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Análise da Construção Identitária Arquetípica do Samurai nos Mangás Lucas Marques Vilhena Motta Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) [email protected] RESUMO A cultura japonesa nos parece tão distante se pensarmos na distância presente entre nossos países, porém se analisarmos mais cautelosamente veremos que Brasil e Japão tem mais relação do que poderíamos imaginar. Atualmente as revistas em quadrinhos japonesas, denominadas de mangá, estão entre os produtos de cultura pop mais consumidos do mundo; sendo o Brasil um importante mercado. O conteúdo destas obras é extremamente variado e abrange os mais variados grupos etários, entretanto podemos ver nestes quadrinhos muito mais que um simples entretenimento, nele pode- se ver uma identidade puramente japonesa sendo comercializada. A partir disto buscaremos apresentar uma análise da imagem do guerreiro samurai nestas produções. Palavras-chave: História do Japão. Mangá. Samurai. Quadrinhos. Um Breve Histórico dos Mangás Para adentramos neste histórico, primeiro devemos entender o que compreende uma história em quadrinhos. Na visão de Will Eisner o que move estas histórias é o conceito que o mesmo denomina de Narrativa Gráfica. Este conceito é utilizado quando as imagens são utilizadas para transmitir ideias, sem a necessidade de palavras 1 . (EISNER, 2005, p.10) A partir desta definição podemos começar a “remontar” um histórico dos percursores do que viria a ser reconhecido como mangá. Durante os séculos VII e VIII o Japão busca construir as bases para um Estado unificado sob a égide do Imperador, para tanto se utilizariam dos ideais aplicados na 1 Para complementar esta discussão, Eisner em nenhum momento de sua obra retira a importância da linguagem verbal dentro da composição dos quadrinhos. Em sua outra obra Quadrinhos e Arte Sequencial, o autor afirma que os quadrinhos “apresentam uma sobreposição de palavras e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais.” (1999, p.8)

Análise da Construção Identitária Arquetípica do Samurai ......E, enquanto a aristocracia metropolitana se compraz na fruição da vida de lazer e culto ás belas artes e amor

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Análise da Construção Identitária Arquetípica do Samurai nos Mangás

Lucas Marques Vilhena Motta

Universidade Federal de Pelotas (UFPEL)

[email protected]

RESUMO

A cultura japonesa nos parece tão distante se pensarmos na distância presente entre

nossos países, porém se analisarmos mais cautelosamente veremos que Brasil e Japão

tem mais relação do que poderíamos imaginar. Atualmente as revistas em quadrinhos

japonesas, denominadas de mangá, estão entre os produtos de cultura pop mais

consumidos do mundo; sendo o Brasil um importante mercado. O conteúdo destas

obras é extremamente variado e abrange os mais variados grupos etários, entretanto

podemos ver nestes quadrinhos muito mais que um simples entretenimento, nele pode-

se ver uma identidade puramente japonesa sendo comercializada. A partir disto

buscaremos apresentar uma análise da imagem do guerreiro samurai nestas produções.

Palavras-chave: História do Japão. Mangá. Samurai. Quadrinhos.

Um Breve Histórico dos Mangás

Para adentramos neste histórico, primeiro devemos entender o que compreende uma

história em quadrinhos. Na visão de Will Eisner o que move estas histórias é o

conceito que o mesmo denomina de Narrativa Gráfica. Este conceito é utilizado

quando as imagens são utilizadas para transmitir ideias, sem a necessidade de palavras1.

(EISNER, 2005, p.10) A partir desta definição podemos começar a “remontar” um

histórico dos percursores do que viria a ser reconhecido como mangá.

Durante os séculos VII e VIII o Japão busca construir as bases para um Estado

unificado sob a égide do Imperador, para tanto se utilizariam dos ideais aplicados na

1 Para complementar esta discussão, Eisner em nenhum momento de sua obra retira a importância da

linguagem verbal dentro da composição dos quadrinhos. Em sua outra obra Quadrinhos e Arte Sequencial,

o autor afirma que os quadrinhos “apresentam uma sobreposição de palavras e imagem, e, assim, é

preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais.” (1999, p.8)

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vizinha China. O modelo chinês se pautava em dois importantes pilares: O budismo e

o confucionismo. Estas ideias foram amplamente divulgados dentro do arquipélago do

sol nascente durante estes séculos. Para a disseminação destas ideias os mosteiros

budistas se utilizaram das imagens para contar histórias para uma população que ainda

não era, em sua maioria, letrada; assim começaram a surgir os Emaki, rolos que

contavam histórias através de imagens. Sobre estas obras Tazawa nos diz que:

[...] O rolo é aproveitado ao máximo para a representação de movimento e

ação através de uma sucessão de cenas. O efeito não é diferente do de uma

tira de filme. Este tipo de pintura era provavelmente nativo do Japão,

desenvolvendo-se em resposta a uma procura de representação pictórica de

obras de narrativa literária. [...] Os temas são usualmente, tanto

representações trágicas como cômicas de casos de amor, guerras, fé, milagres

ou acontecimentos grotescos e místicos. (TAZAWA, 1973, p. 51-52)

Outro importante momento para o desenvolvimento destas artes no Japão foi o período

do Xogunato (Bakufu) Tokugawa (1603-1868). Período que segue após um longo e

quase interminável período de guerra civil, denominado de Sengoku Jidai. Com este

novo Xogunato o país voltou a ingressar em um período de paz e se fechou à presença

dos estrangeiros. Estas condições foram necessárias para o desenvolvimento, mais

vigorosamente, da arte de forma geral. Segundo Feijó, este período foi importante:

Este isolamento, entretanto, não impediu que ocorresse um desenvolvimento

urbano, muito em parte devido à paz interna. Comerciantes, trabalhadores,

samurais, ronin e artistas são alguns dos grupos sociais que passam a habitar

as cidades, principalmente na capital Edo (atual cidade de Tóquio). Todo esse

crescimento urbano favoreceu o florescimento de uma cultura popular,

principalmente em zonas mais suburbanas. (FEIJÓ, 2013, p. 18)

Neste período ocorreu o surgimento de uma nova estética artística que ficou conhecida

como ukiyo-e, o que marcou este gênero, principalmente, segundo Tazawa foi o “fato

de que suas obras eram vendidas a baixo preço sob a forma de xilogravuras, produzidas

em massa, de fácil disponibilidade.” (1973, p. 92) Outra importante característica deste

período foi a melhoria da técnica utilizada nos traços e uma estrutura narrativa bem

próxima ao mangá que conhecemos na atualidade.

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Figura 1- Exemplo de pintura Ukiyo-e

Fonte:http://jpninfo.com/19346 acessado em: 5 de junho de 2018

Com a chegada das embarcações do Comodoro Perry 2(1853), o Japão passará por

grandes mudanças político-sociais; assim como no campo da iconografia. A partir do

contato com os ocidentais, introduziu-se no país as ideias dos cartoons que já eram

consagrados no resto do mundo. Então, em 1862, inaugurou no Japão a filial de uma

famosa revista de cartoons britânica, a Punch, assim inaugurou-se a Japan Punch que

trazia ao arquipélago pela primeira vez a lógica dos quadrinhos ocidentais ao grande

público. Como afirma Brenner:

No início do século XX, tiras de quadrinhos e quadrinhos começaram a se

multiplicar, e eles foram imediatamente populares com o público da mesma

forma que o ukiyo-e tinha sido no século passado. Charges e a tradição das

revistas de humor político logo deram lugar a obras mais populares e menos

obviamente politicamente carregados. No final da década de 1920,

numerosos quadrinhos eram lidos em todo o Japão. Muitos destes quadrinhos

foram lidos em revistas infantis, o mais popular dos quais, Shonen Club,

ainda está em publicação até a atualidade.3(BRENNER, 2007, tradução nossa,

p. 25)

2 A chegada da frota do Comodoro no arquipélago japonês, causou uma grande mudança dentro do

imaginário dos japoneses naquele período, pois era a primeira vez em muitos anos que um estrangeiro

entrava em contato com a população. A partir deste momento duas corrente ganham força dentro do país:

A primeira apoiava o xogunato e demandava a expulsão dos estrangeiros e a volta ao isolamento, a

segunda buscava a restauração do poder imperial visando uma modernização do país para equiparar-se as

nações europeias. 3 No original: In the beginning of the twentieth century, Japanese comic strips and comics began to

multiply, and they were immediately popular with the public in the same way the ukiyo-e had been in the

last century. Political cartoons and the tradition of political humor magazines soon gave way to more

popular and less obviously politically charged comic strips. By the end of the 1920s, numerous cartoon

strips were read across Japan. Many of these comics were read in children’s magazines, the most popular

of which, Shonen Club, is still in publication to day.

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Porém é somente após a Segunda Guerra Mundial que teremos a consolidação do

mangá tal como o conhecemos na atualidade. Muito deste trabalho se deve a obra de

Osamu Tezuka (1928-1989). Para exemplificar a importância de Osamu Tezuka para os

quadrinhos japoneses, podemos citar alguns fatos relevantes sobre ele. No Japão Osamu

é alcunhado de “O Deus dos Mangás” (Manga no Kami) devido sua importância,

influenciou diversos outros autores ao longo dos anos proporcionando assim que o

gênero sobrevivesse. A arte e o estilo de narrativa estabelecidos por Tezuka foi

essencial para tornar o gênero famoso em todo o mundo, para se mensurar este sucesso

podemos citar o fato de sua Magnum Opus, Astro Boy, ter vendido mais de 100 milhões

de unidades em todo mundo; tornando-a uma das obras mais rentáveis da história.

Segundo Luyten:

Para começar, o mangá, hoje em dia, no Japão, é considerado por eles como

japonês, apesar de sua divulgação anglo-americana nas últimas décadas do

século passado. Os ambientes são praticamente sempre inseridos no cenário

nipônico, as personagens facilmente identificáveis com os anseios coletivos

do arquipélago, os desenhos e a hábil utilização da escrita nipônica, inclusive

para expressar as onomatopeias, são únicos no gênero. E como se tudo isso

não bastasse, a sua divulgação maciça não tem paralelo no mundo inteiro.

(LUYTEN, 1995, p. 132-133)

Com esta citação podemos notar que na atualidade o mangá além de ser uma forte

representação da cultura japonesa, tal qual o anime, é notório a sua presença e

popularidade em todo o globo. A partir disto podemos perceber que os quadrinhos

japoneses, além de fazerem muito sucesso no arquipélago também foram exportados

para o mundo.Luyten também salienta que:

[...] Apesar dos outros meios de informação de massa, os mangás possuem a

capacidade de, pelo menos, solidificar opiniões de interesse a seus diversos

públicos. E essa é uma de suas grandes características. Os desenhistas

japoneses e os editores de mangá descobriram que para se alimentar sonhos

de uma sociedade é necessário consolidar uma base de informações

verossímeis. Isso tudo aliado a uma identificação completa com o seu público

e a uma praticamente total ausência de concorrentes estrangeiros tornam os

mangás um dos mais poderosos meios de idealização de anseios e da

confirmação de identidade nacional [...]. (LUYTEN, 1995, p. 133)

Partindo deste pensamento de Luyten podemos destacar que a autora cita o quadrinho

nipônico como “um dos mais poderosos meios de idealização de anseios e da

confirmação de identidade nacional”, com isto podemos ver que os mangás no mostram

uma representação da “realidade” japonesa. Para tanto, Chartier nos diz que:

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As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a

universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas

pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário

relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.

(CHARTIER, 1998, p. 17)

Apresentada esta breve contextualização, podemos dar continuidade ao artigo a partir de

uma breve discussão sobre a importância do samurai na história japonesa e sua

construção como ideal nacional japonês durante a Restauração Meiji (1868).

Buscaremos apresentar algumas reflexões sobre este fato e, posteriormente,

adentraremos nas reminiscências deste processo nos mangás.

A Imagem do Guerreiro Samurai e sua Construção

Os samurais são considerados um dos principais representantes do que é ser japonês, na

visão ocidental, sobretudo. (SAKURAI, 2016, p.327) Porém os valorosos guerreiros

feudais japoneses sofreram um grande processo de ressignificação dentro da sociedade e

o do imaginário japonês, tendo este processo início, ironicamente, com o declínio do

estamento guerreiro durante a Restauração Meij (1868) e seu projeto de nacionalismo

moderno.

Para começarmos a compreender estes personagens dentro da sociedade feudal japonesa

temos que primeiramente entender sua origem. Os “proto samurais” surgem durante a

disputa de terras que ocorreram à partir do Século VIII no Japão4 . Como nos diz

Yamashiro:

Convém lembrarmos que estamos diante de uma sociedade eminentemente

agrária, na qual praticamente toda a atividade econômica está ligada ou

depende da produção agrícola. Por isso mesmo, toda tensão social, todos os

conflitos, armados ou não, giram quase sempre em torno de questões de terra.

E, enquanto a aristocracia metropolitana se compraz na fruição da vida de

lazer e culto ás belas artes e amor livre [...], surge e evolui no campo a classe

samurai. Em meio à labuta árdua cotidiana do lavrador e de incessantes

conflitos fundiários (estes mais violentos nas áreas pioneiras), forja-se o

caráter marcial e espartano dos novos guerreiros. (YAMASHIRO, 1993,

p.45)

4 Uma regulamentação sobre o uso de terras aparece no conjunto de leis conhecido como Leis Taika. Esse

conjunto de diretrizes planejava iniciar a unificação do país no poder imperial, porém a realidade

tangenciou completamente as expectativas dando oportunidades a grupos de guerreiros assumirem às

rédeas do país no século XII.

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Como Yamashiro nos traz em seu pensamento, a introspecção da corte japonesa em si

não possibilitou que os mesmos tomassem conhecimento da calamidade crescente que

os guerreiros poderiam se tornar em pouco tempo. O maior exemplo da rápida crescente

de status destes novo grupo, foi a revolta de Taira Masakado que conseguiu mobilizar

um grande contingente e conseguiu um relativo sucesso militar em suas empreitadas

iniciais contra o governo central, porém o maior destaque deste incidente foi a supressão

realizada por outros grupos de guerreiros e não do poder governamental. Tal fato

denotava a consolidação desta nova força no jogo de poderes daquele momento. Com o

reconhecimento da importância estratégica, militar e política que estes guerreiros

exerceriam a partir daquele momento, a corte estimula a cooptação dos mesmos. Então,

a partir do Século X, começam a surgir a denominação samurai para estes guerreiros,

como nos diz Stephen Turnbull, a palavra samurai deriva do verbo Subaru que pode ser

traduzido como servir; palavra esta que antes de ter seu significado estabelecido era

utilizado para denominar qualquer tipo de serviçal palaciano. (1996, p. 16-17)

Entretanto, não é somente a semântica do termo que nos é importante, acima de tudo os

samurais constituíam uma elite guerreira latifundiária que governou o arquipélago do

sol nascente por nada menos que sete séculos, através do Xogunato. Esta forma de

governo surge ao fim do conflito conhecido como Guerra Genpei (1180-1185)5, após a

guerra estabeleceu-se o Xogum como governante político-administrativo do Japão;

relegando o imperador à funções puramente religiosas (TURNBULL,2016). Vale

ressaltar que o recém estabelecido governo era feito para suprir as demandas do

estamento guerreiro, garantindo-lhes benesses em comparação ao restante da sociedade.

Em todo este espaço temporal chama a atenção para um “fenômeno” que ocorre pós a

Batalha de Sekigahara (1600) pondo fim à reunificação do Japão, instaurando assim, o

último xogunato conhecido como Tokugawa (1603-1868) que perdura até meados do

século XIX. Com o fim de um grande período de guerra muitos guerreiros se encontram

desempregados e sem senhores para servir, tornando este um período de inflexão para

os samurais. Foi neste período que começaram a surgir livros que buscavam apresentar

verdadeiros manuais éticos, morais e comportamentais que visavam nortear a vivência

dos samurais. Destes livros destacamos três deles devido a sua notoriedade: Bushido de

5 Primeira grande guerra civil no Japão que teve clãs samurais como protagonistas. No fim o clã

Minamoto alcançou a vitória e alguns anos após seu grande êxito, estabeleceram o primeiro Xogunato.

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Daidoji Yuzan, Hagakure de Yamamoto Tsunetomo e O Livro dos Cinco Anéis de

Musashi Myamoto. Estes livros acabaram influenciando grande parte do pensamento

nipônico desde seus respectivos lançamentos até a atualidade.

Estas obras supracitadas são o pilar fundamental para a concepção arraigada ao

imaginário de muitos acerca do que é de fato um samurai. Os ensinamentos destes livros

partem do princípio que a aceitação da morte deve ser o norteador da vida destes

guerreiros. O Bushido de Daidoji nos diz que “a vida é efêmera como uma gota de

orvalho” e o Hagakure inicia com a frase “o caminho do samurai é a morte”, para estes

autores a aceitação de que o fim de sua vida está próximo tornaria o serviço do guerreiro

para com o seu senhor mais efetivo. Estes excertos também apresentam duas

características bastantes relevantes: a primeira delas é a época em que estes

pensamentos são concebidos, ou seja, em meio a paz onde o samurai não poderia

desenvolver sua característica principal; a segunda é uma forte crítica as novas gerações

que não teriam a verdadeira concepção do caminho marcial.

Destes três autores, o caso mais especial e curioso é o de Musashi Miyamoto. Musashi é

um grande personagem dentro da história japonesa, pois o mesmo conseguiu se destacar

como um grande guerreiro e filósofo, mesmo durante a paz do período Tokugawa. O

espadachim vagou pelo Japão pondo suas técnicas a prova frente a outros duelistas,

tendo capitalizado uma invencibilidade, que teve seu ápice contra outro espadachim

invicto até o momento, Sasaki Kojiro.

Em 61 anos de vida, Musashi tornou-se uma lenda e um ideal para o povo

japonês, sem equivalência na cultura ocidental. Sua vida inspirou várias

histórias, peças teatrais, romances, filmes e séries para televisão; um dos

maiores navios de guerra construído no Japão durante a Guerra do Pacífico

recebeu seu nome. No japonês moderno, existem figuras de linguagem que se

referem ao caráter “musashiano”, e é provável que seu nome seja tão ou mais

conhecido do que importantes personalidades da história e cultura japonesas.

(WILSON, 2017, p.27)

Com estes ideais em mente, durante a restauração Meiji, buscaram recuperar estas ideias

e implementaram visando criar um arquétipo de japonês ideal para servir ao imperador.

Dois importantes exemplos desta ressignificação são o incentivo de leitura destes livros

durante o período e a escrita de readaptações destas questões, como o livro Bushido: A

Alma do Japão de Inazo Nitobe publicado no final do século XIX. Para

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compreendermos esta construção de identidade usaremos o conceito de tradição

inventada do Hobsbawm, que consiste em:

Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente

reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza

ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de

comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma

continuidade em relação ao passado. (HOBSBAWM, 2008, p. 9)

Como pudemos observar os samurais acabaram por se tornar figuras bastantes

utilizadas para se transmitir os ideais ditos japoneses pregados pelo ideal nacionalista

imperial. Com a escalada no nível de produção e a variedade de assuntos abordados

nos mangás, indubitavelmente os samurais apareceriam como protagonistas em

algumas destas histórias. O seguimento deste artigo busca apresentar alguns exemplos

de quadrinhos que apresentam samurais dentre seus personagens e como estes dão

continuidade aos ideais apresentados anteriormente.

A Katana em Preto e Branco: Representações dos Samurais nos Mangás

Para esta parte final do artigo, visamos trazer alguns exemplos de personagens

samurais em mangás e como eles ainda tem suas raízes na construção iniciada na Era

Meiji. Para tanto serão apresentados os mangás: Vagabond de Takehiko Inoue, Kozure

Okami (Lobo Solitário) de Kazuo Koike e Rurouni Kenshin de Nobuhiro Watsuki.

Começaremos a análise com Vagabond, esta obra se destaca primeiramente pela arte

primorosa de Takehiko na qual o autor consegue ser extremamente expressivo, não só,

nos ambientes de fundo mas assim como nas expressões e nas emoções dos

personagens. Na obra acompanharemos a história de Takezo Shimen e sua

transformação até se tornar Musashi Miyamoto. O autor ao longo da obra se propõe a

realizar uma releitura da já consagrada trajetória deste espadachim, trazendo um novo

ritmo narrativo e novas abordagens à questões voltadas ao público adulto.

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Figura 2- Capa do MangáVagabond que tem Musashi como protagonista

Fonte:http://vagabond.wikia.com/wiki/List_of_Vagabond_chapters_and_volumes?file

=Vagabond_-_Volume_1.png acessado em 7 de junho de 2018

A personagem de Takezo e sua transformação são a essência desta obra e neste aspecto

narrativo que reside a volta dos ideais que discutimos anteriormente. Takezo nos é

apresentado como um jovem imprudente e obstinado que buscava de todas as maneiras

possíveis se tornar o espadachim mais forte de todos. O artista representa esta primeira

impressão da personagem como algo bastante animalesco e selvagem em sua arte,

juntamente à maneira como os moradores da vila se referem ao garoto. Tudo começa a

mudar com a entrada do monge budista Takuan, o qual apresenta ao jovem uma nova

interpretação da vida e adiciona um novo propósito à Musashi.

A partir desta ponto começamos a acompanhar a jornada deste vagabundo e suas

andanças pelo Japão buscando sempre o auto aperfeiçoamento de suas técnicas e seu

espírito. Um importante adendo é a presença da filosofia “musashiana” expressa no

Livro dos Cinco Anéis que permeia inteiramente esta obras e com uma grande riqueza

de reinterpretações desta filosofia pelo autor. Então estas obras nos proporcionam

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entender as reflexões de Musashi e seu caminho para a construção de suas convicções

expressas em seus escritos.

Outra importante reinterpretação dada por Takehiko foi a figura de Sasaki Kojiro que

sempre era “relegado” anteriormente ao posto de rival de Miyamoto. Em Vagabond a

situação é bem diferente. A partir do Volume 14 da obra acontece uma quebra abrupta

de expectativa, pois sem mais nem menos somos transportados para o passado e

passamos a acompanhar a história de Sasaki Kojiro, desde sua infância até seus

primeiros passos no caminho da espada. O caminho desta nova personagem é bastante

carregado de linguagem visual, pois a personagem de Kojiro é surda. Este arco da

história é bastante divergente do que já acompanhávamos devido a maneira de se

enxergar o mundo da condição desta nova personagem que vislumbra a arte do

Kenjutsu6como forma de expressar seus sentimentos e anseios.

Figura 3- Primeiros Passos de Kojiro no Kenjutsu

6Kenjutsu arte marcial utilizada pelos espadachins do Japão Feudal, existindo diversas escolas por todo o

país.

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Fonte:https://www.tumblr.com/tagged/kanemaki+jisai acessado em: 10 de junho de

2018

O segundo exemplo é Lobo Solitário, obra clássica e referência quando o assunto é

obras voltadas a um público mais adulto. Nesta obra somos apresentados a uma

Vendetta, onde nossos protagonistas buscam provas e a oportunidade de se vingarem.

Na história acompanhamos Itto Ogami um executor do Xogunato Tokugawa que

levava uma vida normal com sua família, entretanto em um dia sua esposa é

assassinada e ele é acusado de alta traição e sentenciado a morte. Determinado a

recuperar a honra de sua família Itto e seu filho Daigoro resolvem enfrentar a tudo e a

todos em busca de vingança.

Esta obra se vale bastante do manancial de filmes de samurais que eram muito famosos

na época, sua arte possui um sequência de quadros que lembra os filmes da década de

1970, outro fator que corrobora esta ideia são as onomatopeias que realçam a imersão

das cenas. Juntamente destes filmes temos um personagem extremamente

estereotipado, Itto além de ser um exímio espadachim é mestre estrategista, “filosofo”

e pai. Se torna bastante comum na obra termos monólogos de Itto falando sobre honra,

estratégia, morte e outros assuntos.

Marca registrada de Lobo Solitário é que seus volumes, muitas vezes, parecem uma

série de televisão episódica; tendo cada capítulo do volume uma história curta e com

final fechado. Estas histórias são importantes para se analisarem, visto que há uma

grande gama de assuntos e temas presentes nelas. Tudo se deve a forma como a dupla

de personagens sobrevive, vendendo seus serviços a qualquer um disposto a pagar;

funciona quase como a série A-TEAM (1983-1987). Nestas histórias também veremos

os dois pontos de vista da imagem do samurai, sendo ele bastante idealizado como na

figura de Itto, por exemplo, e outra representação mais “mundana” com os outros

personagens que vão surgindo ao longo da aventura.

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Figura 4- Itto e Daigoro

Acessado em:https://www.popoptiq.com/lone-wolf-and-cub-is-a-landmark-comic-

worthy-of-its-praise/10 de junho de 2018

Por último e não menos importante, temos Rurouni Kenshin conhecido no Brasil como

Samurai X, atraiu uma legião de fãs no final dos anos 1990 devido a sua história

intrigante e personagens carismáticos. Na história acompanharemos a redenção de

Kenshin Himura que após muita matança decide mudar completamente sua vida e

achar a paz que ele tanto sonhou.

Dentre todos os exemplos aqui apresentados, a história de Kenshin se sobressai como

reprodutor dos ideais de samurais. A busca de redenção do protagonista permite

diversos diálogos inspirados em filosofia guerreira e conceitos zen budistas. A própria

Katana (espada longa) de Kenshin é diferente das demais, pois possui a face cortante

voltada para o corpo de seu usuário, reafirmando seu voto de não voltar a matar

novamente, tal fator adiciona uma nova dinâmica nos combates; tornando seus

combates bem dispares se comparados aos presentes nos outros mangás citados.

Em suma esta obra nos traz uma visão assumidamente romântica de um período

singular para os guerreiros samurais, o Bakumatsu. Segundo Feijó:

Durante o Shogunato Tokugawa o Japão fechou suas portas para o exterior.

Este cenário, que durou aproximadamente dois séculos e meio sofreu uma

mudança na segunda metade do século XIX uma vez que o bakufu,

pressionado pelas potências ocidentais (principalmente pelos Estados

Unidos) acaba abrindo suas portas para diversas nações, como resultado uma

nova guerra civil começa. A este período de turbulência que levou ao final do

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Shogunato Tokugawa e o retorno do poder de fato às mãos do imperador deu-

se o nome de bakumatsu. (FEIJÓ, 2013, p.37)

Podemos analisar esta obra também como uma grande metáfora desta transição se

utilizando da trajetória da personagem principal. Durante a obra ocorre a morte do

espírito guerreiro de Kenshin, o qual, passo a passo, vai obtendo a paz que ele almejava;

entretanto o mesmo se vê envolvido em toda a convulsão social causada pelo

Bakumatsu e tendo que adentrar nestas questões.

Conclusão

O objetivo deste artigo não era adentrar em questões mais complexas de análise dos

mangás, mas sim apresentar algumas pequenas questões que surgiram durante a

pesquisa realizada para a monografia e para o projeto de pesquisa do mestrado em

História7. As reflexões iniciadas aqui serão desenvolvidas posteriormente adentrando

em questões mais específicas de cada obra. Também espero acalentar as discussões de

colegas da área sobre o quanto pode ser importante os questionamentos sobre os mangás

como fonte de pesquisa. Por mais complicado e dificultoso que possa parecer a pesquisa

em um tema tão distante de nossa realidade e as enormes barreiras em adquirir

bibliografias sobre o assunto, o cenário vem mudando dentro da academia nos últimos

anos; provando assim a proficuidade da pesquisa nessa área.

Referências Bibliográficas

BRENNER, Robin E. Understanding manga and anime. West Port: Libraries

Unlimited, 2007.

7 A pesquisa está em andamento junto ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pelotas

(UFPel)

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CHARTIER, Roger. AHistória Cultural: Entre Práticas e Representações. Trad. de

Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988

DAIDOJI, Yuzan. Bushido: O Código do Samurai. São Paulo: Madras, 2003.

EISNER, Will. Narrativas Gráficas, tradução Leandro Luidgi Del Manto- São Paulo:

Devir, 2005.

_________. Quadrinhos e Arte Sequencial, tradução Luís Carlos Borges- São Paulo:

Martins Fontes, 1999.

FEIJÓ, Luiz Carlos Coelho. Narrativa e representação nos quadrinhos: a restauração

Meiji (1868) nos mangás. 2013. 135 f. Dissertação (Mestrado em História) -

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