes e fazem o trabalho de selecioná-los. A sala é excepcionalmente agradável, comprida, estreita, lindamente envidraçada e com pé-direito bastante alto. Quando entramos, havia lá um silêncio sepulcral, um silêncio que, como nos informaram, nunca é interrompido. Mais ou menos 80 pessoas, mulheres e homens, se ocupam com essa tarefa monótona.

Então, passou-me pela mente que nada seria mais fácil do que usar essas horas para o bem da educação moral desses seres deploráveis. O supervisor, sem diminuir sua vigilância, poderia ler em voz alta algum livro para esse propósito. Ao mesmo tempo em que ele assim amenizasse a infelicidade desses infelizes, a instrução poderia aliviar sua miséria.

Mas a triste verdade é que há aqui um interesse decidido em tratar essa classe de seres humanos de forma inferior aos cavalos e bois. Sempre que ouço falar do progresso na ilha de Cuba, lembro-me, incapaz de remediá-las, da legislação confusa, da desordem na justiça, das falhas nos colégios e nas escolas e da rudeza com que essa classe infeliz arrebatada da África é tratada, infringindo assim todas as leis de Deus e dos homens (Salas y Quiroga, [1840]1964: 180 e ss).18

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7. O DECLíNO DE ANGERONA E A QUEDA DOS DESCENDENTES DE SOUCHAY

No final das contas, o ambicioso projeto de Cornelio Souchay de uma fazenda modelo de dimensões extraordinárias mostrou-se um investimento excessivo. Ele adquiriu suas primeiras terras quando a produção de café aparentava ter um grande futuro, mas o otimismo não sobreviveu à primeira geração de plan-tadores que viera de Santo Domingo. Já em 1839, André se queixou diante de Jacinto de Salas y Quiroga que, em vista da queda dos preços do café e dos al-tos custos de manutenção, a renda não correspondia ao “imenso capital inves-tido”. À época da visita de Goertz, em 1845, mais de ¼ de Angerona já era dedicado à produção de açúcar. A crescente exportação de café brasileiro e uma produção muito mais alta dos engenhos nacionais causou um declínio íngreme dos cafezais. A enorme expansão dos engenhos mudou a paisagem, transformando o colorido “jardim de Cuba” (San Marcos) em monótonos cam-pos de cana. A transição agravou as condições de vida e de trabalho e forçou os escravos a se adaptarem ou a se reassentarem e especialmente a suportarem trabalho noturno. Os castigos físicos aumentaram em geral e levaram a mais tentativas de rebelião, que também eram instigadas pelas condições extremas da “vida nas barracas” superlotadas. Mais tarde, alguns escritores cubanos vi-riam a idealizar as fazendas de café porque aparentavam ser menos terríveis do que as plantações de cana-de-açúcar (ver Knight, 1970: 67 e ss). Um dos primeiros exemplos é Cecilia Valdes, de Villaverde, que contrasta as condições brutais de um engenho com as condições mais amenas de um cafezal.

No decorrer do tempo, os engenhos passaram a não depender mais ce-gamente da mão de obra dos muitos escravos, mas começaram a implementar melhorias mecânicas e aumentaram o número de operários assalariados, tam-bém em antecipação de um eventual fim das prósperas importações ilegais de escravos.19 O próprio Cornelio se interessava muito pelas inovações. Ele usou separadores mecânicos avançados e, em vez dos sacos comuns, ele transpor-tava suas sementes de café em grandes barris.20 Isso explica o grande barril de café no centro do brasão usado em seus documentos.21 Já próximo ao fim de sua vida, mas aparentemente sem se dar conta da sua rápida aproximação, ele investiu em um projeto ferroviário que ligaria Artemisa à costa e Havana. Não obteve êxito e sofreu uma perda considerável (ver Du Bouchet López, 1989: 59). Se tivesse conseguido realizar seu projeto, teria sido o construtor da primeira linha ferroviária em toda a América Latina. Seus competidores inauguraram a primeira linha em 1837/38, mas ao preço de uma mortalidade muito alta, não apenas de escravos, mas também de trabalhadores da Irlanda e das Ilhas Ca-nárias, que eram (mal)tratados sob a lei militar (ver Fraginals, 1976: 135 e ss). A partir daí, a produção de açúcar e a construção de ferrovias se impulsionaram reciprocamente (ver Perez, 1995: 411).

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A execução das propriedades de Cornelio Souchay foi um processo de-morado. Ela envolvia negociações e acordos complexos sobre a herança e as dívidas. A estância foi avaliada em 500 mil pesos, as dívidas, em 100 mil pesos.22 O cálculo de Abbot de mais ou menos 750 mil cafeeiros e 450 escravos foi con-firmado, com algumas correções. O preço dos 428 escravos foi avaliado em 133 mil pesos, uma média de 310 pesos por pessoa, sendo que os artesãos eram muito mais valorizados. Aproximadamente 60% dos escravos eram de origem africana (Guiné).23 Entre eles, havia sete capatazes, a maioria entre 20 e 30 anos de idade, que ajudavam o maioral (provavelmente) alemão a controlar as mui-tas mãos de obra. Cornelio possuía mais escravos do que era comum para plantações de café, e as muitas crianças indicam uma taxa de reposição inter-na muito alta. Seu cafezal apresentava as dimensões dos engenhos posteriores e abrangia 40 caballerias (mais de 40 mil acres).

Solteiro e sem filhos,24 Cornelio tinha apenas um irmão ainda vivo, Esaye (Esay, Esaie, 1782-1861), dono da estância de Wintershagen (em Holstein) per-to de Lübeck, quando teve que decidir quem herdaria Angerona e daria conti-nuação à obra de sua vida. Aparentemente, nunca mais retornou à sua pátria, mas manteve contato com sua família. Em 1835, ele legou ¾ da sua estância a seu irmão (mas não todos os seus bens comerciais) e ¼ aos filhos de sua irmã já falecida, Charlotte Colin. Como executor, ele nomeou primeiro Enrique Gatke (Heinrich Gätke), mas em 1837 ele o livrou dessa responsabilidade e o trans-formou em um herdeiro menor. Para o filho de Enrique, Cornelio, seu afilhado, ele deixou uma pensão para os anos de sua formação até a idade de 25 anos. Entretanto, o problema de maior urgência não era a herança formal, mas a continuação prática. Quem administraria Angerona? Os dois irmãos concorda-ram que André Souchay, o filho de Esaye, deveria ir a Angerona e se preparar para administrar a fazenda. Em 1834, Cornelio se encontrou com seu sobrinho de 22 anos de idade, que ele nunca vira antes. No primeiro testamento de 1835, André ainda não é mencionado como executor e herdeiro, mas seu nome sur-ge em 1837. Após a morte de Cornelio, ele retornou brevemente à estância paterna de Winterhagen para buscar sua noiva Bertha Hesse (1816-1889) e seu irmão Hermann (1813-1872). Os dois irmãos haviam trabalhado juntos duran-te alguns anos na estância da família. Eles provinham de um ambiente burguês próspero e haviam crescido em tempos menos difíceis do que Cornelio, cujo pai havia levado sua família à falência. Eles não estavam preparados para as realidades de uma fazenda com escravos, mas estavam acostumados com os trabalhadores subservientes de Holstein, assim como Bertha Hesse, cujo pai alugou a estância, estava familiarizada com as condições extremamente retró-gradas de Mecklenburg, onde a servidão fora abolida apenas há muito pouco tempo. Nenhum dos irmãos tinha adquirido experiências no exterior. O “cho-que de cultura” cubano parece ter agravado seus preconceitos alemães.

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Após a morte de Cornelio, a resolução da herança e das dívidas se ar-rastou por anos. Os dois executores – o antigo sócio de Cornelio, Rafael Diaz, e André Souchay – convenceram os herdeiros alemães a reinvestirem suas partilhas em um novo engenho de cana, para a qual cem escravos foram re-crutados.25 Em vista do declínio geral das fazendas de café e da resultante perda de valor de Angerona, isso foi um passo astuto. O engenho “Arco Íris”, fundado em 1841 e avaliado em 150 mil pesos em 1845, parece ter servido como principal devedor das dívidas de Cornelio, com o “curioso resultado” (Du Bou-chet López, 1989: 61) de uma plantação de cana-de-açúcar figurar entre os bens dois quais Cornelio não podia ter tido nenhum conhecimento. Em 1841, chegou--se a um acordo quanto à partilha da estância: foi dado a Rafael e André; os outros, aos herdeiros alemães, de acordo com as determinações de 1837, mas é improvável que os últimos jamais tenham tido algum proveito financeiro. Quando Esay Souchay repartiu sua própria estância em 1856, ele deixou todas as suas partilhas cubanas para a viúva de André, Bertha Hesse, e seu outro filho Hermann. André, que sobreviveu a Cornelio por 16 anos, havia falecido em 1853 com apenas 41 anos de idade. Hermann, permanecendo solteiro, teve que assumir mais responsabilidades, mas retornou para a Alemanha no início da década de 1860 e morreu, mental ou fisicamente doente, num sanatório (Heilanstalt) em 1872. Ele partiu quando os filhos de Bertha estavam crescidos. Cornelio Souchay y Hesse (1841-1902) administrou a empresa que, pelo menos desde 1863, produzia apenas açúcar, em conjunto com Henrique Gatke, (pro-vavelmente) um filho do primeiro Enrique Gatke. Henrique se tornou genro de Bertha quando se casou com Carlota Souchay y Hesse (1845-depois de 1898) em 1865.26 Os Souchay continuaram a modernizar seu empreendimento. Em 1870, um artigo na Illustración Española y Americana retratou uma usina de açú-car modelo (central), que eles haviam construído na vizinhança e que prova-velmente era operada principalmente por trabalhadores assalariados.

Na terceira geração, os primeiros Souchay se casaram com parceiros criollos católicos. Na verdade, eles mesmos eram considerados criollos primo-gênitos de descendência alemã. Nada se sabe se ou o quanto eles se distinguiam de seu pai em relação à sua posição racista. Em 1862, Louisa Souchay y Hesse (1842-1896) se casou com Francisco Chappotin y Cobarrubias, filho do dono da central de açúcar El Pilar, em Artemisa. Em 1875, seu irmão Cornelio, sem pressa alguma, aos 34 anos de idade, se casou com Angelica Zambrana y Perez (1859-1892), de apenas 17 anos e filha da famosa poetisa cubana Luisa Perez y Montes de Oca.27 De certa forma, porém, a integração na elite hispânico-criolla

ocorreu tarde demais. Desde 1870, o governo espanhol vinha prometendo a abolição gradual da escravidão. A Guerra dos Dez Anos na província de Orien-te, de 1868 até 1878, não afetou Angerona diretamente, mas variadas formas de trabalho assalariado e mais ou menos coercivo – “branco”, “negro” e “ama-relo” (chinês), emergiram, impulsionadas em parte pelas tecnologias da pro-

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dução de açúcar (Scott, 1985). A escravidão se desintegrou em muitas regiões nos anos antecedentes à sua abolição definitiva, em 1884. Não existe certeza quanto ao momento em que os grandes alojamentos de escravos (barracon) de Angerona, cujas ruínas ainda impressionam os visitantes, foram esvaziados, se gradativa ou repentinamente. Em 1883, Bertha Souchay dividiu as terras de Angerona entre seus três filhos. Carlota e Henrique adquiriram o complexo arcado e o cemitério. Bertha havia chegado a Angerona em 1838, em seu perí-odo mais próspero; ela presenciou seu declínio gradual e morreu meio século após sua chegada, em 1889, quando a fazenda estava se aproximando do seu fim. A guerra civil da década de 1890, que devastou Cuba e destruíu a classe criolla de fazendeiros, fez com que seus filhos precipitassem sua fuga, esca-pando assim às dívidas crescentes e à perda da propriedade. A “villa” foi des-truída pelo fogo, e os túmulos foram saqueados. O declínio social foi rápido. Sem dotes, as cinco filhas de Cornelio e Angelica permaneceram solteiras; duas delas, Berta e Margarita, receberam uma pensão honorária do governo por cau-sa da sua avó famosa. Após sua fuga de Havana, três das filhas de Louisa e Francisco tiveram que sustentar a família como costureiras. A geração mais nova dos homens de todas as três famílias encontraram trabalho em posições de meio escalão no comércio e no funcionalismo público.

Assim chega ao fim a história das três gerações da ascensão e queda de Angerona. Cornelio Souchay foi o fundador daquilo que, em vários sentidos, viria a ser uma fazenda de café extraordinária. Ursula Lambert foi importante para ele e seu empreendimento. Mas a extensão verdadeira do seu relaciona-mento pessoal talvez permaneça escondida por trás dos dedos que cobrem os lábios da deusa, a não ser que descobertas no futuro consigam romper seu silêncio.

Recebido para publicação em janeiro de 2012.

Guenter Roth é professor emérito da Universidade de Columbia. De origem alemã, obteve seu Ph.D na

Universidade da California, em Berkeley. Especialista em Max Weber, publicou diversos artigos e livros sobre

questões teóricas e metodológicas da obra weberiana, sua recepção, e, ainda, sobre a famíla de Max Weber. É

autor de Max Webers deutsch-englische Familiengeschichte,

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NOTAS

1 Rigoberto López Pego (nascido em Havana, em 1947) é co-nhecido por vários documentários. O roteiro deste filme foi escrito em conjunto com Eugenio Hernandez Espinosa (nascido em 1936), diretor do Centro Bertold Brecht em Ha-vana.

2 Leonardo Padura, “El Romance de Angerona”, publicado originalmente em Juventud Rebelde, de 1987; agradeço ao autor por disponibilizar seu texto eletronicamente.

3 Em 6 de junho de 1989, a Comisión Nacional de Patrimonio declarou Angerona um monumento nacional e nomeou o museu municipal de Artemisa como responsável por sua preservação.

4 Na literatura crescente, não existe uma percepção históri-ca sobre o contexto mais amplo em que o nome “Souchay” seja relevante. Sabe-se, entretanto, que os Souchay e famí-lias parentes eram agentes significativos na expansão da economia mundial e na ascensão do “capitalismo cosmo-polita” no século XIX. Ver meus estudos Max Webers deuts-

ch-englische Familiengeschichte 1800-1950 (2001); “Max Weber, scion of the cosmopolitan bourgeoisie” (2005); e “Max Weber: family history, economic policy, exchange reform” (2002)

5 Na literatura aqui consultada, espanhóis nativos, os penin-sulares, são distinguidos dos criollos, espanhóis (e france-ses) e africanos nascidos em Cuba. O termo mulato tinha um significado amplo. Ver Garrigus (2001: 327). Doris Y. Kadish (2000: 13) emprega os termos “negro livre, pessoa de cor livre e mulato de forma intercambiável para se re-ferir à classe entre os escravos e os brancos, apesar das diferenças significativas entre eles.”

6 Compra de terra, testamento, inventário e outros documen-tos relacionados à herança e à disposição da dívida foram publicados no Boletin del Archivo Nacional (Havana); ver Du Bouchet López & Hernandez (1986: 65-81); Du Bouchet Ló-pez (1987: 35-43; 1989: 58-98). Para a declaração de Ursula Lambert de 15 de julho de 1837, veja Du Bouchet López (1986: 42).

7 Ignorado por Jorge Du Bouchet López (1989: 60), o assunto foi agora esclarecido por Luz Mena (2005: 87-104). Ela apre-

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senta um ensaio não publicado de 1996, da historiadora cubana Berta Martinez Paez, “Ursula Lambert, la diosa ne-gra del cafetal Angerona” com uma lista das fontes no Ar-quivo Nacional de Havana. Luz Mena conclui: “A pergunta óbvia por que Souchay não nomeara Ursula como ‘admi-nistradora’ e por que ele simplesmente não lhe dera uma soma equivalente aos salários devidos, em vez de tentar justificar sua dívida sem a documentação necessária, não foi levantada no processo. Mas é evidente que qualquer uma dessas medidas teria causado um escândalo social. A função de administrador era reservada aos homens bran-cos. Uma grande doação em dinheiro de um homem bran-co para uma mulher negra teria sugerido um relaciona-mento romântico ilícito entre eles, um relacionamento que ou não exisitiu ou que ocultaram cuidadosamente” (Mena, 2005: 95).

8 Se, por um lado, os comerciantes e plantadores não espa-nhóis eram vistos como suspeitos pelos peninsulares e criollos, eles, por sua vez, evitavam legalizar seus relacio-namentos com mulheres criollas, mesmo se os assuntos de afiliação religiosa fossem ignorados (ver Gallenga, 1970: 156 e ss). Para o contexto geral, ver Martinez-Alier (1974).

9 Essa observação é da carta de 19 de fevereiro, da fazenda La Carolina (Abbot, 1829: 13). Abbot ainda usa o termo bo-

hea em vez de barracon (alojamentos fechados). Em tempos mais antigos, as cabanas dos negros (boheas) normalmen-te não eram trancadas. Em vista de seu grande número de escravos, Cornelio construiu um tipo de barracon que se tornou padrão nas plantações de cana-de-açúcar.

As observações de Abbot mostram que, apesar de ele ter sido um conhecido apóstolo da temperança, ele não era fundamentalmente contrário à escravidão. No entanto, considerava o sistema espanhol superior ao sistema ame-ricano, porque facilitava a alforria por lei, mesmo que não na prática. Supostamente, os escravos tinham a possibili-dade de serem libertos caso fossem capazes de pagar o preço que seu mestre havia pago por eles; podiam fazer isso, por exemplo, criando e vendendo porcos. Com a pre-dominância das refinarias em décadas posteriores e sua demanda insaciável pela mão de obra escrava, a alforria se tornou muito mais rara.

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10 “[...] o maior aborrecimento do fazendeiro, a bibiagua, uma formiga da metade do tamanho da nossa formiga preta.” (Abbot, 1829: 11).

11 O inventário de 1838 contém a afirmação surpreendente de que o prédio da enfermaria, levando-se em consideração sua luxuosidade, teria o valor de 16.631 pesos, mas em termos puramente utilitários ele deveria ser avaliado em apenas 6 mil pesos (Du Bouchet López, 1989: 64). (Batey é o termo cubano para os prédios, inclusive os alojamentos, de uma plantação de café ou cana-de-açúcar.)

12 Sophia: “Não me permito refletir sobre a escravidão por dois motivos. O primeiro é que certamente contrariaria as influências benéficas pelas quais deixei meu lar e meu país; e o outro, que minha fé em DEUS me dá a certeza de que ele recompensa cada ser humano pela medida de fe-licidade que ele perde sendo instrumento de outros” (car-ta de 16 de março de 1834, Berg Collection e Badaracco).

13 Um exemplo de ficção que se segue a um evento real é o relato do açoitamento brutal testemunhado pela visitante norte-americana (Helen Wentworth) quando chega à plan-tação ficcional La Consolación (Juanita: 33). Isso reflete uma das primeiras experiências de Mary Peabody pouco tempo após chegar em La Recompensa (ver a carta nº 25, de 13 ou 14 de maio de 1834, Berg Collection, em Marshall, 2005: 277).

14 Sophia Peabody (28 de fevereiro de 1834) informou sua mãe Elizabeth sobre a história da senhora Morrell, que “tem a aparência de uma espanhola” nasceu como Laurette de Tousard em Santo Domingo e cresceu em Nova Orleans. Seu pai perdeu um braço na Revolução Americana, foi para a França após um desentendimento com Jefferson e foi nomeado cônsul em Nova Orleans por Napoleão. Marshall (2005: 268) chama Morrell de um “médico francês”.

15 Mary e Sophia Peabody podiam se movimentar com rela-tiva liberdade entre as estâncias, normalmente a cavalo e acompanhadas. Elas não sofreram as restrições extremas às quais as mulheres, principalmente as estrangeiras, eram sujeitas em Havana. Veja Martinez-Fernandez (1995: 27-49).

16 Não encontrei nenhuma referência a Angerona nos volu-mes I e II das cartas cubanas, escritas principalmente por

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Sophia Peabody, e em alguns arquivos relacionados da Berg Collection, Biblioteca Pública de Nova York.

17 Supondo que Mary Peabody tenha se inspirado na Angero-na real, é possível que ela tenha se apoiado principalmen-te em relatos da família Morrell sobre a família de Corne-lio. Cornelio não tinha uma esposa falecida, mas sim uma irmã que falecera na Alemanha, Charlotte Colin (1786-1822), e, em 1837, ele legou ¼ da sua estância a seus dois filhos sobreviventes. (Eram estes Marie Louise, 1817-1887, e Charles, 1822-?, que levou a empresa de seu pai à falên-cia e, após mudar seu nome, desapareceu nos Estados Uni-dos; ver Doehner, 1961: 47 e 217). Uma mudança real ocor-reu em Angerona com a chegada de André, sobrinho de Cornelio, em outono de 1834.

18 Salas evidentemente cedeu à sua imaginação ao propor um leitor. O supervisor muito provavelmente também era analfabeto. Mendez (1952: 287) comenta sobre essa passa-gem que uma proposta parecida foi feita por Rivero Muñiz em La lectura en las tabaquerias (1963).

19 Em seu romance, Villaverde descreve um plano tramado por fazendeiros de vestir os africanos em um navio inter-ceptado pelos ingleses com roupas de operários e declarar que estavam sendo transferidos de Porto Rico, que teria sido um procedimento legal.

20 Abbot (1829: 145) relata: “O senhor S. tem seu método pe-culiar para mandar seu café aos mercados, onde ele con-segue atingir os preços mais altos […] Para evitar [a dete-rioração], ele transporta seu café em grandes barris, cui-dadosamente feitos por seus próprios tanoeiros, de madei-ra e revestidos de ferro. Assim o café chega a Havana e aos mercados mais distantes em estado perfeitamente seco. Para a limpeza dos seus grãos, ele confia muito nos sepa-radores de Chartrand, dos quais ele tem meia dúzia em operação”.

21 Para uma reprodução do brazão de Souchay, ver Du Bouchet López (1987: 40).

22 Em algum momento antes de 1831, Cornelio comprou o título de Teniente Coronel de Milicias Disciplinadas e, subse-quentemente, foi chamado de “coronel” na maioria dos documentos. Um título militar adquirido por uma pessoa civil trazia consigo a vantagem, como explicou Abbot, de

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que ele “isenta um homem da possibilidade de ser preso por causa de dívidas pela justiça civil, mesmo que, é claro, ele continue sujeito ao tribunal militar. Muitos títulos são adquiridos por causa deste privilégio” (Abbot, 1829: 157).

23 Em 1817, a importação de escravos atingiu o auge com 34.500 africanos importados; o total, no período de 1815 a 1820, chegou a 140 mil. 1817 também foi o ano em que a Espanha e a Inglaterra assinaram um tratado que procla-mava o fim do comércio legal de escravos nas colônias es-panholas, em vigor a partir de maio de 1820. Em 1841, po-rém, o número de escravos em Cuba foi calculado em meio milhão, resultado de contínuas importações ilegais. O pre-ço médio de 310 pesos dos escravos de Cornelio se compa-ra com o preço médio de 346 pesos pagos por um escravo em idade de trabalho, em 1845, “quase um terço abaixo do preço máximo de 516 pesos, pago em 1821 […] . Após 1821, quando se tornou aparente que o tratado de 1817 não pas-sava de um papel sem valor, os preços para escravos em idade de trabalho caiu quase que continuamente durante duas décadas.” Ver Bergad et al. (1995: 52).

24 Em seu testamento de 1835, Cornelio declarou que “não tenho nem reconheço filhos de nenhuma classe” (no tengo ni reconozco hijos de ninguna clase). Essa última parte da afirmação talvez não seja totalmente livre de ambiguida-des. Ver Du Bouchet López (1987: 38).

25 O engenho foi estabalecido num curral abandonado (Gon-zalo), abrangia mais ou menos 30 e mais tarde 40 caballe-

rias, no distrito de Alacranes (Matanzas), ao leste de Ange-rona. A terra foi adquirida por Rafael Diaz, André Souchay e Enrique Gatke. A transferência de centenas de escravos (que valiam pelo menos 40 mil pesos) explicaria por que havia apenas 320 escravos em Angerona quando Goertz visitou a plantação em 1845; Goertz não menciona as ques-tões complicadas referentes às dívidas. Mas o relato de Dalia Acosta (2005) sobre o artigo de Maria del Carmen Barcia conclui com a alegação de que a renúncia de Ursu-la à dívida de 20 mil pesos permitiu que os herdeiros aos poucos transformassem Angerona em um engenho.

26 Evidência do relacionamento próximo é que, em 1868, Ber-tha, Cornelio e Enrique processaram Francisco Careaga por causa do fechamento de uma trilha. Ver Mendez (1952: 272).

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27 Cornelio parece ter conhecido Angelica em Artemisa. Al-guns meses após o casamento, a tia de Angelica, Julia, mor-reu ali após fundar uma academia municipal para a edu-cação de moças. Luisa (1835- ?) e Julia (1839-1875) Perez y Montes de Oca eram poetisas conhecidas associadas a círculos nacionalistas que lutavam pela independência de Cuba. Nascidas na plantação de Melgarejo, perto de Cobre (Oriente), elas mais tarde viveram em Havana. Quando Ju-lia contraiu a tuberculose, ela se retirou para a paisagem rural de Artemisa. Ver Luisa Perez de Zambrana (1957) e Julia Perez Montes de Oca (1981). Em 1858, Luisa se casou com Ramon Zambrana (1817-1866), professor de medicina na Universidade de Havana.

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artigo | guenther roth

Resumo:O artigo conta a história de Cornelio Souchay, um imigran-te alemão que chega a Havana em 1807, vive uma relação amorosa com Ursula Lambert, uma mulata haitiana livre e se torna proprietário de uma fazenda de café exemplar, à qual dá o nome de Angerona, deusa do silêncio. O texto baseia-se em relatos, documentos, cartas de viajantes, fil-me e romances de autoria de homens ou mulheres, que visitaram Angerona em épocas diferentes. Ao contrário do filme “Roble de Olor” (2003) que festeja a relação amorosa de Cornelio com Ursula, o autor se interessa pela recons-trução da vida do imigrante e da fazenda, cujas ruínas transformadas em monumento nacional pelo Patrimônio Histórico cubano. Com efeito, a descrição minuciosa de diversos aspectos da fazenda, da casa do senhor e de sua relação com os escravos, não tem outro objetivo senão evi-denciar o quanto o humanismo rígido de Cornélio e seu calculo racional contribuiram para a maior eficiência do sistema de dominação da fazenda.

Abstract:

The article tells the story of Cornelio Souchay, a German immigrant who arrives in Havana in 1807, has a love affair with Ursula Lambert, a free Haitian mulatto and becomes the owner of an exemplary coffee plantation which he calls Angerona, goddess of silence. The text is based on reports, documents, letters from travelers, film and novels written by men and women who visited Angerona in di-fferent times. Contrary to the film “Roble de Olor” (2003) which celebrates the love of Cornelio and Ursula, the au-thor is interested in the reconstruction of the immigrant’s life and plantation whose ruins were declared a national monument by the Cuban Historical Patrimony. Actually, the detailed description of several aspects of the farm, the land lord house and his relation with the slaves, has no other aim than to prove how the strict humanism of Cor-nelio and his rational calculation contributed for the gre-atest efficiency of the coffee plantation’s system of domination.

Keywords:Cuba; German

immigration; Coffee plantation;

Slaves; Rationality.

Palavras-chave:Cuba; Imigração alemã;

Fazenda de café; Escravos; Racionalidade.