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O ANJO DA MORTEO ANJO DA MORTEO ANJO DA MORTEO ANJO DA MORTE GIAN DANTONGIAN DANTONGIAN DANTONGIAN DANTON

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O ANJO DA MORTEO ANJO DA MORTEO ANJO DA MORTEO ANJO DA MORTE GIAN DANTONGIAN DANTONGIAN DANTONGIAN DANTON

Tomo I

“Às vezes parecia que, de tanto acreditar Em tudo que achávamos tão certo,

Teríamos o mundo inteiro e até um pouco Mais:

Faríamos florestas no deserto E diamantes de pedaços de vidro.” Legião Urbana – Andrea Doria

Nunca houve época como aquela.

Eu vivia com Camila em uma casinha entranhada no meio do bosque. Era uma casinha rústica, mas bonita. Eu plantava flores em canteiros ao redor da casa. Assim, quando acordávamos éramos recepcionados por um arco-íris vegetal. Eu então lavava meu rosto no riacho e levava água para que Camila fizesse o café. Enquanto ela cantava e eu a observava:

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No mundo não me sei parelha, Enquanto me fora vida como me vai, ca já morro por vos - e ai mia senhora branca e vermelha, queredes que vos retrate quando vos eu vi em saia! Maldito dia que me levantei, que vos então nom te vi feia! Como era linda! Ela tinha cabelos ruivos, cacheados e longos, que desciam em cascata por suas costas. Um ou outro cacho caía, distraído sobre os olhos azuis ou os lábios muito vermelhos e carnudos. Talvez eu não tivesse razão para isso, mas o fato é que eu sempre me surpreendia com a beleza de Camila, com seus gestos delicados, com a doçura de sua voz. Desde que chegamos ali a beleza de Camila não se alterara minimamente. Isso não deveria se motivo de espanto, mas eu, acostumado a nosso passado, mal conseguia acreditar em meus olhos. E, no entanto, lá estava ela: linda, suave como a brisa de verão, aconchegante como uma lareira no inverno. Não havia uma única ruga em seus olhos, uma única mancha em seu corpo, além das maravilhosas sardas que lhe tomavam o peito. Eu jamais me cansava de admirá-la e me admirar com o milagre de beleza tão duradoura. Quando, enfim, ela terminava, nós tomávamos café olhando nos olhos um do outro e trocando sorrisos. Depois saíamos para passear pelos bosques. Ficávamos lá em cima, de mãos dadas, no meio das flores, observando o bosque abaixo de nós... Éramos felizes em nossa quieta solidão. Devo admitir, no entanto, que gostávamos de visitas, tão raro era recebê-las. Foi o que aconteceu certa tarde. Eu estava cortando madeira quando ouvi atrás de mim o trote de um cavalo. Um homem vestido de preto, usando um grande chapéu da mesma cor vinha em minha direção, montado em um majestoso corcel negro. Larguei o machado e me aproximei dele. Foi meu primeiro erro. Eu deveria ter aproveitado a chance para cortá-lo ao meio. Mas eu não sabia...

- Seja bem vindo, forasteiro!

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Ele apeou, tirou o chapéu e se persignou. - Sou um pobre alquimista que busca refúgio dos perigos da noite, meu senhor. - Minha casa é humilde, mas aqui você encontrará pousada. –

respondi. Qual é o seu nome? - Flogisto. É como sou chamado. - Flogisto... - É o elemento universal responsável pela queima de todas as

coisas... Nisso Camila apareceu à porta. Ela pousou a mão no batente

e inclinou a cabeça, deixando que seus cabelos caíssem ao longo de seu corpo, como uma cachoeira rubra.

- É sua esposa? – indagou o forasteiro, olhando pelo canto do olho.

- Sim, esta é Camila. - É demasiado bela! O alquimista se aproximou de Camila e, pegando-lhe a mão,

beijou-a. - Sua beleza brilha como um farol nessa terra perdida. Camila sorriu um sorriso constrangido e convidou-o a entrar. Logo chegou a noite. Eu acendi a lareira enquanto Camila preparava uma sopa. - Há quanto tempo estão aqui? – perguntou o forasteiro. - Não faço idéia. – respondi. Não sei de quanto tempo se

passou lá fora. Aqui o tempo é pontuado por nossa felicidade. - São felizes, então? - Jamais fomos tão felizes. – respondeu Camila. - A felicidade é isso? Viver entocada num bosque, longe de

tudo e de todos? Em outros locais você poderia ser uma princesa... - Uma princesa tem medo. Uma princesa corre perigo. Uma

princesa tem obrigações. Aqui somos só eu e meu amado. Ninguém se importa conosco.

- Todos corremos algum tipo de perigo. – tornou o forasteiro. Eu olhei para ele com olhos de chama. Não estava gostando

do rumo da conversa. Parecia que eu sentia que algo terrível iria acontecer. Mas ele não notou meu descontentamento. Seus olhos estavam fitos em Camila.

- Carlos me protege. Eu não tenho medo. O estrangeiro inclinou-se, aparentemente resignado. - A senhora me convenceu. Camila serviu a sopa, que comemos com delicioso pão

caseiro. No final o estrangeiro abriu o alforje e tirou de lá uma caixa preta.

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- Não quero partir sem antes dar-lhe um presente, minha senhora.

Camila pegou a caixa. Eu tentei lembrá-la que abrir presentes era perigoso, mas já era tarde demais.

Ela abriu a tampa e saiu de lá um mosaico maravilhoso de luzes coloridas. Elas se elevaram no ar e começaram a explodir como fogos de artifício.

Camila olhava para o espetáculo, totalmente maravilhada. Depois disso não houve qualquer incidente. Terminamos de

comer, Camila arrumou o quarto de hóspedes e fomos dormir. Mas aquele presente misterioso não saía de minha cabeça. Naquela noite tive um pesadelo. Sonhei que Camila

envelhecia progressivamente até que eu não pudesse mais reconhecê-la no meio das rugas. E ia diminuindo de tamanho, até que não sobrasse mais nada dela.

Quando acordei, olhei para o lado e não encontrei minha amada.

Saí desesperado pela casa, mas não a encontrei. Lembrei-me, então, do forasteiro. Ele também não estava em seu quarto.

A compreensão me veio como uma relâmpago. Nosso visitante era um anjo da morte. Eu ouvira falar deles.

Eles andavam pelos campos, pelas cidades, ceifando vidas. Ninguém sabia como escolhiam suas vítimas e talvez por isso fossem ainda mais temidos, pois aparentemente não seguiam nenhuma lógica.

Peguei o machado, um capote e me pus a persegui-lo. Apesar de estar a pé, eu não poderia deixá-lo sair do bosque, ou talvez nunca mais o encontrasse.

Caminhei horas e horas pela floresta iluminada apenas pela luz da lua.

Meus pés já não agüentavam mais. Por fim desisti e sentei sobre o tronco de uma árvore caída e chorei.

À medida que as lagrimas caíam de meus olhos, a realidade ia se dissolvendo, como uma pintura sobre a qual se joga água. O bosque, a montanha, a casa, tudo desaparecia gradualmente.

A ilusão estava desfeita. Eu mentira para o forasteiro. Eu me lembrava muito bem há

quanto tempo estava ali. Eram décadas. E, embora durante todo esse tempo eu tenha lutado para me esquecer, a verdade é que acabei me lembrando rapidamente: o bosque, a casinha, o canteiro de flores, a beleza de Camila, tudo era falso.

Camila e eu nos casamos jovem, em uma metrópole. Não tivemos filho. Talvez por isso a velhice tenha nos pesado tanto.

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Quando ficou claro que nossos corpos morreriam em breve, fizemos o que todas as pessoas de nossa idade (e até outras mais jovens) estavam fazendo: transferimos nossa consciência para a rede de computadores.

Nossos corpos morreram poucos meses depois. Mas pouco nos importava. Estávamos em outro mundo, em uma realidade idílica. Escolhemos viver em uma época antiga, com mais ingenuidade e mais felicidade. A doença e a velhice já não eram fantasmas pairando sobre nós. Voltamos a ser belos e jovens. Nunca fomos tão felizes.

Com o tempo recebíamos visitas que nos traziam as novidades: a cada ano aumentava a quantidade de pessoas que abandonavam o corpo para viver uma vida virtual. Afinal, quem não gostaria de viver no paraíso?

Mas em todo paraíso há sempre o mal. O mal era personificado pelos exterminadores de consciência.

No século XX eles seriam chamados de hacker, mas nós os chamávamos simplesmente de anjos da morte.

Eles entravam em uma determinada realidade, escolhiam uma pessoa e a infectavam com um vírus, fazendo com que sua consciência fosse deletada.

Teoricamente havia uma maneira de resgatar a pessoa. O vírus nunca a deletava completamente. Sua consciência ficava presa em algum ponto da rede.

Talvez houvesse uma maneira de salvar Camila, mas era muito remota.

Cobri meu rosto com as mãos e chorei, em meio à imensidão virtual.

“Quase acreditei na sua promessa E o que vejo é fome e destruição Perdi a minha sela e a minha espada Perdi o meu castelo e a minha princesa” Legião Urbana

Tomo II

Tão logo compreendi a verdade insofismável de que Camila

estava virtualmente morta, mergulhei em profundo estado de melancolia.

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Deixei que minha consciência flutuasse pelo ciberespaço como uma nau sem rumo. Estava totalmente desgostoso de tudo.

Em todos aqueles anos em que vivemos juntos, estivemos sós, isolados do mundo. Conhecíamos muito pouco do ciberespaço para empreender a caçada.

Por fim um pensamento foi se firmando. Uma lembrança. Um de nossos amigos nos visitara certa vez e nos dissera que estava vivendo em uma comunidade hippie.

Talvez ele pudesse me ajudar. Empreendi a minha busca e me chegaram quatro opções, das

quais eliminei três sem dificuldade. De fato, minha escolha foi acertada. Assim que entrei por um

portal de flores, encontrei meu amigo esperando por mim. - Recebi sua mensagem. – disse ele, abraçando-me. Raul usava cabelos e barbas longos. Sua vestimenta era uma

espécie de roupão branco, completado por sandálias de couro. - É realmente um prazer tê-lo aqui! Seu rosto exalava serenidade e paz. - Vejo que está feliz. - Feliz? Morrer fisicamente foi a melhor coisa que poderia me

acontecer. Quando morávamos no mundo real, você bem se lembra, eu era presidente de uma multinacional... e não tinha um único instante de sossego. Preocupações, prazos a serem cumpridos.. metas a serem atingidas. Eu não tinha paz nem mesmo quando estava de férias. Minha vida era um eterno inferno. Eu tinha muito dinheiro, mas pouca paz. Mas estou falando demais... Fale de você. Sua mensagem não dizia a razão de sua visita... Como está Camila?

- Ela... ela... Não consegui continuar. Irrompi em um choro convulso. Raul passou a mão sobre meu ombro, na tentativa de me

consolar. Outras pessoas se aproximaram e me olharam com curiosidade.

- O que aconteceu com Camila? – perguntou Raul, por fim. - Um anjo da morte me tomou Camila. – respondi,

segurando o choro. - Um anjo da morte? Houve uma comoção geral. Um burburinho começou a se

espalhar pela turba. - Sim, um homem vestido de preto, com um grande chapéu e

capa. Ela pediu pousada em nossa casa e ofereceu um presente a Camila.

Raul parecia estarrecido. - Qual era o seu nome?

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- Flogisto. Era assim que ele se chamava. Meu amigo abaixou a cabeça e ficou em silêncio, ruminando

seus pensamentos. - Peçam para que Flor do Sol venha até aqui. O burburinho aumentou. Depois a massa de pessoas se abriu

para a passagem de uma mulher. Ela trajava um vestido longo e colorido, tinha cabelos compridos, muito bonitos. Mas eu não conseguia distinguir seu rosto. No final, acabei percebendo que se tratava de uma máscara.

Ela se aproximou e parou à minha frente. Raul nos apresentou: - Esta é Flor do Sol. Este é Dom Wherter. A mulher dele foi

deletada por Flogisto. Flor do sol balançou a cabeça tristemente. - Você também o conheceu? – perguntei. Houve silêncio. Ela passou um longo tempo lá, parada,

decidindo se respondia ou não. - Infelizmente. – foi a resposta abafada que ouvi depois de

alguns minutos. A moça tirou a máscara. No começo não identifiquei nada.

Era como uma imagem em baixa resolução. Depois percebi uma grande ferida que lhe tomava quase todo o rosto.

Ela abriu o vestido: a ferida tomava quase todo o seu corpo! - Ele tentou me deletar. Eu sobrevivi, mas fiquei assim. Flor de Sol começou a chorar. Levou a mão ao rosto,

tentando esconder a deformidade. Algumas pessoas se aproximaram para ajudá-la a esconder o corpo. Toda ela se agitava no choro que parecia não acabar mais.

- Eu não compreendo... – disse ela, entre soluços.... eu não compreendo. Aqui poderíamos fazer o mundo que quiséssemos. Poderíamos ser felizes como jamais fomos em nossas vidas reais. Nada de doenças, nada de guerras, nada de morte. Viemos de um mundo em que militares matam índios, em que religiosos organizam guerras... Poderíamos construir um paraíso terreno... Eu não compreendo porque alguém usa isso para destruir, matar, aleijar, ferir...

- Talvez a maldade esteja no âmago de algumas pessoas... – disse eu.

Ficamos em silêncio. - Preciso ir. – disse ela, por fim. Algumas pessoas a ajudaram a caminhar para uma cabana. Raul olhou para mim. - Imagino que queira trazer sua mulher de volta. - Preciso encontrar Flogisto.

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Meu amigo balançou a cabeça afirmativamente. - Sim. Conheço algumas pessoas que talvez possam ajudá-lo.

Há uma comunidade ciberpunk. Eles talvez consigam rastrear esse anjo da morte...

Raul continuou falando, dando as orientações para que eu encontrasse o local. Eu fazia um grande esforço para compreendê-lo. A imagem de Flor do Sol não saía de minha cabeça... Tomo III

“Viajamos sete léguas Por entre abismos e florestas Por Deus nunca me vi tão só É a própria fé o que destrói. Esses são dias desleais” Legião Urbana Pairei por entre mundos e realidades. Viajei por locais que

não eram locais. Visitei instâncias como impulsos elétricos que percorrem um fio telefônico.

Finalmente, depois de grande busca, cheguei ao lugar indicado. Era um grande prédio sofisticado. Ao entrar por ele, tive grande surpresa ao ouvir uma voz que me falava de lugar algum:

- Entre, Dom Werther. Nós o estávamos esperando. Use o elevador.

Penetrei no recinto, que foi acionado automaticamente. Logo parou e abriu suas portas. Uma ampla sala se descortinou diante de meus olhos.

Um homem calvo, de barba, esperava por mim, um sorriso nos lábios.

- Eu sou Flávio. Seja bem vindo à nossa fortaleza... - Como sabia de mim? – balbuciei, saindo do elevador e

desatando minha capa. - As informações voam, meu caro. Elas voam. Venha, quero

que conheça o lugar... Ele colocou uma mão em meu ombro e indicou o caminho

com a outra. - Aqui se reúnem pessoas das mais variadas especialidades.

São pesquisadores anarquistas, cientistas revolucionários no

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sentido de Khun. Há pessoas pesquisando sublimares, teoria do caos, psicologia junguiana, cibernética...

Enquanto falávamos, percorríamos corredores tomados por computadores. Aqui e ali havia grupos de pessoas conversando ou discutindo diante de uma tela.

- O senhor certamente já ouviu falar de Norbert Wiener... o criador da cibernética. Claude Shannon asssistiu suas aulas e criou a teoria da informação. A cibernética está intimamente ligada a uma tentativa de reunir todas as ciências em torno de um objetivo comum. Wiener estava preocupado com a compartimentação do saber científico. Nas reuniões que deram origem à cibernética estavam presentes matemáticos, físicos, psicólogos, biólogos... O ponto de vista cibernético era inovador e profético em alguns sentidos. Wiener queria humanizar as máquinas e se preocupava muito com a mecanização do ser humano. Para ele, uma sociedade humana jamais poderia ser modelada à maneira das formigas, pois as formigas só são como são por falta de inteligência. Ao contrário de nós, elas não têm aparato fisiológico para aprender, por isso se organizam em uma sociedade estática e uniformizada. Nós, ao contrário, passamos a maior parte de nossa vida aprendendo. Ao contrário dos outros animais, demoramos a ficar adultos. Nossa infância dura tanto tempo para que possamos reformular os conhecimentos da geração anterior...

Passamos por um grupo que discutia filosofia aristotélica. Havia pessoas de todo tipo ali: homens, mulheres e até crianças. Não havia nenhuma uniformização em suas vestimentas. Uns usavam terno, outros camiseta e bermuda.

- Para Wiener, a sociedade da informação só poderia existir sob a condição da troca sem barreiras. Ela é, por definição, incompatível com o embargo, com a prática do segredo, as desigualdades de acesso à informação e sua transformação em mercadoria. A entropia é identificada com a falta de informação. E o avanço da entropia é diretamente proporcional ao recuo do progresso.

- Sim, compreendo suas razões. Compreendo o que estão fazendo aqui. Mas o que isso tem a ver comigo?

- Com você necessariamente nada, mas com alguém que você está procurando. Aquele que você chama de Flogisto. Anjos da Morte. Se nós somos a sinergia do sistema, eles são a entropia, espalhando o caos pelo ciberespaço. A informação não deve ser usada para destruir, por isso nós temos procurado descobrir esses focos de entropia. Talvez possamos ajudá-lo.

Flávio parou em frente a um computador.

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- Estamos monitorando as atividades desses indivíduos que se autodenominam anjos da morte. Talvez você consiga nos ajudar a pegar ao menos um deles.

- Não tenho muitas informações. – respondi. - Quais informações tem? - Recebemos a visita de uma homem chamado Flogisto. Ele

deu um presente à minha esposa, ela o abriu, saíram fogos. Na mesma noite tanto ela quanto ele haviam desaparecido...

Flávio olhou para um rapaz ao lado. - Ele usou o vírus presente de boas-vindas. – disse o rapaz.

Temos detectado esse vírus também em comunicações... - É mortal? - Não, talvez haja a possibilidade de fazermos um back-up,

mas ainda não sabemos como. Até hoje não conseguir ressuscitar ninguém...

- Se há uma maneira... -... Flogisto sabe. – cortou Flávio. - Precisamos achá-lo. - Como? - Ele se identiticava como Flogisto? Vamos tentar rastreá-lo. –

disse o rapaz. Seus dedos correram pelo teclado, enquanto sua testa

enrugava. Ele, de tempos em tempos, balançava a cabeça negativamente.

- Não. Ele não está no sistema com o nick de Flogisto. Isso significa que ele veio de fora, do mundo real. Ele entra com um nome e muda já dentro do sistema.

Flávio coçou o queixo. - Flogisto... Os químicos anteriores a Lavoisier usavam a

palavra para descrever uma substância misteriosa que seria responsável pela queima de todos os materiais. Para eles isso explicava porque algumas substâncias queimam mais facilmente: quanto maior a quantidade de flogisto, maior a possibilidade da matéria se inflamar. A descoberta do oxigênio, por Lavoisier, demonstrou que o Flogisto era uma falácia. As substâncias queimam em contato com o oxigênio. Por isso não há fogo no vácuo. O filósofo Thomas Khun usou o caso como exemplo da emergência de novos paradigmas no livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”...

- Poderíamos tentar a chave paradigma. – sugeriu o rapaz. - Não, não. Nosso inimigo está pouco interessado em

revoluções científicas. Ele ficou fascinado com a idéia de uma substância que queima tudo, uma fonte universal de entropia... Ele

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pretende se identificar como uma força da natureza, que leva todas as coisas em direção ao caos... Tente entropia.

O rapaz voltou ao teclado e digitou a palavra entropia. Novamente a busca se revelou infrutífera. O mesmo foi feito com caos, mas sem resultado.

- Estamos indo por um caminho errado, ou seguindo uma pista falsa.- raciocinou Flávio. De que outra forma poderíamos identificá-lo?

- Ele usava um colar com um medalhão no qual uma cobra engolia o próprio rabo. – lembrei-me.

- Talvez seja isso. Uma cobra engolindo o próprio rabo forma um círculo. Na simbologia esotérica o circulo é particularmente importante. Os magos protegem-se de maus espíritos alojando-se no interior de um círculo mágico traçado no solo. Freqüentemente são traçados dois círculo. Um menor dentro do maior. No espaço entre os dois são escritos os diversos nomes e atributos da divindade que se pretende evocar. O círculo representa a perfeição, a unidade, a interação de todas as coisas. Ele lembra o modelo universal usado pela natureza na produção de uma série de coisas: árvores, planetas, conchas, olhos. Aristóteles transformou o movimento circular em dogma astronômico.

- Para ele, a Terra encontrava-se imóvel no centro do universo, rodeada por nove esferas concêntricas e transparentes. Na primeira camada ficaria a Lua, seguida pela camada de planetas e assim sucessivamente, até a última camada, Deus, o motor de todas as coisas.

- Mesmo após a teoria heliocêntrica, que tirava a Terra do centro do Universo, o círculo continuou sendo usado pelos astrônomos para descrever o movimento dos planetas. – ajuntou o rapaz.

- Isso porque o círculo era considerado a figura perfeita... Tente círculo.

O rapaz voltou ao teclado. Entretanto, mais uma vez sua busca se revelou infrutífera.

Flávio coçou novamente o queixo. E franziu o cenho. - Lembro-me de algo a respeito de uma cobra engolindo o

próprio rabo... Algo a ver com o sonho... Ah, claro. É química. O químico alemão Firedrich Kekulé estava tentando descobrir como os seis átomos do benzeno se ligavam. Todas as suas tentativas se revelavam infrutíferas. Ele dormiu e sonhou com uma cobra engolindo o próprio rabo. Era a resposta: os átomos se ligavam em círculo. Tente benzeno.

O rapaz rastreou novamente o sistema, agora com a chave benzeno.

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- Aqui está ele. Nós o achamos! Tomo IV

Assim que abri a porta, deparei-me com um espetáculo

fantástico: o bar era uma miríade de épocas, gostos e imaginações. Era como se o tempo tivesse enlouquecido e todas as eras se reunissem em um único lugar.

Uma egípcia passou por mim, sua peruca negra ondulando suavemente.

A um canto, um grupo de legionários bebia e soltava gargalhadas estrondosas.

Um casal inca bebia aiuasca e conversava. Prostitutas gregas ofereciam-se por uma caneca de vinho. No palco, um grupo formado exclusivamente por mulheres

tocava música tecno. A vocalista era linda. A bota e a saia de couro negro contrastavam com a pele alva. Tinha lábios negros e sensuais pintados de preto. O cabelo era negro e liso e os olhos azuis me fizeram lembrar Camila.

Ela pulava no palco, enraivecida e sensual, enquanto luzes explodiam atrás dela.

Eu o encontrei sentado em uma mesa afastada, olhando como que hipnotizado para a cantora. Estava vestido de negro como antes, com um medalhão sobre o peito.

Flogisto me olhou brevemente quando me sentei à sua mesa, depois tornou os olhos para o palco.

- Então é aqui que você encontra suas vítimas? - Venho aqui para me divertir. – respondeu ele, sem me

olhar. - Onde está Camila? - Morta. Houve um longo e doloroso silêncio. - O vírus não era mortal. – eu disse. - Talvez não. Pela primeira vez ele me olhou de frente, exibindo um sorriso

irônico. Não me agüentei. Pulei sobre ele e cravei meus dedos em sua

garganta. Um grupo de vikings se levantou para olhar, mas logo voltou a seus canecos de cerveja.

- Quero saber onde ela está! Ele tentou sorrir, mas a pressão de meus dedos fez com que

mudasse de idéia.

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- Onde ela está? - No convento... no convento de Grandier... – balbuciou ele.

Era um local de tortura de grupos religiosos fanáticos. Hoje é um convento de freiras. Eu a emparedei no porão.

A revelação me atingiu como um choque. Imaginei Camila entre duas paredes, no escuro, o ar acabando aos poucos, mas ela nunca morrendo...

Soltei-o, fazendo com que desabasse sobre o chão. - Eu vou buscá-la... e então voltarei para pegar você.

TOMO V Mais uma vez, mergulhei no emaranhado caótico de

informações. Em meu espírito misturavam-se a raiva e a ansiedade de encontrar minha amada.

Meu coração pulsava como um louco quando me deparei com um convento medieval.

Atravessei uma ponte sobre o poço que contornava a construção. Lá embaixo, animais estranhos e vermes se contorciam. Segurei uma argola de ferro e bati várias vezes.

Uma freira abriu a grande porta de carvalho. - Você estava sendo esperado. – disse ela. Em seguida virou-se e começou a andar. Eu a segui. Nós

percorremos corredores escuros, subimos escadas e paramos em um amplo salão. Havia freiras enfileiradas dos dois lados, em perfeita simetria.

Ao centro, uma mulher, a parte de cima de seu corpo nu e os braços presos a uma espécie de cruz. Estava sendo flagelada por uma monja.

Seus gritos enchiam o local e voltavam em eco. Ao fim de algum tempo, quando suas costas já estavam rubras, uma das freiras se aproximou, soltou seus braços e a cobriu com um pano negro.

A prioresa se levantou e aproximou-se de mim. - Às vezes, quando o desejo da carne é forte demais, é

necessário aplacá-lo com a dor. Fiz que sim com a cabeça e afastei-me para dar-lhe

passagem. - Flogisto, ou qualquer que seja seu nome... para mim ele se

identificou como Gardier... ele esteve aqui. Maldito.

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Ela ficou em silêncio, trincando os dentes. Eu não sabia se era a dor do flagelo ou a dor das lembranças que a atormentavam.

- A propósito, meu nome é Joana dos Anjos. Ela tropeçou, como se não conseguisse suportar o peso de

seu próprio corpo, mas foi amparada por outra feira. Seu rosto era anguloso, mas belo. Tinha lábios enormes e

negros. Seus lábios eram finos e brancos. - Gardier trouxe uma mulher para cá. – ela disse,

recompondo-se. Eu achava que estivesse interessado em mim, mas ele só parecia ter olhos para a câmara de torturas.

Enquanto falava, ela descia as escadas. Estávamos indo para o porão.

- Ele a torturou por um longo tempo. Esticou-a, arrancou suas unhas, tirou pedaços de sua pele e cobriu as feridas com chumbo derretido. Eu não imaginava o que Gardier queria dela. Ingênua, eu imaginava que ele estivesse simplesmente brincando com ela, como um garoto malvado que se diverte arrancando as pernas e braços da boneca da irmã. Eu estava apaixonada por ele...

No local mais baixo da escada, penetramos em um recinto escuro. Uma das freiras acendeu uma tocha e depois outra e outra.O local foi tomado por uma luz vermelha e bruxuleante.

A câmara era repleta de instrumentos de tortura. Só ali, em meio aos instrumentos que haviam maculado Camila, é que fui tomado de ódio e pavor. Até então era como se falassem de outra pessoa. Mas ali era impossível não sentir em minha própria pele o sofrimento de minha amada.

Percorri instrumentos, tocando-os com os dedos. Havia uma cadeira, aos pés da qual estavam depositados dois sapatos de madeira. Havia manivelas, que apertavam os dois lados do sapato até que os ossos se quebrassem. Havia funis, feitos para obrigar a vítima a engolir água até que seu estômago estourasse. Havia... fechei os olhos, incapaz de continuar olhando. Fiz isso a tempo de ouvir Joana.

- Ele a torturou por um longo tempo... e depois a emparedou aqui.

Abri os olhos e olhei o lugar em que ela apontava. Peguei uma marreta e comecei a destruir os tijolos, enquanto Joana gritava:

- Não! Pare! O ódio me fazia surdo. Continuei golpeando até que a parede

estivesse totalmente destruída. Camila não estava lá.

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TOMO VI

Eu estava de volta o bar, mas não me preocupava com a

mistura de tempos e épocas. Minha mente tinha um único pensamento, um único objetivo:

encontrar Flogisto. Eu o encontrei na mesma mesa, no mesmo local, sorvendo

calmamente um copo de cerveja. Tive o impulso de pular sobre ele e mata-lo ali mesmo. Mas

me detive. Eu necessitava encontrar Camila. - Você me enganou. – eu disse, sentando ao seu lado. Ela

não estava lá. - Não. Ela não está mais lá. – retrucou ele, e tomou um gole

de cerveja. No palco a cantora continuava a cantar e dançar

sensualmente. Flogisto a olhou para ela por longo tempo antes de voltar a falar.

- Eu realmente a prendi entre quatro paredes. Antes disso eu a torturei até que não houvesse diferença entre Camila e a dor que ela sentia. Ela ficou presa entre duas paredes por quatro dias. Ao final desse tempo eu lhe fiz uma proposta.

- Uma proposta? - Ela ficou realmente agradecida por eu tê-la livrado do

sofrimento e da solidão. Eu ousaria dizer que seu agradecimento não poderia ser distinguido do amor.

- Amor? Onde ela está? Onde está Camila? Eu estava gritando, mas parei quando o palco se tornou

silencioso. Todo bar ficou escuro e somente uma luz se acendeu sobre a cantora, que permanecia imóvel, a cabeça baixa. Um leve som de liras surgiu ao fundo. Ela levantou a cabeça e começou a cantar. Sua voz era como o marejar suave de um riacho límpido: No mundo não me sei parelha, Enquanto me fora vida como me vai, ca já morro por vos - e ai mia senhora branca e vermelha, queredes que vos retrate quando vos eu vi em saia! Maldito dia que me levantei, que vos então nom te vi feia!

Flogisto olhou para mim e começou a rir:

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- Penso de fato que o agradecimento a transformou... e transformou seu amor.

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Dados sobre o Autor e sua Obra

Gian Danton

Pseudônimo de Ivan Carlo Andrade de Oliveira. É jornalista, professor, roteirista e escritor. Mestre em comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo.

Tem realizado trabalhos para publicidade, como o roteiro do desenho animado "SUS", para a Secretaria de Saúde de Curitiba.

Sua produção literária inclui um livro infantil (Os Gatos, editora Módulo), um artigo na coletânea de artigos acadêmicos Histórias em Quadrinhos no Brasil: Teoria e prática e o livro Spaceballs, publicado pela Associação Brasileira de Arte Fantástica.

Colabora com vários sites e publicações, além de manter uma coluna fixa no jornal O Liberal Amapá.

Produz roteiros de quadrinhos desde 1989, quando estreou na extinta revista Calafrio. Sua produção de roteiros para quadrinhos inclui histórias para as editoras Nova Sampa, ICEA, D´arte, Brazilian Heavy Metal, Metal Pesado e para a editora norte-americana Phantagraphics.

Seu trabalho mais recente na área de quadrinhos foi o roteiro e a edição de texto da revista Manticore pelo qual ganhou os prêmios Ângelo Agostini (melhor roteirista de 1999) e HQ Mix (melhor lançamento de terror).

Mantém o site Idéias de Jeca-tatu (http://www.lagartixa.net/jecatatu), único no Brasil especializado na discussão sobre roteiro para quadrinhos.

É membro titular e editor da revista eletrônica do Grupo de Trabalho Humor e Quadrinhos do Congresso de Comunicação Intercom.

É professor titular de Língua Portuguesa do Centro de Ensino Superior do Amapá – CEAP e de marketing, publicidade e propaganda e redação jornalística do Sistema de Ensino Superior da Amazônia - SEAMA.

Para corresponder com Gian Danton escreva: [email protected]