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ANÁLISE A Acupuntura no Ocidente Guido Palmeira * (*) Pesquisador do DEMQS / Ensp/ Fiocruz. O reconhecimento da eficácia da acupuntura não depende da demonstração empírica de seus resultados. Problemas metodológicos e conceituais dificultam o estabelecimento de seu valor terapêutico, com base na ciência ocidental moderna. Por outro lado, o crescimento da demanda e da oferta de terapias alternativas (entre elas a acupuntura) implica uma certa legitimação, que depende mais do reconhecimento da utilidade dessas práticas, do que da demonstração de sua cientificidade. A crise da "medicina científica' e de seu paradigma mecanicista pode ser um dos fatores responsáveis pela maior aceitação da acupuntura no Ocidente. Se isto é verdade, os estudos científicos sobre acupuntura serão de pouca utilidade, enquanto persistirem em negar a possibilidade de uma medicina que tem a sua lógica própria, diferente daquela da ciência ocidental. Talvez a maior colaboração que o Oriente possa trazer à medicina ocidental não esteja na sua técnica, mas no seu saber. No entanto, é apenas através da compreensão da cultura e da civilização chinesas, da aceitação de que Yin e Yang se organizam em um sistema coerente, que o saber tradicional pode ser realmente apreendido. INTRODUÇÃO Temos assistido a um crescente interesse pelas chamadas "práticas alternativas de saúde". Sob esta designação genérica, destacam-se, pela freqüência com que são mencionados, especificamente, o uso de plan- tas medicinais, a homeopatia e a acupuntura. No Brasil, a acupuntura vinha sendo incorpo- rada como alternativa terapêutica, em geral associada a procedimentos da medicina científica ocidental, em vários hospitais universitários, desde o início dos anos 80. A homeopatia foi reconhecida como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina em 1980, passando a ser oferecida como opção terapêutica, em algumas unidades da Previdência Social, desde 1986.

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ANÁLISE

A Acupuntura no Ocidente

Guido Palmeira * (*) Pesquisador do D E M Q S /Ensp/ Fiocruz.

O reconhecimento da eficácia da acupuntura nãodepende da demonstração empírica de seus resultados.Problemas metodológicos e conceituais dificultam oestabelecimento de seu valor terapêutico, com basena ciência ocidental moderna.Por outro lado, o crescimento da demanda e da ofertade terapias alternativas (entre elas a acupuntura)implica uma certa legitimação, que depende mais doreconhecimento da utilidade dessas práticas, do queda demonstração de sua cientificidade.A crise da "medicina científica' e de seu paradigmamecanicista pode ser um dos fatores responsáveis pelamaior aceitação da acupuntura no Ocidente. Se istoé verdade, os estudos científicos sobre acupunturaserão de pouca utilidade, enquanto persistirem emnegar a possibilidade de uma medicina que tem a sualógica própria, diferente daquela da ciência ocidental.Talvez a maior colaboração que o Oriente possa trazerà medicina ocidental não esteja na sua técnica, masno seu saber. No entanto, é apenas através dacompreensão da cultura e da civilização chinesas, daaceitação de que Yin e Yang se organizam em umsistema coerente, que o saber tradicional pode serrealmente apreendido.

INTRODUÇÃO

Temos assistido a um crescente interesse pelaschamadas "práticas alternativas de saúde". Sob estadesignação genérica, destacam-se, pela freqüência comque são mencionados, especificamente, o uso de plan-tas medicinais, a homeopatia e a acupuntura.

No Brasil, a acupuntura já vinha sendo incorpo-rada como alternativa terapêutica, em geral associadaa procedimentos da medicina científica ocidental, emvários hospitais universitários, desde o início dos anos80. A homeopatia foi reconhecida como especialidademédica pelo Conselho Federal de Medicina em 1980,passando a ser oferecida como opção terapêutica, emalgumas unidades da Previdência Social, desde 1986.

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Durante o último Congresso Brasileiro de SaúdeColetiva, o assunto mereceu destaque através de "Co-municações Coordenadas". Sob o título geral de "Pro-posições alternativas de assistência à saúde", discuti-ram-se a história e a "fundamentação científica" dahomeopatia e da acupuntura, as experiências de im-plantação dessas práticas na rede pública, em váriosEstados da Federação, e os problemas existentes paraestender as 'práticas alternativas' ao SUS.

Vale observar que a oferta de "terapias alterna-tivas" pelo serviço público foi precedida da multipli-cação de consultórios privados de homeopatia e acu-puntura, o que supõe a existência de uma demandaespecífica a este tipo de terapia, por parte de umaparcela da população que pode pagar por serviços desaúde privados. Por outro lado, a aceitação dessaspráticas, pelos usuários dos serviços públicos, temmostrado que esta demanda não é exclusiva daquelaparcela da população.

A oferta de tratamentos por ervas, homeopatiaou acupuntura por serviços públicos de saúde supõeo reconhecimento oficial de sua utilidade. Esse reco-nhecimento vem sendo buscado e, em certa medida,tem sido conquistado, através de diversos argumentose estratégias. Pretende-se, neste artigo, discutir, nocaso específico da acupuntura, algumas questões de-correntes dos caminhos pelos quais se tem buscadosua legitimação no ocidente. Cabe observar que, umavez que as estratégias para a legitimação são as mes-mas, tanto para a acupuntura quanto para a homeopatiae para o uso de ervas medicinais, considerações seme-lhantes também poderiam ser feitas em relação a estaspráticas.

O APELO À DEMONSTRAÇÃO EMPÍRICADO SUCESSO DO MÉTODO

O relato de curas, muitas vezes espetaculares,com o uso da acupuntura, tem sido recurso freqüente.O sucesso da anestesia com acupuntura, em diferentescirurgias, tem produzido um grande impacto no oci-dente desde a década de 70; os casos observados porBland foram, nas suas próprias palavras, "suficientespara provar o valor da acupuntura como tratamentoe como anestésico." (Bland, 1979),

Verifica-se, no entanto, que a demonstração em-pírica dos resultados obtidos com a acupuntura , porsi só, tem se mostrado insuficiente para o reconheci-mento da sua eficácia terapêutica, pois tais resultadossão interpretados pelos céticos como embuste ou, namelhor das hipóteses, como conseqüência de pura su-gestão; segundo estes, as agulhas agiriam, no máximo,como placebo.

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A preocupação de mostrar que os resultados obti-dos com a acupuntura não se devem a sugestão estápresente no discurso de Huan Xiang Ming (vice-diretordo Instituto de Pesquisa Médica Chinesa, em Xangai),em um seminário patrocinado pela OMS na China,em 1979 (ver: A Saúde do Mundo 12/79): "o êxitoda anestesia por acupuntura e a cura da disenteriabacilar pela acupuntura abalaram a opinião de queo efeito desse procedimento não passa de uma ilusãopsicológica' (Huan Xiang Ming, 1979), ou, nas pala-vras de Bland: "... mas se a função anestésica daacupuntura é 'puramente mental' (aspas no original),como explicar que as agulhas parecem ser igualmenteeficientes na veterinária?" (Bland, 1979),

Se, por um lado, o ceticismo continua presenteno ocidente, de outro, muitos autores ocidentais jácompartilham da opinião de que "... o número decasos estudados fornece alguma indicação da presençade um fenômeno que requer investigação adicional".(Patel, 1987).

A BUSCA DE UMA 'EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA'PARA OS EFEITOS E MECANISMOS DE AÇÃODA ACUPUNTURA

A tentativa de demonstrar a cientificidade da acu-puntura é tarefa a que vêm se dedicando inúmerosacupuntores, desde o início do século. As páginaspreliminares de " L'Acupuncture Chinoise", publicadana França por Soulié de Morant, em 1939, e que mar-cou o renascimento do interesse pela acupuntura noocidente, já mostram certa preocupação neste sentido.Os trabalhos de Noboyet, demonstrando a diferençada resistência elétrica da pele nos pontos de acupun-tura, "que permitiu a detecção dos pontos por multivol-tímetros" (Cintract, 1982), foram publicados, inicial-mente, em 1955.

Neste período, a medicina científica alcançavagrande prestígio. A descoberta dos antibióticos, dasvacinas e do DDT levavam à crença de que, como desenvolvimento da tecnologia, seriam erradicados,um a um, os agentes etiológicos específicos de cadauma das doenças conhecidas. O desenvolvimento daacupuntura e sua credibilidade dependiam, neste con-texto, de que se pudesse demonstrar alguma cientifi-cidade no método das agulhas.

Entre 1912 e 1949, mesmo na China, verifica-ram-se tentativas de eliminar a prática da medicinatradicional, sob a alegação de que não tinha basescientíficas. Segundo Cai Jing Feng, "... antes da fun-dação da Nova China, em 1949, o conflito entre amedicina tradicional chinesa e a medicina ocidentalf o i , basicamente, a luta do sistema tradicional em con-

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tinuar existindo, contra a idéia reacionária e subjetivade que o sistema tradicional era retrógrado e não-cien-tífico", (Caí Jing Feng, 1988).

Após a revolução socialista de 1949, a políticaoficial do governo chinês passa a ser a da integraçãoentre os dois sistemas. Os médicos chineses, de estiloocidental', são encorajados a aprender a medicina tra-dicional e, ao mesmo tempo, incentivados a estudá-lacom base em métodos científicos modernos. Um dosartigos da constituição chinesa estipulava que: "A na-ção, no desenvolvimento de cuidados de saúde e deprogramas de higiene, desenvolveria a medicina mo-derna e a tradicional". (citado por Cai Jing Feng,1988).

Em 1979, Huan Xiang Ming declarava (no semi-nário já referido) que "A pesquisa científica voltou(com Hua Kuo Feng) a ser chamada a desempenharuma atividade fundamental em nossa construção socia-lista e para nossas quatro modernizações; o campoda pesquisa acadêmica volta a recender a doçura daprimavera" (Huan Xian Ming, 1979), e Bland falavados estudos desenvolvidos na China "envolvendo oemprego de aparelhos eletrônicos altamente comple-xos... (que) estão se aprofundando nos mistérios dasendorfinas." (Bland, 1979).

Aos poucos, a resistência inicial ao emprego daacupuntura, no ocidente, vai sendo substituída pelaopinião de que é vantajosa a integração entre os doissistemas, o "progresso da integração do conhecimentotradicional com o método científico" é visto por algunsrepresentantes da academia ocidental como "uma gran-de promessa". (Kao, 1979).

Se, durante a primeira metade do século, os estu-dos 'científicos' procuravam, sobretudo, a confirmaçãoda existência dos meridianos (*) e pontos descritospela tradição, através da sua demonstração anatômica,a grande maioria dos estudos mais recentes é de ensaiosclínicos que procuram medir a eficácia da acupunturano tratamento de patologias específicas, ou de investi-gações que buscam elucidar os mecanismos de açãodas agulhas, principalmente pela identificação de subs-tâncias neurotransmissoras envolvidas nos fenômenosde analgesia e anestesia com acupuntura. Os artigosrelacionados no Index Medicus dos primeiros cincomeses de 1989, a maioria publicada em revistas chine-sas ou de países da Europa oriental, mostram clara-mente esta tendência.

Os estudos publicados no ocidente, na maioriados casos ensaios clínicos onde se busca avaliar aeficácia da acupuntura no tratamento de dores crônicasde diferentes etiologias e localizações anatômicas, emgeral, têm apresentado importantes deficiências meto-dológicas. (Lewith, 1984 e Patel, 1987).

(*) Meridianos são canais vir-tuais que percorrem todo o cor-po, e pelos quais circula a ener-gia vital Ch´í.

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Muitos estudos foram realizados com pequeno nú-mero de pacientes, prejudicando a aplicação de testesde significância estatística. Em muitos casos, os crité-rios para a seleção inicial dos pacientes a serem incluí-dos no estudo são imprecisos ou maldefinidos; emoutros, os critérios para a definição do que deve serconsiderado sucesso ou falha do tratamento não forambem estabelecidos desde o início do estudo.

Um dos freqüentes problemas metodológicos estána dificuldade de se obterem estudos cegos. Se o gru-po-controle for submetido a procedimentos terapêu-ticos, claramente distintos da acupuntura (tratamentomédico ocidental, injeção de anestésicos e/ou esterói-des etc), tanto pacientes como terapeutas têm, neces-sariamente, conhecimento do grupo (experimental oucontrole) a que cada membro do estudo pertence. Aocontrário do que ocorre com a comparação entre duasdrogas, cujas apresentações podem ser indistintas,quando se utiliza a própria acupuntura como placebo(agulhas inseridas fora dos pontos de acupuntura) éimpossível impedir que o terapeuta, um acupuntor queconhece a localização precisa dos pontos, identifiqueos pacientes que pertencem ao grupo experimental,que recebem o tratamento adequado, e aqueles quecompõem o grupo-controle, tratados com 'acupunturaplacebo'.

Depois de chamar a atenção para o fato de quea inserção aleatória das agulhas não tem apenas umefeito placebo, Lewith afirma que "... é difícil definirum placebo válido que pode ser usado, consistente-mente, sem o conhecimento dos terapeutas"', e acres-centa que, dadas as diferenças individuais dos pacien-tes no que tange à resposta ao tratamento com acupun-tura, os ensaios cruzados são "virtualmente impossí-veis", dificultando que os estudos possam ser definidos

em bases comparáveis.Enquanto a acupuntura tradicional baseia o trata-

mento no entendimento tradicional da doença, selecio-na os pontos a serem picados em função das necessi-dades individuais dos pacientes e, no curso do trata-mento, modifica os pontos utilizados, segundo a varia-ção das necessidades dos doentes, na maioria dos estu-dos examinados por Patel, os pontos são selecionadoscom base no diagnóstico da medicina científica. Identi-fica-se um conjunto de pontos definidos a priori comoindicados para a patologia em questão, que serão utili-zados à maneira de uma fórmula ou prescrição quenão varia de um doente para outro, e que não é modifi-cada durante o tratamento. Considera-se que tais dife-renças podem prejudicar, significativamente, os resul-tados do método tradicional.

O mesmo autor chama a atenção para o fato deque a maioria dos ensaios tem como objetivo avaliar

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os efeitos da acupuntura sobre a dor, embora o princi-pal objetivo da medicina tradicional seja a prevençãoda doença e a manutenção da saúde, restando ao trata-mento da doença um papel secundário e, ao alívioda dor, uma função apenas complementar; e sugerea utilização de indicadores que possam medir o 'estadode saúde global' dos pacientes, a principal precupaçãoda terapêutica tradicional.

Os dois autores, Lewith e Patel, consideram queos estudos desenvolvidos no ocidente são insuficientespara estabelecer, definitivamente, o valor terapêuticoou analgésico da acupuntura. Por outro lado, ambosconcordam em que é necessário realizar estudos maisbem elaborados, seja para justificar a eficácia da acu-puntura como tratamento, seja como uma resposta dacomunidade científica ao crescimento da utilização damedicina alternativa.

Embora os estudos científicos não permitam con-clusões definitivas, o reconhecimento de vantagensda acupuntura tem sido um argumento em favor desua utilização no ocidente. A partir dos anos 60, oprestígio da medicina científica começava a ser abala-do, as campanhas de erradicação, iniciadas na décadade 50, com raras exceções, haviam malogrado (a esterespeito, ver Yekutiel, 1981); a idéia de causa única,nascida no início do século, da demonstração de agen-tes etiológicos específicos para cada uma das doençasinfecciosas, vinha se mostrando inadequada para acompreensão das doenças crônico-degenerativas, queassumiam importância cada vez maior no quadro noso-lógico dos países industrializados.

A ciência médica reconsiderou a importância dosfatores ambientais e sócio-culturais na determinaçãodas doenças. As patologias crônico-degenerativas pas-saram a ser descritas em termos de distúrbios celulares;para seu estudo, diagnóstico e tratamento, foi necessá-rio aumentar a precisão tanto da medição de constantesvitais, como da identificação de metabólitos específi-cos, envolvidos na gênese de diferentes patologias.A tecnologia médica desenvolveu instrumentos de in-vestigação diagnóstica cada vez mais sofisticados ecaros. O objetivo de erradicação das doenças transfe-riu-se para o da extensão de cobertura de serviçosde saúde; ganhava espaço a idéia de que a saúde éfunção da assistência médica individual; e o acessoaos serviços de saúde passaram a ser reivindicadospor um contingente cada vez maior da população.

Segundo Bland, um delegado da Europa ociden-tal, no mesmo seminário de 1979 (ver: A Saúde doMundo 12/79), declarava que: "... a forma praticávelde introduzir serviços gerais de saúde, em condições,de atender a todos no ano 2000", seria através de"médicos descalços", que em "... um curso de 18

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meses... aprenderiam as técnicas de acupuntura, oemprego de ervas medicinais e outras formas de trata-mento... trabalhariam em áreas rurais, e constituiriama linha de vanguarda contra a doença" (citado porBland, 1979).

A LEGITIMAÇÃO DAS MEDICINAS ALTERNA-TIVAS E A CRISE DA MEDICINA CIENTÍFICA

Apesar das dificuldades em provar seu valor tera-pêutico com suficiente rigor científico, o crescimentoda demanda e da oferta de terapias alternativas (inclu-sive pelo serviço público) implica uma certa legitima-ção não-acadêmica dessas práticas. Existem indíciosde que, hoje, a legitimação das práticas alternativasnão depende apenas do reconhecimento de sua cientifi-cidade, mas também do reconhecimento de sua utilida-de terapêutica; ao contrário do que era dado pensardurante a primeira metade do século, quando o reco-nhecimento da utilidade terapêutica de qualquer méto-do estava intimamente relacionado ao reconhecimentode sua cientificidade.

Aparentemente, tal mudança está relacionada àcrise da medicina moderna. Se, por um lado, comoveremos, alguns autores identificam a crise da medi-cina científica com a crise de seu paradigma, por outro,as práticas alternativas estão orientadas por paradig-mas suficientemente distintos daqueles da medicinacientífica, para que sejam identificadas exatamente co-mo "alternativas" a esta última.

Queiroz fala de uma "crise profunda" da práticae do saber da ciência médica moderna, que "... serefere à crise de seu paradigma dominante... o positi-vismo", e cujo sintoma principal é "... produzir servi-ços extremamente caros e ineficazes" mostra que "...historicamente, o desenvolvimento da medicina (cientí-fica) implicou a perda de uma visão unificadora dopaciente, e deste com seu meio ambiente físico e so-cial" e que este é "... um fenômeno recente e semsimilar, quando confrontado com sistemas médicosnão-ocidentais. Nesses sistemas médicos alternati-vos... o fator social existe como componente funda-mental, ao contrário do que ocorre com o paradigmadominante da medicina ocidental moderna." (Queiroz,1986)

Capra também reconhece, na "influência do para-digma cartesiano sobre o pensamento médico" a ori-gem dos problemas da moderna medicina científica:"... ao reduzir a saúde a um funcionamento mecânico,

(a medicina moderna) não pode mais ocupar-se como fenêmeno da cura... a prática médica, baseada emtão limitada abordagem (a cartesiana) não é muitoeficaz na promoção e manutenção da boa saúde. De

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fato, essa prática, hoje em dia, causa freqüentementemais sofrimento e doença, segundo alguns autores (citaIllich), do que a cura" (Capra, 1986).

Lembra que "... a crescente dependência da me-dicina em relação à alta tecnologia suscitou um certonúmero de problemas que não são apenas de naturezamédica ou técnica, mas envolvem questões sociais,econômicas e morais muito mais amplas". Fala dodesenvolvimento da quimioterapia e do uso inadequadoe abusivo de medicamentos, que "... tornaram-se umproblema de saúde pública de alarmantes propor-ções"\ da relação entre a complexificação tecnológicado ato médico e a proliferação de especialidades médi-cas, que "... reforçou a propensão dos médicos detratar partes específicas do corpo, esquecendo-se decuidar do paciente como um ser total"\ e da transfe-rência da prática médica "... do consultório do clínicogeral para o hospital, onde se tornou progressivamentedespersonalizada, quando não desumanizada."

Não deixa de referir-se à "impressionante despro-porção entre o custo e a eficácia da medicina moder-na", destacando que "As intervenções biomédicas, em-bora extremamente úteis em emergências individuais,têm muito pouco efeito sobre a saúde de populaçõesinteiras"; nem às doenças crônico-degenerativas, tidaspela ciência médica "... como conseqüência inevitáveldo 'desgaste' geral, para o qual não existe cura"(Capra, 1986).

Considera ainda que, como conseqüência da "...imagem pública do organismo humano... uma máquinapropensa a constantes avarias se não for supervisio-nada por médicos e tratada com medicamentos", nãosão valorizadas "... a noção do poder de cura inerenteao organismo e a tendência para manter-se saudável,...a confiança do indivíduo em seu próprio organismo,... (ou) a relação entre saúde e hábitos de vida"

O mesmo autor, no capítulo em que trata do "Ho-lismo e Saúde", acredita que "... podemos aprendercom os modelos médicos existentes em outras cultu-ras" Embora não seja seu objetivo apresentar a medi-cina chinesa como prática ideal, e apesar de advertirque "as comparações entre sistemas médicos de dife-rentes culturas devem ser feitas com todo o cuidado",reconhece que "... a noção chinesa do corpo comoum sistema indivisível de componentes intercalados es-tá, obviamente, muito mais próxima da abordagem sis-têmica do que o modelo cartesiano clássico." Ressaltaque, para a medicina chinesa, "... a doença não éconsiderada um agente intruso, mas o resultado deum conjunto de causas que culminam em desarmoniae desiquilíbrio... (e) será, em dados momentos, inevitá-vel no processo vital... a saúde perfeita não é o objeti-

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vo essencial... o papel principal dos médicos chinesessempre foi o de evitar o desequilíbrio de seus pacien-tes. " Observa que as diferentes técnicas terapêuticasda medicina chinesa visam "... estimular o organismodo paciente de tal modo que ele siga sua própriatendência natural para voltar a um estado de equilí-brio. Assim, um dos principais princípios da medicinachinesa é sempre administrar uma terapia a mais bran-da possível" (Capra, 1986).

Se a crescente aceitação da acupuntura, no oci-dente, está relacionada à crise da medicina científica;se, em conseqüência do alto custo da medicina tecnoló-gica, é preciso referendar práticas não totalmente legi-timadas pela ciência médica, com o argumento de quesão úteis, mais simples e mais baratas (*); se a procurade terapias em princípio 'mais brandas' pode ser vistacomo resposta à agressividade da intervenção médicatecnologizada; se a procura por uma medicina, cujosprincípios são considerados 'mais holísticos' (Capra),pode significar uma reação à segmentação do olharda ciência médica (explicitado pela profusão de espe-cialidades e subespecialidades), ou mesmo à desumani-zação da prática médica hospitalar; então a questãoque se coloca não é mais a da investigação dos meca-nismos de ação da acupuntura, mas a investigaçãode seus princípios, de sua lógica, de seus paradigmas.

A INTEGRAÇÃO DOS DOIS SISTEMAS NO OCI-DENTE

A acupuntura é apenas uma das técnicas terapêu-ticas que compõem um conjunto de saberes e procedi-mentos culturalmente constituídos, e dos quais nãopode ser dissociada. Além das agulhas, a medicinatradicional utiliza ervas, massagens, exercícios físicos,dietas alimentares, e prescreve normas higiênicas deconduta. Sua lógica é a mesma que orientou toda avida social da China, no período em que foi desenvol-vida: o calendário agrícola, as festas coletivas, os prin-cípios de comportamento social, as regras de etiquetano trato com as autoridades, a religião, a música,a arquitetura... Os princípios teóricos a partir dos quaisas doenças são entendidas, classificadas e tratadas sãoos mesmos que servem para entender, classificar elidar com as coisas do mundo', a natureza, o espaçoe o tempo. (A este respeito ver: Granet, 1968).

Pretender que a eficácia de um saber que, segundoCai Jing Feng, "tem controlado as maiores epidemiasde doenças infecciosas na história da China", deva-sea que a introdução de agulhas, em determinados pon-tos, tenha como conseqüência a liberação de mediado-res bioquímicos que interferem no fenômeno da dor;e que o sucesso obtido pelos chineses com a acupuntura

(*) Em nossa opinião, tanto asimplicidade quanto o baixo cus-to atribuídos à acupuntura sãomuito mais reflexo da falta deconhecimento mais profundo dométodo, do que característicasreais da medicina tradicional chi-nesa.

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durante dois mil e quinhentos anos de desenvolvimentoseja fruto apenas da acumulação de observações empí-ricas, é fechar os olhos ao saber tradicional, é descarac-terizá-lo, é optar por uma 'cegueira etnocêntrica'.

Embora os autores orientais considerem que apolítica de integração entre os dois sistemas, praticadana China desde 1949, tenha permitido um grande de-senvolvimento não só na atenção à saúde do povochinês, como da própria medicina tradicional — e osurgimento das técnicas de anestesia cirúrgica comacupuntura nos anos cinqüenta testemunha que têmrazão —, a recíproca pode não ser verdadeira.

Nos últimos quarenta anos, o oriente desenvolveunovas técnicas terapêuticas, associando o saber milenarcom o saber e a técnica ocidentais. Ao ocidente, quenão domina o saber tradicional, — ao contrário, onega — restou a pobre e limitada perspectiva de procu-rar esclarecer, com seus próprios recursos teóricos,os mecanismos de ação e os efeitos de uma técnicaoriental isolada em uma situação específica, a dor.No ocidente, a procura da cientificidade da acupun-tura, ao contrário de esclarecer (ou legitimar) o saberque lhe dá sentido, tem sido a busca da confirmaçãoda hegemonia da ciência médica, a possibilidade defazê-la capaz de explicar os efeitos até então enigmá-ticos das agulhas.

Se o crescimento da aceitação da acupuntura noocidente pode ser o reflexo da crise da medicina cientí-fica, e se a crise da medicina ocidental se identificacom a crise de seu paradigma positivista; então osestudos 'científicos' da acupuntura pouco poderão con-tribuir para a superação dessa crise, enquanto insisti-rem em negar a possibilidade de uma medicina, deuma ciência de dois mil e quinhentos anos, que tema sua lógica própria, diferente daquela da ciência oci-dental.

É possível (quiçá provável) que a maior colabora-ção que o oriente possa trazer a medicina ocidentalnão esteja na sua técnica, mas no seu saber, nos concei-tos a respeito da natureza e da causalidade das doen-ças, na sua visão holística do ser humano, na valoriza-ção da tendência à autocura inerente ao organismo,no significado do "equilíbrio" que se busca com aterapia.

No entanto, para se ter acesso ao saber tradicio-nal, será preciso compreender os seus princípios, poderperceber claramente o Yin e o Yang no mundo, e apossibilidade do Tao (*); será preciso reconhecer nanatureza, no céu e na terra, as seis energias e oscinco elementos, aprender a distinguir, no exame dopaciente, onde está o frio e onde está o calor, ondeestão as insuficiências e onde estão os excessos.

(*) O Yiang e Yin constituemum par de opostos complemen-tares a que são relacionadas asdualidades/díades da natureza:dia x noite, claro x escuro, calorx frio, masculino x feminino,resistência x complacência, mo-vimento x repouso, ... Granetreconhece o Yin e o Yang como'símbolos' de grande poder su-gestivo, uma vez que, consti-tuindo uma dupla, evocam, agru-pando em pares, todos os outros'símbolos'."É o Tao que faz surgir orao obscuro (Yin) ora o luminoso(Yang)" diz o I Ching (TATAUN, Cap. 5). Granet comen-ta as diferentes possibilidades detradução da expressão "Uma vezYin, Uma vez Yang, é o Tao"— "primeiro o Yin, depois oYang...", ou "aqui o Yin, láo Yang...", ou "um tempo Yin,um tempo Yang...", ou, ainda,"um lado Yin, um lado Yang..."(p. 104) — segundo o autor,"como o Yin e o Yang, o Taoé uma categoria concreta", umatotalidade "alternante e cíclica",um "poder regulador'' que "nãocria os seres, os faz ser comosão", e que "regula o ritmo dascoisas". (p. 269). De acordocom a tradição: "O Tao possuitodas as coisas em plena abun-dância, este é o seu campo deação. Renova todas as coisas,todos os dias; este é o seu glorio-so poder." (I Ching, TA TAUNcap. 5).

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Para se ter acesso ao saber tradicional, será preci-so admitir a possibilidade de que estas categorias pos-sam se organizar em um sistema coerente cuja lógica,que orientou tanto a ordenação biológica quanto aordenação social da China, durante a maior parte dosúltimos vinte e cinco séculos, deve ser apreendidanão só pelo estudo da medicina, como pela compreen-são da religião, da filosofia, dos costumes, enfim,da história e da cultura da civilização chinesa.

The recognition of acupuncture's effectiveness doesn'tdepend on the empirical demonstration of its results.There are methodological and conceptual barriers tothe establishment of its therapeutical value, on ascientific basis.On the other hand, the increase of demand and supplyof alternative therapies implies in a certainlegitimation, which depends rather on the recognitionof the utility of these practices, than on thedemonstration of its scientific status.The crisis of the "scientific medicine" and itsmechanistic paradigm may be one of the factorsinfluencing the acceptation of acupuncture in the West.If this is true, scientific studies on acupuncture won'tbe very useful unless they admit the possibility of amedicine which has its own logic, different from thewestern science.Perhaps the greatest contribution brought by the Eastto the western medicine is its knowledge, and not itstechnique. But it's only through the understanding ofthe chinese culture and civilization, the acceptancethat Yin and Yang form a coherent system, that thetradicional knowledge can be really seized.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLAND, J. — Uma ciência exata, A Saúde do Mundo, OMS,Dez/1979.

FENG, Cai Jing — Integration of traditional chinese medicinewith western medicine: right or wrong?, Soc. Sci. Med. 27(5), 1988.

CAPRA, F. — O ponto de mutação, Ed. Cultrix, São Paulo,1986.

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