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Anjos e meteoros Ensaio sobre a instantaneidade Luís Carmelo Universidade Autónoma de Lisboa Índice 1 Quadro escatológico 4 2 O quadro utópico 11 3 Utopia e ancoragem no tempo 14 4 O quadro ideológico 18 5 O alter-ego da nova modernidade (pós 1918) 25 6 O quadro pós-moderno 28 7 Percursos finais 32 8 Adenda-limite, ou o mistério da "glo- balização". 39 9 Epílogo breve 45 10Bibliografia 45 "Tu remarquas, on n’écrit pas, lumineusement sur champ obscur, l’alphabet des astres, seul, ainsi s’indique, ébauché ou interrompu; l’homme poursuit noir sur blanc." Mallarmé Introdução No meu doutoramento (Utreque, 1995), debati-me com as relações existentes entre a literatura profética (até ao séc. XVI) e o "Grande Código"(N. Frye, 1982) escatoló- gico. Se este código legitimava o presente e, sobretudo, devolvia à imaginação humana um futuro perfectível (situado no além), já, nem sempre, esse absoluto se adequava às expectativas e interpretações que dele se cri- avam no quotidiano. É por isso que muita da literatura profé- tica, a partir do séc. VI A.C., toda a lite- ratura apocalíptica (até ao séc. II D.C.) e, na continuidade, uma parte significativa do intertexto profético (e da sua práxis) revela- vam uma impaciência imensa, querendo ver hic et nunc, no agora-aqui terreno, cumpri- das as prescrições de equilíbrio que o grande código prescrevia. Esta postura enunciadora de impaciência está na base das manifestações do que de- signo por cultura da instantaneidade, isto é, o desejo ilimitado de querer ver confi- gurados, já e aqui, aquilo que as "grandes narrativas"(J.-F. Lyotard, 1989), sobretudo teleológicas, prometiam e garantiam. Ou- tros "grandes códigos"totalizantes se segui- ram ao escatológico, no limiar ou mesmo já no seio da modernidade, libertando a imagi- nação humana no sentido da enunciação de um nenhures absoluto e prefiguradamente li- berto do divino (caso das utopias) e, por ou- tro lado, da construção de programas sintac- ticamente arrumados e hierarquizados (caso das ideologias). No âmbito destes novos

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Anjos e meteorosEnsaio sobre a instantaneidade

Luís CarmeloUniversidade Autónoma de Lisboa

Índice

1 Quadro escatológico 42 O quadro utópico 113 Utopia e ancoragem no tempo 144 O quadro ideológico 185 O alter-ego da nova modernidade (pós

1918) 256 O quadro pós-moderno 287 Percursos finais 328 Adenda-limite, ou o mistério da "glo-

balização". 399 Epílogo breve 4510Bibliografia 45

"Tu remarquas, on n’écrit pas,lumineusement sur champ obscur,

l’alphabet des astres, seul, ainsi s’indique,ébauché ou interrompu; l’homme poursuit

noir sur blanc."Mallarmé

Introdução

No meu doutoramento (Utreque, 1995),debati-me com as relações existentes entrea literatura profética (até ao séc. XVI) e o"Grande Código"(N. Frye, 1982) escatoló-gico. Se este código legitimava o presente

e, sobretudo, devolvia à imaginação humanaum futuro perfectível (situado no além), já,nem sempre, esse absoluto se adequava àsexpectativas e interpretações que dele se cri-avam no quotidiano.

É por isso que muita da literatura profé-tica, a partir do séc. VI A.C., toda a lite-ratura apocalíptica (até ao séc. II D.C.) e,na continuidade, uma parte significativa dointertexto profético (e da sua práxis) revela-vam uma impaciência imensa, querendo verhic et nunc, no agora-aqui terreno, cumpri-das as prescrições de equilíbrio que o grandecódigo prescrevia.

Esta postura enunciadora de impaciênciaestá na base das manifestações do que de-signo por cultura da instantaneidade, istoé, o desejo ilimitado de querer ver confi-gurados, já e aqui, aquilo que as "grandesnarrativas"(J.-F. Lyotard, 1989), sobretudoteleológicas, prometiam e garantiam. Ou-tros "grandes códigos"totalizantes se segui-ram ao escatológico, no limiar ou mesmo jáno seio da modernidade, libertando a imagi-nação humana no sentido da enunciação deum nenhures absoluto e prefiguradamente li-berto do divino (caso das utopias) e, por ou-tro lado, da construção de programas sintac-ticamente arrumados e hierarquizados (casodas ideologias). No âmbito destes novos

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"grandes códigos", onde, de modo evolucio-nista e monocentrado1, a história continua aser revista como um todo, "reflectindo certosprincípios de organização e de transforma-ção"(A.Giddens, 1995:4), esta mesma cul-tura da instantaneidade continua, no entanto,a manifestar-se, ainda que sujeita a determi-nadas "modalizações"(A. Fowler,1982).

Num momento em que, dominados pelonovíssimo paradigma global2 da mediação

1Ao contrário das visões predominantes naactualidade (cf.,por exemplo, A.Giddens,1995 ouA.McHoul,1996, onde, no seu Semiotic Investigati-ons -Towards an Effective Semiotics, se pode ler: "Tothink history in a Nietzschean mode is to avoid a me-taphysical conception of history based on the iden-tity and presence of each event with respect to an un-derlying and necessary structure, system, telos, Spirit,or grammar. It is, to evoke Derrida, to think historywithout a particular center - which is to say, a historywith many candidate centers"(ibid.:7).

2Desde o final do século XVIII (cf. Cap. 8),até aos dias de hoje, um certo conjunto de símbolos-chave passou-nos a estruturar e filtrar a ideia de rea-lidade. Desde o tenro início da modernidade, alicer-çando já os fundamentos do paradigma em que hojevivemos, registemos, entre outros, o estado-naçãocomo símbolo dos limites naturais da comunicação;a liberdade e, por outro lado, os grandes códigos queimaginaram um futuro perfectível (as ideologias, porexemplo), enquanto símbolos de futuro e também daconcretização do progresso; o sujeito tecnológico en-quanto símbolo da ordenação do mundo, da natureza,além de magno cultor da velocidade; e, por fim, acontra-cultura, enquanto símbolo do conflito perma-nente que haveria de nutrir os vários sub-sistemas damodernidade (o político, o social, o artístico, o eco-nómico, etc), numa lógica de instabilidade necessária(ao contrário da cristalização sistémica pré-moderna,no seio da qual as várias actividades sociais integra-vam um esfera única e aparentemente estável).

No entanto, as transformações tecnológicas e alenta degenerescência de alguns destes símbolos-matriz (nomeadamente os grandes códigos sobre-tudo ideológicos e, noutros moldes, o próprio estado-nação), desencadeada de modo particularmente cé-

tecnológica - após uma gradativa diluiçãodos "grandes códigos"totalizantes (em be-nefício da abertura à pluralidade de códi-gos e ao "acentrado- G. Vattimo, 1991) -,vários autores se referem hiperbolicamenteà instantaneidade, cumpre-me propor, aolongo do presente ensaio, que este valor sem-pre existiu em termos isotópicos, definindomesmo os limites fluidos de uma cultura (de-certo característica de uma necessidade hu-mana de reivindicação).

Sempre me agradou a óptica que observauma dada cultura como sendo uma crisá-lida criadora de linguagens. Foi E. Cassirerquem disse que, sobre um alicerce de for-mas simbólicas específicas, cada cultura iacriando milenarmente as suas próprias lin-guagens: arte, religião, literatura, música emuitas outras formas (de expressão e con-teúdo) criativas e criadoras da imaginaçãocolectiva. De facto, a cultura judaico-cristã,com as suas imensas ramificações, é deve-dora de uma tradição profética (e pré e pós-

lere nas últimas duas décadas, haveriam de conduzira uma inevitável superação dos limites naturais da co-municação que se instituiram no início, já longínquo,da modernidade. A grande rede simbólica da actua-lidade que, nos últimos anos, passou a reabsorver ossímbolos modernos, já algo vagos e dispersos, é agoradesignada e pressentida através de um termo enigmá-tico e sempre repetido, mas nem sempre da melhorforma - a "globalização".

Nesta medida, a globalização seria sobretudo umaqualidade potencial e traduziria, por isso mesmo, aideia de fundamento de tudo o que é - ou pode vir aser - global (do mesmo modo que o vermelho é ape-nas uma qualidade potencial que legitima tudo o que,num dado momento, diante dos nossos olhos, efeme-ramente, adquire essa cor). Ou seja, a globalização éaqui encarada como uma espécie de capacidade ante-rior que o sujeito global deteria, na actualidade, parapoder olhar e construir o mundo, enquanto seu ob-jecto.

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profética) que acabou, lentamente, por codi-ficar, de modo linear e historicista, o tempo,entendido como um devir coerente que so-bretudo legitima a articulação entre o pre-sente e a imagem de um futuro realizável,senão perfeito. Essa vasta tradição pode,pois, encarar-se como uma forma simbó-lica central, sobre a qual, longamente, diver-sas linguagens se instituíram e desenvolve-ram (independentemente de, já na moderni-dade, e para além do debate pós-moderno,autores tão díspares como como Nietzsche3,o Wittgenstein de Lectures e Philosophicalgrammar4, Jean-Luc Nancy5 ou Jacques Der-rida6 terem recusado uma visão continuista equasi-científica da história).

Numa tal linearidade continuista, dasdiversas visões do paraíso ao nenhuresutópico de More; dos patamares últimosque as ideologias conceberam ao "pontoómega"designado por Teillard Chardin, -nada nos faria escapar a esta fúria inelutá-vel com que caminharíamos do aqui-agoraaté à compensadora extremidade do eskha-ton. A nossa cultura euro-ocidental sem-pre, de facto, viveu abismada, senão ine-briada, diante deste limite, na direcção doqual a história se transformaria numa foztranquila diante do grande oceano da salva-ção. Este horizonte último sempre, de algummodo, legitimou o nosso próprio percursocolectivo e, por isso mesmo, sempre existi-ram prescrições diversas (conforme as des-

3Friedrich Nietzsche, The Use and Abuse of His-tory, Indianoplis, Bobbs-Merrill,1949.

4Ludwig Wittgenstein, Wittgenstein’s Lectures:Cambridge 1930-1932, Oxford, Blackwell,1980.

5Jean-Luc Nancy, Finite History in The States ofTheory, Bloomington, Indiana Un.Press,1993.

6Por exemplo em Jacques Derrida, O outro cabo,Coimbra, A Mar Arte, 1995.

continuidades da história passada) que nosmoldaram posturas, princípios e imaginá-rios; consideremo-los, na esteira de N.Frye(1982), como constituindo os "grandes có-digos"totalizantes, destinados à humanidadeno seu todo, fossem eles de natureza teleo-lógica/escatológica, de natureza utópica (an-corada no tempo ou não), ou, por fim, de na-tureza ideológica (nas suas variadas matizese matrizes de oitocentos) .

O que hoje - na "actualidade"(J. Bragançade Miranda,1997)7 - profundamente se al-terou foi, não a ideia de que as culturassão crisálidas criadoras de linguagens, massim a ideia de que uma forma simbólicacentral serviria de base a um corpo fixode linguagens e, sobretudo, a um "grandecódigo"global que as regesse. A medi-ação tecnológica e o advento da "ordempós-moderna"na acepção (de A.Giddens, cf.Cap. 6) inflectiram efectivamente esta es-tabilidade, baseada na acessibilidade de umdevir único inelutável. Mesmo se o desejo deinstantaneidade levou, muitas vezes, a huma-nidade a disputar o código (porque ele situ-ava a salvação sempre num depois, inacessí-vel por natureza), nunca antes se havia con-cebido a pura realização da instantaneidadeno agora-aqui. E se a nossa vida, hoje emdia, vive desse facto pacífico é, sobretudo,porque a tecnologia se transformou num fimem si mesmo de que, com ingenuidade reco-lectora, nos apropriámos8 ( como a própria

7José A.Bragança de Miranda, Política e moderni-dade, Lisboa, Colibri, 1997:32 (aí se compara o ca-racter "decisivo"da actualidade na tradição do "ins-tante"de Nietzsche, do "transitório e efémero"de Bau-delaire, do "jezzeit"de Walter Benjamin, do "inzwis-chen, o entre"de Heidegger ou do próprio "imortalagora"de Fernando Pessoa.

8A novíssima apropriação que partilhamos na ac-

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tecnologia fosse o simulacro simbólico deum qualquer "ponto ómega", antes só ima-ginável).

Mas, sublinhemo-lo, este fim em simesmo não é mais baseado num "grande có-digo"abarcante, tendo-se antes disseminadoem variadíssimas séries. E estas séries desub-códigos acabaram mesmo por pôr emcrise a ideia de um corpo fixo de lingua-gens que acabou, também ele, por se disse-minar num horizonte, hoje, em plena expan-são, embora essa mesma expansão seja fluidae sobretudo imprevisível. Tudo isto ocorreu,no fundo, porque a própria "forma simbó-lica"central que nos organizava o mundo (eque era baseada no culto linearista do devir)se foi esfumando, a pouco e pouco, no limiardo que diríamos ser a crise da nossa culturaeuro-ocidental (privada agora do abismo ouda esperança absoluta num limite último, tra-

tualidade é, pois, pela primeira vez, na História dahumanidade, de cariz mundial. Depois de Deus, de-pois dos programas ideológicos, mas provavelmentereinsuflando ainda a génese utópica que nasce comT.More -, a instantaneidade tecnológica define agorao mundo como uma arena, não para descrever, nãopara explicar, mas sim para reimaginar. A forma destaarena talvez possa corresponder a uma estrutura pro-dutora de conotações, transmitidas a partir de aparen-tes denotações, que visa a permanência e a instanta-neidade, nos quatro cantos tememáticos do mundo.Este ensimesmamento da informação é paralelo (eproporcional) ao nexo do próprio consumo, ou seja,- tornou-se decisivo ter e receber, independentementeda necessidade do que se tem e do que se recebe;tornou-se mais importante o fluido ou a torrente doque se recebe e do que se pode consumir, do que osobjectos ou as imagens, propriamente ditos, que se re-cebam ou se detenham. Esta avidez geral incontroladadefine a ubiquidade da própria arena em que vivemos,e o seu simbólico zapping caracterizará o ritmo dofluido e da torrente que, por sua vez, se transformamno fim último, também, da própria comunicação.

duzido pela imagem de um qualquer escka-ton que, ao fim e ao cabo, a significava).

Tal não quer dizer que as convulsões te-nham acabado. Muito, mas muito antes pelocontrário. Talvez precisamente para melhorcompreender este novo mundo fundado na"iminência- para utilizar a expressão de J.Derrida (1995:121) -, na errância e nos mo-dos (e não na moda) é que, no quadro desteensaio, me propus traçar uma linha de pos-sível continuidade para o que, hoje, melhordefinirá a nossa cultura presente: a instanta-neidade. Até porque a instantaneidade dei-xou de ser uma fé ou um desejo imanente àhistória, ou até mesmo uma iluminação mís-tica, para passar a ser, sobretudo, a concre-tização de um milagre, sob a forma do maispuro facto do quotidiano.

1 Quadro escatológico

A escatologia, enquanto instância reguladorados fins últimos do homem, tornou-se parti-cularmente importante nos textos proféticos9. Antes demais, a escatologia configurouentão um código que, ao definir as diversasetapas que estabelecem a ligação entre o fu-turo e a esfera imediata do presente, garan-tia ao homem uma legitimação do tempo, ouseja, assumia-se como um processo de tota-lização ao serviço do sentido interpretativodos signos. Um tal macro-código escatoló-gico permitia ao homem enquadrar as ocor-rências da história no quadro de uma lógicaem que (segundo um princípio messiânicodos primórdios do tempo profético) o termo

9Referência aos textos do Antigo Testamento quesucedem ao Deuterónimo e antecedem Os (outros)escritos (Ketouvom). A obra unicamente utilizadaé a Traduction Oecuménique de la Bible (TOB),1987:403-1251.

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último, e a sua razão de ser, era a salvação. Apassagem do tempo encontrava, deste modo,um sentido intrínseco, bem como uma metaa atingir. A mediação que permitia descodi-ficar, a cada momento, os factos terrenos (nasua relação com o "grande código- N. Frye,1984) era, na altura, exercida pela actividadedos profetas.

Nos textos de Samuel (onde, por inspira-ção divina, a enunciação nomeia Saul, o de-sejado10, como rei) inicia-se um debate emtorno do rei-modelo e seu significado. Nocentro deste debate, o rei David (e o seutemplo) acabará por enraizar-se como arqué-tipo do "servidor"(1R, 3, 6), delimitando opróprio paradigma do messianismo nascente.Este leitmotiv escatológico pressupõe, desdelogo, uma entidade e um lugar simbólicos(o templo de Jerusalém) que virão posteri-ormente a desempenhar um papel decisivoaquando dos fins últimos (da salvação). Ostextos do primeiro Isaías (6, 1-8 - do séc.VIII A.C.) denotam já claramente estes pa-drões escatológicos que, nos livros dos Reis(na sua terceira fase - do séc. VI A.C.) esobretudo, durante a intensa actividade derecompilação textual pós-exílica (depois de538 A.C.), serão bastante aprofundados.

Se estes textos compatibilizam um hori-zonte final de salvação com o presente his-tórico (e resultam da constante actividade -na primeira pessoa - da Divindade junto aoprofeta), já os textos atribuídos a Habaquq(1, 13 - séc. VI A.C.)11 parecem reflectir

10"... demandé"(...) "c’est le sens de son nom enHébreu"(ibid.: 1987:509).

11Le témoignage de la prophétie de Habaquq estd’abord celui du fidèle qui, bien que - ou parce que- désemparé, en appelle à Dieu contre Dieu lui-même dont l’action dans l’histoire est devenue incom-préhensible(ibid.:1987:1194).

uma outra postura face ao desenrolar da his-tória. O profeta apela então a Deus (e, decerto modo, contra Deus), por crer que o có-digo progressivamente se inadequa aos sen-tidos que a (conturbada) passagem do tempodeixa transparecer: "... tu ne peux accepterle spectacle de l’oppression;/ pourquoi doncacceptes-tu le spectacle des traitres,/ gardestu silence quand un méchant engloutit plusjuste que lui?/ Tu fais décormais les hommesà l’image des poissons de la mer, de ce quigrouille sans maitre..."(1987:1198)12. Este

12Todas as citações bíblicas que serão feitas, a par-tir de agora, têm a sua origem na Traduction Oecu-ménique de la Bible, édition intégrale (TOB) , LesEditions du Cerf/ Les Bergers et les Mages, An-cien Testament (AT),1987, Paris (Comité d’Edition;O.Béguin, J.Bosc, M. Carré, P.Ellingworth, G. Fer-rier, P.Fueter, A.Kopf, G.Makloff e J.Maury); LesEditions du Cerf/Societé Biblique Française, Nou-veau Testament (NT), 1989, Paris, Pierrefitte (Comitéd’Edition: O.Béguin, J. Bosc, M.Carré, G.Casalis,P.-Ch Marcel. F.Refoulé, R. Ringenbach). A lista deabreviaturas dos Livros Bíblicos passará a ser a se-guinte:

Antigo Testamento: Ab (Abdias), Ag (Aggée), Am(Amos), 1ch (1r.Livro de Crónicas), 2Ch (2e.Livro deCrónicas), Ct (Cântico dos Cantos), Dn (Daniel), Dt(Deuterónimo), Es (Isaías), Esd (Esdras), Est (Ester),Ex (Êxodo), Ez (Ezequiel), Gn (Génese), Há (Ha-baquc), Jb (Job), Jg (Livro dos Juízes), Jl (Joel), Jon(Jonas), Jos (LIvro de Josué)„ Jr (Jeremias), Lm (La-mentação), Lv (Levítico), Mi (Michée), Ml (Mala-quias), Na (Nahoum), Ne (Néhémie), No (Números),Os (Osée), Pr (Provérbios), Ps (Salmos), Qo (Qohé-leth - Eclesiasta), 1R (Primeiro Livro dos Reis), 2 R(Segundo Livro dos Reis), Rt (Rute), 1S (Primeiro Li-vro de Samuel), 2S (Segundo Livro de Samuel), So(Sophonie) e Za (Zacarias);

Novo Testamento: Ac (Actas dos Apóstolos), Ap(Apocalipse), 1Co (Primeira Epístola aos Coríntios),2Co (Segunda Epístola aos Coríntios), Col (Epís-tola aos Colossiens), Ep (Epístola aos Ephésiens), Ga(Epístola aos Galates), He (Epístola aos Hebreus), Jc(Epísyola a Jacques). Jn (Evangelho de João), 1Jn(Primeira Epístola de João), 2Jn (Segunda Epístola de

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simbolismo da alteridade tende, de facto, adistanciar o homem face à instância divina(e portanto ao código) e começa a repor aquestão da mediação nos moldes em que operíodo apocalíptico (Séc. II A.C. a séc. IID.C.) a irá enunciar. Ou seja, para além de,no fim do período profético, o próprio pro-cesso comunicacional homem-Deus se dis-tanciar (já que a figura metafórica do anjo - enão mais o instantâneo verbo divino - passa aser o novo veículo enunciador e simultanea-mente agente mediador da natureza e aplica-bilidade do código, cf. Zacarias ou Ezequiel24-27), também os factos da história obser-vados deixam, a partir de agora, de se equi-librar (ou de se articular) com os horizontesrevelatórios (antes) anunciados pelo código.

É por esse quadro de razões que o pe-ríodo apocalíptico (após o séc. II A.C.) nostrará inquietações novas e, ao invés de pôr oacento na promessa e na obsessiva esperançapelo futuro, passa antes a tentar compreendercomo é que "a história (no seu todo) pode serencarada como sendo uma arena da activi-dade divina"(C. Rowland, 1982:122). As en-cantadoras viagens em direcção aos céus queas literaturas apocalípticas nos narram (porexemplo, o Livro etíope de Enoch e Os tes-tamentos dos doze patriarcas - séc. II A.C.),no sentido de (instantaneamente) permitirema directa visão de Deus e de, in loco, ten-tarem compreender o código e a sua regên-

João), 3 Jn (Terceira Epístola de João), Jude (Epístolade Jude), , Lc (Evangelho de Lucas), Mc (Evangelhode Marcos), Mt (Evangelho de Mateus), 1P (PrimeiroEpístola de Pedro), 2P (Segunda Epístola de Pedro),Ph (Epístola aos Philippiens), Phm (Epístola à Phi-lémon), Rm (Epístola aos Romanos), 1Th (PrimeiraEpístola aos Tessalonicienses), 2 Th (Segunda Epís-tola aos Tessalonicienses), 1 Tm (Primeira Epístola àTimothée), 2 Tm (Segunda Epístola à Thimothée) e,finalmente, Tt (Epístola a Tite).

cia (face ao gradativo caos terreno), apenasvirão corporizar este novo tempo (em queaté a própria natureza da escatologia se pa-rece esfumar). Uma das características doperíodo apocalíptico reside precisamente nateoria das duas idades: "the prophets fore-told the future that should arise out of thepresent while the apocalyptists foretold thefuture that should break into the present"(H.Rowley, 1964:128).

No centro desta disjunção emergente pa-rece ter-se perdido o pé face à natureza dopresente, na sua relação com uma ordemescatológica superior. A retórica simbólicae alegórica, as visões (com destaque paraas de Daniel, 8) e o maior grau de abs-tracção, convocado pela já referida natu-reza mediadora dos anjos, contribuem, du-rante o período apocalíptico, para a criaçãode uma zona de sombra que separa, cadavez mais, os homens do "grande código"(N.Frye, 1982). Entre os factos e a interpre-tação cria-se, deste modo, uma mediaçãomais espessa, mais ambígua, afastadíssimada aparente instantaneidade comunicacionalprópria dos profetas da realeza (que antece-dem em mil anos este período).

A revelação cristã ocorre, entretanto, nesteperíodo conturbado. Embora as semantiza-ções apocalípticas se inseminem na vulgatacristã (já que enquadram, em termos de gé-nero, o discurso literário dominante), sãoos conteúdos da nova mensagem que agorase tornam decisivos. É sobretudo no cha-mado Apocalipse de João que, através deuma retórica povoada de símbolos, surgiráuma nova noção globalizante do devir esca-tológico. Com efeito, a escatologia surge-nos, nesse texto, já inaugurada e a eminênciados fins enunciada parece adequar-se a essefacto, já que os novos tempos são descritos

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como o próprio aqui-agora iniciado com avinda e, sobretudo, com a morte do Messias(Jesus). Apesar da redenção anunciada re-meter para a emergência de um novo reino,este, no entanto, só se virá a cumprir no mis-tério e constituirá objecto de contínua (e his-tórica) revelação.

Nesta linha de ideias, o Apocalipse deJoão recodifica a escatologia, nela descre-vendo duas fases derradeiras (20, 1-15), ob-jecto, aliás, de (futuras) visões milenaristas,por um lado, e simbólicas ou espirituais, poroutro. A primeira corresponde a uma pri-meira ressurreição, a dos santos e mártires -que reinarão sobre a terra durante mil anos(paratexto de variadas profecias milenaris-tas); a segunda corresponde à ressurreiçãode todos os mortos, aquando do juízo final.O dramatismo dos acontecimentos caracteri-zará o período que precede a primeira res-surreição que culminará com a vinda do An-ticristo; a segunda e derradeira ressurreição,encerrando a etapa dos fins últimos, culmi-nará com o juízo final. Então Cristo reapa-recerá sob o signo da parousia. Este modelode representação baseia-se na erradicação deuma primeira criação e na sua substituiçãopor uma criação nova.

Enquanto doutrina dos fins últimos, a es-catologia entra agora no seio da própriahistória e o futuro, harmonizando-se como aqui-agora humano, legitima um sen-tido global para a vida - em direcção àeternidade e à salvação. Estamos peranteuma revolução, a nível do grande-código,ou seja, o tempo ético (objectivo, mesurá-vel) passa subitamente a compatibilizar-se,de modo inovador, com um reconfiguradotempo émico (conceptualização "cultural"docontínuo temporal - T. Bruneau, 1985:286).No entanto, e de acordo com algumas pas-

sagens das Actas dos Apóstolos que dissosão índice (1,8 por exemplo), ficariam sem-pre por precisar, ao longo da revelação cristã,os momentos em que as grandes metas es-catológicas se realizariam: "Vous n’avez pasà connaitre les temps et les moments que lePère a fixés de sa propre autorité".

Este "quando indeterminado", sempreofuscado, sempre enigmático, virá a ser, jus-tamente, um dos temas que a literatura pro-fética (inspirada agora pelo novo código es-catológico cristão) irá mais obsessivamentetratar. Grande parte desses textos, produ-zidos genericamente em (pelo menos) mi-lénio e meio de cristandade, atestam, demodo ciclíco, a tendência para uma inter-pretação baseada numa cultura da instanta-neidade. Ou seja, muitas serão as vezesem que a literatura profética é como quecompelida por uma disforia do quotidianoe da vida (incompatibilizando-se com o queé mais obscuro e indeterminado no códigoprescrito), sendo levada a gritar e a exigir,para já, a realização das metas últimas desalvação, anunciadas por Cristo. Passamosa dar alguns exemplos desses momentos deuma cultura da instantaneidade que, de al-guma maneira, retêm da primeira literaturaapocalíptica (do séc. II A.C.) e dos últimostextos da literatura profética (sécs. V e IVA.C.) uma inquietação traduzida na impossi-bilidade de espera, devido à não concretiza-ção das promessas reveladas. É, portanto, dadisjunção entre o código divinamente fixadoe a corrente interpretação das ocorrências davida que uma já embrionária cultura da ins-tantaneidade acaba por manifestar-se.

A partir da segunda metade do séc. IV(B.McGinn, 1979:42), independentementedo testemunho teológico entretanto emer-gente (caso de Santo Agostinho), é de salien-

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tar um reatar do espírito apocalíptico de ca-riz imediatista (onde a figura da instantanei-dade se manifesta com uma atitude interpre-tativa humana). A profecia Sibila Tiburtinaé desse período e introduz a figura do últimoimperador (espécie de manifestação visívelde Deus na terra, ou teofania literária ligadaàs derradeiras batalhas escatológicas) que, apartir do original grego, foi sendo sucessiva-mente intertextualizado e manipulado até aoséc. XVI. Da mesma época, são exemplosdesta eminência dos fins últimos (ou seja, daabdução ou indução do código a partir da lei-tura dos signos particulares terrenos) os Diá-logos de Sepulcius Severus (360-420/5), Oprogresso do tempo de Quintus Julius Hi-larianus e o Livro das promessas e predi-ções de Deus, atribuído a Quodvultdeus13.

13Apesar das posições de Santo Agostinho, "evenmore important than the ambiguous witness of thetheologians, however, was the revival of apocalypti-cism evident in the latter part of the 4th century, es-pecially in the case of the Sibylline tradition"(B. Mc-Ginn,1979:42). Registe-se, portanto, na época, umacerta continuidade da visão eminente dos fins que sepropagará muito para além da tradiçäo da tradiçãoprofética da própria Sibila Tiburtina; exemplos dessacontinuidade são os Diálogos de Sepulcius Severus(360-420/5), O Progresso do tempo de Qiuntus JuliusHilarianus (do fim do séc.IV) - estar-se-ia, então, aum século dos fins últimos - e, atribuído a Quodvult-deus, O livro das promessas e predições de Deus. OPapa Gregório I (540-604), sobretudo nas suas cartase oratória, dá igualmente relevância à urgência dosfins últimos, embora o conciliasse com a tradição deSanto Agostinho. Mais a Norte, proveniente da Bavi-era, a profecia enigmática Muspili (séc.IX) corroboraa sucessão de signos que antevêem a urgência apoca-líptica.

Santo Agosinho, em De civitate Dei, ataca, defacto, o paganismo romano, na primeira parte, e expöea doutrina das duas cidades, numa segunda parte,onde, no Livro XXII, dá continuidade à semana, en-quanto divisão essencial do tempo. As grandes fases

Até ao cabo do primeiro milénio, de refe-rir ainda duas manifestações importantes, noseio desta corrente do instantanismo milená-rio: As cartas (ou o registrum epistolarum)do Papa Gregório I (540-604) e a enigmá-tica profecia bávara do séc. IX, designadapor Mispuli (onde se narra a destruição domundo através do fogo, na sequência de umaluta entre o Anticristo e Elias14).

O segundo ciclo de instantaneidade esca-tológica coincide com a passagem do anomil. Quer Abo de Fleury, quer Raul Gla-ber prevêem para o ano mil "a vinda do An-ticristo"e um tempo derradeiro de "grandesatribulações"(G. Duby, 1986:22). A estasmanifestações associam-se grandes peregri-nações de massas à terra santa (à Jerusalémescatológica e eminente), quer no ano da pai-xão (1033), quer em 1064, quando uma se-gunda grande manifestação de exaltação po-pular antecedeu o novo tipo de actualização

correspondem (30,5) aos intervalos entre Adão e Noé,Noé e Abraão, Abraão e David, David e o cativeiro daBabilónia; do cativeiro ao nascimento de Cristo e da-qui ao fim do mundo. O fim do mundo, por sua vez,subdividir-se-á em três partes: a vinda do Anticristo,o regresso de cristo e o juízo final.(A..Cayré,1953-I:722-3 e J. Le Goff, 1984:327).

A obra citada de Sepulcius Severus enquadra trêsdiálogos, escritos em 404 e que recriam episódios davida de São Martinho. De cursus temporum, de Quin-tus Julius Hilarianus, por seu turno, é uma obra consi-derada do âmbito "Crhonographique"(A.Cayré,1953-I:639). Por fim refira-se que Quodvultdeus foi alunode Santo Agostinho e bispo de Cartago durante a in-vasão dos Vândalos.

14A referida profecia (in F. Von Leyen, Deuts-che Dichtung des Mittelalters, Frankfurt, 1962:58-60)evoca a destruição do mundo através do fogo, depoisde uma luta entre o Anticristo e Elias. Pressupõe-se aexistência de um sincretismo devedor da escatologiadas tribos germânicas e da escatologia cristã, recém-adoptada (ibid.:80). O texto original data de meadosdo século IX.

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escatológica que o Papa Urbano II iria de-sencadear: as cruzadas. Os tempos domi-nadores de Gregório VII (que acompanhama polémica entre o Papa angélico e o úl-timo imperador - ambos encarnando um ac-tante salvador-tipo da literatura profética), napassagem do séc. XI para XII, ou seja, nasequência da Concordata de Worms (1122) edo Concílio de 1123, constituirá, por si, umatravagem do que quase podemos considerarser uma constante dos textos proféticos me-dievais: a obsessão do fim eminente. A ten-tação da instantaneidade escatológica imedi-ata, ou, no quadro do presente época, - a sú-bita dilatação do tempo na eternidade.

Num mundo em que as semióticas domundo natural coincidem com Deus, tudoé sinal, ou índice, ou vestígio de uma men-sagem divina endereçada à humanidade. J.Kristeva em Recherches pour une Séma-nalyse (1969) refere-se à transição que, len-tamente, se efectua a partir deste mundodo "Divinatio"(O. Niccoli, 1990:13), se-gundo a fórmula da "transição do símboloao signo"(ibid.: 116-118) que teria duradodo século XIII até aos alvores do séculoXVI. Para M. Foucault (1988:113), por seulado, esta lenta transição entre uma prá-tica semiótica cosmogónica e uma semióticadependente de códigos puramente humanossó, de facto, se corporizará a partir do séc.XVII. Apesar das diferentes interpretaçõessobre a recolocação do paradigma escatoló-gico, o certo é que este sistema globalizanteatinge o seu auge, ou como referiu N. Da-niel (1975:112) - "a last burst of apocalypti-cism-, no período que precede (e sobretudoprolonga) a emergência otomana.

Com efeito, e como ilustrou H. Schwartz(1992), a Europa de finais do séc. XV foiinundada por uma praga alarmante de inú-

meros almanaques e Prognostica de conde-nação - "...os europeus estavam então decidi-damente convencidos do fim"(ibid.: 93). J.-Le Goff (1984:444) considera, por seu turno,que a tensão caracterizadora deste períodotem como base uma digladiação entre expec-tativas optimistas e pessimistas que se dese-nham à entrada do séc. XVI. Por um lado, acrença (instantânea) do advento e da idade dapaz que sucederia às atribulações dos diver-sos signos: a peste, os cismas, as sucessivasvitórias turcas; por outro lado, a enunciaçãoda eminência do castigo e do fim do mundo.Mas este período de guerra profética, domi-nado por uma autêntica ars moriendi (po-voada por híbridos monstros e por uma de-sabrida retórica do terror), opondo mundosescatológicos distintos (o Islão e a Cristan-dade) e mundos distintos do mesmo para-digma de natureza escatológica (refiram-seos cismas e as disenções romanas), não ésenão a confluência de um longo caminhoanterior que, como acima se disse, precedee prefigura a conquista de Constantinoplade 1453. Passemos, portanto, a exemplifi-car com algumas das manifestações da cul-tura escatológica da instantaneidade desteperíodo.

Teremos necessariamente que iniciar osnossos exemplos ainda numa data remota, ouseja - entre 1135 e 1202 -, tempo de vidade Joaquim de Flora. O autor concebeu umesquema tipológico, através do qual tentourecodificar o tempo histórico, ordenando-ode acordo com três grandes idades - a doPai (de Adão ao séc. VII A.C.), a do Filho(em curso na época) e a do Espírito Santo(a do futuro escatológico) - que teriam rela-ções homológicas e também substanciais en-tre si, no quadro das sete sub-divisões pres-critas para cada uma. Esta necessidade de or-

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denação do tempo e da experiência - face ao"quando indeterminado"escatológico - aca-bou por não ser imune a súbitas visões emi-nentistas e instantanistas. Vivendo ainda notempo da disputa regnum-sacerdotium, Joa-quim de Flora acreditou na vinda para brevedo Anticristo, reservando para a figura de umPapa Angélico e para grupos de espirituaise eremitas o protagonismo da vitória esca-tológica final (com que a terceira idade dahistória, entretanto, se entreabiria). Curiosa-mente, na conclusão do conhecido The Pur-suit of the Millenium, N. Cohn (1980:231),ao tentar resumir as linhas de força que mo-tivaram, entre os séculos XI e XVI, os mo-vimentos milenaristas (incluindo os do mi-lenarismo igualitário), referiu o facto de os"prophetae"terem construído "o seu aparatoapocalíptico a partir dos mais variados ma-teriais - O Livro de Daniel, o Livro do Apo-calipse (de João), os Oráculos sibilinos, asespeculações de Joaquim de Flora e a dou-trina do Estado Natural igualitário - todoseles reinterpretados e vulgarizados". E, a re-matar, o autor conclui: todo "esse aparato(profético) seria transmitido aos pobres - eo resultado seria ao mesmo tempo um movi-mento revolucionário e um despertar do sal-vacionismo quase religioso".

Esse vasto movimento profético (escritoe veiculado oralmente através do continenteeuropeu, mas também ligado à práxis maisimediata dos movimentos revolucionários) évastíssimo e tem em comum uma apetênciapela instantaneidade, na medida em que exi-gia e apelava hic et nunc pela absoluta justiçado fim dos tempos. Como exemplos aponta-remos os Fraticelli (dissidentes dos francis-canos e adeptos de um apocalipticismo ra-dical, - ligado à figura de S. Francisco deAssis), o Apocalipse taborita (no final do

séc. XIV, na Europa Central), o Milena-rismo igualitário alemão do século XV (so-bretudo no sul e nas zonas confinantes coma Boémia), o movimento Hussita, as Seitasdo livre espírito defensores do Estado Natu-ral e a práxis das Revoltas camponesas (Jac-querie de 1358, a da Flandres Marítima de1323 e 1328 ou o levantamento inglês de1381), onde se aliaram reivindicações soci-ais a outras que postulavam uma predestina-ção inspirada no sentido de "guiar a huma-nidade através das convulsões dos últimosdias"(ibid.: 169). Inspirando uma mesmacultura da instantaneidade, contam-se entreas imensas profecias (escritas) neste período,por exemplo, o Pseudo-livro de Fiore (comuma edição de 1304 e uma outra da auto-ria dos Fraticelli, já de 1340); a Árvore daVida de Ubertino de Casale (1259-1330) -segundo Leff Gordon "a complete francisca-nizing of the apocalypse"(1967-I:65) -, ondeo Papa angélico derrota na derradeira bata-lha escatológica o Anticristo; Várias reedi-ções (manipuladas) da já referida Sibila Ti-burtina e a própria Profecia do segundo Car-los Magno (de Guilloche de Bordéus, de fi-nais do século XIV, - uma das mais difundi-das e intertextualizadas no século seguinte,atribuindo a Carlos VIII de França um papeldecisivo nas lutas finais eminentes).

Poderíamos referir muitas outras profeciascom idênticas tendências, analisadas noutraperspectiva, em estudo anterior (L. Carmelo,1995). O. Niccoli em Prophecy and Peoplein Renaissance Italy, por seu lado, descrevedetalhadamente o percurso deste movimentoprofético de características pré-utópicas (jáque define mundos imaginários, embora su-bordinados a um código escatológico deter-minado, recriando isotopicamente a reivin-dicação de uma salvação instantânea, ime-

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diata, como se o mundo subitamente se tor-nasse irrespirável). Para a autora, em Itália, omovimento (com estas características) acabana década de trinta do século XVI. Não seráesse o caso na Península Ibérica e na EuropaCentral, mas o século XVI verá, de facto, aescatologia distanciar-se, a pouco e pouco,da sua condição paradigmática - e até espis-témica - de "grande código"(N. Frye, 1984).Outras modalidades globalizantes virão par-tilhar o seu espaço legitimador, remodelandoo horizonte exclusivo, a partir do qual osimaginários sociais e históricos eram projec-tados. É disso que nos ocuparemos na secçãoseguinte.

2 O quadro utópico

A Profecia do segundo Carlos Magno, acimareferida como uma das mais importantes dosfinais do séc. XV, viria a adequar-se, numadas suas realizações práticas (aliás comomuitas outras), a um acontecimento impor-tante do real histórico. Tratou-se, com efeito,da conhecida invasão do rei de França, Car-los VIII (1483-1498), ao Reino de Nápoles(1494), que, em terras transalpinas, acabriapor ser interpretada como o primeiro passopara a conquista de Jerusalém e, portanto,como o início das várias etapas escatológicasconducentes aos novos tempos. O rei Car-los VIII viria, de facto, a ser recebido eufo-ricamente na cidade de Florença como mitoactualizado do último imperador predesti-nado. Savonarola, o conhecido porta-vozdeste apocalipticismo instantâneo, esteve nocentro da "self-fulfilling prophecy"(M. Herz-feld 1982:169)15 que, durante alguns me-

15Expressão de M. Herzfeld,(1982:169)que, no seuartigo, refere que a relação entre a realidade e a profe-

ses, conseguiu fazer da Florença humanista ocentro escolhido "of divine illumination"(...)"not only to warn Italy of the tribulationswhich had now come, but also to lead herout of abdomination and desolation"(B. Mc-Ginn, 1979:278).

Este terminalismo optimista colocou, nolimiar do séc. XVI, a população inteira deuma cidade como Florença à espera do de-cisivo sinal, como se uma nova ordem igua-litária pudesse subitamente descer dos céuspara cumprir, de vez, as promessas prescri-tas pelo "grande código"escatológico. Noentanto, Savonarola acabaria em desgraça ea sorte das suas profecias (e das de Gui-lhoche de Bordéus, entre outros) viria a serigual às que, por exemplo, de modo mas-sivo, até 1524, falharam no prognóstico dogrande e derradeiro dilúvio universal (de-vido à conjunção planetária, no signo peixes,ocorrida em Fevereiro desse mesmo ano16).É evidente que, como atrás se disse, desde

cia que a gera (e de que é gerada), é fundamental parao estudo da semiótica da cultura. O paradigma inicialde um tal processo enontra-o o autor no Oráculo deDelfus:"The oracle seemed to provide the ideal pa-radigm of the calculating self-fullfilling prophecy".Esta reflexão é, claro, susceptível de ser actualizadanoutros contextos em que uma comunidade interpretaa sua relação com o tempo, naturalmente ambígua emutuamente geradora de profecia e realidade e vice-versa.

16A previsão da conjunção planetária de 1524(registada, pela primeira vez, por Johann Stofl-ler, em 1499) irá originar um intertexto proféticodenso e variado de cariz verdadeiramente catastró-fico. Como O.Niccoli demonstrou (1990:140-166), aprópria Igreja contribuiu, e muito, para a difusão des-tas profecias que prediziam um dilúvio derradeiro. Osignificado do mesmo era, segundo as interpretaçõesavançadas na época, duplo: castigo de Deus pela cor-rupção da Igreja ou, noutra interpretação, pela rebe-lião luterana. O. Niccoli conclui que, passada a fatí-dica data de 1524, - "the figure of the astrologer emer-

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as Jacqueries do séc. XIV até ao início doséc. XVI, estes movimentos da instanta-neidade escatológica eram simultaneamentemovimentos envolvidos pelas conturbaçõesda ordem económica e social (como tambémocorreu na Florença de Savonarola). Nãose nota, neles, com efeito, uma dissocia-ção clara entre ambas as esferas, já que oimaginário social acaba sempre, em últimaanálise, por projectar os decisivos parâme-tros do "grande código"escatológico. No sé-culo XVI, todavia, constata-se uma alteraçãoneste estado de coisas.

O primeiro signo de uma autonomizaçãoefectiva do imaginário social, dissociando-se de um "grande código"marcadamente es-catológico, surge - ainda que involuntaria-mente - com a Utopia de Thomas More (pu-blicado em latim, na cidade de Lovaina, em1516). Subitamente, imagina-se um nenhu-res, ou seja, um espaço insular idealizado,espécie de não-lugar onde a vida comunitá-ria é perfeita, de acordo com uma expecta-tiva de felicidade da existência e de abun-dância, segundo as responsabilidades de li-berdade de culto religioso, de harmonia per-feita entre instituições e costumes e, por fim,de ausência de propriedade privada. A Uto-pia de More constrói, pela primeira vez nahistória (euro-ocidental), um cenário de vidaideal - dissociado de uma necessária ima-gem de Deus ou, pelo menos, das etapasdivinamente consideradas como necessáriaspara se atingir um Eden. Subitamente, essemesmo imaginário de paraíso é agora povo-ado pela autonomização absoluta da imagi-nação humana. Independentemente da prag-mática e da hermenêutica do texto em ques-

ged much diminished by the way popular culture hadreceived the supposed deluge"(ibid.:167).

tão, o certo é que ele institui uma nova arqué-tipa globalizante que parece corresponder auma necessidade de ajustar a vida e o quo-tidiano a um devir que os transcenda, masque, ao mesmo tempo, lhes atribua um signi-ficado, ou seja, uma legitimação última.

Há autores que estabelecem uma relaçãodirecta entre More e o caso de Tomás Munt-zer que, na década de vinte do séc. XVI,passou pelas cidades de Zwickau, Praga eAllsted (na Turíngia), apresentando-se comoMensageiro de Cristo e defendendo que ospobres eram os eleitos, tendo como missão"inaugurar o Milénio igualitário"(N. Cohn,1970:19917). A diferença entre a mensagemde More e a de Muntzer é grande, no entanto.Para J.-M. Goulemot (1979:474), Muntzercria a ideia de uma "cidade nova, reve-lada e oferecida pelo verbo", enquanto que,para More, a "representação da alteridadesocial"é já "inventada, instituída pelo actoda escrita que funda e constrói, simultanea-mente, aquilo que existe no espaço ficcionalda narrativa, esse centro a partir do qual seorganizam todas as redes"(diegéticas) "queunem as ideias-utópicas às outras formas deimaginário"social, portanto, de característi-cas extra-textuais. Se houver homologias en-tre ambos os casos, elas decorrerão sobre-tudo da topografia e dos temas sonhados, ouseja, da alteração da ordem dominante; doigualitarismo anunciado e até do próprio re-

17A propósito, refira-se João de Leiden (Jan Boc-kelson), um dos mentores da reviravolta que Munster,assiste a meado dos anos trinta (no século XVI). Numambiente dominado pelo crescendo dos Anabaptistas,e pelas visões apocalípticas, a cidade foi profetizadacomo a Nova Jerusalém, enquanto o resto do mundoseria destruído liminarmente. João de Leiden chega-ria mesmo a ser coroado como o Messias dos ûltimosDias e "rei de todo o mundo"(N.Cohn,1981:214-229).

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gime de propriedade privada. Haverá eventu-almente conotações históricas entre os doisfenómenos, mas, seja como for, Muntzer éainda decisivamente inspirado pelo milena-rismo escatológico, enquanto que More fruijá uma nova forma de imaginação, despren-dida de horizontes previamente estabeleci-dos (embora haja, naturalmente, no texto daUtopia, elementos simbólicos da Bíblia, masque devem ser interpretados enquanto povo-amento retórico-discursivo).

O novo germe de paradigma globalizante -este recentíssimo espaço da utopia - contém,em si, uma identidade e uma modalidade deelocução novas que, percorrendo várias fa-ses modalizadoras, nos conduzirá até à mo-dernidade. Vamos seguir esse percurso, co-meçando por delimitar um conceito para estenovo lexema criado por Thomas More, a par-tir da imaginação de um nenhures. Para B.Baczko (1985:333), a utopia funda-se numdesejo de recomeçar a história, reatando mi-tos ligados ao ideário do paraíso perdido, oude uma idade de ouro a revisitar. Este olhar,criado a partir de um lugar inexistente refe-rencialmente (tendo, portanto uma existên-cia absolutamente imaginária) - o "nenhu-res", para K. Mannheim (1936) - tende atranscender a realidade que - através dele -se alegoriza, tornando-se, no entanto, reali-zável, na medida em que pode "irromper aespessura da realidade". Correspondendo auma suspensão do real (no quadro da "neu-tralização"18 husserliana), a utopia é, para C.Geertz (1973), um "sistema simbólico abar-

18A neutralização, ao lado da presentificação eda intuição, é uma "categoria fundamental"que in-tervém na imaginação husserliana e que se traduzcomo sendo "une conscience qui opère le passageà l’irréalité"(M.M.Saraiva, L’Imagination selon Hus-serl, Martinus Nijhoff, Le Haye,1970:250-1)

cante"que, contudo, não obedece a um pro-grama, ou seja a "um conjunto de sentidosdirectamente inteligíveis"(ibid.: 209).

Quer E. Noel (na entrevista de F. Chatelet,em Uma história da razão - 1993:78), querB. Braczko vêem em O Príncipe de Maquia-vel um "esboço de utopia"(1985:345), não sópela contemporaneidade da sua escrita facea More (redigida em 1514, embora só pu-blicada em 1532), mas também no que con-cerne, sobretudo, a projecção ideal de umestado criado na terra (através da imagina-ção) e não a partir de uma visão teleológicae celestial (como nos casos da Savonarola ouMuntzer). No entanto, foi K. Mannheim, noseu Ideology and Utopia de 1936, quem des-cobre, na história das utopias, uma continu-ada isotopia do que temos considerado seruma cultura da instantaneidade. Procurandoo início do facto utópico, não em More, nemem Maquiavel, mas antes em Muntzer, oautor sublinha um parâmetro teórico funda-mental para a sua escolha, ou seja, - a "rea-lização histórica"de um sonho de caracterís-ticas utópicas (embora podendo conter fili-ações milenaristas-escatológicas) em associ-ação a "estratos sociais oprimidos"(ibid: 58)é que acaba por conduzir ao cumprimento dopróprio desígnio utópico (ou seja, a constru-ção desse nenhures imaginado, capaz de su-plantar e inverter a própria ordem reinante,independentemente das presentes expectati-vas de transcendência).

Numa das lições de P. Ricoeur (proferi-das na Universidade de Chicago) sobre K.Mannheim (1991:445-466), o autor comentae explica do seguinte modo a exequibilidadeda tese do autor: "O que confirma a escolhadeste ponto de partida é a sua influência con-tínua, e esta inclui a sua ameaça persistenteàs outras formas de utopia. A utopia quiliás-

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tica desperta contra-utopias, mais ou menosdirigidas contra a ameaça do ressurgimentodesta utopia fundamental. As utopias con-servadoras, liberais e socialistas encontramtodas elas no anarquismo da utopia quiliás-tica um inimigo comum. Para Mannheim, háuma linha que pode ser traçada de Muntzera Bakunine"(...) "o que é específico ao sen-tido nesta utopia, e talvez em todas as utopiasque dela decorrem, é o repentino caminhoaberto entre o absoluto e o imediato aqui eagora19"(ibid.: 455-456). Estaremos no cen-tro criador da cultura da instantaneidade e,sobretudo, na confirmação de que ela se pro-paga, não já só ao longo de mais de dois mi-lénios escatológicos, mas também no germeda própria continuidade utópica (que, comose disse, virá, mais tarde, a ancorar no seioda modernidade). Por outras palavras: seK. Mannheim sublinha a existência de umaisotopia da instantaneidade, a partir das pro-fecias quiliásticas (realizáveis e simultanea-mente ligadas às conturbações sociais), en-tão podemos dizer que essa linha isotópicajá se encontrava instalada na produção deimaginários em períodos que antecedem, emmuito, a exaltação do Anabaptista Muntzer(nomeadamente, como vimos, em três perío-dos mais importantes, antes e depois do anomil e, em períodos mais remotos, nomeada-mente durante o período apocalíptico e pro-fético pré-exílico).

3 Utopia e ancoragem no tempo

O fascínio de Descartes (1596-1650) pe-los novos instrumentos ópticos que, no séc.XVII iam surgindo, - "levando a nossa vistamuito mais longe do que costumava ir a ima-

19Sublinhado nosso.

ginação dos nossos pais"e, portanto, abrindo"caminho para alcançar um conhecimentomuito maior e muito mais perfeito do queeles tiveram"(La Dioptrique, 1963-I: 651) -foi interpretado por P. M. Frade como es-tando "nos limiares da posição moderna", jáque o referente agora se instituía, de vez,no devir, e não no que fora ou "foi conhe-cido"(1992:30). O experimentalismo entãoemergente, e que leva Francis Bacon (1561-1626) a conceber que "a exploração sistemá-tica dos recursos naturais do mundo deve serum empreendimento cooperativo"(o que temimplícito uma configuração utópica), ao ser-viço de uma "perfeição terrestre"(cit. in A.Rosa, 1996:19), é o sinal de um optimismomuito racionalizante, levado ao extremo porLeibniz (1646-1716), já que, para o autor, ohomem habita o melhor dos mundos possí-veis (N. Abbgnano, 1994-VII:7-32). O espí-rito do séc. XVII pode ser sintetizado atra-vés de um comentário breve de E. Noel so-bre o pensamento de Thomas Hobbes (1588-1679): "Diríamos hoje - e não se trata de umadeformação do pensamento de Hobbes - queo homem é desejo e que nada do que desejalhe é vedado"(1992:83). Este conteúdo deilimitado desejo, ligado ao devir e à raciona-lização progressiva da experiência e do sa-ber, fazem do séc. XVII uma época impor-tante de fermento utópico. Época criadora deuma nova idealização do próprio espaço, nãosó devido a inventos como o telescópio, massobretudo - através das prospecções de Gali-leu, Copérnico e Kepler -, da idealização deum novo sujeito que Descartes disse ser o su-jeito cognoscente, ou seja, "o Eu penso"quea si próprio se concebe.

No entanto, é no século XVIII que có-digo utópico define novas direcções, no-vas semantizações e até novas perspectivas

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de domínio do tempo futuro. B. Baczko(1985:348) descreve, no seu ensaio Uto-pia, várias tentativas de reactualizar a activi-dade utópica, durante esse período. Louis-Sébastien Mercier propõe, por exemplo, otermo "fictionner"para o acto genérico de es-crever utopias. Um dos tradutores (Nico-las Guedeville) de a Utopia de More chegamesmo a criar um neologismo no sentidode designar a "operação pela qual o realse transformaria em ideal"(1982:54). Masum dos aspectos mais importantes do incre-mento das utopias é, de facto, a sua inte-gração em narrativas, atribuindo-se-lhes di-mensão diegética autónoma, embora suscep-tível de cooperar com os argumentos ficcio-nais propostos. É o caso de Candide de Vol-taire (1759), da Nouvelle Héloise de Rous-seau (1761), L’an 2040 de Mercier (1770),de Aline et Valcour de Sade (1788) e, claroestá, das Viagens de Gulliver (1726). A ex-pressão de Rousseau, no final do DeuxièmePromenade de Les rêveries du promeneur so-litaire (1770) - "Laissons donc faire les hom-mes et la destinée"(1994:32) - é talvez o me-lhor indicador para um outro aspecto, talvezo mais decisivo, das utopias, durante este sé-culo das luzes: a sua ancoragem no tempo.

Isto quer dizer que, desde o paratexto ini-cial de More, a utopia era concebida comoum nenhures, onde se idealizava uma ou-tra ordem, - distante, imaginária, fruto deum sonho basicamente irreferenciado (em-bora pudesse constituir alegorizante para umdado alegorizado). A partir de agora, ecomo já acontece no livro de Mercier, L’an2040, as propostas utópicas passam a recu-perar um ajustamento com o devir, facto,aliás, já anteriormente pressentido; A. Ci-aronesco traduz essa realidade do seguintemodo: "Pour mesurer utopiquement le pro-

grès, l’accession du genre à l’avenir était in-dispensable. Le futurible, qui manquait auxdimensions de l’utopie, fit enfin son appa-rition en 1770, avec Louis-Sébastien Mer-cier"(1972:193). De certa forma, na teoriadas idades da história de Giambatista Vico(1668-1744) - onde esta é subdividida emidade divina, heróica e da razão - pode reler-se a mesma ansiedade tipológica de Joaquimde Flora, embora, agora, inscrita no âmbitoglobalizante de uma utopia "futurible"(e nãono do puro imanentismo escatológico), istoé, - num cenário idealizado, onde o homemespera "uma coisa superior que o venha sal-var"(in Scienza Nuova, cit. in N. Abbag-nano, 1994-VII:43). O tempo, e sobretudoo futuro, passa assim a constituir o referente,ou melhor, o "topic"(U. Eco, 1979:92), paraos textos utópicos (que, portanto, a ele sepassarão a adequar, numa franca recuperaçãodo continuismo linear histórico).

Esta modalização do modelo da utopia de-sembocará, no século XIX, como refere B.Baczko (1985:365), numa "grande massa detextos utópicos"(...) "constituída por livros,ensaios, jornais, etc., que expõem sistemasde reformas sociais apoiados numa críticamais ou menos radical da sociedade contem-porânea, numa filosofia da história, numa re-flexão religiosa ou ainda em análises econó-micas". Contudo, há nestas novas tendênciasutópicas, do início do século XIX, ingredi-entes inovadores (e que nos remetem para acontinuidade de uma cultura da instantanei-dade): "as utopias são agora avançadas comooutras tantas soluções a aplicar hic et nunc,a fim de responder à crise que aflige a soci-edade e, designadamente, às consequênciasnefastas da urbanização crescente e da in-dustrialização"(ibid.: 366). Tentando preci-samente responder às novas relações criadas

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pela crescente industrialização, Saint-Simonagita, então, pela primeira vez, a ideia de fimde estado, - utopia que "é canalizada atravésdo programa de Bakunine e (que) continuaráa fazer parte do horizonte utópico do mar-xismo ortodoxo"(P. Ricoeur, 1991:484). Porseu lado, Fourrier, numa empatia com Rous-seau (e até com Vico), é antes apologista darestauração de uma natureza inicial que teriasido subvertida, corrompida. A ideia de quesão as paixões e o prazer que devem, num fu-turo de "deleite", governar a vida - no que P.Ricoeur designa como uma "antecipação"doid freudiano (ibid.: 494) - consagraria a res-tauração paradisíaca e a consagração de umestado puro e original, ao invés de Saint-Simon que se limita a projectá-lo no futuro,reinventando, para tal, o próprio sentido his-toricista e teleológico do Cristianismo.

Apesar de o século XIX emprestar às uto-pias novas configurações - sendo a mais im-portante a sua incorporação em novos siste-mas globalizantes, as ideologias -, não deve-mos prosseguir sem antes revermos, ao nívelda práxis, algumas manifestações de instan-tanismo que, na continuidade, acompanham,com consistência, a lenta modalização utó-pica. Referir-nos-emos, assim, a três mo-mentos históricos axiais, no sentido de com-preendermos e relativarmos a progressão doque designamos por cultura da instantanei-dade: as revoltas camponesas (em França) doséc. XVII, a emergência da revolução fran-cesa e, finalmente, a emergência das utopiasnacionalistas.

Quanto às revoltas de seiscentos, contem-porâneas do desenvolvimento do novo es-tado moderno, têm sobretudo como alvoimediatista a questão dos impostos (no qua-dro dos, então, novos paradigmas fiscais).No entanto, a par desta reacção mais ime-

diata em relação às condições contingentesdo quotidiano, estas revoltas abandonam ro-tundamente o leitmotiv milenarista e escato-lógico, recriando antes o imaginário de umreino diferente, considerado livre, sem im-postos e dirigido por uma realeza justa. Aimagem do príncipe - ou do rei - é respei-tada, não se poupando, no entanto, os puta-tivos assessores que o aconselhariam e, por-tanto, desenvolvendo-se uma quadro utópicoonde se procura reactualizar (de acordo, porexemplo, com o que viriam a ser as nos-talgias utópicas de Fourrier ou Rousseau)um estado puro e perfeito, situado alguresno passado (sendo personificado, por exem-plo, num Henrique IV). Estas revoltas exi-gem geralmente a realização imediata dassuas reivindicações (sem grande sintaxe pro-gramática e, por isso, claramente utópicas) eremetem o protagnismo para figuras anóni-mas, caso da sublevação nus-pieds (1639),assim anunciado: "João Pé-Descalço é ovosso apoio./ Ele vingará a vossa disputa/Libertando-vos do imposto"(...) "Para impôrna Normandia/ Uma perfeita liberdade"(cit.in B. Baczko, 1985-2:317). Desde os anosvinte do século XVII, com a revolta dos Cro-quants (Quercy, 1624), às de Périgord (1637)até, de novo, em Quercy (já em 1707), es-tas rebeliões retomam a tendência instantâ-nea de recolocar hic et nunc a realização do"grande código- neste caso o utópico.

Quanto à Revolução francesa, não noscabe senão assinalar um elemento particu-lar que, no entanto, nos parece importanteno âmbito que estamos a abordar. Trata-seda aplicação de um dos fundamentos defini-dores da utopia, de acordo com a noção deM. Eliade (1970:54 e 1963:121), ou seja, -a utopia como desejo de recomeçar a histó-ria e, portanto, de abruptamente reinstaurar

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um novo início. No caso vertente, o dia 14de Julho, data da tomada da Bastilha, marcaesse dia emblemático em que, ritualmente,se emprestou à sequência da sublevação (doVerão ao Outono de 1789) um sentido glo-balizante, afectando-o de único, irrepetívele, sobretudo, reiniciador. Não só a conta-gem do tempo adquire novo sentido a partirde então (sendo legalmente instituído atra-vés dos decretos de 5 e 24/10/1793 - E. Berl,1965:5), como vários símbolos acompanhamesse mesmo desejo de um recomeço radicale absoluto: a insígnia (cocarde), os altaresda pátria ou a própria árvore da liberdade.Por seu turno, o domingo suprime-se e cria-se uma nova sintaxe para a noção de semana,assim como as comemorações dos primeirosanos pós-evento tendem a ritualizar (e a inte-riorizar colectivamente) uma nova ideia utó-pica de fraternidade geral.

Este instantanismo dos chamados sans-coulotes - que se prolonga para além do 9Thermidor (em Julho de 1794), assenta naruptura temporal e no anseio de atribuir aodevir um horizonte utópico, mas sempre re-criado na práxis mais imediata e presente.Estaremos talvez, e retomando um outro es-tudo de M. Eliade (1975), perante uma hi-erofania do recomeço (reatando, por exem-plo, em termos de estrutura profunda, outrosmomentos ímpares e iniciadores do curso dotempo, como, as revelações de Cristo ou deMuhammad), mas agora libertas de um ho-rizonte escatológico. Como M. Elchardusafirmou, a propósito dos sistemas de orde-nação temporal, duas condições devem sercumpridas para uma reavaliação do discursosobre a duração: "Some potential uniqueevents must be constituted as, or taken tobe"e "These events must be ordered, at le-ast by the elementar distinction before and

after", já que "temporal meaning is a di-mension of meaning that interprets reality byusing these properties"(1987:12). De facto,quer o evento e a sua natureza ensimesmada,quer a reordenação temporal daí decorrente,quer até a nova dimensão significativa estãoconcomitantemente presentes neste reinício.

A localização (idealizada) de um novo es-tado perfectível, equilibrado e justo, estáagora claramente colocado neste planeta, noagora-aqui da "utopia realizável- recorrendoà expressão de K. Mannheim, e não no alémescatológico, após um inevitável e pressen-tido fim do mundo. Esta mudança para-digmática, no quadro dos "grandes códi-gos"totalizantes, é também aferida, em Por-tugal, anos antes da Revolução francesa.Com efeito, na sequência do terramoto de1755, Pombal mandou fazer, ao longo dopaís, o que foi designado por Interrogatórios,no sentido de recolher informações sobre aduração do terramoto e sobre o número deréplicas sentidas. Das centenas de respostas(depositadas no Arquivo Nacional da Torredo Tombo, M.R., maço 638 - e estudadas porA. Rentes Florêncio - 1988) apenas cerca de5% revelam ter então acreditado numa (ine-vitável) eminência do fim do mundo.

Da Revolução francesa emerge tambémum novo conceito de Pátria associada aoEstado-nação, acabando por imputar uma di-mensão utópico-épica às comunidades (dir-se-ia hoje "às culturas"), levando-as a umnovo esforço de inventário e pesquisa, ouseja, a uma inovadora auto-representação,capaz de sintetizar um (singular) percursodesde as origens remotas até a configura-ções actuais e idealizadas (situadas, portanto,num tempo presente e, também, futuro). Aslutas pela independência da Grécia, o movi-mento nacionalista polaco (posterior à insur-

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reição de 1830) e os tratados utópicos quedesenvolvem visões de uma futura pátria ju-daica (caso de Roma e Jerusalém de MosesHess (1862) e das utopias de Herzl relativasaos kibbutz) são disso exemplo. Como o sãotambém o culto a Camões que ocupa os con-turbados anos do início do Século XIX emPortugal: o Requiem de Bomtempo, o Ca-mões de Garrett e a estátua do poeta no Chi-ado são signos desse novo sentido de parti-lha (e auto-reconhecimento colectivo). Asutopias nacionalistas desenvolvem-se desdeo início do século XIX - e, seguindo a pro-posta de F. Baumer (1990:23), - logo desdea primeira das suas quatro fases, ou seja, no"Mundo Romântico", onde esse imaginárioé já claramente florescente: "Para a maiorparte dos românticos, especialmente depoisda Revolução, a nação ou o Estado-naçãoconstituía a forma mais elevada de orga-nismo social. Por isso"(...) "o Romantismo,de facto, contribuiu mais para a ascensão donacionalismo, que se tornaria em breve umdos maiores mitos modernos, do que os Jaco-binos ou Napoleão"(ibid.: 46). Com efeito,as guerras nacionalistas do séc. XIX (masnão só!) são, para além de outros desígniosponderáveis, sobretudo grandes manifesta-ções de instantaneidade utópica, pois exigemhic et nunc o cumprimento (às vezes seman-tizado de predestinação) do novo paradigma.

Seguindo ainda a tipologia de F. Baumer(1990: 59-87), a segunda fase do séculoXIX prolonga-se, cronologicamente, até auma linha divisória compreendida pelas da-tas de 1848 e 1859. Este é, segundo o au-tor, o período mais optimista do século -banhado pela decisiva esperança na sisté-mica científica - e, sobretudo, pautado pelaconsolidação da ideia de progresso; habi-tado pelo positivismo, pelos jovens hegeli-

anos, pelos chamados realistas na arte e naliteratura e ainda pelo novíssimo instanta-nismo fotográfico. Durante esta fase, He-gel morre, em 1831, e surgem as primeirasobras de Marx, escritas entre 1842 e 1848,bem como o Manifesto Comunista, publi-cado neste último ano. As ideologias batem-nos agora à porta e, por isso, cumpre-nos,antes de mais, descrevê-las e, num segundomomento, articulá-las com a proposição utó-pica (agora já com mais de quatro séculos dehistória), pois é no quadro dessa articulaçãopolemizadora que o século XX irá emergir.

4 O quadro ideológico

Para Karl Mannheim (1936:74-6), a teori-zação de Marx contribui decisivamente parauma concepção "abarcante"de ideologia (ouseja, "globalizante", no mesmo sentido emque o termo tem sido empregue quando apli-cado aos outros "grandes códigos"). A ide-ologia deixa, assim, de se relacionar com oespírito dos idéologues franceses que, em se-tecentos, advogavam que a filosofia, ao in-vés de se fundar nas coisas, se devia ape-nas fundar em ideias. Pelo contrário, a ide-ologia, agora, passa a corporizar a ideia deuma visão global do mundo (por oposição oudissimetria, criando, de raíz, uma alteridadeessencial) e que se assume como estruturatotal característica de uma "formação histó-rica concreta, incluindo uma classe". Es-tamos perante uma nova concepção de sis-tema geral de ideias e valores, isto é, um au-têntico programa sintacticamente arrumado,hierarquizado e fundamentado que - reto-mando Max Weber (como Geertz e Man-nheim muito citado por P. Ricoeur nas suaslições de Chicago (1991:83) - tem comopapel legitimar uma autoridade, um poder.

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Nesse sentido, a ideologia é uma distorção(ou uma dissimulação) que, através da pres-crição de um "grande código", faz (ou con-diciona a) interagir, "não a relação"entre oshomens, mas "a maneira como (eles) vivema relação entre eles e as suas condições deexistência"(L.Althisser, cit,in ibid refazer)

Ao enunciar um discurso sobre o modode relação entre os homens, a ideologia criaum conjunto de sentidos consistentes e co-erentes (enformando semantizações, ou deesperança, ou de estabilidade, ou de desejode retorno ao passado, ou de idealizaçãoradicalizada) que, por sua vez, se projec-tam em representações de mundos perfeitos(opondo-se à imperfeição histórica acumu-lada). Deste modo, as ideologias acabam,aliás como a escatologia e a utopia (embora,neste caso, o seu mundo perfeito seja sem-pre volátil, informe, quase absoluto), por seadequar à historicidade, legitimando o pre-sente, através de uma batalha conducente aoderradeiro patamar da realização colectiva.Ao referirmos o lexema "batalha", referimo-nos ao próprio berço da noção de ideologia,ou seja, continuando a citar K. Mannheim(1936), referimo-nos a uma das essências daprópria modernidade: o progresso realizadopor sucessivas oposições (no caso de Marx,opondo, em primeiro lugar, a construção he-geliana - ou, por exemplo, a ideia de religião- a um novo real, levando a cabo uma inver-são, e, depois, em segundo lugar, opondo anoção de ciência, que adopta, ao que passaa designar por ideologia, embora, aqui, nosentido que lhe é atribuído pelas utopias deSaint-Simon ou Fourrier). Esta nova formade mediação da acção social que é a ideolo-gia, articulando uma representação da socie-dade e as interacções que lhe são intrínsecas,acaba por assegurar um nível de integração

social e imaginário, aliás vital, quer para oequilíbrio do próprio presente, quer para aprojecção num futuro perfectível que enun-cia.

Para B. Baczko (1985-2:302) o "termoideologia"apenas adquire o seu sentido ac-tual por volta de 1850, como também a no-ção de "progresso"só é colectivamente apro-priada, como tal, no terceiro quartel do sé-culo XIX (ibid., 1985-1:372). No entanto, asua legitimação é muito anterior, já que, aolongo do mundo dominantemente utópico, e,também, ao longo do incremento da raciona-lidade, ela vai surgindo. Desde Maquiavela John Locke e até Hegel, a visão da autori-dade e do poder vai-se deslocando no sentidoda inevitável inversão ideológica. K. Man-nheim vai mesmo muito mais atrás, na cap-tação de uma raíz para o modelo ideológico.Levado pela lógica da dissimulação acimadescrita, ou seja, da falsa consciência derro-gatória, o autor cita o profeta Baal do An-tigo Testamento e, no âmbito da cultura mo-derna, refere-se a Maquiavel (por ter iniciadoo "processo de suspeita sistemática- opondopraça pública e palácio); a Bacon (a partir dasua teoria dos ídolos), a Hegel (já que, na Fi-losofia do espírito, se refere às distorções delinguagem para uso político) e aos já citadosidéologues. Concluindo, e pesem as relati-vações possíveis, é um facto que, na segundametade do século XIX - e talvez durante umpouco mais de um século -, a ideologia seconverte num novo "grande código"(emboraarticulando-se intimamente, como veremosde seguida, com os outros "grandes códigos",até agora referidos e, a partir dos quais, aliás,é estruturalmente gerado).

Segundo F. Baumer (1990: 248/9), entreas ideologias que, a partir do terceiro quar-tel do século XIX até ao século XX, se fo-

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ram afirmando, contam-se o comunismo, oliberalismo e o fascismo. Como se disse, énum quadro de oposições, quase sempre ir-redutíveis, que estes sistemas ideológicos sedesenham, embora concomitantes com ou-tros que deles são sucedâneos (caso do libe-ralismo histórico associado aos ideários cris-tãos de Jacques Maritain, dos socialismosdemocráticos ou de casos particulares, hí-bridos e aberrantes, como o Nazismo, porexemplo). O final do século XIX - pautadopela dúvida, pelo agnosticismo, pela mortede Deus, mas sobretudo pela cultura do devir- reservava o século XX como receptáculoideal das grandes esperanças e realizaçõesdo "progresso". O domínio da natureza edo tempo, o incremento industrial, demográ-fico, científico e artístico disso eram garan-tias, aparentemente, credíveis. Embora a pri-meira modernidade e o próprio século XIX,na sua observância simbólica, só terminas-sem no final da primeira grande guerra mun-dial, o certo é que as manifestações da cul-tura da instantaneidade se foram sempre pro-pagando (com mais intensidade, pelo menos,até ao limiar do grande conflito do século- a segunda grande guerra mundial). Antesde analisarmos a continuidade dessas mani-festações, abordaremos, de seguida, as rela-ções que a ideologia mantém, à época, com oecletismo utópico (o qual persistirá ao longodas várias modernidades) e com o primeirodos "grandes códigos- a escatologia.

Comecemos por citar Y. Bonnefoy parareferir que o Cristianismo (e também o Is-lão) são religiões "à temps orientés"(cit. inL. Carmelo, 1995:145). Ou seja, projectamo cenário ideal de salvação num futuro si-tuado no além, legitimando o presente e opassado de acordo com uma estrita lineari-dade histórica. No entanto, e como adianta

E. Noel (1993:125), "...estamos hoje numacivilização integralmente histórica"emboraessa "consciência histórica seja um facto tar-dio"(...) "data do século XVIII". Este "ele-mento constitutivo do nosso ser", que é a his-toricidade, no entanto, é justamente o quese acopla ao "grande código"utópico quando,justamente no século das luzes, como vimos,(ele) se ancora à história (deixando de ape-nas configurar um nenhures ideal, para an-tes passar a imaginar um algures, capaz depovoar o futuro para que a humanidade ine-xoravelmente tende). Esta mesma visão, as-sente na linearidade histórica, virá a consti-tuir o suporte de todas as ideologias, agorade acordo com programas sintacticamente"fundamentados, arrumados e hierarquiza-dos"(tendo em vista integrar e legitimar po-deres instituídos). Pode-se, portanto, dizerque todos os três "grandes códigos"decorremde uma mesma representação baseada na li-nearidade temporal, desembocando, ou naeternidade, ou "num ponto de ómega- se-gundo a expressão de Teillard Chardin - per-feitamente imaginário, ou ainda na padroni-zação de um futuro (harmónico) tido comoresultado de uma projecção real, irredutívele definida de forma (pretensa ou assumida-mente) racional.

Se esta estrutura continuista é, de facto,comum aos vários paradigmas até aqui ob-servados, vejamos agora o tipo de relaçõesque a ideologia e a utopia desenvolvem en-tre si. Por um lado, a utopia é incorpo-rada nos vários sistemas ideológicos, na me-dida em que se torna na componente decrença ou de sonho que acompanha a ra-cionalização do programa proposto. Nestamedida, a utopia torna-se num instrumentodas ideologias, pois estas acabarão sempre- de modo complementar - por remeter para

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uma dimensão também imaginária e poética,mas sobretudo mobilizadora (entendendo-se,neste caso, a utopia com um puro prolonga-mento ou aditamento natural do sistema ide-ológico). Por outro lado, se é verdade que aideologia tende a deter monopolisticamente,e de acordo com uma pré-definição dos limi-tes, a própria inventividade utópica -, tam-bém não é menos verdade que, como reserva,a ideologia tende a reservar uma dada auto-nomia para a realização utópica. Este factoacentua-se particularmente em momentos dediscussão ou de dúvida (possível) face aofuncionamento - ou deficiente exequibili-dade - da ideologia. Por exemplo, num dis-curso que reoriente a firmeza ideológica, épossível clamar: - Não foi para isto que, du-rante tanto tempo, lutámos por tais ideais,pois, se nos lembrarmos, sempre defende-mos x, y e z. Estes constituintes (x, y, z) -que deixo aqui em abstracto - traduzirão oelemento imaginário e autónomo que, agora,sustenta a própria revalidação (e reavaliação)do aparelho ideológico em crise. Uma tal au-tonomia é, pois, retoricamente, uma espéciede concordância parcial a que se sucederá aargumentação mais pertinentemente ideoló-gica. Talvez, ao fim e ao cabo, seja apenasuma questão discursiva (em primeiro lugar,sintáctica e retórica) que estabelece a frágile, por vezes, contingente fronteira entre am-bos os códigos.

Outra interpretação, com algumas corres-pondências com as anteriores, é a enunciadapor K. Mannheim (1936: 195/197). Para oautor, enquanto a ideologia é (por razão deser) "estéril"ou estática, já a utopia, por seulado, é animada de uma dinâmica capaz dealterar o estado de coisas real, ou seja, - é es-sencialmente "realizável". A explicação paraeste facto é clara: se a ideologia se atém à ló-

gica dominante de poder - e, portanto, a umcerto imobilismo ou resistência - já a uto-pia, por seu lado, catalisa e potencia antesvalores (não rigorosamente proposicionais),mas que acabam, mais cedo ou mais tarde,por vingar, isto é, por serem integrados - ouadequadamente filtrados - no sistema ideo-lógico. Estaremos, assim, face a Janus bi-fronte: de um lado, a ideologia com a suaactividade preservadora e dissimuladora, ve-lando por uma ordem de valores; por outrolado, a utopia com o seu dom de escape, dedesejo, de crença construtiva. Se a própriaideologia liberal acredita num sistema ma-duro e equilibrado (desenhado, por exemplo,a partir do modelo da "sociedade aberta"deKarl Propper), é porque a utopia liberal sefunda numa noção de tempo onde "a históriaé (vista) como a vida individual, com infân-cia e maturidade, mas sem velhice e morte.A ideia é a de que há um crescimento no sen-tido da maturidade"(P. Ricoeur, 1991:457).O mesmo se poderia dizer da noção de li-berdade (um conceito utópico desde o séculoXVI) que, a pouco e pouco, com resistênciasinevitáveis, foi sendo reinscrito nos váriosaparelhos conceptuais ideológicos (emboracom semantizações, às vezes, opostas - de-vido à monopolização que a ideologia operasobre a inventividade utópica, como aliás jáacima se referiu).

Finalmente, queremos ainda realçar as ho-mologias que se estabelecem entre ideolo-gias e utopias, no advento do pós-primeiraguerra mundial. Se as primeiras se debatemirredutivelmente (na teoria, e também na prá-xis), no quadro da alteridade essencial que ascriou, já as segundas, agora, se passam a des-dobrar em utopias e anti-utopias (do mesmomodo que, na literatura, no cinema e até napintura -, o anti-herói da nova modernidade

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subitamente salta para boca de cena da ima-ginação humana). É assim que o novo séculoemerge: articulando, como atrás se referiu, apolemização entre irreconciliáveis oposições- ideologias versus ideologias, de um lado, eutopias versus anti-utopias, do outro. AldusHuxley, George Orwell, Fritz Lang ou FranzKafka são, nesta medida, exemplos modela-res. Todos eles redescobrem o homem anó-nimo, descrente, errante e fabricante de so-nhos deformados e deformadores dos valo-res dominantes. A integração do sonho e doimaginário na ideologia passa, de repente, aser também - desintegração, distância e dis-simulação paralela (pois, frente à dissimula-ção que a ideologia é, forma-se agora umanova barreira de dissimulação - imaginária -do real). À utopia construtiva opõe-se agora,igualmente, uma utopia devastadora - signo,aliás, dos tempos. Esta tendência de consti-tuição do que designaríamos por alter-ego danova modernidade vai ser fundamental paraa delicada respiração do século XX que, noseu início, não o esqueçamos, - era ainda umterritório onde se depositavam todas as es-peranças do "progresso". Voltaremos a essealter-ego da nova modernidade (pós- 1918),mas apenas depois de nos referirmos às ma-nifestações da cultura da instantaneidade doperíodo que, até agora, temos estado a tratar:o do "grande código"ideológico.

A cultura da instantaneidade deve, no pre-sente contexto, ser compreendida como umconjunto de manifestações que exigem hicet nunc o cumprimento do código, muitasvezes sem programa e direcção claros, ou-tras já com a assunção perfeita de um cor-pus ideológico, outras ainda prolongando ló-gicas anteriores (como é o caso das revo-luções nacionalistas). Mistura de disputautópico-ideológica, o mundo euro-ocidental,

converter-se-á, após 1917/18, num súbitoabismo de antíteses - onde as ideologias diri-gem contendas, instrumentalizam (fragmen-tos de) utopias e onde estas se desdobram,como vimos, em anti-utopias.

Começando pelas revoluções nacionalis-tas, o rissorgimento italiano, teórico e prá-tico (sob o símbolo de Garibaldi), conduziráa uma nova ordem pátria, segundo o modelodo estado-nação, a partir de 1861. Uma ou-tra utopia realizável (aliás cantada amiúdepelos poetas), é a que culmina com a uni-ficação da Alemanha, uma década depois,em 1871, através da célebre entronização im-perial de Versailles de Guilherme da Prús-sia. Outros nacionalismos, Checos e húnga-ros, por exemplo, acompanham este mesmoplano de realização utópica. Entre 1848 e1860, verifica-se, no entanto, um outro tipode manifestações. Em Junho de 1848, qua-tro meses após a revolução de Fevereiro, Pa-ris enche-se de barricadas e os revoltosos,constata-se - "n’ont pas de programme po-litique précis"(M. - L. Heers, 1974:35). Es-tes apenas exigem o "fim da miséria", massão incapazes de definir programaticamenteum alvo, - o que, aliás, virá também a acon-tecer na Alemanha, uma dúzia de anos de-pois (através do movimento que ficou co-nhecido pelo nome de "Nihilismo- termo cri-ado por Tourgueniev em Pai e filho - 1860- ibid.:166/7). Estes nihilistas apresentamigualmente um horizonte de crença muitís-simo difuso: negam a religião, a moral, afamília e a literatura dita "desinteressante".O programa que defendem, no limiar das fu-turas contra-culturas, parece consistir na re-moção de toda a ordem vigente (um poucocomo o que, noutro âmbito mais pós do quepré-moderno, acontecerá com a geração quesucede à segunda grande guerra mundial).

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Não se podem dissociar estes movimentos,no entanto, do anarquismo: Proudhon morreem 1864, mas a produção teórico-prática domovimento é assegurada pelos russos Baku-nine, e Kropotkine, preconizando "uma ac-ção imediata, contra a opressão marxista e ocapitalismo liberal burguês"(ibid.: 28).

A comuna de Paris, entre Março e Maiode 1871, é talvez o auge do instantanismo finde siècle. Na sequência das humilhações so-fridas pela França diante dos Prussianos, Pa-ris fecha-se de novo sobre si mesma e, comoem 1793, o levantamento de massas impõe asua nova ordem. Durante dois meses, a re-volta tenta recriar um estado nacional com-posto por várias comunas, acabando, no en-tanto, a cidade de Paris por se ver irreme-diavelmente isolada. Uma mistura de Blan-quistas, Anarquistas e Jacobinos compõem adimensão sobretudo utópica da sublevação,já que a influência marxista é ainda dimi-nuta. O mesmo já não acontece, em 1905,na Rússia, quando, por oposição à revoluçãodemocrática, os revolucionários marxistas jálutarão pelo desígnio da "ditadura do prole-tariado", numa declarada lógica (ideológica)de classe contra classe, desencadeando umainsurreição em Moscovo que, contudo, é der-rotada.

No entanto, doze anos depois, os aconteci-mentos de Outubro e Novembro de 1917, denovo na Rússia, constituirão, de vez, uma di-visa do próprio século XX. Tal como na Bas-tilha, tudo se torna agora possível e, por issomesmo, uma vasta onda de utopias envolvesubitamente o programa ideológico que subi-tamente se tenta adequar a uma lógica de po-der. Esta exaltação instantanista não é longa,mas percorre uma imensa zona do planeta.Os dez dias que abalaram o mundo de JohnReed e o filme O Couraçado de Potemkine

de Eisenstein (já de 1925) constituem doismarcos (ou, melhor, dois limites) metafóri-cos de purismo revolucionário, ou seja, - deum momento histórico em que o devir é con-tido por uma crença global. A miragem deum destino igualitário é então corporizado,como se se prefigurasse no imediato. No en-tanto, a guerra dos brancos, as progressivasindecisões da nova ordem institucionalizada,o fim dos sovietes livres (de que a revolta deKronstad (1921) é signo já de anti-utopia) esobretudo as depurações estalinistas - con-sumam este movimento instantanista. Comouma bola de neve, pela Europa e pelo mundo,o impacto da ideologia comunista é grandee, em consonância, os partidos aumentam,enquanto a vaga utópica (muito autonomi-zada face ao que no país dos sovietes real-mente se passa) se impõe como libertadorae até inevitável. Os movimentos revolucio-nários tais como Spartacus, Rur (1920), Sa-xónia (1923), o soviete de Hamburgo nessemesmo ano e a própria insurreição de Só-fia, em 1525, entre muitos outros, são dissoexemplo. Tudo se passa como se, numa re-activação dos milenarismos do limiar do sé-culo XVI, o hic et nunc de uma libertação eigualitarismo augurados estivessem prestes aanunciar-se.

Mas a década de vinte produziu movi-mentos opostos, embora, nalguns casos, comparticipação popular muito grande. O fas-cista Mussolini, por exemplo, definiria na-ção como uma "multidão unida por uma sóideia, que é o desejo de existência e depoder"e o estado como "desejo ético uni-versal"(1942:167). Os nacional-socialistasalemães, que vão perversamente transpôras suas raízes a partir do "Volkish ro-mântico", constituirão um radicalismo anti-civilizacional, levados que são por um aber-

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rante determinismo racista e biológico. Unse outros, de modo muitíssimo diferente, bemcomo uma série de países - Jugoslávia, Po-lónia, Espanha e Portugal, entre 1923 e 1926- criam ideologias mais ou menos esquemá-ticas, mas todas enunciadas como eminen-temente salvadoras e capazes de devolverao mundo a instantânea redenção de todosos males (não só, mas sobretudo os causa-dos pela nova ideologia vencedora em Mos-covo). Mundo irredutível e de pura dissimu-lação, onde a utopia se renderia à tal ideiaúnica que Mussolini, um dia, chegou a enun-ciar.

O liberalismo não constrói nenhuma uto-pia neste momento da história. Só depoisda segunda grande guerra mundial (para "eli-minar os vestígios de outra época, o medomútuo e a protecção de pequenos mercadosfechados"(J. Monnet, 1955:45), e, portanto,como reacção à hecatombe e, simultanea-mente, como consequência do datado opti-mismo reconstrutor da Europa, é que umautopia democrática e também liberal se cons-titui, na tradição do que poderíamos desig-nar pela "sociedade aberta"de Propper. Éclaro que nos referimos à utopia da Comu-nidade Europeia que, como refere F. Baumer(1990:266), ao longo dos anos 70, perderávigor. O instantanismo, neste quadro euro-peu do pós-guerra, decorre sobretudo de umhorizonte de iminência que assola a Europa,agora subitamente arredada do seu papel decentro do mundo. J. Derrida, numa confe-rência realizada em Turim, em 1990, disse-o com clareza: "A eminência em 1939"(...)"foi também a de uma guerra e de uma vi-tória, depois das quais uma partilha da cul-tura europeia iria cristalizar-se"(...) "O diade hoje, com a destruição do muro de Ber-lim"(...) "é a reabertura, a desnaturaliza-

ção destas partilhas monstruosas. É hojeo mesmo sentimento de iminência, de es-perança e de ameaça, a angústia diante dapossibilidade de outras guerras com formasdesconhecidas, o retorno a velhas formas defanatismo religioso, de nacionalismo ou deracismo"(1995:121/2). Mas esta "iminên-cia"(com o seu quê de profético) parece jánão comportar uma anti-utopia que reagissea uma utopia afirmativa anterior; neste mo-mento, em que J. Derrida observa a queda domuro de Berlim, o paradigma moderno fun-dado em antíteses puras (utópicas ou ideoló-gicas) já apresenta, de facto, claros sintomasde crise. Dir-se-ia que parecia diluir-se antea instantaneidade das imagens da guerra doGolfo que, no ano seguinte, chegariam à Eu-ropa via CNN, ou seja, de longe, a partir doexterior (mas com o fascínio de estarem já eaqui).

Fosse como fosse, o certo é que estanova modernidade - que se prolonga desde1917/18 - viria, entretanto, ao longo de anos,a criar, no seu interior, um consistente alter-ego (à sua própria consciência antitética,ainda e sempre inscrita pela modalizada no-ção de "progresso"), bem como inovado-ras formas de instantanismo cultural - quenão parecem, pela primeira vez, disputar aemergência imediatista de um "grande có-digo"anunciador de futuras perfeições e har-monias humanas. De facto, o novo tempo- por muitos designado por pós-moderno -de que a Berlim de Asas do desejo de Wen-ders é metáfora - , já vinha, ainda que su-bliminarmente, a ser desenhado no seio daprópria modernidade, desde o fim da própriaPrimeira Grande Guerra Mundial. Até por-que o homem orwelliano, a catástrofe ambi-ental, a cultura da guerra, as novas demogra-fias concentracionárias, a progressiva vacui-

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dade dos "grandes códigos"globalizantes e anovíssima ordem tecnológica, para o bem epara o mal, a isso inevitavelmente pareciamconduzir. Por outras palavras: o que, por ra-tio difficilis, se acabou por traduzir atravésda polarizadora expressão "pós-moderno"éalgo que, com toda a certeza, não acordoudepois do meteoro moderno. Pelo contrá-rio, sempre com ele terá coexistido, como sefosse uma vigília necessária, talvez mesmovigilante.

5 O alter-ego da novamodernidade (pós 1918)

Uma das primeiras manifestações destealter-ego radica numa certa consciência dorelativismo das coisas (ou na assunção deque "não existe uma natureza humana fixa-F. Baumer, 1990:187) e, por outro lado, napercepção de que o homem parece, de al-guma maneira, estar à deriva - após a sú-bita descolagem da nova modernidade. Porum lado, o violento debate entre ideologias,por outro lado, o choque entre utopias e anti-utopias acabariam inevitavelmente por ge-rar um novo estádio residual (teórico e so-bretudo no domínio da práxis) animado deconteúdos disfóricos e cépticos. Como, em1936, Karl Mannheim referira, "a unidadeontológica do mundo ruiu"(ibid.: 66), já quea nova modernidade, ao invés de projectarimaginários abertos e descentrados, antes sedesdobrou numa pluralidade de oposições ir-reconciliáveis (nas quais, em todos os sub-sistemas, como até, por exemplo, no artís-tico, as vanguardas se sucediam, umas contraas outras, em derrogações sucessivas e limi-nares).

Esta nova sociedade europeia - mergu-

lhada agora no súbito espírito da velocidadefáustica e meteórica - era um produto das re-voluções liberais e industriais do século XIX(embora o real agora adquirido escapasse,de facto, aos imaginários utópicos que anteso haviam sonhado). Ortega Y Gasset sen-tiu este desfasamento que, após a década devinte, já se sentia entre um mundo mergu-lhado pela auto-mutilação das vanguardas,das ideologias, das visões utópicas (e ideoló-gicas) que pareciam em vão realizar-se. Esteera, de facto, o primeiro período da históriaque "nada reconhecia do passado como mo-delo", como afirmava o autor em A rebeliãode massas (1930), rematando: "...o homemtornou-se num ser detentor de grande po-der", mas sem saber o que dele fazer, mergu-lhado num permanente "sentimento de perdae de insegurança"(ibid.:37). O expressio-nismo alemão, de regresso aos estúdios eà catárquica geometria das sombras, dese-nhou primorosamente este homem cépticoe preso a um mundo que pareceria dirigidopor uma organização oculta, ou por um qual-quer móbil secreto. Uma tal fatalidade surgeexpressa, entre outros, em filmes de FritzLang como, por exemplo, Metropolis (1926)e Peste em Florença (filme de 1919, alegori-zando o mundo de Savonarola e associando-o ao mundo decadente do próprio presente).

Para E. Cassirer, o autor da Filosofiadas formas simbólicas, o que se havia per-dido era sobretudo uma "energia central",fosse de ordem teológica, metafísica ou ci-entífica, - algo que funcionasse como umponto de referência, ocupando o lugar de um"grande código"globalizante (que começavaa esvanecer-se neste mundo de antíteses e va-zios). Talvez, por isso mesmo, o homem setornasse agora num ser inominável (é esse,também, o nome do romance de S. Beckett)

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e desconstruído numa pluralidade de buscase errâncias, em torno de um qualquer es-pectro de referências (a heteronímia pesso-ana pareceria, aliás, reflecti-lo). O instanta-nismo dadaísta, a acção imediata do surrea-lismo (ao reinventar as sintaxes do mundo,ordenando elementos da irracionalidade, doinconsciente, criando uma anti-utopia religi-osa - de que Buñuel é símbolo - e desenvol-vendo a escrita automática), os movimentosconstrutivistas (ironizando a inteligência dosartefactos maquínicos), os futurismos fasci-nados com a velocidade e com o imediatismodos manifestos e, por fim, Freud que, talcomo Nietzsche, não opera revoluções, "masdeslocamentos de pontos de vista"(E. Noel,1993:153) - constituem, no seu todo, umasequência de recolocação do referente. Ouseja, o presente tornava-se, agora, no prin-cípio e no fim; no momento da vertigemonde, por milagre ou metamorfose súbita,tudo poderia emergir (mesmo o que fossemeramente subliminar); fosse o melhor oufosse o pior.

O triunfo do cinema é o grande sím-bolo deste "deslocamento"da instantanei-dade para a arena absoluta do presente. Aficção torna-se, neste quadro, num rápidoflash que há-de revelar as grandes metáforasdo mundo e todos os desejos e desafios porrealizar (dando corpo a um novo imaginárioque se ancora na fruição de um agora-aqui,de que o star-effect do cinema americano deprodução, pós-1918, é modelo). O fascí-nio, a violência, a cegueira e a desconstruçãodo real serão quatro fragmentos desta novaera, para a qual as grandes urbes construí-ram uma alternativa vida nocturna, feita parao prazer instantâneo (mas ainda não massifi-cado). Este mundo, por um lado riquíssimo,mas abismado pela crise económica e pela

eminência da guerra, já não é o mundo emque Mallarmé concebeu O livro insuperável,mas sim o mundo em que Kafka concebeu aMetamorfose que transforma subitamente oprotagonista num insecto gigante. Para alémde Kafka, também Sartre, já em 1937, na suaNáusea, comparava a liberdade do homem àmorte e, dando corpo à imagem, Francis Ba-con, como antes E. Schiele, pintou a desfi-guração desse homem profundamente alér-gico às regras da nova modernidade. Nofundo, esse homem apontava já para os "não-lugares"(M. Augé, 1997:30) que o novo es-tádio moderno e antitético ia desencadeando.É por isso que, no vazio deixado pela di-gladiação das ideologias e das grandes uto-pias e anti-utopias, esta cadeia manifestatária(ao nível do pensamento, da arte e sobretudodo modus vivendi) traduz, cada vez mais, aideia de um alter-ego vivo, actuante e profun-damente corrosivo face à consciência errantee disfórica da modernidade.

A guerra de 1939-45 é, de facto, o abismoreal do novo paradigma. Nunca antes,numa tal escala, haviam morrido tantos ci-vis. Nunca antes, numa tal escala, se haviamplaneado tão terríveis genocídios. Em nomede ideários perfectíveis. Em nome de mis-ticismos e de auto-representações do corposocial. Não apenas a partir da bizarra Ale-manha hitleriana, mas também ao longo doainda pouco conhecido condado de Estaline.A hecatombe correspondia - de facto - à abo-lição do mundo, na medida em que o mundo,o nosso, é um mundo dos homens (e da pró-pria natureza). Desta guerra irrepetível saemalgumas, novas, utopias: na Europa (já ovimos), a reconstrução reembala um novooptimismo, embora marcado por feridas di-ficilmente sanáveis; a leste, durante poucotempo (até Budapeste ?), essa euforia ainda

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se veste de roupagens codificadas revolucio-nariamente e, nos continentes do sul, as des-colonizações produzem utopias nacionalistasmuito híbridas (já que mescladas com divi-sões étnicas, fronteiras artificiais e alterida-des sócio-culturais muito complexas).

No entanto, é o debate entre a planifi-cação marxista e a democracia liberal (ousocial-democrata) que irá centrar o conflitoainda ideológico, no pós-guerra. Os Esta-dos Unidos e a União Soviética, cujos exér-citos se haviam encontrado em Berlim, em1945, centram agora as atenções e, por suavez, a Europa, desfocada na sua missão devanguarda do globo, tornava-se numa arenainconstruída e artificialmente dividida. Em1985, no último suspiro desta divisão e nomomento em que os conflitos ideológicospareciam ter dado lugar a meros conflitosde regime entre potências - da guerra friaàs variadas guerras regionais -, M. Kunderaescreveu: "A Europa não se apercebeu dodesaparecimento do seu grande foco cultu-ral porque, para a Europa, a sua unidade jánão simboliza a sua unidade cultural. Emque bases assenta então a unidade da Eu-ropa ? Na Idade Média assentava numa re-ligião comum. Nos tempos modernos, numaaltura em que o Deus medieval se transfor-mou em Deus absconditus, a religião cedeu oseu lugar à cultura, que passou a significar aconcretização dos valores mais elevados"(...)"Da mesma forma que, em tempos passados,Deus cedeu o seu lugar à cultura, é agora avez da cultura ceder o seu lugar. Mas a quê ea quem?"(1985:22).

A resposta cabe, toda ela, na questão -muito actual - do definhamento real dos"grandes códigos"que Kundera pressente etraduz através da expressão "dos valoresmais elevados". A perda de protagonismo,

senão a quase anulação do debate ideológico(a par da inércia e da incerteza utópicas) le-vou A. Toffler, nos alvores da década de oi-tenta, a escrever uma (quase) utopia que de-signou por A terceira vaga. O autor fala,talvez pela primeira vez - com grande im-pacto - em poder acentrado: "... as forçasda Terceira Vaga favorecem uma democra-cia de poder minoritário compartilhado; es-tão preparadas para experimentar uma de-mocracia mais directa; favorecem tanto otransnacionalismo como uma devolução fun-damental do poder"(...) "exigem um sis-tema energético renovável e menos centra-lizado. Querem legitimar as opções de al-ternativa à família nuclear"(...) "Reconhe-cem a necessidade de reestruturar a econo-mia mundial numa base mais equilibrada emais justa"(1984:435). Na sua obra, Tof-fler equipara a segunda vaga à nova moder-nidade e cria a imagem de destino para umafutura terceira vaga, onde um novo sentidode comunidade, de estrutura e de signifi-cado deverá ser readquirido, mas de acordocom o primado de que "uma única pers-pectiva do mundo não poderá nunca apre-ender toda a verdade. Só aplicando múl-tiplas e temporárias metáforas poderemosalcançar uma imagem razoável (ainda queincompleta) do mundo"(ibid.:375). Tofflervê na pluralidade e na desintegração socialmassificada crescente, não um alarme, masuma "oportunidade de desenvolvimento hu-mano"(ibid.: 417). A mediação entre o so-cial e a sua representação já não se inte-gra aqui no quadro ancestral imaginário dos"grandes códigos"totalizantes. Um novo sis-tema de códigos temporários e parcelares nasua adequação local, associado à reestrutu-ração global dos modelos energéticos e am-bientais, bem como a nova consciência pro-

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dutora das minorias - constitui uma utopia,ou melhor, uma prefiguração de um mundoem que o instantâneo se torna pacífico e quo-tidiano (passando a advir da própria medi-ação tecnológica), e podendo mesmo con-tribuir para acabar com essa instituição pú-blica da segunda vaga que é a solidão (esuas consequências, como a droga) atravésdo que Toffler advoga ser a "telecomuni-dade"(que, aliás, descreve com optimismo)- ibid.: 368/9).

Esta década de oitenta olha, de facto já,com alguma distância para a geração quefoi gerada pela guerra e que, vinte anosantes, repunha uma derradeira anti-utopia -ou contra-cultura - colectiva (embora comuma característica singular: a forte marcageracional). Entre a catarse de Woodstock(1969) e o Maio parisiense do ano ante-rior, esta juventude agitou bandeiras mes-cladas onde se retratavam rostos de Mao oude Che, fragmentos existencialistas do pós-guerra, silhuetas que reclamavam a imagina-ção ao poder ou o pacifismo absoluto e radi-cal, quando não a simples purificação instan-tânea do novo star-effect do rock e dos paraí-sos artificiais dos alucinogéneos. É uma cul-tura que diz não à desintegração ou incum-primento do arqueo-progresso da moderni-dade e que, ao mesmo tempo, não encon-tra um lugar e imaginário claros onde se in-vestir nessa mesma desintegração. Mas, aocontrário do que ocorrerá nos anos oitenta, éuma juventude que não consegue ainda saltarpara esse novo nenhures imaginário, de onde- ainda que fragmentariamente - se pode jáavistar a modernidade (e os seus variados"grandes códigos"globalizantes) como se deum passado consumado se tratasse.

Sintoma desse olhar espectral (marcadopela tontura de um qualquer fim de história)

foi o que a simbólica exposição-instalação,Les imatériaux (no Centro Georges Pompi-dou de Paris - 1984) no-lo sugeriu; sintomamais alicerçado desse mesmíssimo olhar é,também, o que nos surgiria atavés das refle-xões de J.-F. Lyotard e G. Vattimo. E nãofoi preciso esperar muito mais para ver queo muro de Berlim era removido e que asideologias, enquanto programas demasiadouniformizados, já não correspondiam social-mente a um modelo mobilizável que ditasseum devir perfectível - ou um sentido que seadequasse à marcha inexorável e vitoriosada humanidade. Ou seja, o que fora antesum quase indescortinável alter-ego do está-dio moderno, convertia-se agora numa refle-xão que interrogava, senão punha em causa,os últimos três séculos de domínio do tempoe da natureza. Isto é, a própria modernidade.

6 O quadro pós-moderno

a) Ponto prévio sobre a discussão pós-moderna.

Antes de avançarmos na senda do "pós-moderno", convirá, de algum modo, suspen-der a marcha e pensar. Lendo F.Merrell,no seu Semiosis in the Postmodern Age(1995:2-3), verificamos o que é, de facto,um espectro semântico vasto. Para tal, basta-nos seguir o percurso do autor que, antes deprecisar a sua própria terminologia na obra,decidiu levar a cabo como que um balançodo uso actual da forma substantiva "pós-modernismo". A conclusão é redundande,pleonástica quase - senão vejamos:

..."Postmodernism has con-sequently been at one and the

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same time characterized as (a)20

a questioning of totalizing, hi-erarchized systems - thoughit remains incapable of des-troying them"(Hutcheon,1988;Lyotard,1984); (b) intellectualcontainment limiting openess(Connor,1989); (c) an end to rug-ged individualism (via the "deathof the subjet")(Foucault,1970);(d)and na intersection, even a fusion,of scientific, artistic, and acade-mic attitudes (Hassan,1987)"(...)(e) "the ultimate extension ofcapitalist, consumerist socie-ties (Jameson,1983-84); (f) aform of commercial cooptedcapitalism (Kroker and Cook,1986); (g) a neoconservativereaction curtailing ’unfinishedproject’ of Enlightment-modernistthought and reason (Habermas,1983); (h) a break with, eitheran intensification of, certaincharacteristics of modernism (Fos-ter,1983; Kaplan, 1988)"(...)"(i)a suspension of logocentric dis-course of identity, presence andcertainly in favor of pluralism,discontinuity, and indeterminacy(C.Scott,1990)"(...)"Furthermore,(j) it is variously modeled onarchitecture (Jencks,1977); (l)parody and paradoxes of literaryform (Hutcheon,1988); (m) localnarratives, which will ultima-tely triumph over monolithicgrand narratives (Lyotard,1984);

20As diversas alíneas são criadas para nós, no sen-tido de ordenar a lógica taxinómica da citação.

(n) pragmatically designedcommunities of interlocutors(Rochberg-Halton,1986); (o) andthe sign’s elevation to the statusof ’hiperreality’, whereby it be-comes more ’real’ than the ’real’(Baudrillard,1983). It has evenbeen seen to mirror (p) the declineof Western civilization (Toynbee1954), thus presenting virtuallynotihng new (Graff,1979)".

Não vamos, agora e aqui, analisar as com-plexas variantes, associadas ao termo "pós-modernismo". No entanto, - da denúnciado totalizante, à clausura do sujeito; da vi-tória dos modos sobre a moda, à contra-cultura moderna - de românticos a ecologis-tas, passando por Nietzsche; do não conti-nuismo histórico a simples género, signo dedecadência ou hipertrofia do real - tudo pa-rece, com efeito, preencher o lexema "pós-modernismo". Seja como for, o exemplofuncionará, pelo menos, como uma espéciede sintoma, a partir do qual nos será possívelextrapolar, concluindo.

Quanto à natureza do sintoma, situemo-nos, desde já, no quadro das profundasmutações do mundo das últimas duas dé-cadas e, por consequência, como refereA.Giddens (1995:2), na novíssima "desori-entação"teórica que advém - "da sensaçãoque muitos de nós experimentamos depoisde ter sido apanhados num universo de acon-tecimentos que não compreendemos inteira-mente e que parece, em grande medida, es-capar ao nosso controlo. Para analisar comose chegou a esta situação não é suficiente amera invenção de novos termos, tais comopós-modernidade"(...)"Para além da moder-nidade"(...)"podemos divisar os contornos de

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uma ordem nova e diferente, que é ’pós-moderna’; mas isto é muito distinto da-quilo que muitos chamam actualmente "pós-modernidade". Mais do que continuar a pro-blematizar a nível da expressão, o autor pre-fere, portanto, sublinhar uma série de "des-continuidades"de conteúdo que se operaramna ordem da modernidade, nomeadamente -a "rapidez da mudança", a rede de "interli-gação global"criada e a errância no "campodas instituições"(caso do estado-nação, hojeem crise). É nesta ordem de ideia que, cre-mos, A. Giddens prefere a forma adjectivapós-moderna - ou seja, imputável a ocorrên-cias particulares - e não qualquer forma subs-tantiva abstracta (e universal) tal como "pós-modernidade"ou mesmo "pós-modernismo".

Diga-se o que disser, na discussão que éainda actual sobre a matéria, o facto é que,face a conteúdos corrosivamente novos quese construiram no mundo, a partir dos idosde 80, uma panóplia de novas formas ex-pressivas surgiu no sentido de as tentar tra-duzir. É este o cerne da questão, em termossemióticos. Por outras palavras, e no quadrodo que U.Eco definiu como "modos de pro-dução dos signos"(1975), estaremos, nestecaso, diante de um exemplo claro de ratiodifficilis (isto é, de um "conteúdo para o qualnão existe um tipo expressivo pré-formado-1994: 41) e, mais concretamente, no âmbitode uma "invenção"(caso limite de ratio diffi-cilis), ou seja, - "expressão inventada no mo-mento em que se procede, pela primeira vez,à definição do conteúdo; a correlação não é(então) fixada por um código, mas apenascom condenda"(ibid.:46). Mais do que umadiscussão sobre as formas de conteúdo queredesenharam o mundo, nos últimos anos,com uma notável celeridade, a "questão pós-moderna"tem sido, antes de mais, portanto,

uma disputa sobre as modalidades de pro-dução sígnica. Dito isto, passemos então àanálise do quadro que, apesar de tudo, de-signamos por "pós-moderno"; a mesma nãoserá exaustiva, porque traçada ao serviço dospropósitos específicos do presente ensaio.b) Do pós-moderno, explicado a si próprio.

Assim como, na literatura apocalíptica, ospersonagens efectuam viagens aéreas paravisitar os vários céus do mundo divino, re-tirando daí um modelo que deverão comu-nicar ao ici-bas humano, também J. F. Lyo-tard - de A condição pós-moderna -recorreuma instância segunda para a adequar, en-quanto modelo, ao vínculo social da nossasociedade, tida como pós-moderna. Essainstância segunda é (talvez paradoxalmente)a ciência. A razão é simples: ao contrá-rio da lógica da modernidade, baseada emcódigos que o autor define como "grandesnarrativas"(entendamos aqui, no âmbito doque temos designado por "Grande código",ideias ou valores globais que legitimam o po-der e se destinam a toda a humanidade, taiscomo a ideia de progresso ou de emancipa-ção progressiva do homem), a ciência, de persi, tornou-se num sistema aberto "em que apertinência do enunciado é que dá origem aideias, ou seja, a outros enunciados e a outrasregras de jogo".

Assim sendo, "na ciência não há metalín-gua geral na qual todas as outras possam sertranscritas e avaliadas"(1989:128). A ciên-cia, nesta perspectiva, seria um campo cria-dor dos seus próprios códigos, nunca gene-ralistas, mas sempre locais, nunca definiti-vos, mas sempre provisórios. É este "anti-modelo"da "pragmática científica", baseadona "sistemática aberta"(ibid.: 120), e tendocomo princípio a diferença e não o consensoou a norma (opondo-se, portanto a quais-

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quer códigos globalizantes) que J. F. Lyo-tard descreve através da noção de "paralo-gia"(ibid.:121).

Tentando adaptar a paralogia à dimensãosocial, o autor continua: "Embora a prag-mática social não tenha a simplicidade dadas ciências", o certo é que o modelo des-tas pode corresponder à evolução das "inte-racções sociais"da pós-modernidade, "ondeo contacto temporário suplanta de facto ainstituição permanente em matérias profissi-onais, afectivas, sexuais, culturais, familia-res, internacionais, assim como nos assuntospolíticos"(ibid.: 131).

Gianni Vattimo (1991), em a Sociedadetransparente (1991), corroboraria estes mes-mos facto, ligando-os à explosão das no-vas dimensões comunicacionais da contem-poraneidade (aliás, tal como J. F. Lyotardque já relacionara as ciências cognitivas,as linguagens e a informação, para acen-tuar a crescente "incidência das transforma-ções tecnológicas sobre o saber- 1989:15-16). Estas novas dimensões comunicaci-onais, metaforizadas pelo epíteto "telemá-tica", teriam, segundo o autor, sido respon-sáveis pela dissolução dos "pontos de vistacentrais"(ibid.:13), os quais terão sempre ca-racterizado a estrutura de todos os "gran-des códigos". Estaríamos, assim, não sópara além da modernidade, mas também paraalém da história (visto, neste caso, comoalgo unitário, submetido a um devir linear eunidireccional). G. Vattimo teorizará ainda adisseminação de centros (como Lyotard queopõe central e local), a noção de rede disse-minadora de centros locais (de acontecimen-tos) e a sua imprevisibilidade no quadro dopróprio sistema.

De certa forma, Michel Serres (s/d:9) já ohavia referido nos anos sessenta: "...da linea-

ridade à tabularidade aumentamos o númerode mediações possíveis, tornando mais fle-xíveis as últimas. Já não existe apenas umcaminho, mas sim um dado número, ou umadistribuição provável". Esta não programa-ção global, ou a inevitabilidade de as múl-tiplas ocorrências se sobreporem (na sua in-dividualidade própria e efémera) a uma ló-gica geral pré-determinada (o "grande có-digo"), - coloca-nos, assim, no limiar deuma nova era. As manifestações desta erajá não se opõem a, como no alvor da moder-nidade (construído, então, a partir de auto-representações sucessivas de antíteses), masapõem-se a. Dizemo-lo no sentido de agre-gar ou adaptar, pois a nova rede em quea pós-modernidade subitamente se redesco-bre - após o definhar gradativo dos gran-des códigos, entre os quais as ideologias -é um território em que a cultura da instan-taneidade também subitamente se descobre,a sós, sem ter já que disputar a natureza deum grande código superior, geral e universal(como acontecera em mais de três dezenasde séculos).

O hic et nunc pertence agora ao presentee a mediação tecnológica parece garanto-lo- ao nível do saber, da comunicação e atédo afecto (do cinema à publicidade amorosadas nets) - neste mundo acentrado e mutá-vel que estará por definir. O que o carac-teriza, com efeito - além do cepticismo ouangústia latente a que J.Derrida se referia jáem 1990 e da novíssima "invenção"(U.Eco,1994) designada por globalização21-, é umainovadora práxis da instantaneidade. É a esseaspecto que passamos a referir-nos, antes de

21Ver Adenda-limite sobre esse novo produto do ra-tio difficilis actual: "a globalização".

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nos aproximarmos dos nossos "percursos fi-nais"(também eles, claro, provisórios).c) Novos instantanismos.

A identificação entre o absoluto e o ime-diato sempre caracterizou a cultura da ins-tantaneidade. Mas, agora, o absoluto - talcomo no início do cinema - passou-se a fun-dir com uma magia imediatista (já não sob aforma de pura ilusão visual e stroboscópica,mas antes sob a forma de formulação cien-tífica), que A. Bazin, de qualquer maneira,identificou com um desejo humano de "per-petuação"(1975:15). Nesta linha de ideias, aviagem de um buraco negro até outro pode-ria proporcionar a um qualquer e hipotéticoviajante encontros imediatos noutro espaço-tempo (ou época), de acordo com teoriascomo as de F. Durham e R. Purrington emThe Frame of Universe: A History of Physi-cal Cosmology (1983-I:230). Mas não só.Tal como é prefigurado na teoria matemá-tica de René Thom (que H. Schwartz ironica-mente analisa em Os finais de século, 1992),nos tempos que correm, - "parece razoávelque as coisas e os seres possam aparecer(ou desaparecer) num piscar de olhos"(ibid.:263).

Este imediatismo, mergulhado no desejoabsoluto do homem se rever no impossível (eque está na génese da própria ideia de foto-genia cinematográfica - E. Morin, 1956:25),encontra a sua forma, talvez mais realiza-dora, na noção de fractal, ou de "morfo-logia do amorfo", - que aposta na desco-berta de uma ordem em "sistemas que pa-recem não ter nenhum tipo de ordem"(B.Mandelbrot, 1982:3). Como comenta H.Schwartz (1991:262-3), "em sequências nãolineares de fenómenos", aparentemente ale-atórios (como "o irritante gotejar de umatorneira, ou o drapejar de uma bandeira ao

vento"), parece seguir-se uma "estética docaos", ou seja, a passagem da desordem à or-dem seria gerada através de pontos de con-tacto instantâneos, imediatos, numa palavra:fractais.

Esta lógica que irrompe na metamorfosecinematográfica e que se espelha, na ciên-cia, através, por exemplo, desta miríade dosburacos negros, da ordem do fractal ou da"cúspide cósmica"de R. Thom consagra umlugar de realce para o instantanismo. Comose o absoluto tivesse encarnado na realidadeque, subitamente, o saber científico revelouna sua essencialidade do real mais íntima;como se esta revelação da intimidade nosmostrasse que toda a natureza vive - na ver-dade - em estado de permanente e instantâ-nea mutação; como se o absoluto e o instan-tâneo se tivessem finalmente reconciliado.

No momento em que tomamos a consci-ência da consumação de uma tal reconcilia-ção histórica, deveríamos, no mínimo, apon-tar os responsáveis, no fundo, - os sucessoreslegítimos do "grande código". Dir-se-á, comtoda a naturalidade que, quer o suporte, quera linguagem, quer até o fim em si mesmo queordena esta pesquisa actual tem um nome:a tecnologia. É do papel da mediação tec-nológica na continuidade de uma cultura dainstantaneidade, nas sociedades contemporâ-neas, de que trataremos, para já, na próximasecção - "percursos finais".

7 Percursos finais

a) Primeiro percurso.A primeiro percurso remete-nos inevita-

velmente para a relativização da própria no-ção de real que a nova era, dita pós-moderna,

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criou. Se, para Hegel, "o real era racional"22

(quer isto dizer que perante a imensa quan-tidade de informações de que o passado his-tórico põe à nossa disposição, é necessáriooperar uma selecção baseada em critérios de"conceito"e "inteligibilidade"), logo a racio-nalidade exige que se faça do real, uma se-lecção, um recorte, uma amostra. Essa no-ção é também a que, numa outra perspectiva,a da semiótica pragmática de C.Peirce, apu-ramos a partir da noção de ground of repre-sentation (ou "atributo de um objecto, na me-dida em que este objecto é seleccionado deuma certa maneira e apenas alguns dos seusatributos são considerados como pertinen-tes ..."(1978-I:292) numa tal representação.Numa ou noutra óptica, ambas irremediavel-mente díspares na acepção, tempo e metodo-logia que perspectivam, o real (tornado emsimples fragmento relevante) é sempre uma

22Cite-se Émile Noel em entrevista a François Châ-telet (Uma História da razão,1992/3):"Afirmar que ’oreal é racional’ é dizer: diante da massa de informa-ções prodigiosa de que dispomos a respeito do pas-sado da humanidade, somos obrigados a operar umaselecção, selecção que se efectua graças ao instru-mento do conceito e à busca da inteligibilidade, afas-tando os acontecimentos sem importância para deixarsubsistir apenas como acontecimentos reais os úni-cos que contam, os que entram no âmbito do con-ceito"(133)"’O racional é real’ - a afirmação recíproca- significa que, a partir do momento em que um acon-tecimento se impõe com força suficiente, como causade outros acontecimentos, deixamos de poder pô-lode parte. Devemos tentar dar a sua razão. Para isso,diz-nos Hegel, retomando uma frase da sua juven-tude, precisamos de forjar conceitos inconcebíveis, ouseja, inventar conceitos novos. Tal é, essencialmente,a função da dialética."(ibid.:133). Interpertemos estacitação, no entanto, tendo em conta que, para Hegel, ahistória da humanidade é guiada por uma razão "ima-nente", nada tendo a ver, contudo, com a "Providênciadivina".

representação (decorrendo esta, por sua vez,sempre de uma qualquer selecção).

Para certos autores, caso de F. Gil, a assun-ção entre as ideias de real e de representação- ao "fornecerem o quadro formal da pos-sibilidade de pensar o mundo", constituemmesmo um par de noções absolutamente "an-teriores"a todas as outras (1984:38). ParaA. Whitehead (1938:113), influenciado pelodiscurso quântico, e, posteriormente, reto-mado por W. Iser (1978:68) -, os eventossão um paradigma da realidade, pois "desig-nam um processo e não se constituem ape-nas como meras entidades discretas". Cadaevento representará, assim, o ponto de in-tersecção de uma variedade de circunstân-cias, embora as circunstâncias igualmente al-terem a natureza do evento. Este processo"transcende sempre", seguindo um tal pontode vista, as fronteiras que limitam o evento"in the continuous process of realization thatconstitutes reality". É patente, aqui, uma óp-tica de transitoriedade articulada com o "sin-signo"(segundo C.Peirce), ou seja, "combi-ned with actual unity"(ibid.:113).

Os critérios de selecção (do real) aquiaferidos são, ou racionais (porque baseadosnuma dada inteligibilidade, segundo Hegel),ou, de certo modo, naturais (porque funda-dos na natureza do próprio ground, teorizadapor Peirce), ou ainda circunstanciais (por de-penderem de um processo sintáctico muitocomplexo, segundo A. Whitehead). Trans-pondo agora para a mediação tecnológica, ouseja, para o mise-en-abîme que a represen-tação (ou virtualização) tecnológica constróia partir do real, verificamos que nos debate-mos com uma questão quasi-ontológica. Norecente livro de J. Derrida (1996:72) refere-se que num "mundo dominado pela lei da vi-sibilidade mediática, o que foi reduzido à in-

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visibilidade ou ao silêncio não tem outro re-gime de existência: pura e simplesmente nãoexiste".

Ou seja, os critérios da representação le-vam a que o recorte das ocorrências se pro-cesse de acordo com intencionalidades im-previsíveis (e cada vez mais "acentradas",segundo a expressão de G. Vattimo), sendoessas mesmas ocorrências, depois, reade-quadas a uma ordenação e repetição deter-minadas, acabando por criar-se nos espec-tadores autênticos "horizontes de expectati-vas"(H. Jauss, 1978), não próprios de umaépoca (como se advogava na "teoria da re-cepção"de H. Jauss), mas de natureza corro-sivamente efémera, às vezes com a duraçãode pouco mais de um dia. Tal explica-se, por-que, após um período dominado pela "soci-edade do espectáculo", em que a simulaçãomediática dos acontecimentos fez história, -os anos oitenta e noventa acabariam por mer-gulhar definitivamente numa tremenda infla-ção de discursos, imagens e eventos (emboracriados a partir de eventos realmente existen-tes), de tal modo que acabaram por extrava-sar - ou transbordar (H.-P. Jeudy, 1995) - opróprio real (referencial), virtualizando as-sim, através da vertigem imediatista, a lei-tura do mundo.

Por isso, é natural que, em cada dia quepasse, a escolha de N eventos suscite umacatadupa de outros (por conotação e sobre-tudo por metonímia), acabando o referidoflexível "horizonte de expectativas"por inevi-tavelmente se ajustar a um tal feixe (de even-tos) de durabilidade mínima. Em cada dia é,pois, possível mobilizar uma vastíssima po-pulação à volta de um dado feixe N de even-tos; e é o próprio artefacto tecnológico que,além de criar a expectativa, o facto e o dis-curso, acabará, no dia seguinte, por retomar

o ciclo com um outro renovado feixe N deeventos. A ansiedade discursiva sobrepõe-se, deste modo, a uma imaginária ansiedadeverificada na própria realidade que, cada vezmenos, se revê na mediação tecnológica quediariamente sobre ela opera. Exemplo disso- entre muitos outros mais arojados - é o casodo aumento de crimes em Évora - em Janeirode 1996 -, tratado obsessivamente durantecerca de 48h pela rádio, imprensa e por al-guma opinião, a nível nacional, apenas por-que dois repórteres locais de televisão deci-diram colocar em noticiários de grandes au-diências um passeio que realizaram atravésde um bairro da cidade, comentando um des-falque numa pequena loja e um episódico as-salto a uma casa.

A instantaneidade da visibilidade mediá-tica, a simples propagação de um fluxodiscursivo torna-se, deste modo, mais im-portante do que propriamente a (razoabi-lidade da) questão dos critérios objectivosde representação. Por outras palavras: aimpulsão/compulsão diária (sobretudo dasimagens disponíveis em centros emissores)tende a sobrepor-se à ponderabilidade da es-colha, de modo que os critérios não se ba-seiam já, nem numa racionalidade (pura),nem em critérios ditos naturais e muitomenos numa pré-determinada complexidadesintáctica. A realidade acaba assim porse converter numa selecção quase impul-siva/compulsiva, criada a partir da pressão deum múltiplo e aparentemente informe caudalde imagens, discursos e informações postosà disposição do suporte tecnológico.

Isto quer dizer que, da razão imanente dahistória hegeliana que, duma forma ou dou-tra, assistia ao historicismo do "grande có-digo- passamos agora à instituição do su-porte tecnológico como um fim em si mesmo

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(independentemente do real existente que, aodeixar de existir, porque não seleccionado -cf. J. Derrida, 1996 -, se transforma numaespécie de "não lugar- retomando a ideia de"simples passagem", tal como, por exemplo,um elementar viaduto ou aeroporto, na ex-pressão de M. Augé - 1997:30). A ontolo-gia deste "não lugar"será, hoje em dia, nofundo, o único espaço confinado por exce-lência à imaginação (pura), já que a realidade(virtual) do suporte tecnológico conduz-nosmais instantaneamente à vertigem da ima-gem, do que à imaginação.

Depois de termos reavaliado a própriaideia de real, dir-se-ia que, hoje em dia, soço-bram duas culturas do real: uma cultura ins-tantânea (massificada, ligada à explosão daimagem e a uma compulsiva hermenêuticadiária) e uma outra cultura ligada à afirmaçãodos sentidos que escapam à omnipresença daimagem material (e que se encontra nos tais"não lugares"a que nos referimos; é o caso decerta literatura, do intimismo dos afectos, dasolidão e, como referiu J.-P. Chavent (1996),de noções como a saudade). A primeira des-tas culturas (que molda e renova, hoje emdia, a própria noção de real) prolonga a tra-dição de uma ancestral cultura da instanta-neidade; a segunda prolonga antes uma dadacultura utópica (justamente a que antecede ofim do século XVIII - antes de a prática utó-pica ter ancorado no tempo - e que se carac-teriza pela enunciação aberta de um nenhu-res puro).

Curioso é verificar que, de um lado, a re-miniscência utópica e, do outro, a reminis-cência instantanista, agora se libertaram umada outra, tendo-se autonomizado, cada uma,em campos completamente à parte (diria,até mesmo, quase opostos). Assim sendo,a continuidade utópica deixa de ser auto-

flageladora (como o havia sido na nova mo-dernidade, após 1918, baseada que era noconflito utopia/anti-utopia), para agora se re-encontrar no topic exclusivo da imaginaçãoafirmativa. Por seu turno, a instantaneidadeliberta-se agora da ansiedade (ou impaciên-cia histórica) que sempre a ligou aos "gran-des códigos"totalizantes, tornando-se pací-fica, quotidiana e recriando a realidade comose esta fosse uma cascata em permanentemîse-en-abime.b) Segundo percurso.

O segundo percurso diz respeito a uma ca-racterística comum aos "grandes códigos": ofacto de, todos eles, transcenderem a reali-dade humana (por a comandarem e projecta-rem - através da idealização ou do programa- ou, por outro lado, por a distorcerem comfins de legitimação). Perguntamos: o que nosrestará, hoje, em tempo de múltiplos códigose de regime acentrado, dessa transcendênciaespecífica?

Vimos que imaginação (pura) e ins-tantaneidade são dois devires - ou duascontinuidades - que tendem, na "pós-modernidade"dominada pela mediação tec-nológica, a autonomizar-se. A imaginação,esse espaço de reserva que o sistema remetepara uma espécie de utopismo de nicho, di-verge, portanto, profundamente da imagem(móbil fundamental da instantaneidade reali-zada pela tecnologia contemporânea). Con-vém, de facto, estabelecer as diferenças entreo âmbito de ambas. Sigamos, então, o raci-ocínio de Husserl. A imaginação, segundoo autor da fenomenologia, é, com efeito,tripartida: pelo seu carácter intuitivo (por-que a imaginação "fait voir l’object, qu’ellemet en contact avec lui - d’une manièrequi lui est propre et qui n’est certes pas lamanière perceptive- M. Saraiva, 1970:248);

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pelo seu carácter de presentificação (pois, àpresença corporal e actual "de l’object perçufait place, dans l’acte imageant, une quasi-présence dans laquelle s’établit une commu-nication sui generis entre la conscience et cequi a été antérieurement perçu- ibid.: 248);e pelo seu carácter de neutralização (pois aimaginação é também concebida como "pas-sage à l’irréalité"; ou seja, a imaginaçãodesencadeia em nós uma consciência "quiopère le passage à l’irréalité, à condition dela considérer comme une conscience parmid’autres - ibid.: 250/1). Ou seja, a imagi-nação, por natureza, consegue libertar-se dainevitabilidade do objecto que observa (podeaté reinventá-lo, recriá-lo - como se fosseum nenhures puro) e, por isso, empreendeuma fuga à realidade, neutralizando-a, masnunca deixando, apesar disso, de constituir-se como uma das "essências"da consciênciahumana. A imaginação nada tem a ver, pois,nesta perspectiva, com níveis subliminares- inconscientes ou subconscientes - que nospovoem.

A imagem, por seu lado, enquanto "du-plicata icónica e actual das aparênciasdo real"(L.Carmelo,1998b:1-2)23, insere-se

23"Não é possível falar em imagem, sem enten-der que a imagem é uma coisa e que o seu funda-mento - legitimador e anterior - é uma outra coisabem diferente. Vamos por partes e utilizemos, parajá, a leitura que U.Eco faz da vastíssima obra deC.Peirce, o fundador da semiótica, no seu último li-vro, aliás ainda não traduzido em Português, Kant el’ornitorinco (1997). Para C.Peirce, retoma U.Eco nasua interpretação, o ícone é um fenómeno que fundaem nós a capacidade de nos apercebermos da exis-tência de semelhanças. Esta capacidade anterior quenos possibilita a apreensão do que é semelhante podesubdividir-se, por sua vez, em diagramas (relações en-tre elementos, através do reconhecimento proporcio-nal das partes); em metáforas (relações entre elemen-tos, através do reconhecimento de similaridades entre

constituintes essenciais das partes) e, por último, emimagens (relação entre elementos, criada pela dupli-cata das aparências do real, através de modelos). Istoquer dizer que o reconhecimento de um gráfico ou dealguns traços rupestres (diagrama), do verso de Ca-mões - "Amor é fogo que arde sem se ver"(metáfora)e, por fim, da imagem fotográfica ou mental de umpinguim só se tornam possíveis porque, enquanto se-res humanos, estaremos munidos de uma capacidadedesignada por icónica que é anterior.

A definição de ícone poderá, portanto, assumir duasinterpertações: uma cognitiva, vista na sua naturezapura, primária, como potencialidade de "likeness"euma, relativa ao ser, que C.Peirce traduziu comosendo a disponibilidade, também potencial, de qual-quer coisa a "incastrasi"noutra coisa. Quando fala-mos de capacidade anterior, falamos de tudo o quenos povoa sem que, no momento, esteja activo ou sejaactual; por outras palavras, ao referirmo-nos a capa-cidade anterior, referimo-nos, claramente e tão só, atudo o que é potencial em nós, seres humanos. Esteconjunto de potenciais corresponde ao que C.Peircedesigna por "firstness", do mesmo modo que tudo oque é actual e está agora, neste momento, a ocorrer,corresponde ao que o autor designa por "secondness".

No entanto, à medida que a espécie humana acu-mulou experiência e conhecimento da natureza e de siprópria, verificou que as ocorrências actuais se repe-tem e podem até, naturalmente, tornar-se previsíveis.Esta capacidade de prever eventos - a maior parte dasvezes de modo involuntário - atavés do reconheci-mento de modelos, designa C. Peirce por "thirdness".Deste modo, podemos dizer que o ícone é uma mo-dalidade potencial - portanto, da "firstness- que nospermite reconhecer a semelhança, enquanto que, poroutro lado, a imagem só poderá existir na medida emque é actual e presente, na nossa consciência percep-tiva, ou seja, quando corresponde à "secondness".

Por outras palavras, tentando sintetizar, uma ima-gem apenas existe quando está diante de nós, na suaactualidade existencial e, por outro lado, na medidaem que comporte elementos reconhecíveis - devedo-res de modelos anteriores já experimentados - atravésde uma complexa duplicata das aparências do real.Por exemplo, se olho para uma pessoa, ou se vejo,num filme, árvores, céu e estrelas, enquadrados emlinhas e planos adquiridos (codificados), sei reconhe-cer o que vejo - ainda que não ponha intelectualmente

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num mundo tecnológico que trabalha ouopera - como tendo um "fim em si"mesmo(E. Noel, 1993:159). Se é um facto quea realidade motiva a imagem, esta, por seu

essa questão - justamente porque existem modelosculturais que o possibilitam. Na obra de U.Eco dopassado Outono, o autor chega a provar o modo comoMontezuma percepcionou um cavalo, pela primeiravez, ou como é que os ocidentais, em 1799, encara-ram, também pela primeira vez, um ornitorinco; peladescrição, minuciosa e apurada, verifica-se, de facto,que, face à inexistência de prévios modelos de expe-riência que os enquadrassem imageticamente, quer ocavalo para os índios, quer o ornitorinco para os ingle-ses acabariam por ser descritos, através da sua inscri-ção noutros modelos contíguos existentes e possíveis.Curioso é o facto de esta interiorização perceptiva deobjectos, até então desconhecidos, por via da convo-cação de modelos tidos como os mais ajustados e pró-ximos, acabar por ser consequência de um inevitávelestabelecimento de semelhanças que percorre o ho-mem; ou melhor ainda: que é característica essencialdo homem.

De facto, antes de os protótipos da experiência acu-mulada e da categorização actuarem, ou seja, antes dese dizer que o sol é um astro, ou um planeta do génerotal e tal; ou um corpo imaterial que gira em torno daterra ou da lua ou de si próprio, - já lhe pré-existia apercepção de um mero e simples corpo luminoso, deforma circular, que se move no céu, constituindo-secomo objecto familiar, antes mesmo de se converterem objecto liguística e retoricamente designado. Estaevidência é, ao fim e ao cabo, a mãe do momento icó-nico, isto é, - o reconhecimento autêntico, anterior,verdadeiro, íntimo, não baseado ainda em fundamen-tos adquiridos, e identificando-se com algo que estáali como é -, mas indescritível ainda no discurso hu-mano.

Conclusão: a imagem é uma forma de reconheci-mento actual, baseada quer na aptidão potencial, an-terior e icónica de estabelecer semelhanças, quer nosmodelos com que a reprodução aparente do real é in-terpretada. Extrapolações paralelas poderíamos esta-belecer para o caso do diagrama e da metáfora - igual-mente sub-divisões dos ícones, segundo C.Peirce -mas não é esse o objecto com que, hoje e aqui, nosocupamos (L.Carmelo,1998b:1-2)

lado, reconstrói-a com um ritmo e uma sin-taxe próprias, extravasando-a (como vimos).Ou seja, a noção de referente põe-se, nesteâmbito, do mesmo modo que os teóricos daestética o conceberam: como sendo intrín-seco e jamais exterior ao objecto estético (jáque o objecto estético, embora possa reflectiro mundo, acaba sempre, e em primeiro lugar,por criar a sua própria realidade autónoma,bem como os seus referentes específicos -no que P.Guiraud designou por "imagem-objecto- 1973:94). É por isso que se podedizer que a sintagmática imagética que, hojeem dia, nos convive é, toda ela, esteticizada(já que objectivamente se assume como umarealidade paralela, garantindo-nos, por outrolado, a instantaneidade icónica e metafóricaque nela - e apenas nela - reside, e não na rea-lidade quotidiana e factual que nos envolve).

A. Rodrigues, no seu capítulo sobre a es-teticização da experiência (em Comunicaçãoe cultura - a experiência cultural na era dainformação - 1993:112) refere que, na arte,hoje em dia, o que conta é o "seu valor-efeito, o seu valor de puro acontecimento,a performatividade de uma acção estrategi-camente desencadeada que se esgota na suaprópria realização"(embora aí se jogue comreminiscências "da mais arcaica experiênciaestética"). O mesmo poderia ser dito emrelação aos mecanismos difusores de ima-gem, rarefeitos na sua referencialidade, es-teticizados na sua autonomia em relação aoreal, ou seja, - existem, tão só, para (instan-taneamente) se esgotarem, no início e no fimde cada feixe de eventos que, diariamente,nos devolvem. É evidente que, postas as-sim as coisas, a imagem acaba por inevita-velmente reter alguma dose de neutralização,de acordo com o pressuposto de Husserl, ou

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seja, - uma irrecusável passagem à irreali-dade.

Este imediatismo tout court é, no entanto,filtrado por parâmetros da imaginação, em-bora estes, naturalmente, acabem por ter di-ficuldades em resistir à compulsão, ou me-lhor, ao fim em si, de que a tecnologia é,hoje em dia, paradigma (como dantes o fo-ram todos os "grandes códigos"totalizantes).O que, no presente, transcenderá a realidadehumana, no sentido de a legitimar ou de asonhar, - era essa a nossa questão - é, em pri-meiro lugar, a imaginação pura (ou o já re-ferido utopismo de nicho) e, por outro lado,o próprio referente intrínseco que a imagemveicula, já que, na sua indizibilidade e opa-cidade, ele, de qualquer maneira, nos reata eactualiza domínios simbólicos antiquíssimos(tal como hierofanias e teofanias acumuladaspelas comunidades). Aliás, como K. Man-nheim há muito adiantou (1936:262), a com-pleta eliminação de elementos transcenden-tes à realidade humana conduzir-nos-ia a umobjectivismo ("Sachlichkei") que "significa-ria, em última análise, o declínio da vontadehumana". O que seria impensável, diga-se.c) Terceiro percurso.

O terceiro percurso remete-nos, não jápara o presente, mas sim para o futuro. Vi-mos que a cultura da instantaneidade convi-via muito de perto com o "grande código"noinício dos grandes ciclos. Por exemplo, du-rante o período profético (no início da re-aleza judaica) a voz de Deus chegava, naprimeira pessoa, ao profeta que, quase ins-tantaneamente, comunicava a Sua mensa-gem a interlocutores terrenos privilegiados(legitimando-se assim o presente, sempre emligação com o futuro). A impaciência face aeste estado de coisas viria, no entanto, a au-mentar nas vésperas do período apocalíptico.

Um outro exemplo remete-nos para a pri-meira fase da modernidade (depois dos finaisdo século XVIII), quando o nenhures utó-pico, ao ancorar no tempo histórico, desen-cadeou uma cultura da instantaneidade "re-alizável"(K. Mannheim, 1936) - até ao mo-mento em que os códigos ideológicos pro-gramáticos a manipularam e acabaram pormonopolizar, de acordo com as suas lógicasespecíficas.

Nos tempos que correm, verifica-se que ainstantaneidade, fundada e enformada agorana difusão tecnológica de imagens (e dosmais diversos sinais não taductíveis em ima-gem) - convive, não já com o "grande có-digo"(porque a sua razão de ser se esfumou),mas antes com uma pluralidade de códigosque regem o actual estado acentrado da co-municação universal. Sem querer enunciarpremonições, é bem possível que, no futuro,esta excessiva proximidade entre a cultura dainstantaneidade e os códigos que a regem sevenha a alterar (como também aconteceu nosexemplos acima transcritos, isto é, nas vés-peras do período apocalíptico e no adventodas ideologias).

Um tal (possível) estado de coisas fariacom que o actual desejo de realização ins-tantânea - que a tecnologia hoje permite, demodo aberto e só aparentemente democrá-tico - amanhã se viesse a fechar plural e gra-dativamente, através da crescente interven-ção de vários códigos e regras particulares (atendência na internet, aliás, já se vai notando:há cada vez mais acessos que dependem deassinaturas, enquanto se nota um nítido in-cremento de intra-nets fechadas - tendênciaessa que é similar no caso dos satélites e ca-nais difundidos). É possível que, a breve tre-cho, a revolta e a impaciência venham a ad-quirir novos moldes, até porque, em certas

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culturas híbridas actuais (onde se constata oconvívio entre desfasadas realidades escato-lógicas e ideológicas e, por outro lado, a li-nha da frente das tecnologias), como acon-tece no sudoeste asiático e nas Coreias, essadisforia e essa revolta são já claramente no-tadas no quotidiano.d) Quarto percurso.

O quarto percurso é o mais óbvio, sobre-tudo para quem leu (sintagmaticamente) esteensaio, ou seja, - sempre existiu uma cul-tura da instantaneidade. Não é, pois, ape-nas na presente época, dominada pelo epis-teme da mediação tecnológica (e de ondeas "grandes narrativas"e os "grandes códi-gos"foram removidos, em benefício do lo-cal, da "sistemática aberta", da pluralidadede códigos e dos itinerários e objectivos di-vididos), que se pode reivindicar o exclusivode uma cultura da instantaneidade. Entendoesta asserção quase conclusiva no sentido depropor que a instantaneidade seja definidacomo um "elemento modalizador"(A. Fo-wler, 1982) que foi sendo lentamente inter-textualizado no discurso totalizante das es-catologias, das utopias e das ideologias, em-bora salientando-se de modo relevante, de-vido ao ensimesmamento dos suportes, nopresente paradigma da mediação tecnoló-gica.

Podê-lo-emos mesmo comparar a ou-tros "elementos modalizadores", como, porexemplo, as reiteradas figuras salvadoras(que saltam das profecias escatológicas parao utopismo, caso do último imperador, dopapa angélico, do príncipe ideal de Maqui-avel, do Madhi islâmico e das suas remi-niscências simbólicas em casos como os deJohn Kennedy, Sidónio Pais ou Garibaldi)e a própria ideia de liberdade (modalizada,desde o século XVI, através do quadro utó-

pico, dos programas ideológicos e no âm-bito, claro, da dificilmente designável "era daactualidade24").

Por outras palavras: enquanto, aolongo dos sucessivos "grandes códi-gos"totalizantes, a instantaneidade foi umelemento modalizador (na sua conflitua-lidade com aqueles), - na actual era damediação tecnológica passou a ser, paraalém de elemento modalizador, sobretudoum elemento estruturante (e pacificamentefuncional) da nova cultura.

8 Adenda-limite, ou o mistérioda "globalização".

a) O mistério da globalização.A "globalização"corresponde ao que, na

Idade Média, se designaria por um "univer-sal". Isto quer dizer que a globalização éum termo que designa uma pura abstracção eque, portanto, nada ou pouco tem a ver coma realidade, entendida enquanto permanentearticulação de factos (empíricos) concretos eparticulares. Para os nominalistas de então, ede agora, a globalização seria, portanto, ummero nome e não uma realidade. No entanto,se apenas se admite que a globalização cor-responda a um facto (ou a uma ideia) par-ticular, dever-se-ia, em consequência admi-tir que ela se pudesse tornar geral, apenas etão só na medida em que - como diria Berke-ley - conseguisse representar todas as outrasideias particulares da mesma espécie.

Este raciocínio obriga-nos a compreenderque o atributo "global", sempre que é impu-tado a um facto qualquer, acaba por construirmais uma das variantes particulares daquiloque a globalização, em última análise, irá re-

24Cf. Nota 7.

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presentar. Assim sendo, deve perguntar-seo que significa o dito atributo "global", hojeem dia. A resposta, curta, conduz-nos ne-cessariamente a seleccionar algumas das en-tidades mais óbvias que se repercutem no"globo"actual, como por exemplo, - as lin-guagens de suporte electrónico, as modali-dades de transação económica, os satélites, ainformação das meta-ocorrências, etc. Con-tudo, fosse qual fosse o inventário exempli-ficado - mais inexgotável do que possível,diga-se - acabaríamos por nunca caracterizaradequadamente a própria globalização, tal-vez por esta resistir a constituir-se como umaqualquer soma de partes.

Deste modo, é possível afirmar que sepode saber (indexicalizar) o que é - e o quenão é - "global", enquanto mero atributode coisas identificáveis, mas continuar-se-àa desconhecer, de qualquer maneira, a queimaginário corresponde, ao fim e ao cabo,a reiterada palavra mágica - "globalização".Se, com efeito, os nominalistas antigos e mo-dernos parecem ter alguma razão, cumpre in-sistir e voltar a questionar, no meio de tantopressagiado mistério: o que é, afinal, a glo-balização ?b) A globalização revela-se apenas em men-sagens particulares.

Ultimamente, confrontámo-nos com duasnoções interessantes de globalização. Umade Carlos Zorrinho (1998:2) e uma outra deFernando Ilharco (1998:19). A primeira de-fine a globalização como um "quadro ideoló-gico", e a segunda identifica a globalização,não com "algo que está aí"("que vemos e en-tendemos"), mas antes com "a forma comohoje vemos e entendemos o que está aí".

No primeiro caso - e por me parecer ex-temporâneo discutir aqui a própria arqueolo-gia ideológica - parece instituir-se uma ideia

de moldura, ou de diagrama global, atravésd(a)os qua(l)is se veiculam e processam va-lores, indicações, enfim, - sintaxes sígnicasdevidamente orientadas. No segundo caso,envolvido pela ideia heideggeriana de "da-sein"(o que "está aí"), o autor recoloca oolhar para fora do "quadro"referido - ondese processam as transações de valores e debens -, para, de seguida, se referir à "forma",ou melhor, aos modos, através dos quais asubjectividade contemporânea encara o que,à partida, se sabe ser global. Conclusão: paraZorrinho, a globalização reside sobretudo noobjecto observado - e na semantização que asua organização suscita; para Ilharco, a glo-balização estará sobretudo no sujeito que ob-serva - e no modo como este é levado a ob-servar.

Há todavia uma nuance que convém nãoesquecer: se a noção de sujeito e de objectoamiúde se confundem, do mesmo modo quea enunciação e o referente só existem e coe-xistem em mensagens concretas, onde é quese manifestará, afinal de contas, a globali-zação ? Talvez a resposta se esconda noseio da própria pergunta, já que, é na produ-ção particular de mensagens que a ideia deglobalização acaba sempre, inevitavelmente,por se revelar. Por um lado, porque surgeoriunda de um sujeito - ainda que indeter-minado - que a cria, através dos valores (de"conteúdo"e "expressão- L.Hjelmslev) queenuncia na mensagem e, por outro lado, por-que surge reflectida e projectada em objec-tos concretos - físicos ou imateriais - que amensagem institui (o referente, entendido naperspectiva de U.Eco, segundo a qual este ja-mais se pode confundir com o significado damensagem).

Por exemplo, quando as agências interna-cionais editam material visual, este é rece-

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bido em todo o mundo como sendo basi-camente denotativo e "objectivo". As par-cas palavras, introduzidas localmente sobreas imagens, não alteram essa aparente deno-tação, embora, desse material, se acabe, emúltima instância, sobretudo por conotar vari-adíssimos valores implícitos (imagens cruasde luta na Faixa de Gaza ou no Kosovo ja-mais são imunes a tal). Os valores enunci-ados transpõem assim as fronteiras ditas lo-cais, impõem-se com aparente naturalidade efabricam o seu adequado objecto (neste casoimaterial). Além disso, a TV global produzos seus próprios códigos - do mesmo modoque qualquer média emergente os constrói -e, como refere Jonathan Bignell, estes são si-lenciosamente "partilhados pelas mais díspa-res instituições"telemáticas do globo. Numapalavra: através de uma expressão electró-nica e de conteúdos sucessivamente conotati-vos (que significam a mensagem), a globali-zação acaba por projectar-se, quer na dimen-são fática do média utilizado, quer na ordemdos referentes criados e que são sobretudoimaginários, actuais e, claro, algo impositi-vos. O sujeito enunciador dilui-se neste pro-cesso e o objecto referenciado torna-se numapura imaginação tendencialmente única, me-diana, uniformizadora.c) Globalização: capacidade anterior de umnovo tipo de sujeito ?

Não existe, pois, globalização fora domundo criado pela hemorragia de mensa-gens que são "actuais". O adjectivo "ac-tual"designa o momento, ou melhor, a ins-tantaneidade em que a mensagem se tornaacessível à comunidade (ou "being in com-mon- A. McHoul), próxima ou longínqua,que a significa e/ou descodifica. Se o do-mínio de alguns grandes meios-chave queproduzem a mensagem global estão na mão

de poucas instâncias, é preciso não esquecerque, sobretudo a nível da internet e do apro-veitamento dos satélites, a acessibilidade aoque é global se tornou num dado quase ge-neralidado. Este novo espaço de cruzamentode mensagens universais corresponde, aindaque apenas metaforicamente, ao conceitomedieval islâmico de Dar al-Islâm. Este con-ceito delimitava o território não apenas fí-sico do império, mas sobretudo o espaço dasalvação humana que consubstanciava e que,por sua vez, se contrapunha, por exemplo, aoespaço cristão. Esta apropriação simbólicado espaço evoluiu, na passagem dos gran-des códigos escatológicos para os ideológi-cos, para o conceito do chamado mundo li-bertado (correspondendo, ou à esfera sovié-tica, ou à americana, conforme era visto edifundido pelas partes durante a guerra fria).

A novíssima apropriação do território quehabitamos na actualidade é, pela primeiravez na História da humanidade, de ca-riz mundial. Depois de Deus, depois dosprogramas ideológicos, mas provavelmentereinsuflando ainda a génese utópica ("de ni-cho- cf. Cap. 7) que nasce com T.More -, a instantaneidade tecnológica define agorao mundo como uma arena, não para descre-ver, não para explicar (de acordo, respecti-vamente, com o pendor aristotélico e carte-siano), mas sim para reimaginar. A formadesta arena talvez possa corresponder à ideiaque Carlos Zorrinho traduziu por "quadro",ou seja, uma estrutura produtora de conota-ções, transmitidas a partir de aparentes de-notações, que visa a permanência e a ins-tantaneidade, nos quatro cantos do mundo.Este ensimesmamento da informação é para-lelo (e proporcional) ao nexo do próprio con-sumo, ou seja, - tornou-se decisivo ter e re-ceber, independentemente da necessidade do

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que se tem e do que se recebe; tornou-se maisimportante o fluido ou a torrente do que serecebe e do que se pode consumir, do que osobjectos ou as imagens, propriamente ditos,que se recebam ou se detenham. Esta avi-dez geral incontrolada define a ubiquidadeda própria arena em que vivemos, e o seusimbólico zapping caracterizará o ritmo dofluido e da torrente que, por sua vez, se trans-formam no fim último da própria comunica-ção.

Quando Fernando Ilharco se refere à glo-balização, não tanto pelo que está diante denós (a grande arena), mas antes à "formacomo"vemos e conhecemos o que está di-ante de nós, creio que estará, algures, a to-car na ferida. Ou seja : menos interessará o"ser"que anima a arena e, bem pelo contrá-rio, mais interessarão os "modos de ser"(C.Peirce) com que a arena se molda diante denós. Talvez seja por isso que a globaliza-ção, em princípio, é - enquanto ocorrência- algo indefinível, senão mesmo irreal, comoantes se referiu a propósito dos nominalis-tas. Se os três "modos de ser- concebidospor C. Peirce - definem, não as ocorrências,mas as possibilidades de manifestação dasocorrências, a globalização inserir-se-à, en-tão, no primeiro dos três que o semióticoamericano criou, ou seja, - a "firstness"(a"primeiridade", entre outras traduções portu-guesas). Nesta medida, a globalização nãoseria senão uma qualidade potencial e tradu-ziria, por isso mesmo, a ideia de fundamentode tudo o que é - ou pode vir a ser - global(do mesmo modo que o vermelho é apenasuma qualidade potencial que legitima tudo oque, num dado momento, diante dos nossosolhos, efemeramente, adquire essa cor).

Assim sendo, a globalização converter-se-ia definitivamente numa espécie de capaci-

dade anterior que o sujeito global deteria, naactualidade, para poder olhar o mundo, - seuobjecto, sua arena, sua ilha utópica ilimitada;sua indefinida imaginação.d) Globalização25 em vez dos símbolos de-que a modernidade foi amputada ?

Desde o final do século XVIII até aosdias de hoje, um certo conjunto de símbolos-chave passou-nos a estruturar e filtrar a ideiade realidade. Desde o tenro início da mo-dernidade, alicerçando já os fundamentos doparadigma em que hoje vivemos, registemos,entre outros, o estado-nação como símbolodos limites naturais da comunicação; a li-berdade e, por outro lado, os grandes códi-gos que imaginaram um futuro perfectível(as ideologias, por exemplo), enquanto sím-bolos de futuro e também da concretizaçãodo progresso; o sujeito tecnológico enquantosímbolo da ordenação do mundo, da natu-reza, além de magno cultor da velocidade;e, por fim, a contra-cultura, enquanto sím-bolo do conflito permanente que haveria denutrir os vários sub-sistemas da modernidade(o político, o social, o artístico, o económico,etc), numa lógica de instabilidade necessária(ao contrário da cristalização sistémica pré-moderna, no seio da qual as várias activi-dades sociais integravam um esfera única eaparentemente estável).

No entanto, o desenvolvimento tecnoló-gico e o quase esgotamento ou lenta degene-rescência de alguns destes símbolos-matriz(nomeadamente os grandes códigos sobre-tudo ideológicos e, noutros moldes, o pró-prio estado-nação), desencadeada de modoparticularmente célere nas últimas duas dé-cadas, haveriam de conduzir a uma inevitá-

25Cf. nota 2, onde, para traduzir a expressão "para-digma global, recorremos a parte desta alínea d).

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vel superação dos limites naturais da comu-nicação que se instituiram no início, já lon-gínquo, da modernidade. A grande rede sim-bólica da actualidade que, nos últimos anos,passou a reabsorver os símbolos modernos,já algo vagos e dispersos, é agora designadae pressentida através de um termo enigmá-tico e sempre repetido, mas nem sempre damelhor forma - a "globalização".e) A ideia de um globário: um globo-aquáriovisto apenas de (e por) dentro.

A globalização é, ao fim e ao cabo, aforma como imaginamos simbolicamente omundo de hoje. Não sabemos bem ondeela está e, até mesmo, o que é (a globaliza-ção). Sentimos, no entanto, que ela se ma-nifesta e isso chega-nos. Talvez, um dia, onosso mundo se transforme num globário, ouseja, numa espécie de oceanário transparentecomo o da Expo 98, mas que apenas conse-guimos ver de (e por) dentro. A globaliza-ção é, porventura, passe a ordem metafórica,esse espaço transparente que nos envolve eonde cabem todos os continentes, espécies eluzes do universo; é como que uma aldeiaque mais parece obra-prima instantânea emrápida e imprevista comemoração. Por ou-tras palavras, a globalização é uma espéciede rede simbólica geral, onde todos os nos-sos símbolos particulares da actualidade en-caixam e, instavelmente, se harmonizam.

Aquele que imagina a globalização ima-ginará - portanto - o mundo actual e todosos seus símbolos particulares que, por de-finição, lhe estruturam a própria realidade.Aquele que imagina a globalização é aindaum sujeito, mas não já o "sujeito cognos-cente"cartesiano, nem tão pouco o sujeitokantiano que não aceita o mundo dado e ad-quirido. Aquele que imagina a globalizaçãoé apenas e tão só um sujeito global que pro-

jectou no todo (que encara sob o símboloprometeico do globo) o individual, efémeroe talvez universal que, de facto, é.

O sujeito global é aquele, em última ins-tância, que passou a entrever o mundo comouma arena que é sua. Tal acontece, na me-dida em que os símbolos - com que a nova re-alidade se ordena - se conformam com novoslimites espaço-temporais da comunicação. Épor isso que a justiça deixou de ser um as-sunto fechado de um estado-nação, para pas-sar a ser subitamente global (veja-se o casoPinochet e aquilo que o futuro Tribunal Cri-minal Internacional de Roma prenuncia); épor isso que, como vimos, os valores enunci-ados pela TV global transpõem as fronteirasditas locais, impondo-se com aparente na-turalidade e acabando por construir os seuspróprios códigos, "partilhados"pelas mais di-ferentes instituições (J.Bignell,1997:131) te-lemáticas do globo; é por isso que o tempoinstantâneo é cada vez mais comum a locaistão díspares como a Tailândia, o Peru ou aArménia e, por seu lado, o espaço ciberné-tico faz explodir e expandir a espacialidadedo espaço público original da modernidade.

Seria difícil e arriscado descrever a ordemsimbólica particular que move e serve de êm-bolo à grande e presente máquina da globali-zação. No entanto, os seus suportes estão di-ante de nós, todos os dias. São telemáticos,informáticos, digitais; envolvem-nos atravésdos chips dos satélites e das estações orbi-tais; são construídos por imagens fugazes,rápidas, pouco fixas, antes traduzindo-se natorrente (de ver, de imaginar, de consumir);são de errância e de desordem, quer na or-dem dos valores e do pensamento estatuído,quer no desmedido liberalismo económico,quer nos verificáveis desequilíbrios sociais edemográficos do globo.

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f) Similaridades óbvias entre o Deus do ano1000 e o globário do ano 2000.

Digamos que "a imagem do oceanário daExpo 98 visto por dentro", referida maisacima, corresponde a um bom modelo com-parativo entre épocas e paradigmas tão dife-rentes como são, por exemplo, o ano 1000e o ano 2000. Se, como disse, a globaliza-ção corresponde à rede simbólica que regeo nosso olhar actual para o mundo, ela é,por outro lado, basicamente, um enigma,uma incerteza, um nexo de imprevisibilida-des. Existe, de facto, no homem do limiar dosegundo milénio, uma franca incapacidadede descrever a relação que existe entre essavasta rede simbólica global e os símbolosparticulares que ordenam a vida quotidiana.Uma tal incapacidade traduz-se na difícil es-truturação do próprio real em que vivemos,já que o papel dos símbolos é, ou deveria ser,precisamente, o de estruturar essa realidade,entendida como um processo complexo dedescontinuidades e circunstâncias.

O homem do início da modernidade,sonhando-se um subliminar continuador deDeus, ainda imaginou mundos perfeitos, pa-raísos na terra, - um autêntica e futura idadede ouro que o progresso humano inevitavel-mente atingiria. Hoje em dia - talvez por-que o estádio dito pós-moderno só já man-tenha algumas das características matriciaisda modernidade inicial - o homem parecesentir-se apeado de uma consistência simbó-lica que lhe permitiria, a cada momento, ex-plicar o mundo, definir o espaço e o tempoem que respira, esboçar convictamente umoptimismo desafogado.

Curiosamente, o homem do ano 1000olhava também, de dentro, para um edifíciofechado e tão transparente como o alegóricooceanário da Expo 98. Esse seu globário in-

vísivel, representado simbolicamente na fi-gura da grande catedral, configuraria a ideiade uma rede simbólica geral onde cada sím-bolo particular repousava e partilhava os seuspróprios dons. A globalização do homem doano 1000 confundia-se com a magnitude quese pressentia em Deus, e sobretudo com oanúncio de uma respeitada e desejada salva-ção final. Esta estrutura, semelhante (apenasenquanto estrutura fechada e algo inomeá-vel) à da globalização pós-moderna, é, no en-tanto, diversa, no que respeita à evidência dodevir, e não tanto ao optimismo humano.

A diferença situa-se no facto de o homemdo ano 1000 crer, sem margem qualqueronde se pudesse inscrever uma dúvida quefosse. O homem do ano 1000 é, com efeito,um homem que crê no concerto global da cri-ação original e da salvação final, reservandoa vida para uma lenta e repetitiva aprendi-zagem que acata e aceita, do mesmo modoque aceita que os raios solares se espalhemsobre o pico de uma montanha. Para o ho-mem que cruza o próximo milénio, convoca-se, por constraste, não o optimismo de há umséculo atrás, por exemplo, mas antes a insta-bilidade, talvez criativa, assente nos suportestelemáticos e ciber-tecnológicos da grandemáquina da actual globalização.

Por outras palavras, talvez soçobre emtudo isto um certo paralelismo acutilante,mas sempre silencioso, ou seja, - o globárioem que vivemos é tão potente e está de talforma em expansão que apenas o sentimosna razão directa da sua própria invisibilidade.Como o Deus do ano 1000, também o globá-rio do ano 2000 é invisível e omnipresente.O que nos faltará, para além da crença e dadúvida metódica ou hiperbólica, é, porven-tura, distinguir os limites e as configuraçõesexteriores deste nosso globário, do mesmo

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modo que protagonista do recente filme, TheTruman Show - A vida em directo de PeterWeir (1998), o desvendou, depois de muita epersistente pesquisa.

9 Epílogo breve

Disse Frank Kermond que - "na nossa criseperpétua, temos, nas épocas próprias, talvezsob a pressão do nosso próprio fim, perspec-tivas entontecedoras sobre o passado e o fu-turo, numa liberdade que é a liberdade da re-alidade discordante"(1997:172-326). É bempossível que o exacerbado desejo humano deinstantaneidade corresponda a uma tal "pers-pectiva entontecedora", mas, neste caso, in-cidindo no coração do presente.

Os anjos, que terão sido os primeirosagentes mediadores a dificultarem um con-tacto imediato e instantâneo com o "grandecódigo"omnipresente e total - Deus -, sur-gem, no título do presente ensaio, ao lado defiguras tão profanas quanto o são, por natu-reza, os meteoros. Entendamos estes últimoscomo uma metáfora física da velocidade que,sobretudo, escapa à raíz da própria volunta-riedade humana.

Fugazes, céleres, surpreendendo o ho-mem, os meteoros devolvem-nos a inocênciaperdida com que olhamos, extasiados, parauma aparição luminosa e efémera, quasecomo se fora milagre. Nada já, de facto,hoje em dia, nos diz que um destino mar-cado se irá, no futuro, cumprir - seja ele te-leológico, ou definido através de um cerradoprograma ideológico -, e, porque a expecta-tiva de tais auguradas metas se esfumou, porenquanto, resta-nos, portanto, entrever a ins-

26De A sensibilidade apocalíptica, Século XXI,Lisboa, 1997 (The Sense of na Ending).

tantaneidade com que vamos metamorfose-ando a realidade.

Aparentemente pacífica, embora plena deruído - do mesmo modo que os anjos nossegredavam os sigilos divinos -, a instanta-neidade actual é como uma espécie de pelí-cula frágil e transparente. Por baixo dessapelícula, vemos asas de anjos desfocadas,escapando-se de nós, a todo o momento.Por cima dessa película, vemos verdadeiraschuvas de estrelas, carregadas de meteoros,alumiando-nos a infância do olhar. No meio,num equilíbrio cada vez mais frágil - coinci-dindo afinal com a película -, somos nós que,sem darmos por isso, nos descobrimos atra-vés dessa verdade antiga que é a "realidadediscordante".

Assim seja. Assim possa deixar de o ser.

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