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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DOUTORADO
ROSANO FREIRE CARVALHO JUNIOR
ANÁLISE DA RELAÇÃO LITERATURA E SOCIEDADE EM ANTONIO CANDIDO E
RAYMOND WILLIAMS: interpretando os fatores sociais que atuam sobre a obra
Natal
2019
ROSANO FREIRE CARVALHO JUNIOR
ANÁLISE DA RELAÇÃO LITERATURA E SOCIEDADE EM ANTONIO CANDIDO E
RAYMOND WILLIAMS: interpretando os fatores sociais que atuam sobre a obra
Tese apresentada ao Programa dePós-Graduação em CiênciasSociais, da Universidade Federal doRio Grande do Norte, como requistopara obtenção do título de Doutorem Ciências Sociais.
Área de concentração:Complexidade, Cultura ePensamento social
Orientador: Prof. Dr. Gilmar Santana
Natal
2019
ROSANO FREIRE CARVALHO JUNIOR
ANÁLISE DA RELAÇÃO LITERATURA E SOCIEDADE EM ANTONIO CANDIDO E
RAYMOND WILLIAMS: interpretando os fatores sociais que atuam sobre a obra
Tese apresentada ao Programa dePós-Graduação em CiênciasSociais, da Universidade Federal doRio Grande do Norte, como requisitopara obtenção do título de Doutorem Ciências Sociais.
Área de concentração:Complexidade, Cultura ePensamento social
Data da defesa: 29 / 05 / 2019
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Prof. Dr. Gilmar Santana (orientador)
____________________________________________________________
Prof. Dr. João Batista de Morais Neto, IFRN (Examinador Externo à Instituição)
____________________________________________________________
Profª. Dra. Lenina Lopes Soares Silva, IFRN (Examinadora Externa à Instituição)
_____________________________________________________________
Profª. Dra. Tania Maria de Araújo Lima, UFRN (Examinadora Externa ao Programa)
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Anaxsuell Fernando da Silva, UNILA (Examinador Interno)
Natal
2019
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e à UFRN pelo
espaço a mim concedido na instituição.
Agradeço ao Prof. Dr. Gilmar Santana, pelo trabalho sério e paciente de orientação.
Agradeço ao CNPq, pela bolsa de doutorado que, durante três dos quatro anos do
curso, custeou as pesquisas.
Agradeço às/aos professores/as que, gentilmente, aceitaram compor esta banca.
Agradeço a Otânio e a Jeferson, secretários deste programa de pós-graduação, que
atuam com muita diligência, atenção e profissionalismo.
Agradeço, por fim, à minha família, aos amigos de sempre e à minha companheira,
Marília, pelo apoio e pela inspiração.
RESUMO
O modo de analisar a literatura a partir de sua relação com o mundo social sempre
foi um problema caro à sociologia da cultura. A partir do segundo quartel do século
XX, a necessidade de construir uma teoria que associasse interpretação sociológica
e análise formal se impôs aos pensadores da área. As maneiras pelas quais
Raymond Williams e Antonio Candido realizaram essa tarefa são dois dos capítulos
mais fecundos dessa tradição de pensamento. O presente trabalho buscou realizar
uma análise comparativa entre os dois pensadores, visando elucidar como cada um
deles concebe a relação da literatura com a sociedade e como os fatores sociais
devem entrar na análise de uma obra literária. Para tanto, realizou-se uma leitura
crítica de Literatura e Sociedade e O Discurso e a Cidade, de Antonio Candido, e
Marxismo e Literatura e O Campo e a Cidade, de Raymond Williams, obras nas
quais eles expõem suas respectivas visões acerca do fenômeno literário e exercitam
suas análises críticas. Procurando expor as principais semelhanças e divergências
dos pensadores e buscando uma reconstrução de seus programas teórico-
metodológicos em termos dos objetivos a que se propõem e dos resultados que
alcançam, o presente trabalho apontou para uma não equivalência entre as
propostas de Candido e Willimas porque elas diferem no modo de conceber e
analisar os fatores sociais que atuam sobre a obra literária.
Palavras-chave: Raymond Williams. Antonio Candido. Sociologia da Cultura.
Sociologia da Literatura. Literatura. Sociedade
ABSTRACT
The way of analysing the literature from its relation to the social world has always
been important for cultural sociology. Already in the second quarter of the century XX,
it has emerged the need to set up a theory, from the formal analysis of literary works,
associated with the sociological interpretation. The different routes in which Raymond
Williams and Antonio Candido took to accomplish this task are two of the most fertile
chapters of this tradition of thought. Thereby, this present work search for
accomplishing a comparative analysis between those two sociologists to clarify as
each one of them conceived the relationship between literature and society. In other
words, the way social factors should be analysed in literary works. For this, it was
necessary fulfilled a critical reading of "Literatura e Sociedade" and "O Discurso e a
Cidade" from Antonio Candido, and "Marxism and Literature" and "The Country and
the City" from Raymond Williams. It was in those works that the authors expressed
their respective visions concerning the literary phenomenon and implemented their
critical analysis. In order to explore the main similarities and divergences between
them and realign their theoretical-methodological programs in terms of goals
themselves considers and of results to reach them, the present work claims that an
equivalence between Candido and Willimas' proposals it is not possible because
they differ in the way to conceive and to analyze the social factors that act on the
literary composition.
Keywords: Raymond Williams. Antonio Candido. Sociology of Culture. Sociology of
Literature.
RESUMEN
La manera de analizar la literatura de su relación con el mundo social era siempre un
problema costoso a la sociología de la cultura. En el segundo cuarto del siglo XX, la
necesidad aparecía construir una teoría que se asoció a la interpretación
sociológica, el análisis formal de composiciones literarias. Las maneras para las
cuales Raymond Williams y Antonio Candido habían llevado con esta tarea son dos
de los capítulos más fértiles de esta tradición del pensamiento. El actual trabajo
buscado para llevar con un análisis comparativo entre los dos pensadores, siendo
dirigido para aclarar pues cada uno de ellos concibe la relación de la literatura con la
sociedad y mientras que los factores sociales deben entrar en el análisis de una
composición literaria. Con este fin, se presentó una lectura crítica de Literatura e
sociedade e O discurso e a cidade, de Antonio Candido, e Marxismo e Literatura e O
campo e a cidade, de Raymond Williams, en la que exponen sus puntos de vista
respectivos sobre el fenómeno y ejercitan su análisis crítico. El buscar para exhibir
las semejanzas y las divergencias principales de los pensadores y buscar una
reconstrucción de sus programas teórico-metodológicos en términos de objetivos el
que si considere y de los resultados que alcanzan, el actual trabajo señaló con
respecto a una equivalencia no incorpora las ofertas de Candido y de Willimas
porque diferencian de la manera de concebir y de analizar los factores sociales que
actúan en la composición literaria.
Palabras clave: Raymond Williams. Antonio Candido. Sociología de la Cultura.
Sociología de la Literatura.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Retrato de Antonio Candido…………………………………………….12Figura 2 – Retrato de Raymond Williams………………………………………….13Figura 3 – Capa do livro Literatura e Sociedade………………………………….92Figura 4 – Capa do livro Marxismo e Literatura………………………………….117Figura 5 – Capa do livro O discurso e a cidade………………………………….139Figura 6 – Esquema da dialética da ordem e da desordem............................144Figura 7 – Esquema conceitual: teoria da mediação de Antonio Candido......144Figura 8 – Capa do livro O campo e a cidade…………………………………...155
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................12
2 SOCIOLOGIA DA ARTE E DA LITERATURA......................................19
2.1 O panorama sobre os estudos de arte..............................................19
2.2 Sociologia, sociologia da arte e disciplinas humanísticas.............22
2.3 A questão do valor e a arte no mundo social...................................26
2.4 Reação das disciplinas humanísticas...............................................32
2.5 As novas posições em sociologia da arte e da literatura………....37
2.6 Aproximações e possíveis divergências entre Candido e Williams
para análise da literatura....................................................................45
3 TRAJETÓRIAS......................................................................................50
3.1 Antonio Candido e herança familiar..................................................50
3.2 Entrada na Universidade, grupo intelectual e atividade crítica
profissional...........................................................................................53
3.3 Sociologia, pensamento social brasileiro, cultura e deslocamento
institucional..........................................................................................57
3.4 Raymond Williams e herança familiar...............................................69
3.5 Entrada na universidade e ambiente intelectual..............................72
3.6 O trabalho na educação de adultos...................................................75
3.7 Grupo político e intelectual................................................................77
3.8 Construção de uma nova área de conhecimento............................81
4 OS PRINCIPAIS POSTULADOS TEÓRICOS......................................87
4.1 Antonio Candido..................................................................................87
4.1.1 A identificação dos elementos externos (sociais) e a restrição de seu
alcance explicativo.................................................................................92
4.1.2 Equacionando elementos internos e externos....................................103
4.2 Raymond Williams.............................................................................108
4.2.1 A influência da tradição idealista britânica e o marxismo das obras
iniciais...................................................................................................111
4.2.2 A materialidade da cultura em Marxismo e Literatura.........................117
5 O EXERCÍCIO ANALÍTICO.................................................................136
5.1 As análises de Antonio Candido......................................................136
5.1.1 Do contexto para o texto: como as obras incorporam elementos sociais
em Dialética da Malandragem e em De Cortiço a Cortiço..................140
5.2 As análises de Raymond Williams...................................................153
5.2.1 As imagens do campo e da cidade na história da literatura inglesa...155
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................171
REFERÊNCIAS……………………………………………………………181
13
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo explicar como se construíram os programas
teórico-metodológicos de Raymond Williams (1921 – 1988) e Antonio Candido (1918
– 2017) para a sociologia da cultura. Partiremos da percepção de que é necessário
compreender e explicar a sociedade em que vivemos. Essa tarefa se apresenta em
momentos cruciais para atores sociais alinhados historicamente por condições
sociais objetivas, que fazem com que eles assumam o desafio de interpretar o
mundo a sua volta.
Ambos são pensadores com grande alcance em seus respectivos meios
intelectuais. Antonio Candido foi crítico literário, sociólogo e professor. De um lado,
Candido atuou na sociologia, onde desenvolveu estudos sobre o processo de
desenvolvimento da sociedade brasileira. De outro, escreveu obras que tornaram-se
a base para o debate da formação literária nacional, sendo, por isso, considerado o
principal expoente da crítica literária brasileira.
Já Raymond Williams iniciou sua carreira intelectual como crítico literário, mas
rapidamente expandiu seu interesse para outras formas de expressão cultural, como
o cinema, o teatro, a televisão e o sistema de comunicações. Sua principal
contribuição encontra-se na reformulação do conceito de cultura, o que mudou a
maneira de analisar a produção e os objetos culturais.
Figura 1: Retrato de Antonio Candido
Fonte: USP Imagens/ Marcos Santos (2013)
Figura 2 – Retrato de Raymond Williams
14
A tentativa de aproximar os dois críticos nasceu da impressão de que ambos
buscam atuar em duas frentes interpretativas, que se complementam: de um lado,
expandir a compreensão sobre a literatura e as obras literárias por meio do estudo
das dinâmicas sociais que as envolvem; de outro, aprofundar o conhecimento sobre
a sociedade em que se vive a partir da análise do texto literário.
Para levar a cabo tal tarefa, Raymond Williams e Antonio Candido tiveram que
considerar que a sociologia de orientação materialista, que foca nos aspectos
estruturais das sociedades, é capaz de oferecer explicações sobre o fenômeno
literário. Por outro lado, também tiveram que admitir a arte e a literatura como um
tipo de discurso especializado e que, por isso, requerem um tratamento diferenciado
de análise.
A necessidade de aliar as duas perspectivas, em nossa visão, é marca do
período histórico em que viveram e produziram suas obras. Naquele momento, o ato
de interpretar a realidade requeria um esforço de tentar equilibrar – isto é, forjar uma
solução teórica entre – as duas principais correntes de pensamento que, até aquele
momento, se debruçavam sobre a arte e a literatura.
Desse modo, na Inglaterra, Raymond Williams logrou êxito em aliar o aporte
teórico marxista ao padrão de análise textual tradicionalmente britânico para
construir um programa vigoroso da crítica da cultura. No caso do Brasil, e de modo
semelhante, Antonio Candido uniu à análise de obras literárias a interpretação
sociológica do contexto social no qual essas obras foram produzidas, com o objetivo
de forjar um campo interdisciplinar de crítica literária.
Fonte: Mark Gerson (1985)
15
Metodologicamente este trabalho está a meio caminho da história social das
ideias e da sociologia dos intelectuais. Tem-se a perspectiva de que as formulações
teóricas e analíticas do autores se inscrevem num contexto histórico específico, que
dá o conteúdo característico do que é debatido, mas que se localizam também
dentro de um espaço dos possíveis, formado pelo conjunto das estruturas e das
relações sociais que enredam os pensadores. Esse espaço não apenas limita o que
pode ser feito, mas impulsiona em determinado sentidos a discussão e o
desenvolvimento das ideias.
Em um nível amplo, pode-se dizer que muitas das concepções de Antonio
Candido e de Raymond Williams foram aplicadas a eles próprios, à guisa de
elucidação de suas respectivas obras – de quais preocupações e interesses
particulares envolveram a confecção delas. De Candido (2006), a famosa
caracterização da relação texto e contexto: ler nos textos dos autores o que
denuncia os seus respectivos contextos e, nos contextos, buscar a compreensão
geral de suas obras. De Williams (2001b), o também conhecido método de analisar
pequenos grupos culturais por meio da colocação de questões concernentes à
formação social (sobretudo, mas não só, questões de classe) e da influência que
essa posição social relativa tem para o significado cultural dos membros desse
círculo.
Os postulados de Pierre Bourdieu sobre o processo de produção e
reprodução da dominação simbólica também serviu de norte para este trabalho.
Bourdieu (1989; 2003) fala de como a posse de capitais específicos, incorporados,
predispõem um ator social a atuar num espaço estruturado de posições, cujas
propriedades dependem justamente da sua posição nesses espaços; a partir da
posição relativa de cada ator dentro desse espaço pode-se medir a influência e o
alcance dele no campo e, assim, compreender melhor suas estratégias. Esses
elementos foram visados neste estudo a respeito de Candido e Williams, mas
comparativamente, buscando mostrar como as posições deles nos seus respectivos
espaços influenciaram suas obras e como isso repercutiu em diferenças teóricas e
analíticas decisivas.
Como as formulações de Bourdieu a respeito de habitus e campo tendem
para o polo objetivista das relações sociais, evitou-se utilizá-las aqui em suas
acepções originais. Preferiu-se o uso dos termos meio ou contexto intelectual
específico para se referir a essas áreas de atuação relativamente autônomas
16
(academia, ciência, etc) como forma de dar menos ênfase à reprodução social e
abrir maior margem para reflexividade dos atores.
Estudiosos de orientação bourdieusiana, como Sérgio Miceli e Heloísa
Pontes, também ofereceram apoio metodológico ao trabalho. Miceli (2001) forneceu
as lentes para pensar o peso dos capitais escolar e cultural num espaço de disputa
como a carreira docente e Pontes (1998) para refletir sobre as oportunidades e
espaços abertos pelas redes de amizade e coleguismo.
Cabe ressaltar que a história das ideias é tomada numa concepção muito
singular, a saber: a de Karl Mannheim. Ao lançar as bases para um programa da
sociologia da cultura, Mannheim (2014) sustentou a noção de que todos os
processos mentais humanos têm uma dimensão social e de que a sociologia é uma
tentativa de articular o caráter social desses processos. Para não incorrer no risco
de idealizar uma produção intelectual, deve-se colocá-la frente a uma situação
concreta – isto é, entender o pensamento introduzido numa situação. Nesse sentido,
pode-se empregar a sociologia da cultura à história do pensamento porque as
situações sociais são sempre parte dos processo mentais. Assim, a sociologia da
cultura analisa as expressões do pensamento, desenha o conjunto das relações
sociais nas quais se deram essas expressões e, por fim, reconstrói o significado
delas. Numa palavra:
A sociologia do espírito não é uma indagação sobre a causalidadesocial do processo intelectual, mas um estudo do caráter social deexpressões cuja voga não revela nem manifesta seu contexto deação. A sociologia do espírito procura descobrir e articular os atos deassociação inerentes à comunicação de ideias não manifestas(MANNHEIM, 2014, p. 27)
Buscou-se, neste trabalho, a reconstrução do percurso intelectual dos autores
e, neles, a identificação dos principais momentos, marcadamente a confecção e a
publicação das obras de maior relevo. A partir disso, circunscreveu-se esses
momentos em termos das exigências e possibilidades abertas pelos seus contextos
intelectuais, visando sempre entender como eles influenciaram as formulações em
torno da apreciação dos fatores sociais para a interpretação da obra literária. Desse
modo, elaborou-se o seguinte recorte: Marxismo e Literatura e O Campo e a Cidade,
de Raymond Williams; Literatura e Sociedade e O Discurso e a Cidade, de Antonio
Candido.
As duas primeiras obras de cada autor são correspondentes a um momento
17
de maior maturidade e sistematização de seus pensamentos. Inscrevem sua
necessidade nesta pesquisa por serem uma reflexão teórica: encontram-se nestas
obras os postulados centrais do pensamento dos autores, as noções mais
importantes a respeito da relação literatura e sociedade, bem como seus principais
conceitos. Desse modo, também identifica-se o debate que toca mais diretamente
aos objetivos desta pesquisa: como deve se realizar e por onde deve seguir o
estudo dos elementos sociais na obra de arte.
Na segunda obra selecionada de cada autor, encontra-se, não uma discussão
teórica, mas o método proposto por cada um deles em prática. Em O Discurso e a
Cidade, Candido trabalha algumas de suas grandes preocupações, tais como a
estruturação do objeto artístico a partir estímulos externos e internos; portanto, do
livro, foram selecionados seus dois mais famosos ensaios: “Dialética da
Malandragem” e “De cortiço a cortiço” (que analisam, respectivamente, os romances
Memórias de um Sargento de Milícia e O Cortiço). Em O Campo e a Cidade,
Williams estuda as relações que o desenvolvimento do mundo urbano e rural guarda
com a literatura inglesa (passando em revista obras que vão desde o século XVI até
o XX), tentando evidenciar as imagens que cada momento histórico produz destes
modos de vida. Sendo assim, este exercício crítico foi importante para entender
como cada um dos pensadores relaciona objeto artístico e meio social, literatura e
transcurso histórico.
Para chegar a tal ponto foi necessário, inicialmente, a realização de uma
ampla revisão bibliográfica dos dois autores, que passou por obras deles próprios
mas também de alguns comentadores. A respeito de Raymond Williams, sabe-se a
importância do esforço de Cevasco para a introdução ao estudo do autor galês no
Brasil, com livros seu pensamento e obra (2001) e sobre os grupos dos quais fazia
parte e a disciplina que ajudou a criar e estabelecer (2016). Existe também uma leva
recente de trabalhos acadêmicos sobre Williams com reconhecida relevância. Nesta
rubrica, entram a dissertação de Rivetti (2015) e as teses de Glaser (2008) e de
Azevedo (2014). No caso de Candido, um dos pensadores brasileiros com a maior
fortuna crítica, destacam-se as contribuições reunidas em Esboço de figura (1979) e
Dentro do texto, dentro da vida (1992). A isso somam-se as relvantes apreciações de
Schwarz sobre sua crítica (2012; 1992) bem como os trabalhos acadêmicos de
Ramassote (2006; 2013) e de Jackson (1998).
18
Apesar de serem dois críticos de cultura com grande alcance em seus
respetivos meios intelectuais – cuja marcas residem na construção de uma teoria
com a relação arte e sociedade como ponto central e em anos de atividade
intelectual e profissional, legaram aos dois larga influência nos debates e temas da
área – não se percebe um número significativo de trabalhos acadêmicos que tentem
aproximar os dois autores, com exceção de Cevasco (2004) e Paixão (2015).
Assim, este trabalho tenta atuar nessa lacuna, revisando e criticando ambos
os autores. No que se refere a Candido, este estudo pode ajudar a dimensionar o
que significa, atualmente, o programa teórico mais renomado para a sociologia da
literatura no Brasil e que durante muito tempo polarizou em torno de si a cultura
como objeto de estudo.
No que se refere a Raymond Williams, sabe-se que ele foi uma das principais
influências para o campo das humanidades a partir do terceiro quartel do século XX.
No Brasil, tem despertado interesse recente – mais ou menos nos últimos vinte
anos. Sempre mais estudado no campo da comunicação, em curto prazo tem
adentrado o campo das Ciências Sociais. Acreditamos que este trabalho pode
auxiliar no estudo mais sistemático, por aqui, do legado da obra desse autor para a
sociologia da cultura.
A discussão aqui instigada também pode contribuir para o campo da
metodologia das Ciências Sociais no âmbito das análises literárias, explicando,
esclarecendo e pondo em diálogo dois grandes arcabouços teóricos.
Ainda que as semelhanças entre os dois pensadores sejam visíveis, a
solução teórica alcançada por cada um deles guarda diferenças importantes para
um programa de sociologia da cultura, sobretudo no que tange ao modo de
relacionar a literatura aos fenômenos sociais e à história.
Parte-se da hipótese de que essas distinções se estruturam como respostas
aos respectivos contextos sociais e intelectuais em que estavam inseridos os
autores. Especificamente, os contextos sociais e intelectuais de cada pensador
lançaram desafios específicos, que têm a ver com o estatuto da ciência e do
pensamento social em cada país e com as questões concernentes aos respectivos
projetos nacionais de cada lugar.
Ao realizar esse cotejo, espera-se, de fato, oferecer não respostas definitivas,
mas importantes subsídios para melhor compreender os dilemas, objetivos e
necessidades dessa área de estudo. As diferenças de concepção, na realidade, são
19
um primeiro passo de um trabalho que visa dar uma contribuição no terreno teórico-
metodológico das pesquisas em arte e literatura, visando elucidar como os distintos
modos de equacionar a relação entre fenômeno social e a obra de arte repercutem
em visões sociológicas divergentes sobre a sociedade e sobre a literatura.
No primeiro capítulo deste trabalho, expõe-se a grande discussão dentro do
campo de estudos da arte no que tange às principais correntes de pensamento que
dominaram a área. Assim, é discutida a influência do idealismo e do materialismo, o
lugar da sociologia nesse debate e o surgimento de uma concepção que visa unir as
duas abordagens, da qual, em nossa visão, ambos autores participam.
O segundo capítulo tenta iluminar os principais pontos da trajetória de
Raymond Williams e de Antonio Candido que direcionam seus respectivos projetos
intelectuais. Desse modo, apresentam-se a origem social e a inserção de ambos na
universidade, os grupos intelectuais aos quais se filiaram e a posição que eles
assumiram no campo científico e intelectual de meados do século XX, o que levou,
nos dois casos, à formação de uma área interdisciplinar de estudo.
O capítulo três discute as obras que pode-se chamar de manifesto teórico dos
autores, isto é, como eles armam teoricamente suas respectivas visões de análise
literária e de crítica de cultura. Procura-se discutir como, em Marxismo e Literatura,
de Raymond Williams, e em Literatura e Sociedade, de Antonio Candido, os
pensadores solucionam a questão da relação das obras literárias com o mundo
social – investigando, principalmente, como eles concebem o tipo de influência do
meio sobre a obra.
No quarto e último capítulo, debate-se o modo pelo qual os pensadores
realizaram seus respectivos projetos teóricos em obras de cunho analítico. O
objetivo é mostrar como, em cada uma das duas obras, há ênfases analíticas
distintas, expressas não só nas temáticas, mas, acima de tudo, em interesses
divergentes.
20
2 SOCIOLOGIA DA ARTE E DA LITERATURA
O objetivo deste capítulo é traçar um panorama do debate em torno das
pesquisas em arte e literatura. Não uma revisão completa de trabalhos ou temas,
mas um quadro no qual se localizem as principais questões concernentes à
sociologia da arte e da literatura. Esse movimento ajuda a compreender em que
ponto da discussão localizam-se os autores, objetos de estudo deste trabalho, e qual
elemento investiga-se na obra deles.
2.1 O panorama sobre os estudos de arte
De início, é importante ter em vista que a arte faz parte de um domínio
complexo, com intensos debates a respeito de sua definição e significado. Dito de
outro modo, a área é de difícil consenso e abriga as mais variadas disputas.
Convergem para este campo discursos que partem da academia, do estado, do
mercado, de colecionadores, de um artista ou um grupo, etc. Nesse sentido, a
própria sociologia da arte está em disputa no campo (FREIRE, 2018, p. 62).
No entanto, a arte foi historicamente governada pelos estetas, críticos e
filósofos. As diversas teorias produzidas por esses tinham o objetivo de dominar o
entendimento a respeito do fenômeno, e traziam a reboque um critério classificatório
(o que é ou não arte) e um critério valorativo (boa ou má arte).
Embora as diversas teorias (imitação, institucional, formalista, dentre outras)
divirjam entre si, elas partem de uma base comum: o estudo dos aspectos formais
da arte. Com isso quer se dizer que o foco recai sobre as técnicas e os meios
utilizados na produção da obra, o conteúdo da linguagem ou da imagem, as
influências estéticas mútuas dentro de uma tradição, geração ou período. Em uma
palavra, a arte é vista e interpretada por intermédio de uma “perspectiva internalista”
(ZOLBERG, 2006, p. 34).
Este parâmetro leva a um tipo de equiparação entre a obra e o criador: existe
a crença de que, em algum nível, as características pessoais do criador de arte são
responsáveis pela obra, que passa a ser considerada uma expressão individual.
21
Desse modo, as grandes obras são tidas como expressão de uma grande
personalidade – um gênio, por assim dizer (ZOLBERG, 2006, p. 34).
Este elemento, chamado de singularidade, é fundamental para estetas e
filósofos, porque a perspectiva internalista, buscando características formais para
especificar obras, autores e períodos, claramente se beneficia da raridade de uma
obra ou do caso singular do artista. Mesmo nos tipos de arte comerciais e inerentes
à era da reprodutibilidade técnica (fotografa, cinema) ocorreu a aparição de um
discurso semelhante ao das artes plásticas, a chamada teoria do autor, que tem
como objetivo apontar um único indivíduo como responsável pela criação do objeto
de arte (ZOLBERG, 2006, p. 35).
A sociologia, por outro lado, nasce da concepção de que a vida em sociedade
tem algum grau de permanência e previsibilidade. É passível, pois, de ser entendida
e explicada por meio de leis (lógicas ou causais). A busca pela compreensão do que
mantêm as sociedades unidas ao longo do tempo ou como elas se transformam (em
outros termos, estabilidade e previsibilidade) têm ocupado o pensamento ocidental
nos últimos dois séculos (OLIVEIRA, 1984, p. 83).
É bem verdade que a ciência e a arte têm alguma similaridade como formas
de expressão e comunicação e muitos dos princípios e das questões que estão na
origem da sociologia já animaram artistas e literatos. Mas quando se debruça sobre
arte ou literatura, a sociologia crê que estas atividades podem revelar algo sobre a
organização ou estrutura da sociedade (OLIVEIRA, 1984, p. 85-86). E é aqui que
radica a diferença de perspectiva entre os sociólogos e os estetas e humanistas.
Para os cientistas sociais, é um imperativo do ofício historicizar o fenômeno
arte. Do mesmo modo, também os artistas são produtos de seu tempo e sua
sociedade. Portanto, um artista, mesmo o mais consagrado, também estava sujeito
a todo tipo de condicionamentos sociais – de classe, de gênero ou de raça, por
exemplo. Seu gênio, isto é, sua criatividade, se desenvolveu dentro de um campo de
possibilidades que limitaram suas escolhas (FACINA, 2004, p. 10).
Em outras palavras, os cientistas sociais se guiam pelo pressuposto de que a
arte deve ser contextualizada, tanto de modo geral, com a delimitação no tempo e
no espaço, quanto de modo mais restrito, em relação a estruturas institucionais,
normas de recrutamento, treinamento profissional, recompensa e patronato. Em
suma, cientistas sociais dedicam-se a entender a relação da obra e do artista com
22
instituições políticas e ideologias e tudo o que for para além da ordem estética
(ZOLBERG, 2006, p. 38).
Sociólogos e cientistas sociais se orientam por uma perspectiva chamada
externalista, e vão de encontro às características que estetas, filósofos e críticos
atribuem à arte. Pois, ao passo que críticos e filósofos apreciam a singularidade na
arte, os cientistas sociais buscam a regularidade e a tipicidade nos seus objetos de
estudo (ZOLBERG, 2006).
Sob a perspectiva externalista, que baseia a abordagem tipicamente
sociológica, a obra de arte faz parte de um processo que envolve não apenas um
indivíduo, mas uma cadeia de produtores, organizados por certas instituições e
orientados por determinadas tendências históricas. Desse modo, chega-se à
conclusão de que o valor da obra não reside apenas em suas qualidades formais,
mas provém também de certas condições externas (ZOLBERG, 2006, p. 38).
Não que os sociólogos tenham o mesmo enfoque, até porque as diversas
tradições sociológicas diferem quanto aos aspectos que focalizam na sociedade:
umas se debruçam sobre microinterações entre os atores sociais, em pequenas
redes, fazendo uma análise de curta distância; outras buscam os padrões de
funcionamento das estruturas sociais no decurso histórico, procurando realizar
análises de amplo alcance. Em que pesem as diferenças, fica claro que são os
aspectos “extra-estéticos” os priorizados na análise (ZOLBERG, 2006, p. 38-39).
Pelo exposto, percebe-se que o ponto de divergência entre as duas
perspectivas é a fonte do valor estético da arte e como analisá-lo. Se para filósofos e
críticos da arte o valor provém das características formais e da personalidade
diferenciada do criador, levando à noção de singularidade, os cientistas sociais são
instigados pelo interesse em desvendar a natureza social do fenômeno de arte.
Para os sociólogos, deixar de lado as preferências individuais e esquivar-se
de qualquer postura valorativa é imperativo do fazer científico. A busca por
objetividade nos seus trabalhos, com clara distinção entre o que é gosto pessoal e o
que é pesquisa, também compõe essa atividade.
A divergência entre as duas perspectivas, além de ser de ordem
epistemológica, é também de ordem institucional (política, por assim dizer).
Filósofos, estetas, críticos e todos aqueles ligados às disciplinas humanísticas
arrogam para si o domínio sobre o valor estético, e todas as discussões de cunho
formal.
23
Esse ponto, ao invés de resvalar em uma postura acusatória para com os
humanistas, leva a debater a conformação da própria sociologia da arte dentro do
grande corpo de conhecimentos que é a Sociologia. O estatuto da arte como objeto
de estudo sempre foi preterido pelos sociólogos.
2.2 Sociologia, sociologia da arte e disciplinas humanísticas
A sociologia é uma disciplina que nasceu no século XIX; portanto,
relativamente nova quando comparada com outras ciências, como a medicina ou a
matemática. A sociologia é uma construção intelectual que surgiu como resposta às
transformações sociais pelas quais passava a Europa naquele período. Apesar de já
ter construído robusto arcabouço teórico, ainda é considerada uma disciplina em
processo formativo.
Como herança desse passado, os sociólogos são facilmente envolvidos pelas
temáticas que de uma maneira ou de outra são importantes para a modernização da
sociedade ou do estado-nação a que pertencem (sistema produtivo, trabalho,
religião, governo, dentre outras). Por conta disso, as artes nunca foram o centro de
atenção dos sociólogos, ocupando sempre uma posição secundária na disciplina
(ZOLBERG, 2006, p. 65).
Mesmo entre os sociólogos europeus, que são, na verdade, os fundadores da
disciplina, o debate sobre ocupou um lugar periférico. Dentre os principais nomes, os
que mais costumam ser lembrados quando se busca investigar a história da
sociologia da arte são Durkheim, Weber e Simmel.
Durkheim chegou a discutir a arte em um texto do começo do século XX,
mostrando como ela representou a mudança no modo de lidar com a religião
(HEINICH, 2008, p. 21). Mas, de acordo com Zolberg (2006, p. 76), no periódico
L’année Sociologique, fundado por Durkheim com interesse de institucionalizar a
sociologia, não se encontram debates sobre as questões da arte. Isso denota a falta
de espaço da temática entre os sociólogos.
Já Max Weber é lembrado pelo texto As bases racionais e sociológicas da
música, publicado postumamente. No artigo, Weber toma a estética como uma
estrutura cultural paralela à religião e em competição com ela (ZOLBERG, 2006, p.
74). E inscreve a música no panorama de seus estudos sobre o racionalismo
24
ocidental, atribuindo ao processo de racionalização e aos meios técnicos disponíveis
as diferenças estilísticas (HEINICH, 2008, p. 21).
Apenas Georg Simmel se debruçou mais detidamente sobre a arte. Escreveu
bastante sobre temas estéticos, sobre cultura geral e até sobre alguns artistas
famosos, como Rembrandt, Michelangelo e Rodin – nesses casos, tratou do
condicionamento social da arte, evidenciando a influência das visões de mundo
sobre as obras (HEINICH, 2008, p. 22; ZOLBERG, 2006, p. 74-75).
A facilidade que se tem de mapear os estudos sociológicos sobre as artes nos
fundadores da disciplina é prova da marginalidade a que foi condenada a questão.
Também explica muito do subdesenvolvimento a que foi relegada. Percebe-se que,
no mais das vezes, a arte, quando apareceu, veio de forma servil à preocupação
central dos pensadores. Em Durkheim, sob a temática da religião, das regras e dos
valores morais, que mantêm uma sociedade coesa; e em Weber, a partir da
racionalidade que caracteriza a modernidade ocidental.
No caso de Simmel, identifica-se com mais frequência a discussão sobre arte,
mas é importante lembrar que ele não era visto por seus contemporâneos como
sociólogo. Em uma época em que o esforço de institucionalização passava por uma
tentativa de cientifização que significava a busca de grandes modelos interpretativos
e explicativos para a sociedade, Simmel se caracterizou por dedicar a atenção a
assuntos aparentemente furtivos (dinheiro e vida mental na metrópole, por exemplo).
Também é característica de Simmel passar, de maneira sucessiva, de uma temática
a outra – sendo, por isso, classificado como autor impressionista ou flaneur
sociológico1.
Processo semelhante se repetiu em outros países, como o Brasil. A
institucionalização da sociologia brasileira, mormente a paulista, ocorreu entre os
segundo e terceiro quartéis do século XX. Durante esse período, após longa disputa
intelectual interna, o projeto liderado por Florestan Fernandes e que tinha como
temas caros, entre outros, o desenvolvimento, a dependência econômica e a
modernização de sociedades periféricas, saiu vencedor, dando o tom da sociologia
brasileira com anseios de cientificidade.
Chega-se à seguinte constatação: parte ínfima da produção sociológica é
oriunda do campo da sociologia da arte. Ao se fazer um levantamento bibliográfico,
percebe-se que as melhores obras, aquelas que podem ser vistas como
1 Ver Peres et all (2011, p. 98).
25
constitutivas da sociologia da arte, raramente aparecem com essa designação. Isso
se deve, primeiro, ao fato de a sociologia da arte ser uma disciplina com linhas
divisórias tênues, de maneira que não é tarefa simples delimitar o que pertence a
essa área e o que não pertence. Segundo: o critério quantitativo (o número de
produções e publicações) é insuficiente para aquilatar sua importância, pois ela
pode, do ponto de vista qualitativo, guardar possibilidades essenciais à sociologia
como um todo (HEINICH, 2008, p. 9).
O que torna difícil delimitar as fronteiras da sociologia da arte é sua
proximidade tanto com as disciplinas humanísticas (histórica e crítica da arte e
estética), que historicamente dominaram o objeto, quanto com outras áreas de
conhecimento próprias às ciências sociais e que têm proximidade com a sociologia
(como a história, a psicologia e a antropologia). Qualquer levantamento envolvendo
essas últimas disciplinas deve dar maior relevância à sociologia da arte, pois a
nomenclatura é usada para além do âmbito estrito da sociologia (HEINICH, 2008, p.
10).
Mas como as disciplinas humanísticas foram as primeiras a se debruçar sobre
arte, provém delas o ponto de partida. Pode-se sustentar, mesmo, que o
envolvimento com outras disciplinas (principalmente estas que aqui têm sido
chamadas de humanistas) é imprescindível ao próprio sentido da sociologia da arte
(ZOLBERG, 2006, p. 92).
O desafio que nós colocamos é pensar a sociologia da arte atualmente, em
um contexto de hiperespecialização das áreas de conhecimento. E discutir essa
questão passa pelo reconhecimento do fato de que essa área não é genuinamente
sociológica e só experimentou um avanço de modo tardio.
Os próprios autores estudados nesse trabalho têm uma relação muito forte
com isso que pode se chamar de disciplinas humanísticas. No caso de Antonio
Candido, isso se deve à influência da família, que desde cedo o ambientou no
mundo da literatura. Raymond Williams, por seu turno, foi para Cambridge estudar
Literatura Inglesa e, aí, teve contato com a tradição idealista. No desenvolvimento de
suas respectivas carreiras, a questão de estudar arte e o mundo social foi,
paulatinamente, surgindo e se impondo.
De fato, é no contexto da teoria de arte que se descobre o ambiente formador
da sociologia da arte, porque ela oferece uma espécie de “fundação teórica”
26
que consubstancia um alicerce de fortuna na medida em que abre omundo das inquietudes teóricas para aspectos que a sociologia daarte depois veio aprofundar, [sem ela] não entenderíamos aconjuntura teórica desta área do saber, e nem conheceríamos ohorizonte de seus propósitos (GONÇALVES, 2010, p. 39).
Com isso, quer-se dizer que foram as teorias de arte, a história da arte, a
crítica e a filosofia que estabeleceram o norte da discussão estética. Essa matéria
uma vez formulada fornece o parâmetro de toda a discussão. Ou seja, são as
disciplinas humanísticas que referenciam o debate ao qual vão se justapondo as
áreas de pensamento que desejam discutir a temática. Isso não significa
concordância com os critérios, conceitos e métodos, mas que esse quadro é o ponto
básico sobre o qual se pode criticar e refletir.
Desse modo, Gonçalves (2010, p. 39-43) aponta que pensadores como
Winckelmann, Burckhardt e Riegl devem ser vistos como alguns dos precursores da
sociologia da arte porque inseriram em seus estudos a preocupação da relação
entre arte e o mundo.
Outra contribuição importante é a de Erwin Panofsky, incorporado à sociologia
por meio de Pierre Bourdieu. Panofsky introduz a noção de método iconológico,
trabalhado em Significado nas artes visuais (1955). Para ele, existem três graus de
análise para as imagens: o primeiro, icônico ou pré-iconográfico, busca os
significados primários ou naturais, no qual se localizam os motivos artísticos. No
segundo nível, o método iconográfico tem-se a exata identificação dos motivos de
uma obra; e no terceiro, o iconológico, investiga-se o conteúdo intrínseco da obra, a
visão de mundo dela, que pode ser apreendido pela avaliação de pressupostos que
revelam a atitude de uma coletividade (nação, classe, convenções religiosas, dentre
outras) (GONÇALVES, 2010, p. 45).
De fato, em Panofsky não se encontra exatamente um tratamento sociológico
da arte, a não ser em potencial, pois ali só há apontamento da correlação entre obra
e cultura. O ponto de convergência com uma sociologia da arte não é extenso, mas
as noções de Panofsky o fazem ser uma influência muito forte na área, além de ser
exemplar do fato de que as fronteiras entre história da arte e sociologia não devem
ser extremamente rígidas (HEINICH, 2008, p. 26).
Os exemplos trazidos deixam claro um movimento característico dessa área
de estudo: quanto mais se aproxima da sociologia arte, mais se afasta da sociologia
geral para ir em direção à história da arte, área que trabalha há mais tempo com o
27
assunto. Entre as duas disciplinas, encontra-se a história cultural da arte, da qual
derivam grande parte os estudos que podem ser considerados como premissas de
uma sociologia da arte (HEINICH, 2008, p. 22).
Isso deve ser pensado também com referência a Antonio Candido e Raymond
Williams. Quando nos acercamos desses autores, estamos tencionando as
fronteiras das diversas disciplinas que envolvem a arte. Considerando os elementos
trazidos (principalmente a difícil demarcação das fronteiras entre as áreas) pode-se
sustentar que a sociologia da arte engloba os dois autores. Se não com localização
institucional, sem dúvidas como referências.
2.3 A questão do valor e a arte no mundo social
Mas se as linhas fronteiriças entre as disciplinas são turvas e o trânsito de
temáticas e modelos analíticos é intenso, os pontos de contenda acabam sendo
inevitáveis. Em última instância, as diversas disciplinas devem guardar um núcleo
específico de identidade, sob o risco de diluição em outras áreas do conhecimento.
A sociologia, quando aproxima-se da arte, traz consigo alguns pressupostos
básicos – um dos mais importante deles, a noção de que a arte, como qualquer
outro fenômeno da sociedade, deve ser estudada com um fato social, buscando o
que é comum, fundamental, permanente e coletivo no processo artístico (NUÑEZ,
1967, p. 58).
Esse princípio epistemológico revela, na verdade, um anseio de objetividade
da sociologia. Quando levado ao campo da arte, significa que os sociólogos devem
evitar “cair em especulações filosóficas, em abstrusas indagações de estética e
afastar-se, especialmente, de qualquer pretensão de caráter crítico ou perceptivo”
(NUÑEZ, 1967, p. 58).
Ora, isso significa que os sociólogos têm que se manter distante de qualquer
postura valorativa. Ponderar sobre a relevância e importância de uma obra ou sobre
o peso de um determinado artista é postura fundamental da filosofia, da história e da
crítica de arte. Para esses, portanto, as noções básicas que orientam os sociólogos
atentam diretamente contra um ponto básico da arte: o valor estético.
Assim, o distanciamento do valor estético passa a ser característica fundante
dos sociólogos da arte. Não cabe à sociologia da arte criar ou legitimar critérios que
28
sirvam como validação do trabalho artístico, seja determinando a qualidade artística
de casos particulares ou qualidade da Arte em si. Em uma palavra, qualquer juízo de
valor é estranho ao modo de proceder da sociologia e deve ser rechaçado. Apenas a
história dos juízos de valor pode ser servida como objeto de estudo (GONÇALVES,
2010, p. 24).
Esse ponto é fundamental pois ajuda a diferenciar os campos de estudo. É
possível observar o expediente utilizado por Luiz Costa Lima a fim de diferenciar as
modalidades de aplicação da sociologia ao fato literário. Deve-se atentar para o
modo como este pensador trabalha a questão do valor.
Lima busca distinguir o que seria a “sociologia da literatura” e o que seria a
“análise sociológica do discurso literário”, a partir da problemática do valor. Sustenta
que é equivocado afirmar que os dois tipos de análise se diferenciam pelo fato de
que o primeiro não trabalha o valor e o segundo, sim; para o autor, as duas
modalidades reconhecem a problemática do valor: ele apenas está em níveis
distintos de consideração (LIMA,1983, p. 109).
O sociólogo concede à literatura valoração semelhante a qualquer outra
instituição social, porque a atividade literária está ali para comprovar a presença de
alguma outra manifestação; já o analista do discurso literário não tem a “apreciação
sociológica” em primeiro plano, porque a prioridade deve ser o “entendimento da raiz
ficcional, literariamente enraizada”, sendo ficcional compreendido como aquilo que
modifica o modo costumeiro de tematizar a liberdade (LIMA, 1983, p. 109-108).
Ainda finaliza afirmando que – e talvez seja aqui que os objetivos de Lima se
manifestem – o discurso literário tem como indicador visível a forma (ou o “como se
diz e o que se diz”); portanto, a análise sociológica do discurso literário impõe a
necessidade de diálogo com o teórico da literatura, que é mais apto que o “puro”
sociólogo a trabalhar a especificidade do objeto artístico (LIMA, 1983, p. 111, grifo
nosso).
Lima (1983) coloca a discussão do valor em outro nível, pode-se dizer que até
a sofistica, mas não a elimina. O autor acaba por categorizar dois tipos de valor: o
valor social, de qualquer instituição da sociedade, e o valor estético, que toca o nível
artístico e trabalha a especificidade do objeto artístico. O primeiro é próprio do
sociólogo de fato; o segundo, do analista sociológico da literatura – aquele que,
embora não sendo sociólogo, lança mão dos conhecimentos da sociologia.
29
A distinção proposta por Lima resulta numa questão superficial. Nos debates
da área, sabe-se que valor refere-se sempre ao valor estético – valor que uma obra
e/ou autor têm como arte. Ainda que seja em outros termos, em Lima, é ainda o
valor estético que serve para definir o que é próprio de uma área e de outra. Ou
seja, a questão permanece.
Apesar de a sociologia da arte, conforme sustentado aqui, ser uma área de
estudos fundada na proximidade com outras disciplinas, principalmente com as
humanísticas, é possível, mesmo assim, apontar suas especificidades. O que acima
foi chamado de ponto de contenda pode ser entendido como limites que as duas
áreas (sociologia e humanidades) não ultrapassam e ajuda, por conseguinte, a
defini-las.
O debate sobre o valor é o primeiro tópico de grande disputa entre as duas
áreas, porque ele aponta para as barreiras que não podem ser ultrapassadas, sob
pena de as diferenças se tornarem tão insignificantes ao ponto de diluir os dois
campos de estudos.
Os dois autores que são trazidos para debate neste trabalho realizaram
valoração de obras e autores, muitas vezes contribuindo para a legitimação ou
releitura da tradição de seus países. Isso deve ao fato de que eles têm vínculos com
área das Letras, no qual esta operação crítica é natural e esperada.
O segundo tópico de grande divergência, que é em larga medida um
desdobramento do primeiro, é como a sociologia trata a arte. Passando do nível das
proposições gerais – arte como fenômeno social e estudada no nível coletivo – para
uma compreensão mais precisa do seu significado: como definir a arte socialmente,
quais os fatores que influem sobre sua regularidade e tipicidade, como devem ser
tomados os fatores sociais na análise.
Nesta altura, vê-se o peso de Karl Marx e do materialismo na sociologia da
arte. As abordagens externalistas – aquelas próprias dos sociólogos – têm grandes
possibilidades de serem materialistas (ZOLBERG, 2006, p. 38) e o materialismo
sociológico apresenta-se de duas formas: uma se aglutina em torno dos escritos de
Karl Marx; e a outra enxerga a arte de modo simbólico, como sinal de status, e que,
apesar de guardar semelhança com o marxismo, tem influências variadas
(ZOLBERG, 2006, p. 86).
É importante notar que Marx e Engels nunca escreveram diretamente sobre
arte, menos ainda sobre filosofia ou história da arte. Buscar elementos para uma
30
sociologia da arte na obra desses dois pensadores é um verdadeiro trabalho de
exegese, mapeando as esparsas referências distribuídas por toda a obra e, ao
mesmo tempo, colocando-as em sintonia com pensamento geral deles. Portanto,
para um estudo sociológico das artes, o máximo que se pode extrair da obra
marxista são apontamentos.
Marx tinha a concepção de que a lei, a educação, a política e outras formas
de atividade cultural – a arte aí inclusa – pertenciam à superestrutura da sociedade,
esfera que guarda uma íntima relação com infraestrutura ou a base da sociedade,
lugar das relações de produção. Essas, por sua vez, podem ser definidas como as
relações que os homens estabelecem entre e si e com a natureza para produzir sua
subsistência e riqueza.
Reside neste ponto a grande contribuição do pensamento de Marx e Engels
para o campo de estudos da arte. Como qualquer outra atividade humana, a prática
artística deve correlacionar-se às estruturas sociais e econômicas de cada época. E,
se é aceita a premissa marxista de que de que o grupo dominante economicamente
em uma época tem poder para fazer penetrar sua ideologia no tecido social, o
entendimento da realidade artística também deve levar em consideração o papel da
ideologia (GONÇALVES, 2010, p. 60).
Em uma palavra: Marx ajudou a introduzir o problema das relações existentes
entre a arte e a sociedade, considerada em conjunto e como quadro da atividade do
artista. O debate, a partir daí, não é mais entre o artista e um universo eterno, mas
entre o artista e os modos de existência de seu tempo (FRANCASTEL, 1967, p. 27).
Se os estudos de Marx e Engels sobre arte, como dito, são escassos e
dispersos, em Plekhanov encontra-se um pensamento marxista sistematicamente
orientado para a análise desse fenômeno. Faz-se necessário conhecer como este
argumento é construído, pois grande parte do que se chama de abordagem marxista
para arte é oriundo não de Marx, mas de marxistas como Plekhanov.
No texto Arte e vida social, de 1913, tem-se uma das fórmulas marxistas mais
conhecidas, e também mais criticadas, na sociologia da arte. A ideia central é a de
que as obras e a atividade artística são o reflexo da vida social. Desse modo, a arte
de qualquer povo mantém uma relação causal com o sistema econômico, que
também é o responsável por determinar as preferências estéticas de uma dada
sociedade (GONÇALVES, 2010, p. 62).
31
O pensador russo vai além e sustenta que, se uma relação causal e linear
existe entre atividade artística e a esfera produtiva da sociedade, a arte deve ser
encarada como um meio para adentrar os problemas sociais. Não há arte destituída
de conteúdo ideológico, nem mesmo aquela que tem como prioridade a dimensão
formal – não implicando, desse modo, nenhuma diferença em relação às questões
políticas e sociais (GONÇALVES, 2010, p. 62-63).
Plekhanov colocava os fenômenos artísticos em uma dependência direta e
mecânica com a sociedade – a arte deve refletir ou trabalhar questões prementes da
sociedade, que, para um marxista ortodoxo, são sempre elementos relativos à
economia. A arte que não realizasse isso era rejeitada – não raras as vezes sendo
pejorativamente classificada de arte burguesa. Em uma palavra, Plekhanov retirava
toda e qualquer autonomia da esfera estética.
Marx colocava ênfase na dimensão criativa do ser humano que a arte traz à
luz – para o pensador alemão, o homem é um ser criador por excelência. O
capitalismo potencializa essa capacidade de criação ao oferecer possibilidades de
extensão em termos de progresso, mas acaba por impedi-la, porque as relações
sociais capitalistas negam o acesso e o livre exercício de criação a alguns setores
da sociedade. Essa discussão não se vê no russo Plekhanov (GONÇALVES, 2010,
p. 58).
Marx também nunca supôs que a relação entre arte e sociedade fosse tão
rudimentar ou que a arte não tivesse nenhum significado fora do local de produção.
Para Marx, ainda, “a dificuldade não está em entender que a arte e a épica gregas
estão comprometidas com certas formas de desenvolvimento social [mas no fato] de
que elas ainda nos dão prazer artístico” (ZOLBERG, 2006, p. 44).
Marx questionava-se muito sobre este ponto: a capacidade de entender e até
sentir prazer estético por formas artísticas cujas estruturas já há muito
desapareceram. Como considerava a arte grega uma das mais refinadas, Marx
chegou a afirmar que as produções artísticas daquele tempo possuíam uma ligação
profunda com a “infância social da humanidade”, e é por isso que elas ainda eram
atrativas, mesmo tendo transcorrido tanto tempo. Da mesma forma que o homem
sente-se atraído pela infância, o homem coletivo mantém relação semelhante com a
infância social da humanidade (GONÇALVES, 2010, p. 59).
Percebe-se que mesmo com pouco refinamento – afinal, esse não era o foco
do pensador alemão –, Marx buscava alguma justificativa para o alcance que
32
algumas formas de arte possuem. Na prática, isso significava a tentativa de delimitar
o espaço da esfera estética.
Contudo, pode-se dizer que, mesmo não afiançando de maneira integral e
precisa o que seus discípulos produziram sobre arte, Marx contribuiu, ainda que de
modo enviesado e inadvertido, para a construção de sistemas explicativos que
fizeram a sociologia da arte se desenvolver enquanto tal. Ao legado de Marx,
justapôs-se uma fortuna crítica dentro dessa área de estudos.
Esse legado não é de modo algum unívoco. Dentro da tradição aberta pelo
marxismo existe uma multiplicidade de posições. Mas, em uma palavra, a grande
contribuição do legado de Marx para o estudo das artes foi a historicização do
fenômeno artístico – a obra e o artista passaram a ser considerados como partes
integrantes da sociedade e, em maior ou menor grau, sujeitos às suas leis de
funcionamento.
No mais das vezes, contudo, a apropriação dessa ideia geral se deu de forma
mecânica – como nas proposições de Plekhanov sobre infraestrutura e
superestrutura que culminaram em uma teoria do reflexo, ou de modo reducionista,
como no realismo crítico de Lukács2, uma forma de valorar as obras de acordo com
nível de aproximação delas com os problemas do mundo social.
A corrente marxista – do ponto de vista mais geral, como ênfase na
necessidade de aproximar a obra do seu contexto social – será uma influência
decisiva tanto em Antonio Candido quanto em Raymond Williams. No caso de
Antonio Candido, essa influência veio por causa da formação que teve acesso na
USP – Universidade de São Paulo. O pensador brasileiro paulatinamente se certifica
dessa necessidade, mas procura se distanciar das visões mais reducionistas
atribuindo ênfase ao texto da obra.
Em Raymond Williams, o capítulo do marxismo é mais extenso e profundo. O
estudioso galês é amplamente reconhecido como uma das grandes figuras do
marxismo ocidental no século XX. O interesse por essa área de pensamento veio
por intermédio do seu engajamento político. Ele une a influência marxista ao estudo
de literatura, liga-a ao estudo da arte e da literatura, propõe uma análise bastante
original chamada de materialismo cultural.
2 “Do ponto de vista moral, considero toda aquela época condenável e, na minha concepção,a arte é boa quando se opõe a esse decurso” (LUKÁCS, 1999, p. 49).
33
2.4 Reação das disciplinas humanísticas
A rigidez da proposta marxista – principalmente pela redução da esfera
estética em que muitas versões ela irrompia – não passou ilesa. De acordo com
Castro (1979, p. 26), o campo dos estudos literários passou por uma reformulação
de suas bases teóricas no início do século XX, que tinha como ponto inicial a revisão
das principais correntes teóricas do século anterior, incluindo o marxismo. Na
perspectiva deste trabalho, essa revisão teórica dos estudos literários é um
movimento de retorno às propriedades formais da arte.
A primeira posição teórica desta reação é o Formalismo russo, que nasceu no
início do século XX, mas que só veio se tornar conhecido posteriormente por meio
das traduções para o francês realizadas por Tzvetan Todorov. Desde as formulações
iniciais desta corrente teórica, o Formalismo Russo se caracteriza por uma recusa
categórica das interpretações extraliterárias da obra. Objetivava definir a crítica
especificando o objeto de estudo e o método particular (CASTRO, 1979, p. 26).
Para os formalistas, a linguagem poética tem estruturas verbais autônomas,
opostas à linguagem cotidiana, e por isso independem de qualquer função
informativa. Desse modo, o texto literário é caracterizado a partir do texto em si,
opondo-se a qualquer outro tipo de influências. O acento dos formalistas sobre esse
pressuposto era tão forte que pode-se dizer que muitos deles desprezavam o
conhecimento histórico da literatura (CASTRO, 1979, p. 26-27).
A segunda posição teórica é a Estilística. Pode-se dizer que essa corrente
representa a tentativa de mobilizar a teoria linguística de Saussure para o estudo da
literatura. A visão dos teóricos da Estilística preocupados com o fenômeno literário
se resume a uma postura idealista, na qual a natureza da linguagem é vista como
atividade intuitiva individual. À Estilística cabe analisar a expressão verbal dessa
intuição (CASTRO, 1979, p. 28-29).
A terceira categoria chama-se Nova Crítica e nasceu nos Estados Unidos. Os
pensadores dessa corrente empregam um método descritivo, no qual o foco recai
sobre a análise do texto literário “em si”, isto é, sobre o emprego particular da
linguagem em cada caso. Desse modo, a obra é tratada tanto em suas variadas
partes quanto como em uma totalidade: funções de categorias gramaticais, valores
conotativos e denotativos, o ritmo, a harmonia, técnicas de composição, temas
34
principais e secundários, caracterização dos personagens, dentre outros. O analista
deve buscar as peculiaridades de cada obra, ou seja, a predominância da intuição
(CASTRO, 1979, p. 30-31).
Percebe-se claramente que essa é uma perspectiva cerrada no texto e
sincrônica uma vez que despreza a dimensão histórica da obra. A literatura é
autônoma porque se realiza de uma forma própria, utilizando a língua de forma
própria, criando estruturas que não se confundem com as demais. E mais: não só a
obra é autônoma como também o é a crítica literária, que tem por função estudar a
obra como tal e não os seus aspectos morais, sociológicos ou psicológicos
(CASTRO, 1979, p. 31).
A Nova Crítica americana será uma influência marcante em Antonio Candido.
Em um momento em que o pensador uspiano desejava fugir de uma sociologia que
não abordava o texto e as técnicas formais, a Nova Crítica lhe ofereceu um aparato
teórico cujo centro gravitacional era o texto. Ao mesmo tempo, lhe foi útil na tentativa
de forjar para si um espaço acadêmico dentro da USP, quando seu projeto
intelectual – mais voltado para a cultura e a arte – perdeu a disputa para o projeto de
Florestan Fernandes, focado em estruturas econômicas e sociais.
Mais recentemente, o estruturalismo, nas suas variadas posições, fundado
em uma busca objetivista e cientificista e nem sempre aberto a uma compreensão
mais complexa do fenômeno artístico, dominou o panorama crítico (CASTRO, 1979,
p. 32).
Todas as correntes, embora com suas particularidades, privilegiam uma visão
formal ou interna da arte e da literatura. A reação ao legado marxista também foi
profícua e fez surgir correntes que buscaram cientificizar e institucionalizar o estudo
artístico, circunscrevendo academicamente a dimensão estética como própria deste
campo de conhecimento.
Analisar a influência marxista sobre o domínio da arte e descrever a reação a
essa corrente em um campo específico (o do estudo da literatura) ajuda a
compreender a dinâmica dessa área de estudos: historicamente foram as correntes
humanas que focalizaram a arte e teorizaram sobre ela. A partir do século XIX,
outros referenciais teóricos com forte viés social se aproximam da arte. Por fim, o
século XX assiste a uma reação das disciplinas humanísticas, que voltaram a
acentuar o caráter formal da arte e que, além do mais, tentam dar contornos
científicos a seu campo de saber.
35
As perspectivas externalistas (aquelas que procuram destacar elementos que
estão fora da obra de arte) trouxeram ganhos para o campo de estudos da arte. Ao
inscrever a arte no mundo social, ainda possibilitaram que aspectos das obras,
negligenciados pelos estetas, possam ser destacados. Por exemplo, iluminaram as
estratégias de expressão e escolhas de carreira do criador, as instituições sociais e
as restrições econômicas da atividade (ZOLBERG, 2006, p. 41-42).
Portanto, pode-se concluir que, em alguns níveis, a contribuição sociológica
fez avançar o entendimento do que é arte, para além dos limites propostos pelas
disciplinas humanísticas.
No entanto, a empreitada intelectual dos sociólogos suscitou relutância no
campo da arte. Não são todos estudiosos que compartilham desse ponto de vista.
Os humanistas discordam, sobretudo, da tendência a tratar a arte como fruto de um
processo social e desprezarem suas características formais e estéticas.
Aí reside um dos pontos complexos da questão: os seguidores dos
pressupostos humanistas apontam o marxismo como o principal responsável por
reduzir as grandes obras de arte da história da humanidade a meros resultados de
fenômenos sociais (ZOLBERG, 2006, p. 43).
Como já foi dito, é improvável que Marx sustentasse tal visão, mas quem
levou adiante a tradição marxista acabou por conceber a chamada teoria do reflexo,
que sofreu críticas não só de humanistas, mas também de sociólogos e outros
adeptos do marxismo – como é caso do próprio Raymond Williams, estudado neste
trabalho, num longo debate teórico a ser abordado posteriomente; mas também é o
caso de Antonio Candido: quando critica a sociologia reducionista, parece ser ter em
mente o tipo de abordagem literária marxista que ignora as propriedades formais da
composição literária.
Os humanistas, portanto, são aqueles estudiosos que enfatizam a “grandeza”
da obra, suas características formais, que tocam o sensível. Dito de outro modo,
pregam uma autonomia da arte em relação ao seu contexto de produção,
sustentando que elas podem falar para todas as épocas e para toda a humanidade
(ZOLBERG, 2006, p. 45).
Mas uma análise exclusivamente estética não correria o risco de cair em outro
tipo de reducionismo? Para Zolberg (2006, p. 45-46) sim, pois ao conceber a arte
como uma atividade especializada que só diz respeito a grupos específicos, as
pretensões de universalidade propaladas pelos próprios estetas caem por terra.
36
Além disso, os críticos também divergem entre si quanto a questão do valor de uma
obra. Muito comumente os juízos de valor de uma obra mudam drasticamente, e o
que era considerado “grande obra” há cem anos pode não o ser hoje, e vice-versa.
Isso só revela que a “grandeza” é oriunda, pelo menos em parte, das opiniões
instáveis de uma gama inconstante de especialistas, em um contexto de
sensibilidades também variáveis e do grau de interesse que uma obra pode suscitar
no público (ZOLBERG, 2006, p. 46). Embora para muitos seja difícil admitir, isso
significa um grau de vinculação do fenômeno artístico a processos sociais – seja de
produção, de fruição ou de reconhecimento.
Desse modo, a abordagem externalista, embora muito criticada, se mostra
indispensável a essa área de estudos, tanto por salientar a correlação entre arte e
sociedade quanto por lançar luz sobre características das obras que são
negligenciadas pelos humanistas. O ganho é retirar a obra do reino do absoluto e do
inexplicável, embora esse postulado não encontre ressonância entre os humanistas
– não pelo menos para todas as formas de arte (ZOLBERG, 2006, p. 42).
Esses dois tipos de abordagens, durante muito tempo, dominaram o campo
de estudos da arte. Cada vez mais entrincheirados em suas posições, sociólogos e
humanistas acabaram por construir verdadeiras barreiras intelectuais e acadêmicas
entre a pesquisa estética e a pesquisa científico-social. Os resultados foram o
sufocamento da produção e o empobrecimento do debate (ZOLBERG, 2006, p. 46).
É por isso que há um movimento de superação dessa dicotomia, que parte
tanto de humanistas quanto de sociólogos. Os primeiros aproximando seus estudos
de uma compreensão social da arte e os segundos relativizando uma concepção
cientificista de sociologia (outras áreas, como a antropologia cultural, também estão
sendo chamadas a preencher algumas lacunas) (ZOLBERG, 2006, p. 46).
Dessa contenda, nasce uma postura que se pode chamar de sintética. Na
verdade, esta postura é uma tentativa de coadunar as principais contribuições de
humanistas e sociólogos com vistas ao melhor tratamento do fenômeno da arte.
Conforme salientouse em outra oportunidade, a interconexão entre as
abordagens estéticas e sociais não significa que o sociólogo vai se transferir para
outro campo de estudos, mas que deve justapor à base de formação conhecimentos
relativos à tradição de estudos da arte, como forma de equilibrar sua visão (FREIRE,
2018, p. 65).
37
Por fim, vale frisar que o chamado para uma abordagem sintética da arte não
quer esgotar a questão, nem tampouco deslegitimar análises que podem (e ainda
continuam a) ser feitas tanto de um lado quanto de outro. O que se quer, antes, é
conjugar duas perspectivas que se encontram contrapostas mais por elementos de
ordem acadêmica, institucional, e, por consequência, política, mas que
epistemologicamente, juntas, podem ser bastante produtivas para estudos sobre
arte (idem, ibdem).
Como panorama do campo da sociologia da arte temos que: embora seja
importante para o surgimento da disciplina, todos os estudos voltados apenas ao
âmbito estético estão fora do âmbito específico da sociologia. Dentro do escopo
sociológico encaixam-se os estudos externalistas ou materialistas, cujo foco recai
sobre as condições externas ao fenômeno da arte (aqui há pouco ou nenhum
espaço para a obra artística); e também entram os estudos da corrente sintética, que
advogam uma aproximação com as questões estéticas, por reconhecer que elas não
são redutíveis a questões políticas, econômicas e sociais (aqui há a consideração de
que a obra de arte pode ser estudada pela sociologia) (MORAIS; SOARES, 2000, p.
3).
É importante salientar que quando Zolberg (2006) conceitua o que chama de
abordagem sintética o que ela está fazendo é reivindicar para si essa posição,
focando especificamente o caso dos artistas – debatendo se são gênios ou se são
apenas realizadores de um trabalho especializado. A autora quer oferecer a sua
própria visão, mostrando como o disfarce dos indivíduos produtores de arte como
únicos que têm importância dentro das estruturas em que se encontram os artistas.
No entanto, a noção de corrente sintética é relevante para este trabalho, pois
ajuda a classificar, ainda que de maneira geral, os dois autores que baseiam esta
pesquisa – Antonio Candido e Raymond Williams. O uso desse conceito busca
designar os dois pensadores como preocupados em romper a polarização (já acima
exposta) que dominou a área por longo período. Estavam, pois, preocupados em
construir um diálogo entre a sociologia e os estudos literários.
Isso fica claro em passagens em que ambos os autores reivindicam uma
abordagem para a cultura e a literatura que guarde a especificidade estética, mas
que também seja capaz de trabalhar a arte com relação ao mundo social.
Candido diz que é necessário trabalhar a obra de arte a “partir de um ponto
objetivo, sem desfigurá-la nem de um lado e nem de outro”, pois “a integridade da
38
obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas” (CANDIDO, 2006, p.
13). Já Williams fala mais diretamente das posições materialista e idealista,
sustentando que a sociologia da cultura, embora formada a partir de cada uma delas
isoladamente, passa a buscar o que ele chama de “nova forma de convergência”
(WILLIAMS, 1992, p. 12-13).
Portanto, o interesse de construir uma nova abordagem que combine as duas
tradições está presente em ambos. Essa preocupação foi levada a cabo por meio de
um intenso trânsito entre literatura e sociologia que caracteriza a obra de Candido e
de Williams, que foi assinalado por Cevasco, para quem os dois autores
vêm de formações sócio-históricas comparáveis, transitam entre o queantes deles se chamava de “sociologia e literatura”. Ambosestabelecem um patamar de atividade crítica que modificaradicalmente as tradições culturais a que pertencem, são exemplosalentadores da difícil convivência do padrão universitário de excelência– característica do momento em que a crítica literária é disciplinaacadêmica – e a democratização de seus achados teóricos – poucoscríticos equiparam-se aos esforços de ambos de esclarecer e levaradiante as tarefas culturais do momento [...] (CEVASCO, 2004, p. 136,grifo da autora)
Para a referida pensadora, as similitudes se realizam por estímulos da
realidade sociocultural, que são estruturadas internacionalmente, e, assim, afetam
os dois países. Reside no quadro social e histórico geral a chave para a
compreensão do motivo pelo qual os dois autores, mesmo em ambientes
radicalmente distintos, produziram obras que se assemelham (CEVASCO, 2004, p.
136).
2.5 As novas posições em sociologia da arte e da literatura
Apesar de ser uma categoria necessária para situar os dois autores no debate
mais clássico do campo de estudos da arte (humanistas e estetas, materialismo e
esteticismo) e ajudar a entender a aproximação que se realiza neste trabalho, a
noção de “corrente sintética” é demasiado ampla para alcançar as diferenças, e
mesmo as semelhanças, entre os dois autores. Como nasceu de um debate que
opunha conceitos generalizantes (perspectivas externalista e internalista), a
abordagem sintética também herdou essa mesma característica.
39
Heinich (2008, p.12) propõe uma introdução à temática por meio das
tradições que compuseram o que hoje se denomina de sociologia da arte. Considera
que a sociologia da arte é, sem dúvidas, a subárea mais heterogênea da sociologia:
nela convivem gerações intelectuais extremamente distintas, quando não opostas.
Mas aquilo que pode ser apontado como início das preocupações que cabem
à disciplina sociológica vem daí e é esse o primeiro obstáculo que se deve ter mente
quando se almeja uma história mais apurada da sociologia da arte: a sua principal
origem está fora do grande corpo que é a sociologia (HEINICH, 2008, p. 21).
O que se pode chamar de sociologia da arte nasceu entre estudiosos de
estética e história da arte, que buscaram ultrapassar a tradicional relação bilateral
artista/obra e inseriram nela um outro termo: sociedade. A partir daí, novas
possibilidades foram abertas e uma nova disciplina começou a surgir. Há vários
modos de experimentar as possibilidades que se ofereceram, e, a depender do
enfoque, pode-se distinguir as principais tendências da nova disciplina (HEINICH,
2008, p. 26).
Quando há o interesse pela arte e pela sociedade, configura-se a linha
conhecida como estética sociológica, que pode ser apontada como o momento
fundador da sociologia da arte. Surgiu na metade do século XX. O que durante muito
tempo se ensinou nas universidades sob o título de Sociologia da arte, é, na
verdade, esta estética sociológica, ainda de caráter muito especulativo (HEINICH,
2008, p. 27).
A estética sociológica introduz dois elementos fundamentais para o
desenvolvimento da sociologia da arte: desautonomização, a ideia de que a arte não
pertence apenas ao domínio da estética, e desidealização, a noção de que ela não é
um valor absoluto (HEINICH, 2008, p. 29). Constituem essa tendência, a tradição
marxista, a Escola de Frankfurt e Pierre Francastel – este último que tem o mérito de
mostrar que a arte pode ser reveladora, e não apenas resultado de certas realidades
sociais e visões de mundo (HEINICH, 2008, p. 31-37).
Apesar das diferenças que possuem entre si, os pontos fracos se sobressaem
e denunciam a falta de autonomia de um projeto propriamente sociológico frente à
história da arte, ainda mais porque vigeram em um momento muito pouco
desenvolvido da sociologia. Assim, tem-se como pontos fracos: o fetichismo da obra,
quase sempre colocada como ponto de partida da reflexão; o substancialismo do
social, tomado como uma realidade em si mesma, postulando uma separação entre
40
a arte e o social; e o causalismo, que privilegia a explicação de causa e efeito em
prejuízo de interpretações mais descritivas ou analíticas (HEINICH, 2008, p. 40).
A segunda geração também surgiu em meados do século XX, por volta da
Segunda Guerra Mundial, mas nasceu entre historiadores da arte filiados a uma
tradição intelectual mais empírica, radicada na Itália e na Inglaterra. Buscavam
investigar a arte na sociedade, tornando clara a intenção de explicitar uma relação
de inclusão da primeira na segunda. Por isso, a questão central é a do contexto em
que se inserem obras e autores. Apesar de ser menos ambiciosa ideologicamente
que a primeira geração, esta, que se pode chamar de história social da arte, obteve
resultados mais concretos e duradouros (HEINICH, 2008, p. 27).
A corrente da história social da arte avançou na contextualização da arte
abrindo espaço para critérios menos heteronômicos, no qual o contexto deixou de
ser simplesmente econômico para ser “cultural”. Em outros termos, a autonomia e a
especificidade da esfera artística foram mais respeitadas. A ênfase no contexto fez
avançar o interesse em direção do mecenato e formas de patrocínio da arte, das
instituições de arte, da recepção (o âmbito no qual se dá o “consumo” de arte), bem
como dos produtores de arte – com foco no estatuto do artista na sociedade,
buscando romper a ideia de que o artista é uma figura apenas preocupada com
questões estéticas (HEINICH, 2008, p. 43-58).
A partir da década de 1960, surge uma terceira tendência, cuja tradição
localiza-se na França e nos EUA. Chama-se sociologia de pesquisa e se
desenvolveu paralelamente aos novos métodos oriundos da estatística e da
etnometodologia. Essa tendência pratica a pesquisa empírica com base em
econometria, entrevistas e observações. Aborda a arte como sociedade, isto é, toma
o conjunto das interações dos autores, das instituições, dos objetos, analisando
como eles se estruturam para fazer arte. Desse modo, a arte passa ser o ponto de
chegada, e não de partida, dos questionamentos (HEINICH, 2008, p. 27-28).
A sociologia de pesquisa é marca do momento em que a sociologia da arte se
autonomiza frente à estética e à história social da arte. Ganha força por intermédio,
também, da própria sociologia, que mais recentemente consolidou seus próprios
métodos e reflexões. A sociologia de pesquisa os põe a serviço de sua área de
estudos e se especifica como um campo da sociologia (HEINICH, 2008, p. 62).
O contato com outras disciplinas será sempre um traço característico da
sociologia da arte que é, por excelência, uma subárea que tenciona as fronteiras dos
41
campos institucionalizados de saber. No entanto, entende-se que a terceira geração
alcança, de fato, uma autonomia para a sociologia da arte, pois essa aparece agora
mais como uma disciplina particular (com tudo que isso implica: delimitação do
objeto e definição de métodos) e menos como assunto ou conteúdo de comentários
estéticos ou filosóficos, condição a qual era submetida no início das preocupações
sobre a relação arte e sociedade (HEINICH, 2008, p. 62).
Os autores sobre os quais se baseia este estudo, sem dúvidas, estão
distantes desse momento de autonomização da sociologia da arte. Embora tenham
produzido durante a parte mais significativa do século XX para sociologia da arte
(desde o fim da Segunda Grande Guerra até a década de 1970, com o período de
maturidade de seus pensamentos coincidindo com esse último momento),
perpassando, cronologicamente, os três períodos acima delimitados, percebe-se que
a formação deles e as preocupações centrais de seus escritos denunciam um
momento ainda turvo para a sociologia da arte e da literatura.
Quanto à formação, percebe-se que os dois autores se situaram entre as
tradições da Sociologia e das Letras. Ao passo que Antonio Candido iniciou sua
trajetória nas Ciências Sociais e migrou paulatinamente para o campo das Letras,
Raymond Williams desde cedo esteve vinculado às Letras, tendo contribuído para a
sociologia da literatura por intermédio do intenso debate que estabeleceu com o
marxismo.
Quanto às preocupações centrais, nota-se que elas revelam o estatuto do
debate no momento em que os autores produziam suas obras. Se é possível dizer
que “certas problemáticas parecem hoje obsoletas”, como a pertinência dos estudos
sociológicos sobre arte e literatura ou, até mesmo, o entendimento da arte como
uma atividade social (HEINICH, 2008, p. 63), vê-se que tanto Candido quanto
Williams ainda procuravam assentar essa discussão e, principalmente, em como
assentá-la.
Percebe-se que questões de como os fatores sociais devem entrar em uma
análise ou mesmo de como deve-se definir o estatuto das práticas artísticas no
interior da sociedade atravessam as preocupações dos dois autores. Se a grande
área da sociologia da arte teve como principal contribuição trazer a dimensão social
para o primeiro plano das discussões, o modo como os dois autores trabalham
essas questões passa a ser fundamental.
42
Por isso, faz-se necessário discutir como cada um deles soluciona
teoricamente essas questões e como as realizam em suas obras analíticas. Isso
permitirá esclarecer as diferenças fundamentais entre os dois pensadores, para
além de qualquer similitude que possa ser estabelecida do ponto de vista geral.
Também quanto ao tipo de método empregado há uma distância em relação à
sociologia de pesquisa. Se essa última caracteriza-se pelo recurso à enquete e pelo
uso de medidas estatísticas e de observações etnológicas para abordar a arte
(HEINICH, 2008, p. 62), Candido e Williams atuaram em um tempo em que a
aplicação desses métodos era completamente estanha à sociologia da arte e da
literatura.
Pela herança intelectual (autores com influência marxista que se preocuparam
com arte e literatura, inclusive se incumbindo da tarefa de levar o marxismo para
este campo originalmente não explorado), Candido e Williams se aproximam mais
da primeira geração da sociologia da arte. Contudo, os dois pensadores
reconheciam as especificidades da arte e estão longe de estabelecer um causalismo
mecânico em suas análises – o que, ao mesmo tempo, os distanciam da primeira
geração.
O mais preciso, talvez, seja localizá-los em algum ponto entre a primeira e a
segunda geração. Demonstraram um esforço de convergência ou de sintetização
muito grande, o que contribui sobremaneira a consolidação de questões importantes
ao desenvolvimento e autonomização da disciplina.
Prova do recrudescimento da sociologia da arte e da literatura são as diversas
áreas para as quais se expandiu: estudos sobre recepção, sobre os elementos
mediadores, sobre o estatuto do produtor de arte e, também, sobre a pertinência dos
estudos sociológicos sobre os objetos artísticos.
Ponto muito importante nos programas teórico e analítico de Antonio Candido
e Raymond Williams é a atenção que eles concedem às obras literárias. As questões
que envolvem a pertinência do estudo sociológico para as obras literárias, o modo
de proceder a essa análise e a reconstrução de um programa para uma sociologia
das obras literárias são, assim, centrais também.
A sociologia das obras parte da premissa que a sociologia não deve ficar
apenas no estudo dos contextos, das instituições, dos produtores de arte ou aos
quadros de recepção, mas deve focar também nas obras literárias em si. Nessa área
de estudos da sociologia da arte, desde que a dualidade estudo estético versus
43
estudo das condições sociais se solidificou, a necessidade de unir a visão
sociológica à apreciação estética vem sendo constantemente reiterada (HEINICH,
2008, p. 128).
No plano de uma sociologia das obras, a reivindicação de uma postura “não
dogmática” ou “aberta” nas abordagens leva à concepção de que a pesquisa deve
caminhar em dois planos: um exterior e outro interior – em relação às obras, leia-se
sempre em complemento. Ao investigar qual o fator é dominante para as
características de uma obra, se procederá à necessária passagem do plano exterior
de análise ao plano interior, ponto ao qual toda pesquisa deveria almejar
(FRANCASTEL, 1967, p. 37).
Vê-se, portanto, que esses postulados não são novos, mas ainda hoje são
sustentados. Por isso, Heinich (2008, p. 127) tem razão ao afirmar que “fazer a
sociologia das obras em si mesmas”, “passar da análise externa à interna”, ou do
social ao estético, são sentenças incessantemente repetidas nessa subárea de
estudos, e que elas podem ser aplicadas a programas de pesquisa muito diversos.
Esses termos e, sobretudo, esta intenção – a busca pela análise interna das
obras, o interesse por toda a dimensão formal, como porta de entrada para as
questões sociais encerradas na obra e não apenas o mundo social como dado e
explícito – estão muito presentes no pensamento de Antonio Candido. Pode-se dizer,
até mesmo, que solucionar essa questão é o objetivo principal do autor uspiano.
Nessa área há também uma dificuldade de passar da enunciação à prática. O
pressuposto da análise externa aliada à interna é mais apregoado do que praticado.
Na esteira dessa constatação, entende-se, mesmo que com alguma margem de
exagero, a visão de que a sociologia das obras compreende o domínio mais
esperado, controverso e decepcionante da sociologia da arte (HEINICH, 2008, p.
127).
Na perspectiva desta tese, os extensos debates não renderam um consenso
mínimo que pudesse legar a essa subárea um programa claro e bem delimitado para
orientar as pesquisas. Discutir o programa de Antonio Candido nesta direção é
também um dos objetivos deste trabalho, procurando debater a capacidade que o
seu programa tem para orientar outras análises
Entre os problemas concernentes a essa corrente de pesquisa podem-se
apontar, primeiro: uma postura inclinada ao hegemonismo, ou a tendência a
considerar que a sociologia tem igual ou até maior pertinência para tratar dos
44
objetos artísticos do que as disciplinas tradicionalmente a eles dedicadas – a
história, a estética e a crítica. O ponto central é que o objetivo principal não seria
fazer descobertas sobre o fenômeno artístico ou as obras, mas provar que a
sociologia pode ensinar aos especialistas dessas outras áreas. Isso revela uma
prática não colaborativa, mas competitiva da sociologia, que busca afirmar sua
supremacia frente ao objeto de arte (HEINICH, 2008, p. 128).
O segundo problema ataca diretamente o centro das preocupações da
sociologia das obras: o próprio interesse em estudar os objetos artísticos. Se a
determinação de estudar as obras, e não pessoas ou instituições, obedece a um
critério estabelecido no mundo erudito das artes, a sociologia corre o risco de tomar
para si um ponto de vista que é estranho ao seu. Ou seja, ao invés de tomar esse
ponto de vista por objeto, a sociologia faz dele a sua própria base epistemológica
(HEINICH, 2008, p. 129).
A terceira e última problemática também é um questionamento primordial e
alude à falta de um método de descrição das obras que seja propriamente
sociológico. As obras não se prestam tão facilmente às análises estatísticas quanto
os grupos e as coisas. E muitas das análises empíricas que se conhece são
redutíveis às descrições que críticos e historiadores já utilizaram anteriormente
(HEINICH, 2008).
Apesar dos obstáculos, na sociologia das obras tem-se algumas tentativas de
construir programas de estudos. Para Heinich (2008, p. 132-143), a sociologia das
obras pode avaliar os valores estéticos dos objetos de arte, interpretar uma obra por
meio do contexto social vigente ou, por fim, optar por uma abordagem pragmática,
analisando o que as obras fazem, observando-as o mais próximo da realidade.
Ao passo que a avaliação varia entre a consagração dos valores originários
do campo da arte e a negação deles, tendo como única saída uma antropologia
descritiva, a questão da interpretação, além de ser excessivamente polissêmica, tem
seu alcance diminuído pelo grau de autonomização da obra em apreço. Na área da
abordagem pragmática, o problema é aliar à análise formal e material todos os
discursos que acompanham as obras de arte (HEINICH, 2008).
Aplicada especificamente à literatura, a sociologia das obras encontra outras
nuances. Para Sapiro (2016, p. 78), o primeiro modo de abordagem das obras na
sociologia foi tomá-las como participantes da visão de mundo de uma época. Essa
ideia foi central na sociologia da literatura entre as décadas de 1920 e 1950, quando
45
a intenção de ver obras de modo menos idealizado e de vinculá-las a certos grupos
sociais era dominante. Nos fins dos anos 1960 e durante a década de 1970 a noção
foi recuperada, principalmente pela corrente marxista por meio dos conceitos de
consciência coletiva e ideologia.
A premissa desse tipo de abordagem é a de que as obras são uma fonte
privilegiada para conhecer e adentrar as representações sociais de uma época. A
crítica de orientação sociológica (ou “sociocrítica”) tem levado a cabo a tarefa de
iluminar essas representações contidas nas obras, com objetivo de reconstruir o
universo literário atravessado de relações sociais, históricas e espaciais (SAPIRO,
2016, p. 79-80).
Tomando as duas perspectivas sobre o modo como a literatura se vincula à
realidade, pode-se dizer que as obras literárias oscilam entre representação e
simbolização. Do lado da representação, se postula a transparência da linguagem,
dando primazia ao significado e ao sentido metonímico da literatura, ao passo que
do lado da simbolização enfatiza-se a opacidade da linguagem e o aspecto formal
dos objetos artísticos, na qual a literatura adquire sentido metafórico (SAPIRO, 2016,
p. 85-86).
Outra perspectiva para analisar as obras é a que se chama de trabalho de
colocar em forma. Essa abordagem parte da ideia de que a literarização de uma
temática ocorre com a ajuda de esquemas sociais e literários de representação do
mundo, dos gêneros (poesia, novela), dos subgêneros (novela picarescas, novela de
iniciação), dos modelos formais de estruturação dos relatos (ordem do relato,
temporalidade), entre outros. Em suma: de todos os elementos que podem remeter
em maior ou menor grau à tradição literária (SAPIRO, 2016, p. 86).
Por fim, ainda temos alguns métodos quantitativos aplicados ao estudo das
escolas, correntes e gêneros literários, objetos tradicionalmente vinculados à história
literária. Os métodos quantitativos podem oferecer ferramentas para analisar
variações diacrônicas (a evolução dos gêneros, por exemplo) e as distâncias
sincrônicas (recrutamento social de escritores segundo gêneros e escolas literárias
(SAPIRO, 2016, p. 88).
Foi o que fez, por exemplo, Franco Moretti em A literatura vista de longe
(2008). Partindo da constatação de que as obras que dominam o cânone dos
estudos literários representam apenas 1% da produção literária do século XIX, o
autor convida a uma ampliação do enfoque por meio de modelos abstratos: os
46
gráficos quantitativos da história, as árvores da teoria evolucionista e os mapas da
geografia.
2.6 Aproximações e possíveis divergências entre Candido e Williams para
análise da literatura
Antonio Candido e Raymond Williams certamente fazem uso de métodos
qualitativos em seus trabalhos. São os pioneiros na tentativa de aliar análise externa
e interna – ou, melhor, de superar essa dicotomia. Para tanto, os dois autores
passam a pontuar a necessidade de atentar para os aspectos estéticos da obra
literária para que se compreenda melhor o que ela extrai do mundo social. No ponto
alto de suas carreiras, constroem conceitos para orientar as análises: Antonio
Candido com a noção de redução estrutural e Raymond Williams com a de estrutura
de sentimentos.
É digno de nota que Antonio Candido, apesar de ter uma contribuição muito
original para analisar a literatura sob o prisma sociológico, não mereceu menções
nas obras trazidas aqui para a reconstrução do panorama da sociologia da arte e da
literatura (nada se encontra em HEINICH, 2008 e SAPIRO, 2016, por exemplo).
Pesa contra o pensador brasileiro o fato de escrever em uma língua de pouco
alcance mundial e de estar radicado em um país de periferia, em um contexto de
relativo atraso de institucionalização das Ciências Sociais e de pouca consolidação
da cultura como objeto sociológico de pesquisa.
Já Raymond Williams escreveu em língua inglesa, idioma que se tornou
padrão na ciência contemporânea, e produziu na Inglaterra, país do centro do
capitalismo europeu e que, conforme Lepenies (1996, p. 194), apesar de só ter
institucionalizado a sociologia após a segunda guerra mundial, tinha esse campo de
estudos diluído em uma série de disciplinas acadêmicas já existentes. Por esses
fatores, recebeu menções de Heinich (2008, p. 47) quando discute contextualização,
e de Sapiro (2016, p. 78) a propósito da ideia de representação. Apesar de tudo, sua
contribuição é considerada mais ou menos datada para a sociologia da literatura.
As semelhanças entre autores imersos em contextos tão diversos veio a ser
percebida, como não poderia deixar de ser, por uma pensadora da periferia:
Cevasco. A posição privilegiada para a crítica epistemológica que a periferia oferece
(por estar em contato com a produção tanto do centro quanto da periferia), fez a
47
autora notar um paralelismo estreito entre o modo como os dois autores concebem e
analisam a cultura.
Para além das coincidências, acima referidas, e que foram operadas pela
realidade social e histórica que, de modo geral, enlaçou os dois países, a conexão
entre os pensadores começa a ser delineada a partir da tentativa deles de fugir à
polarização da área. Interessavam-se pelos elementos estéticos, mas de um modo
distinto da crítica literária tradicional, e buscavam os fatores sociais inscritos nas
obras, mas não da maneira dogmática como prescrevia a crítica cultural marxista até
então.
Pensando especialmente na concepção que os dois autores têm da relação
arte-sociedade, ponto que toca mais diretamente no cerne desta pesquisa, percebe-
se que os dois se afastam de análises de caráter conteudista, defendendo o estudo
da forma por intermédio da tentativa de elucidar a “significação do elemento externo,
o histórico social, na obra literária” (CEVASCO, 2004, p. 144-145).
Para Cevasco, esta é a “tradição disjuntiva” a que se filiam Candido e
Williams e ela dá o traço distintivo da contribuição dos dois pensadores para a crítica
de cultura de origem marxista e para toda uma teoria crítica de esquerda
contemporânea. A autora conclui, dessa forma, que “os dois críticos preconizam uma
dialética da obra/sociedade que vai além das concepções de reflexo do marxismo
ortodoxo e além também de tudo o que se pensava em termos de ligação
sociedade/literatura” (CEVASCO, 2004, p. 148).
Em outra ocasião, ao prefaciar um livro de Raymond Williams e ao tocar na
questão de como os Estudos Culturais analisam os objetos culturais, Cevasco
mobiliza a discussão acima exposta e convida os termos do referencial teórico de
Antonio Candido para explicar o pensamento do autor galês. Diz a autora: “O
trabalho da crítica é justamente o de mostrar como o externo, o que se chama
social, traduz-se em interno, em elemento estruturante da obra” (CEVASCO, 2011, p.
11).
Se no artigo as comparações foram feitas com o cuidado de indicar
cuidadosamente as aproximações, no prefácio à obra de Williams Cevasco procede
a uma voluntária permuta de termos. Mais do que tornar mais claro ao público
brasileiro o pensamento de Williams, nota-se a tentativa de criar uma equivalência
entre as propostas teóricas dos dois autores.
48
As semelhanças também foram notadas por Paixão (2015) que parte da
constatação inicial de que Candido e Williams, guardadas as devidas proporções,
acreditam que a análise e a interpretação da literatura e da sociedade permitem
compreender as crises culturais ou os problemas estruturais de seus respectivos
países. Os conceitos-chave de Williams e Candido para compreender as crises
estruturais pelas quais passaram suas respectivas sociedades e o modo como a
literatura as representou no tempo do romantismo são, respectivamente, estrutura
de sentimentos e sistema literário.
Mas o objetivo dos autores não seria o de simplesmente compreender a
realidade social por si só, e sim estudar como a realidade ganha forma e aparece na
literatura. A forma é, assim, uma ferramenta utilizada para a interpretação da cultura
ou da sociedade, porque as “contradições e potencialidades” da realidade estão
“reduzidas estruturalmente nos textos” (PAIXÃO, 2015, p. 2).
Chama a atenção a última expressão, marca do pensamento de Antonio
Candido e que o autor utiliza livremente para caracterizar o projeto teórico de
ambos: tanto do cientista social uspiano quanto do marxista galês. Embora o
interesse de Paixão seja analisar o problema do público (inexistência de público
leitor especializado no Brasil e pouco qualificado na Inglaterra) como questão
transversal utilizada por Candido e Williams para adentrar as crises de suas
sociedades, a relação reversa entre a teoria de ambos é mais uma vez salientada.
O paralelo mais uma vez é traçado por meio do “interesse na forma”, a
contribuição de ambos para teoria da literatura contemporânea (CEVASCO, 2004, p.
145). Para Paixão (2015, p.2), “a forma faz as vezes de realidade e ela é que está
no horizonte de análise e interpretação que Candido e Williams desejam
empreender”; mais do que isso, o destaque à forma literária é dado porque é ela o
ponto de convergência entre os dois autores.
Embora os trabalhos que discutam paralelamente Candido e Williams não
sejam numerosos – uma lacuna para dois nomes tão importantes nos meios
intelectuais – parece que, de algum modo, as semelhanças esboçadas por Cevasco
parecem ter se consolidado. O tipo de abordagem dos dois autores, além de
postular o estudo de elementos estéticos e extra estéticos, teria em comum o fato de
dar um passo à frente em relação à rotina de pesquisas da sociologia da
arte/literatura, polarizada em torno de perspectivas dicotômicas. Ao tomar as
49
principais premissas de cada uma dessas concepções atomizadas em seus
respectivos campos para construir seus programas, eles estariam conjugando-as.
Conquanto pesem as semelhanças entre os dois autores, a hipótese que
baseia este estudo é a de que eles se distanciam no que tange ao modo como
coadunam elementos externos e internos para análise da obra literária, resultando
em divergências significativas sobre a maneira como percebem a relação arte e
sociedade, ao modo como historicizam seus objetos de análise e, por fim, quanto a
própria concepção de arte e literatura.
Antonio Candido é o pensador, no Brasil, que mais focou nas relações entre a
literatura e o mundo social. Para o campo da Sociologia da Literatura brasileira, esse
autor surge como uma possibilidade factível de realizar uma pesquisa não
reducionista dentro da área, tanto porque atenta para os fatores sociais –
atendendo, assim, aos pressupostos da sociologia – quanto porque seu programa
analítico reserva um espaço especial para tratamento do objeto artístico – análise
interna, nos dizeres do próprio pensador –, dimensão essa negligenciada pelos
cientistas sociais.
No entanto, alguns questionamentos podem ser lançados à teoria de
Candido. O fato de ele ser um autor pouco afeito a discussões teóricas mais longas
(o que permitiria esclarecer pontos importantes do seu pensamento) e de ter o seu
programa metodológico excessivamente focado no texto, na obra em si, não
favorece toda a pesquisa preliminar do sociólogo da literatura, no momento em que
este quer levantar informações e buscar afinidades eletivas entre o objeto literário
que tem em apreço e o fenômeno social que busca compreender.
É bem verdade que Candido identifica o social a partir mesmo da obra
literária, mas parece que a reconstrução do meio social da obra depende dos
conhecimentos prévios do próprio analista. Há algo anterior que orienta o próprio
Candido na análise de suas obras, mas que só vem à tona no momento da leitura da
obra. A hipótese deste trabalha é de que isso torna o projeto de Antonio Candido
para a sociologia da literatura um ato mais intuitivo que sistemático.
De grande valia, portanto, é a analogia com Raymond Williams, pensador
galês que, a exemplo de Antonio Candido, também construiu seu projeto teórico na
intersecção entre as Ciências Sociais e as Letras. Não para apenas apontar as
similitudes, mas também para localizar os distanciamentos. Williams, a uma primeira
visada, oferece o que em Candido se ausenta: debate teórico amplo e um conceito
50
(estrutura de sentimentos) que abarca todo um período e congrega fenômenos
sociais e artísticos como prática materiais da sociedade (localizando-o nas gerações
da sociologia da arte de Heinich, Williams foi o pioneiro do que se chamou arte
como sociedade).
Neste caso, a reconstrução do social de que depende a obra é um movimento
necessário, pois há o reconhecimento de que certas condições sociais são
indispensáveis à prática artística, embora dificilmente a satisfaçam em um nível mais
elevado. Pode-se explicar um (obra) pelo outro (social) sem que isso signifique
necessariamente o desprezo pela dimensão estética e sem que isso impeça
interpretações analíticas.
A hipótese que orienta este trabalho é a de que, apesar da justificável
aproximação entre os dois autores no que concerne ao modelo teórico e analítico de
cada um deles, que reside na justaposição de elementos estéticos e extra estéticos,
em Candido há um tipo de seletividade entre os fatores sociais que entram na
análise, ao passo que em Williams estes fenômenos estão em uma medida mais
abrangente, porque o objeto a artístico é concebido com prática social constante.
A seletividade que Antonio Candido constrói para delimitar a atividade do
crítico não impossibilita o uso de seu método na sociologia, mas ela finda por limitar
o alcance de seu programa a uma especificidade histórica. Raymond Williams
congrega um espectro qualitativamente mais extenso de fenômenos sociais, o que
lhe permite relacionar de modo contínuo a literatura aos processos sociais gerais e a
perceber as mudanças reversas da literatura por meio do tempo histórico.
Se as semelhanças teóricas e de projetos políticos foram operadas pela
realidade sociocultural estruturada internacionalmente, nossa hipótese, quanto às
divergências sobre os modos de se acercar do objeto artístico e de apreender o
social na obra literária, é a de que os meios intelectuais e os campos científicos de
cada um dos dois autores fomentaram necessidades distintas, que, por conseguinte,
tiveram de ser satisfeitas de modos particulares.
51
3 TRAJETÓRIAS
O objetivo deste capítulo é situar os percursos de Antonio Candido e
Raymond Williams. Convém pontuar que só desse modo é possível entender a
concepção de análise social do fenômeno literário proposta por eles dois. Sendo
assim, este capítulo foca brevemente na biografia de cada autor – sobretudo nas
oportunidades de vida que tiveram –, o contexto histórico geral e particular em que
surgiram como pensadores, o grupo intelectual a que se filiaram e os esforços para
formar uma disciplina ou campo de estudos. Nesse movimento, forma-se um
panorama da trajetória dos pensadores e assentam-se as bases para a discussão
teórica do capítulo subsequente.
3.1 Antonio Candido e herança familiar
Antonio Candido nasceu no Rio de Janeiro, em julho de 1918, no seio de uma
família abastada de classe média, mas viveu desde cedo em Minas Gerais,
incialmente em Cássia e posteriormente em Poços de Caldas. Foi nessa última
cidade que Candido fez o curso ginasiano, antes de migrar para São Paulo. Foi o
primeiro filho do casal Clarisse Tolentino de Mello e Souza e de Aristides Candido de
Mello e Souza. Seu pai e seu avô materno foram médicos. Alguns tios e primos, de
primeiro e segundo graus, também o foram. A medicina, portanto, era um assunto
constante em sua casa (PONTES, 1998, p. 153).
A formação de Antonio Candido ocorreu toda no período entre guerras –
desde a formação ginasial até a universitária. O crítico brasileiro cresceu durante o
período do Estado Novo, no interior de Minas Gerais, e entre 1940 e 1950
desenrolou-se grande parte de sua educação acadêmica na USP (Universidade de
São Paulo). Nas décadas de 1960 e 1970 atou com destaque como professor de
literatura brasileira. A atenção dispensada à análise da cultura brasileira,
particularmente o processo de formação, expresso por intermédio da literatura, é um
dos fatores que o diferenciam.
Importa salientar que um pensador da relevância de Antonio Candido,
tomando o conjunto de sua obra, não surge por acaso, mesmo levando em
consideração que ele teve acesso ao ensino universitário em uma época em que
52
isso estava longe de ser factível para a fatia majoritária da população. Explicamos:
se o próprio acesso ao ensino universitário é um reflexo da posição social que
Candido ocupava, não é ele o único fator que concorre para a sua constituição como
crítico de cultura. A sua família e o ambiente culto que nela imperava são também
elementos determinantes.
É válido notar, por exemplo, a oportunidade que teve Antonio Candido em
aprender a língua e a cultura francesa quando ainda era muito jovem. Isso porque,
por meio de compromissos profissionais de seu pai, passou um ano na Europa,
entre 1928 e 1929. Enquanto Aristides de Mello e Souza fazia um curso de
especialização em medicina, Antonio Candido tinha aulas de francês e cultura
europeia com Marie Rohlfs de Sussex, que atuava como um tipo de governanta na
casa onde vivia. A experiência da viagem e todo o conhecimento adquirido tiveram
impacto fortíssimo na formação do futuro sociólogo e crítico (PONTES, 1998, p.
155).
Antonio Candido afirmou que essa viagem solidificou e cristalizou a influência
clássica que a cultura francesa exercia à época sobre o brasileiro – como ele – de
classe média, dado que essa presença se fazia sentir dentro de sua família, que
experimentava o francês quase como segunda língua. Por fim, e como
reconhecimento da condição social privilegiada, Candido também admitiu que para
seus contemporâneos brasileiros isso não era algo comum (PONTES, 1998, p. 156).
Algumas figuras da família de Antonio Candido desempenharam o papel de
intelectual nos círculos sociais do começo do século XX no Brasil e, por isso, tiveram
sobre ele forte precedência. Lúcia Miguel-Pereira, prima de primeiro grau, mas
tratada como tia pela diferença de idade, e por quem Candido nutria grande afeição,
exerceu sobre ele esse tipo de influência. Miguel-Pereira iniciou-se na crítica literária
aos 28 anos como colaboradora do Boletim Ariel, uma das publicações literárias
mais importantes da década de 1930; escreveu também uma biografia sobre
Machado de Assis e um estudo sobre Gonçalves Dias. Como corolário dessas
realizações, Miguel-Pereira foi a única mulher a alcançar, em um meio intelectual
predominantemente masculino, a condição de autora mais editada pela coleção
Documentos Brasileiros (PONTES, 1998, p. 153). Por tudo isso, teve um peso muito
grande para Antonio Candido, como figura que personificava o que era o papel e a
atuação intelectual.
53
Outra figura de destaque, nessa direção, é o próprio pai de Antonio Candido,
Aristides de Mello e Souza. Esse era graduado em medicina, mas com um tipo de
formação ampla, com interesse para uma cultura geral. Tanto que, ao lado da sua
clínica, edificou também uma sólida biblioteca particular que congregava obras de
filosofia, ciências, história e literatura (PONTES, 1998, p. 154).
A autuação de Aristides de Mello e Souza sobre o filho foi, então, dúplice: se
desdobrou no empenho em estimular e acompanhar os estudos de Antonio Candido
e, por outro lado, se realizou de modo indireto, por meio da sua biblioteca, que, junto
com outra biblioteca particular, a da mãe, formou o espectro cultural dentro do qual
se deram as primeiras descobertas do filho primogênito (PONTES, 1998, p.154).
Ora, a referência a esses exemplos familiares é um modo de dimensionar o
grau de intimidade que Antonio Candido teve com o modelo dominante das carreiras
intelectuais nas décadas de 1920 e 1930. Essas carreiras eram marcadas pela
inserção na vida política do país, além de terem se construído no encontro do
jornalismo com a crítica literária e no contato com algumas instituições de prestígio –
as faculdades de medicina e direito, grandes editoras, academias de letras e jornais
(PONTES, 1998, p.154).
Portanto, pode-se dizer que o ambiente familiar, rodeado de livros e de
pessoas com interesse pela leitura, pela música (ópera em especial) e pela cultura
em geral, com grande incentivo aos filhos ao hábito da leitura foi decisivo em Antonio
Candido, pois despertou o seu interesse intelectual de forma genuína (PONTES,
1998, p. 155). A atuação da sua família se fez sentir em uma série de privilégios de
classe, no acesso a bens materiais e culturais, que situam Candido em um estrato
social muito específico da sociedade brasileira da primeira metade do século XX.
Ao dar peso à influência social e familiar de Candido, não se quer
desmerecer a formação acadêmica do autor, que mais à frente será alvo de
apreciações, mas ponderar que é a família dele, na realidade, a sua principal base
cultural. Se é verdade que ela lhe concedeu o suporte material para a sua formação,
também é verdade que ela fez um pouco mais que isso: lhe ofereceu de herança um
matiz e um pendor particular, bem como suas principais motivações e seus
principais interesses no terreno da cultura. Ele próprio reconhece:
Ora, o espírito analítico depende de uma inclinação natural e doconvívio com certos textos, além das oportunidades de receberinfluências diretas ou indiretas. [...] O que formou a minhamentalidade, e portanto o meu espírito crítico, foram, em primeiro
54
lugar, o ambiente de minha família, marcado por pai e mãe muitocultos e por uma ótima biblioteca. A seguir, a leitura voraz ecaudalosa desde os oito ou nove anos, com predomínio dos autoresfranceses. Mais tarde, a Faculdade de Filosofia da USP, com seusprofessores estrangeiros, que nos marcaram profundamente [...](PINTO, 2010, s.p.).
Interessante notar no breve depoimento de Antonio Candido é que ela não só
reconhece a influência decisiva da sua família e de sua inclinação cultural na sua
formação, mas estabelece uma ordem de hierarquia: primeiro esse fator familiar, e
em segundo a formação universitária proporcionada pela USP.
Mas o próprio depoimento nos direciona a esse segundo fator, os estudos
universitários, de peso também significativo. Porque, embora sua vocação literária
tenha sido despertada muito cedo por causa da sua origem social, pela inclinação
cultural da sua família e pelo empenho de seus pais, não se pode negar que um tipo
de formação intelectual sistemática ele só obteve quando ingressou na USP
(Universidade de São Paulo). Em 1939, Candido prestou dois vestibulares: para a
Faculdade de Direito e para a Faculdade de Medicina, tendo sido aprovado em
ambos. Frequentou os dois cursos durante cinco períodos, até finalmente optar
pelas Ciências Sociais , cujas aulas eram realizadas na FFLCH-USP (Faculdade de
Filosofia Ciências Humanas e Letras, da Universidade de São Paulo).
3.2 Entrada na Universidade, grupo intelectual e atividade crítica profissional
A inserção de Antonio Candido na universidade remonta a um capítulo da
institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, particularmente em São Paulo. A
posição histórica alcançada pela supremacia econômica do referido estado –
ancorada no processo de industrialização e de construção de centros urbanos
durante a República Velha – e pelas derrotas políticas em 1930 e 1932 permitiram a
consecução de uma reforma educacional que teve como ponto central a fundação
USP e, nela, da Faculdade de Filosofia Ciências Humanas e Letras, e da Escola
Livre de Sociologia Paulista.
A universidade e o curso foram fundados no bojo da missão francesa, que
buscou dar caráter acadêmico e técnico aos estudos de cunho social no Brasil. Para
isso, contrataram professores e pesquisadores franceses para implantar sofisticar a
ciência social brasileira. Destacam-se Pau Arbousse-Bastide, Roger Bastide, Claude
55
Lévi-Strauss, Jean Maugüé e Fernand Braudel. Candido cursou Ciências Sociais de
1939 a 1941, e teve como marca distintiva o ensino científico, a particularidade do
objeto de estudo e dos métodos de pesquisa em ciência social, a importância da
empiria e contato com as principais teorias da área.
O objetivo central desta empreitada era forjar quadros políticos e técnicos
para a retomada da hegemonia política do país. Ambas as instituições guiavam-se
pela precedência dos parâmetros acadêmicos sobre os políticos, o que resultou no
surgimento de uma vida acadêmica como tal, possibilitada pelas oportunidades de
trabalho de intelectual que surgiram não apenas na universidade, mas, também, no
mercado de cultura em franco crescimento (JACKSON, 2007a, p. 118).
Existem, aí, dois elementos importantes: o primeiro diz respeito ao processo
de autonomização do campo acadêmico, pois se, por definição, a constituição
própria do espaço científico implica a diferenciação em relação às esferas da cultura
e da política, a vida acadêmica paulistana, por outro lado, se constituiu por meio de
uma grande proximidade e de um intenso contato com essas áreas (JACKSON,
2007a, p.118).
O segundo diz respeito à vida acadêmica dentro das universidades como
espaços de sociabilidade que forjam grupos de afinidade pessoal, política e
espiritual. Esses grupos que vão disputar espaço no meio intelectual da cidade,
concorrendo com um projeto distinto (JACKSON, 2007a, p.118).
Isto é, a universidade representava mais do que um espaço de
profissionalização: era também o centro em torno do qual girava a sociabilidade de
grupos de amigos, que ali, pela intensidade dos contatos diários, puderam construir
relações intelectuais, pessoais, afetivas e, em alguns casos, amorosas (PONTES,
1998, p. 141).
Como o próprio Antonio Candido, professores e alunos eram oriundos da
classe média alta paulista. Havia uma espécie de homologia entre a classe social de
Candido e de seus colegas e o projeto da universidade. Em consequência, Candido
não teve dificuldades para encontrar, dentro da academia, um espaço de aderência.
Esse tipo de composição social amparada em laços sociais informais permitiu
a formação, no ano de 1939, do Grupo Clima, constituído por jovens estudantes da
FFCL-USP, que se reuniram por meio de uma forte identidade pessoal. Décio de
Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, Ruy Galvão
de Andrada Coelho, Gilda de Mello e Souza, Antônio Branco Lefèvre, Roberto Pinto
56
Souza, Marcelo Damy de Souza eram alguns dos membros. Essas figuras marcaram
a cena cultural paulista por meio da crítica aplicada ao teatro, ao cinema, à literatura,
às artes plásticas etc. (PONTES, 1998, p.13).
Pode-se afirmar que eram produtos do novo sistema intelectual vigente na
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. Antonio Candido e seus colegas
mobilizaram o arsenal teórico adquirido na universidade para a crítica de cultura e
renovaram a tradição ensaística brasileira. Eram críticos “puros” no sentido de que
essa era única atividade a que se dedicaram, diferenciando-se, assim, da noção de
trabalho e do padrão de carreira comum até então (com atuação na literatura e na
política). Como intelectuais, também lograram se diferenciar dos modernistas e dos
outros cientistas sociais da USP (PONTES, 1998, p. 14).
Eles estavam localizados entre literatos, modernistas, jornalistas e cientistas
sociais, e delimitaram seu espaço de atuação justamente por meio da crítica, que,
embora fosse exercida nos moldes ensaísticos, era orientada pelos princípios e
critérios acadêmicos (PONTES, 1998, p.14).
Como críticos, adentraram a grande imprensa, os projetos editoriais e muitos
dos empreendimentos culturais de São Paulo. Como intelectuais forjados na USP,
conceberam um dos mais exitosos programas de análise da cultura brasileira. Ao
atuarem concomitantemente como críticos, acadêmicos e professores universitários
estabeleceram uma ligação entre a universidade e as áreas de produção e
divulgação cultural de São Paulo (PONTES, 1998, p.14).
Na Revista Clima, existiam seções permanentes: a de literatura ficava a cargo
de Antonio Candido; a de música, com Antônio B. Lefèvre; a de teatro, sob a batuta
de Décio de Almeida Prado; a de cinema, sob responsabilidade de Paulo Emilio
Salles Gomes; a de artes plásticas, com Lourival Gomes Machado; etc. E ainda
tinham colaboradores sem seção definida, como Ruy Coelho e Gilda de Mello e
Souza. Essa divisão do trabalho intelectual em Clima selou, de certo modo, o
destino intelectual de muitos desses pensadores, que, daí em diante, dedicaram-se
especialmente às áreas sobre as quais se debruçaram na revista (PONTES, 1998,
p. 97-98).
O periódico sempre foi muito eclético e, durante algum tempo, sem linha
editorial definida. Serviu como plataforma para que os alunos da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas exibissem o resultado da formação acadêmica que
tinham recebido. Dessa maneira, por intermédio de Clima, os jovens deram
57
visibilidade a uma nova postura intelectual, universitária e acadêmica, que surgiu
com o estabelecimento da Universidade de São Paulo. Mas ali não praticavam um
simples debate teórico, dedicavam-se à análise de obras culturais também
(PONTES, 1998, p.97-98).
Com a chegada dessa nova geração de críticos, os parâmetros fundamentais
que legitimavam a atividade intelectual se redefiniram. A partir de então, um conflito
geracional profundo se estabeleceu, e se expressou em posturas políticas, formação
científica e profissional e gêneros de investimento intelectual distintos, corporificados
em balanços críticos, manifestos e provocações recíprocas (RAMASSTOE, 2013, p.
53)
Durante o tempo em que atuou na revista, Antonio Candido fez crítica de
livros e logrou consolidar, por meio da sua atividade, a orientação analítica que
determinaria a sua trajetória como crítico e pensador da literatura. Investigou as
relações que podem se estabelecer entre literatura e sociedade, atentando para a
particularidade das mediações que cotejam ambos os domínios. Tentou ainda
redefinir o papel do crítico, afastando-o da crítica de tipo impressionista, baseada
nas percepções individuais de quem analisa a obra:
Dedicando-se à crítica de livros, Antonio Candido fixou, desde oinício, o viés analítico mas geral que guiaria sua trajetória comocrítico. E estudioso da literatura. [...] Seu empenho em construir umacrítica que se exprimisse por conceitos e abandonasse a visão do“autor como uma entidade independente” – para em seu lugar buscaras “ligações profundas” que todo escritor mantém com seu “tempo” ecom “o grupo social em função do qual trabalha e cria” – dá o tom daplataforma crítica que formou no interior de Clima (PONTES, 1998, p.100).
Com o prestígio angariado em Clima, quando ainda era estudante, Antonio
Candido conseguiu ingressar na imprensa diária de São Paulo. Foi indicado pelo
colega Lourival Gomes Machado e assumiu a condição de crítico titular do jornal
Folha da Manhã. Tinha a responsabilidade de enviar semanalmente ao jornal um
comentário crítico sobre algum livro do momento, que era publicado na parte de
baixo, o rodapé do periódico (RAMASSOTE, 2013, p. 51).
A conquista desse lugar significava para o seu ocupante, além de um ganho
financeiro considerável, o acúmulo de reputação intelectual e notoriedade pública,
que poderia habilitá-lo ao exercício de funções mais vantajosas do ponto de vista
intelectual ou financeiro nos setores em expansão no mercado de trabalho das
58
décadas de 1930 e 1940 – no Estado, no mercado editorial ou em agremiações
políticas (RAMASSOTE, 2013, p. 52).
Vê-se claramente como Candido mobilizou o capital social adquirido na
universidade para angariar oportunidades sociais e profissionais. A partir deste
momento, Candido já tinha ocupação, valorizada material e simbolicamente, para se
apoiar. Não dependia exclusivamente da docência, menos ainda aquela exercida no
ensino médio (antigo magistério), que nunca precisou executar.
Mais ainda: a atividade de crítico trouxe uma identidade para Candido, tanto
que sempre se apresentou como professor e crítico – e parte significativa da sua
produção intelectual posterior pode ser entendida como um esforço para dar bases
teóricas e metodológicas à atividade crítica.
A literatura, área sobre a qual se debruçava Antonio Candido, figurava como o
elemento central da vida cultural do país. E, dentre as várias atividades simbólicas
praticadas à época, a crítica era a que mais se aproximava da tradição intelectual
brasileira, sendo as revistas especializadas e os rodapés dos jornais espaço
privilegiado para divulgação da produção dos críticos (PONTES, 1998, p. 101).
Assim, Candido rapidamente aderiu a um espaço de atividade profissional legitimado
no campo intelectual brasileiro. Podemos afirmar que a sua origem social está na
base disso.
Nos rodapés e comentários escritos para o periódico Folha da Manhã, Antonio
Candido prosseguiu com o delineamento de sua proposta crítica, que buscava uma
relação com o contexto histórico abrangente; isto é, a análise deveria se guiar pelo
esforço de integrar a significação da obra ao seu momento cultural. Em suma,
Candido era à época um estudioso que tentava investigar a significação geral da
obra – em um sistema de relações que a prendem a seu momento e, entre elas, a
posição dos leitores. (RAMASSOTE, 2013, p. 54-56).
3.3 Sociologia, pensamento social brasileiro, cultura e deslocamento institucional
Paralelamente às atividades como crítico, Antonio Candido continuava com
suas atividades acadêmicas e docentes. Cursou a graduação em Ciências Sociais
na USP no período de 1939 a 1941, e, logo em seguida, em 1942, passou a atuar
59
como assistente do Professor Fernando Azevedo, na cadeira de Sociologia II,
atividade que exerceu até 1958.
Em sua trajetória – desde cedo marcada pela dualidade entre cientista de
perfil acadêmico, forjado na USP, e pensador público, com atuação na imprensa
diária – há um momento de inflexão na atuação como crítico: a partir de 1947,
Antonio Candido se afastou dos jornais, de modo que o intelectual acadêmico
predominou sobre o intelectual público. O número de comentários críticos diminuiu
consideravelmente e a produção de trabalhos sociológicos se sobressaiu – isso até
a criação, em 1956, do Suplemento Literário do jornal Estado de S. Paulo
(JACKSON, 2009, p. 275).
É justamente neste interregno, marcado pelo distanciamento de Antonio
Candido da imprensa pública, que ocorreu a produção e a defesa de Os Parceiros
do Rio Bonito: precisamente em 1954, Candido apresentou esse trabalho para
obtenção do título de doutor em sociologia. Conforme Jackson (2001, p. 128), essa
pode ser considerada sua maior contribuição para a sociologia brasileira.
A tese de doutoramento de Antonio Candido foi construída, em larga medida,
pelas pesquisas de campo realizadas entre 1947 e 1953 e foi realizada
principalmente em municípios do interior de São Paulo e Minhas Gerais. As
influências intelectuais são várias: de Marx a Lévi-Strauss, além da pesquisa
histórica, fazendo com que a obra seja heterogênea do ponto de vista teórico e que
esteja a meia caminho do estudo antropológico e da análise sociológica (CANDIDO,
1997, pp. 9-18).
Candido empreendeu um estudo do que ele chamou de cultura caipira, termo
que designa a cultura tradicional da vida rural. O pensador uspiano parte da
perspectiva de que a existência de qualquer cultura necessita de um equilíbrio social
que, por sua vez, depende de certos mínimos, que são os vitais (alimentação,
abrigo) e os sociais (organização e relações) (CANDIDO, 1997, p. 23-27).
O capiria encontrou o seu mínimo vital na tríade feijão milho e mandioca,
sendo a última substituída, mais tarde, pelo arroz (id., p. 52). O mínimo social
localiza-se no costume do trabalho coletivo, chamado de mutirão, e que consiste
numa obrigação bilateral de trabalho, e soluciona o problema da mão-de-obra e
supera os limites da atividade individual e familiar (id,p. 67-69).
Contudo, o processo de urbanização no estado de São Paulo, que trouxe
consigo o desenvolvimento industrial e a sociedade de mercado, fez com que
60
surgisse, na zona rural, bens de consumo até então desconhecidos. Isso forçou a
correlação da vida rural com o ritmo geral da economia e, por consequência, alterou
suas formas de vida. Em primeiro lugar, para enfrentar as necessidades comerciais
de compra e venda, a vida familiar e grupal se transformou: foi necessário a
construção de um orçamento doméstico, onde o dinheiro ocupava papel central –
isso em lugares o onde comportamento econômico e o cálculo era rudimentar, pois a
economia era baseada na troca. Em segundo lugar, os processos e ritmos de
trabalho foram profundamente mudados. O caipira teve que multiplicar o esforço
físico até a exaustão para atender as demandas da sociedade de mercado – o que
implicou, também, na atrofia das formas de trabalho coletivo (CANDIDO, 1997, pp.
165-171). Como resultado, as formas antigas de sociabilidade foram eliminadas. Isto
é, o que Antonio Candido constatou foi a paulatina eliminação da cultura caipira,
como resultados da chegada da modernização e do capitalismo nas zonas rurais.
Mesmo que seja visto como um clássico das Ciências Sociais no Brasil em
muitos espaços acadêmicos, este livro de Antonio Candido não se ajusta tão
facilmente aos parâmetros da sociologia uspiana da década de 1960. Apesar de o
percurso acima exposto, indo da investigação metódica e objetiva à intervenção
política, sugerir uma aproximação, não se encontra em Os Parceiros do Rio Bonito
categorias como “subdesenvolvimento” e “capitalismo dependente”. Essas últimas
expressões só vieram ganhar maiores contornos em obras publicadas um pouco
mais tarde, como Dependência e subdesenvolvimento na América Latina (1969), de
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Falleto, Capitalismo dependente e classes
sociais na América Latina (1972) e A revolução burguesa no Brasil (1974) de
Florestan Fernandes (MOREIRA, 2013, p. 35).
Outros fatores importantes são quando sua tese veio a público, em meados
de 1960, já fazia seis anos que Antonio Candido tinha optado definitivamente pela
carreira na área da literatura, ou seja, ele optou pelos estudos literários em um
momento anterior àquele que veio dar caráter mais reconhecível à sociologia da
USP. Do mesmo modo, as referências teóricas parecem indicar uma divergência: se
não se pode negar que Marx é peça-chave das argumentações dos Parceiros,
também é evidente, por outro lado, que Candido se dirige muito mais à antropologia
nesse trabalho, por meio de nomes como Robert Redfield, Audrey Richards,
Malinowski e Lévi-Strauss (MOREIRA, 2013, p. 36).
61
A ponte com a antropologia aponta, ainda, uma coesão dentro de sua obra, já
que o apoio em conceitos antropológicos foi fundamental para o livro Formação da
Literatura Brasileira – escrito ao mesmo tempo em que os Parceiros – e a ideia de
sistema literário que nele se encontra.
A filiação da tese de doutoramento de Antonio Candido parece ser mais
facilmente estabelecida com a tradição ensaística das Ciências Sociais no Brasil.
Desse ponto de vista, é possível sustentar que Os Parceiros do Rio Bonito não
constituem apenas uma monografia de caráter antropológico, mas um esforço de
interpretação do Brasil, tal como os ensaios das décadas de 1930 e 1940, embora
de modo diverso (JACKSON, 2001, p. 128).
Anda que tenha sido concebido dentro da USP, no departamento de Ciências
Sociais – cujo contexto apontava para a tentativa de superação da perspectiva dos
chamados grandes intérpretes, identificados com o Brasil arcaico e conservador –
Os Parceiros do Rio Bonito aproximam-se do tipo de abordagem ensaística ao
propor uma interpretação ampla da formação social brasileira a partir da colonização
paulista, iniciado no século XVI. É sob esse prisma que o livro pode ser encaixado
dentro da longa tradição do pensamento social brasileiro: como trabalho de
interpretação do processo de formação da sociedade brasileira, ao modo do que
fizeram Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre.
Mas ao focar na figura do caipira, o homem rústico da área delimitada em
razão da colonização paulista, e tratá-lo sob o prisma da sua constituição histórica,
Antonio Candido chama a atenção para os grupos marginalizados pela colonização,
que não tinham sido contemplados pelas interpretações mais amplas da nossa
formação histórica até então. Com exceção, talvez, para Euclides da Cunha, que se
debruçou sobre o sertanejo (JACKSON, 2001, p. 130).
Apesar de o texto quase literário e a utilização discreta das ferramentas
teóricas da antropologia o distanciarem do cientificismo vigente, a interpretação que
ele propôs não era neutra e visava a resolução dos problemas sociais
diagnosticados. Pode-se dizer que o autor encarou pelo avesso o nosso processo de
formação social e histórica, focando o agricultor pobre e a pequena propriedade rural
(JACKSON, 2009, p. 270).
É bem verdade, no entanto, que a aproximação de Os Parceiros do Rio
Bonito com a tradição ensaística do pensamento social brasileiro deve ser
ponderada: o tema selecionado, a pesquisa empírica que foi levada a cabo e a
62
modelagem teórica do trabalho se devem, em larga medida, à formação recebida na
USP. Mas se pode advogar que os Parceiros, por meio de um recorte restrito, propõe
uma interpretação da formação social do Brasil, talvez esse alinhamento possa ser
sustentado (JACKSON, 2001, p. 137).
Essa discussão em torno da tese de doutoramento de Antonio Candido dá
notas de um debate premente no meio intelectual brasileiro que envolvia
concepções do que é ciência, dos modos corretos de proceder à investigação da
realidade, e revelava, por consequência, uma competição em torno da validade do
saber sociológico e do cunho mais ou menos científico da análise social.
O referido debate está relacionado ao processo de institucionalização das
Ciências Sociais no Brasil, que pode ser assim periodizado: em um primeiro
momento, tem-se trabalhos que propõem “grandes sínteses” da formação social
brasileira, por intermédio de amplas considerações; o segundo representa,
justamente, o movimento das Ciências Sociais para dentro de determinadas
instituições, particularmente a USP e a ELSP; e o terceiro, e mais recente, relaciona-
se com a reforma do ensino universitário que ocorreu no final da década de 1960 e
se expressa na inauguração dos programas de pós-graduação (CORRÊA, 1987, p.
21).
O processo aqui discutido, envolvendo a figura de Antonio Candido como um
todo, e particularmente sua trajetória dentro da sociologia, localiza-se na transição
do primeiro para o segundo momento, pois entre 1930 e 1964 o desenvolvimento
intelectual das Ciências Sociais esteve “estreitamente vinculado aos avanços da
organização universitária e à disponibilidade de recursos governamentais para a
criação de centros independentes de investigação e reflexão” (MICELI, 1989, p. 12).
Assim sendo, a trajetória de Candido está em um ponto de intersecção entre a
tradição ensaística brasileira e a sociologia com contornos acadêmicos.
Sob a rubrica Ensaios de interpretação do Brasil entram trabalhos como
Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, Retratos do Brasil, de Paulo
Prado, Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mocambos, de Gilberto Freyre,
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil
Contemporâneo, de Caio Prado Jr. Embora tenham traços em comum, não formam
uma unidade sistematizada do ponto de vista contextual mais amplo (BOTELHO,
2010, p. 47-48).
63
O processo de institucionalização das Ciências Sociais teve como marca
fundamental a deslegitimação desse ensaísmo como forma de produção de
conhecimento válida para analisar a realidade social. O tipo específico de
pensamento que estava sendo forjado nas instituições recém-criadas buscava
arrogar para si a categoria de conhecimento isento e objetivo.
Como se tratava de construir um “campo científico” de conhecimento, o
próprio desenvolvimento das Ciências Sociais foi pensado a partir de uma
polarização aberta entre os perfis “científico” e “pré-científico” dos ensaios de
interpretação do Brasil. No contexto brasileiro, o tipo de abordagem realizada pelos
diferentes ensaios, particularmente o tipo de recomposição sujeito/objeto, figurava
mais como um “desvio” do rigor científico almejado e menos como uma
contraposição a ele (BOTELHO, 2010, p. 51).
Esse rigor científico tinha como lugar principal as novas universidades. É
assim que, a despeito das diferentes caracterizações que se pode fazer dos autores
e do período, a institucionalização se torna o ponto nevrálgico em torno do qual se
compreende o nascimento das Ciências Sociais no Brasil e se configura, no limite,
como critério de valorização e de legitimidade do conhecimento (SEGATTO;
BARIANI, 2010, p. 205).
O tipo de ciência social que estava surgindo alcançou status científico a partir
da sua fundamentação em bases empíricas e indutivas, ao passo que a produção do
período imediatamente anterior estaria baseada no dedutivismo e negligenciava a
devida coleta e análise dos dados objetivos. Portanto, os ensaístas do Brasil se
caracterizariam pela falta de apuro metodológico e pela ausência de um padrão
científico de trabalho, aproximando-se muito mais da literatura e da filosofia social
que da ciência propriamente dita.
A nova concepção de conhecimento, então, pensava a sociologia como uma
ciência empírico-indutiva, calcada no rigor metodológico e em um elevado padrão de
trabalho científico, prezando pelo distanciamento em relação aos valores e pela
articulação do ensino e da pesquisa. Essas foram as características do período
científico da ciência social no Brasil, que passou a ter o seu marco a partir da
criação de cursos superiores, com professores estrangeiros e a utilização de
técnicas de investigação de campo (SEGATTO; BARIANI, 2010, p. 205-206).
Essa polarização se materializou na sociologia paulista, que passou a
congregar projetos intelectuais distintos e concorrentes – que eram, a bem dizer,
64
mais perspectivas analíticas que especialidades propriamente ditas. A disputa entre
esses projetos se expressava em termos de alguns pares antitéticos: o já referido
debate ciência e ensaio, mas também pensamento radical e pensamento
conservador, teoria e pesquisa empírica, interpretações totalizadoras e dualistas,
sociologia do desenvolvimento e sociologia da cultura (JACKSON, 2007b, p. 33).
Essas oposições – principalmente a de ciência e ensaio – devem ser
pensadas como uma relação complexa em torno da qual gravitavam personagens e
grupos mais ou menos envolvidos em cada projeto. Dessa forma, ninguém nas
universidades poderia escapar a essa orientação geral, porque ela é parte do
processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil (JACKSON, 2007b, p.
35).
É neste contexto que avulta a figura de Florestan Fernandes, cuja origem
social é completamente distinta da de Antonio Candido e do seu círculo de amigos.
Devido à vulnerabilidade da situação econômica de sua mãe, Florestan não
frequentou a escola com regularidade: já aos nove anos de idade interrompeu os
estudos para trabalhar. Na altura da adolescência, retomou os estudos no Ginásio
Riachuelo, conciliando os estudos com um emprego (PONTES, 1998, p. 165-167).
Ao se atentar para a origem social de Florestan, com foco nas dificuldades
que passou na infância e na adolescência, percebe-se um campo de possibilidades
muito estreito – o ingresso em uma carreira de medicina ou direito, por exemplo, se
fazia extremamente improvável. Dada sua origem social, o ingresso no curso de
Ciências Sociais era uma possibilidade de dar uma nova trajetória à sua vida e
experimentar, mesmo que timidamente, uma ascensão social.
O inverso se deu com Antonio Candido, que tinha na família ampla tradição
de médicos, e que só ingressou no curso de Ciências Sociais após ter sido
reprovado no exame para a Faculdade de Medicina – portanto, em relação à
geração anterior da sua família, pode-se dizer que Candido vivenciou um pequeno
descenso social. Candido também cursou, durante um tempo, Direito enquanto
frequentava as aulas de Ciências Sociais, até optar definitivamente pelo segundo.
Para compensar o déficit da sua formação educacional e cultural e a ausência
de capital social, Florestan Fernandes se dedicou de forma incansável ao curso de
graduação durante o primeiro ano, mobilizando todo o seu empenho na confecção e
finalização dos trabalhos universitários, obtendo retorno com a publicação do estudo
65
sobre o folclore em São Paulo – o que lhe rendeu certo renome entre os professores
e os alunos (PONTES, 1998, p.145-146).
Não é que Florestan Fernandes e Antonio Candido fossem inimigos ou
nutrissem algo em torno da aversão, muito pelo contrário, do círculo de estudantes
mais abastados econômica e socialmente, Candido era o único com quem Florestan
mantinha uma relação de amizade, tendo, até mesmo, ajudado o colega em
algumas situações, quando, por exemplo, interviu junto a Fernando de Azevedo para
que aceitasse Florestan como assistente na cadeira de Sociologia II (PONTES,
1998, p. 148).
Mas a questão básica era que as diferentes origens sociais traçaram
caminhos distintos para ambos dentro das Ciências Sociais – e que os caminhos
distintos de cada um deles dizem muito sobre o tipo de ciência que se queria fazer
no Brasil e porque Candido teve que se mover institucionalmente
Portanto, por ser desprovido de bens materiais, de formação cultural e de
inserção social, Florestan Fernandes transforma a carreira no mundo das Ciências
Sociais como único espaço capaz de lhe proporcionar ascensão social e, também,
de lhe render algum prestígio do ponto de vista intelectual:
Mais do que qualquer outro assistente da Faculdade de Filosofia noperíodo, Florestan concentrava a “voltagem” máxima de absorção devirtualidades na absorção do padrão de trabalho, da linguagemespecializada e do rigor metodológico introduzidos pelos professoresestrangeiros. O recorte erudito e científico que imprimiu ao objeto datese de doutoramento; a postura profissional e nada amadorísticaque, desde o início, modelou a sua atuação na faculdade; o uso doavental branco [...]; a receptividade com que se deixara impregnarpelas novas definições de trabalho intelectual e pelo conjunto deensinamentos transplantados do exterior para a universidadepaulista; tudo isso contribuiu para fazer de Florestan o discípulo maisindicado para gerenciar a herança intelectual dos mestresestrangeiros (PONTES, 1998, p. 184)
Florestan defendeu sua tese de doutoramento sobre a guerra entre os
tupinambás em um momento em que a sociologia e a antropologia ainda não tinham
adquirido as características distintivas que possuem hoje. Com esse trabalho,
demonstrou para os colegas e para os professores estrangeiros a sua capacidade
como cientista social. Depois redirecionou seus interesses para questões
econômicas da sociedade brasileira (PONTES, 1998, p. 183-184)
66
A partir daí, pode-se dizer que Florestan erigiu um vigoroso projeto intelectual
voltado para a análise da formação da sociedade burguesa no Brasil e de seus
elementos estruturais. Diferenciou-se por meio de uma linguagem especializada,
acadêmica, pautada pela ideia corrente de cientificidade. Seu modelo de explicação
e exposição dos fenômenos sociais configurou-se como um dos pilares da
construção da identidade disciplinar da sociologia brasileira (PONTES, 1998, p.
174).
A situação de Antonio Candido era diametralmente oposta: apesar de ter
iniciado e finalizado o curso de Ciências Sociais antes, nunca fez desse espaço
acadêmico – ou, pelo menos, o lugar institucional da sociologia – o único âmbito
possível para a sua atuação profissional. Não que o espaço acadêmico, com todo os
recursos que dispõe, fosse desdenhável. Mas as condições sociais de Antonio
Candido faziam com que ele pudesse vislumbrar outras possibilidades que não
apenas essa.
Tanto que Candido conseguiu angariar prestígio intelectual antes do colega,
por meio da atuação na imprensa diária de São Paulo. Mas realizou isso lançando
mão de um estilo ensaístico de escrita, que considerava mais apropriado para tratar
questões relativas à cultura.
Florestan Fernandes, por ter assimilado com voracidade o novo perfil de
trabalho intelectual trazido pelos professores estrangeiros, correlacionava ensaísmo
– não obstante reconhecer sua importância para o entendimento da nossa formação
social e histórica (JACKSON, 2007b, p. 35) – ao amadorismo. Isso porque, na sua
concepção, tanto o ensaio como a forma literária revelavam uma visão estamental
da sociedade brasileira. Ele então levou a cabo uma luta simbólica no plano da
linguagem com o propósito de legitimar a sociologia no campo intelectual paulista
(PONTES, 1998, p. 174-175).
Embora a ruptura realizada pela escola paulista de sociologia, expressão que
designa Florestan e seu grupo, tenha sido muitas vezes superestimada, por se
constituir muito mais como um programa recorrentemente reiterado do que em uma
clivagem de fato, é razoável reconhecer que a passagem do ensaio à ciência, e da
análise da cultura à de problemas estruturais, significava suplantar a cultura
bacharelesca dos intelectuais de então, da qual Antonio Candido era em grande
medida debitário.
67
Portanto, Antonio Candido e Florestan Fernandes, companheiros do curso de
Ciências Sociais no início da década de 1940 e alunos de Roger Bastide,
compreendiam os pontos de vistas antagônicos, inseridos em experiências sociais
distintas e trajetórias concorrentes (JACKSON, 2007b, p. 35). Desse modo, a
oposição que se estabeleceu nesse período entre as atividades tidas como científica
e aquelas consideradas como culturais expressou-se de maneira emblemática nas
figuras de ambos (PONTES, 1998, p. 176).
Quando Roger Bastide saiu da Universidade de São Paulo, por volta de 1954,
Florestan Fernandes ocupou seu lugar na cadeira de Sociologia I. Como essa
disciplina era uma das mais importantes do curso, esse evento significou a
desvalorização da sociologia da cultura até, pelo menos, meados dos anos 1970
(JACKSON, 2007a, p. 124).
Naquele momento, todas as características de Florestan atendiam muito mais
a necessidade de definição de um campo científico para as Ciências Sociais. O tipo
de trabalho que Antonio Candido se propunha fazer, interconectando literatura e
ciência social, mais atrapalhava que ajudava o andamento da diferenciação da
sociologia. Desse modo, no decorrer da década de 1950, Antonio Candido encontrou
cada vez menos espaço dentro da sociologia para dar prosseguimento ao seu
interesse intelectual mais profundo: as intersecções entre a literatura e a cultura em
sentido amplo (PONTES, 1998, p. 176).
Como Antonio Candido não estava ligado apenas à academia (sabe-se que a
ocupação como crítico também definia seu perfil), pode-se dizer que a inclinação
familiar pela alta literatura se transformou em atividade profissional crítica. E com a
experiência adquirida na crítica, também se transformou em estudos de caráter
teórico (como Introdução ao Método de Sílvio Romero e Formação da Literatura
Brasileira), obras que expandiram as possibilidades de Candido.
Assim, Antonio Candido abriu um espaço intelectual no qual seu interesse
principal – a literatura – podia se processar. Nesse novo espaço, a relação com o
pensamento social brasileiro era extremamente íntima – conforme já foi exposto
acima. Desse modo, a projeção de Candido está marcada por um senso de
continuidade com a maior tradição intelectual brasileira, dando novo vigor a ela.
Foi nesse contexto que o projeto intelectual se transformou em projeto
institucional e a trajetória de Candido se vinculou intimamente ao campo das Letras,
no Brasil. Durante o período de 1961 a 1970, ele foi o mentor, e, durante muito
68
tempo, principal executor, acumulando as tarefas de professor e orientador, do curso
de Teoria Literária e Literatura Comparada (TLLC), da Universidade de São Paulo,
tendo formado, nesse tempo, os principais nomes da crítica literária do Brasil
(RAMASSOTE, 2010b).
A entrada no campo das Letras foi facilitada pela publicação, em 1959,
quando estava vinculado à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Assis, do
livro Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Nessa obra, Antonio
Candido analisa o processo de constituição da literatura brasileira, isto é, do
momento em que ela ganha relativa autonomia em relação às letras portuguesas e
europeias como um todo.
Para tanto, lança mão do conceito de sistema literário, definido como uma
interação contínua entre autores, obras e público. A configuração do sistema é
correlata, então, à formação de uma tradição nativa de obras e autores ligados uns
aos outros e ao consumo por parte do público local. As análises empreendidas por
Candido nesse livro, no entanto, não negligenciam a face estética: a preocupação
em julgar obras e autores de maneira particularizada está sempre presente
(CANDIDO, 2013, pp. 25-42).
Se a vinculação departamental de Antonio Candido for tomada como uma
mera linha cronológica de produção intelectual e acadêmica, pode-se incorrer no
equívoco de sugerir uma clara separação entre o sociólogo e o crítico literário –
primeiro cientista social, depois estudioso da literatura. Como já explicitado, a
preocupação com a literatura já era premente no cientista social em formação
Antonio Candido, que contribuiu, nos anos 1930 e 1940, com diversos estudos
literários em suplementos culturais da imprensa paulista – tendo chegado, mesmo, a
publicar alguns livros sobre o tema.
Na verdade, a assunção da cátedra de Teoria Literária e Literatura
Comparada, depois da passagem pela Faculdade de Assis, que durou de 1958 a
1961, significou a conclusão de um itinerário pessoal que tinha como fim a
transferência para as Letras, mas que não inviabilizou seu prosseguimento na
sociologia, conforme competência já comprovada quando da defesa de sua tese de
doutorado (JACKSON, 2009, p. 275-276).
É válido notar, nessa direção, que Formação da Literatura Brasileira e Os
Parceiros do Rio Bonito foram escritos ao mesmo tempo, e que um revela o que
outro esconde: enquanto no primeiro a intenção de dialogar com o ensaísmo
69
brasileiro está clara, no segundo ela permanece implícita; e ao passo que no
segundo os contornos sociológicos e o diálogo com escola paulista são explícitos,
no primeiro esses elementos só se mostram nas estrelinhas, porque foi publicado
longe dos problemas pessoais e das disputas acadêmicas que circundavam o seu
autor na sociologia uspiana (JACKSON, 2009, p. 271). Esse é mais um fator que
confirma a percepção de que não existe, em Candido, separação entre o sociólogo e
o crítico – as duas dimensões sempre estiveram presentes.
Outro fator que reforça a proximidade entre as duas formações do mesmo
intelectual é a sua defesa de tese baseada no método crítico de Sílvio Romero
(intitulada Introdução ao Método Crítico de Sílvio Romero), que foi elaborada para o
concurso da cadeira de Literatura Brasileira da FFCL e que lhe rendeu o título de
livre-docente em Letras, em 1945 – isso quando estava plenamente vinculado à
sociologia.
Em suma, a divisão desdobrada no plano intelectual pelo exercício da crítica
literária e o ensino de sociologia nos moldes acadêmicos marcou desde cedo a
trajetória profissional de Antonio Candido. Outra seria sua trajetória acadêmica se
tivesse optado pela graduação em Letras quando jovem, mas outra não seria sua
produção intelectual (PONTES, 1998, p. 170).
Trazemos esses elementos à luz para ressaltar que concorrem em Antonio
Candido duas grandes vertentes (Sociologia e Letras, mundo social e literatura), que
não se separam, e que talvez sejam a chave para entender porque o seu método de
abordagem da obra literária é reconhecido justamente por conjugar os elementos
formais e os elementos sociais. Antes de ser um entrave para o seu
desenvolvimento, é dessa relação mútua que a sua proposta teórica extrai força.
No entanto, é nesse processo de mudança departamental que deve ser
localizada a base para a consolidação do pensamento de Candido no campo
intelectual brasileiro: ao liderar um programa coletivo de pesquisas, com todo o
esteio institucional que ele oferecia, pôde proporcionar maior impacto e alcance à
sua obra (JACKSON, 2009, p. 276).
Durante o tempo em que conduziu o departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada (TLLC), formou alguns discípulos que foram responsáveis por
levar adiante tanto a literatura como tema privilegiado quanto um padrão de crítica e
análise característico. Como exemplo, podemos citar Walnice Nogueira Galvão e
Roberto Schwarz, ambos formados no curso de Ciências Sociais e posteriormente
70
vinculados ao departamento de TLLC. Galvão ganhou notoriedade com as análises
sobre Euclides da Cunha, mostrando como já estavam presentes nesse escritor os
traços modernistas (2019). Schwarz se destacou por localizar na obra Machado de
Assis as dinâmicas do capitalismo na periferia do sistema (2000).
É a partir deste momento que a proposta teórico-metodológica de Candido
ganha preponderância no meio intelectual brasileiro, passando a inspirar e servir de
influência para a grande maioria dos trabalhos que objetivavam relacionar arte e
sociedade. Em outras palavras: o padrão analítico construído por Candido se
transformou na principal referência para a crítica literária e a sociologia da literatura,
no Brasil.
3.4 Raymond Williams e herança familiar
Raymond Williams é um estudioso galês com grande influência para o
pensamento social britânico, voltado aos chamados estudos culturais e ao marxismo
ocidental. Tal posição foi alcançada por meio de uma contribuição inovadora para
análise das questões relativas ao poder e à política no capitalismo, destacando o
âmbito cultural como o espaço no qual as relações de dominação também se
operam.
Faz-se necessário, aqui, esboçar um quadro geral sobre atuação intelectual e
a trajetória de Raymond Williams. Nesse percurso, procura-se destacar o contexto
histórico em que se deu o seu advento como pensador e a sua influência para os
estudos culturais britânicos, com o objetivo de entender a sua posição intelectual
atualmente. Para alcançar tal ponto, no entanto, é indispensável conhecer um pouco
da biografia de Raymond Williams. Por meio desse movimento pode-se iluminar os
elementos que estavam no centro das preocupações do pensador galês.
Williams cresceu em uma comunidade rural de pequenas fazendas familiares
no País de Gales, chamada Pandy. Seu pai começou a trabalhar em uma fazenda
ainda muito jovem, e por volta dos 15 anos ingressou como carregador em uma
ferrovia – ao voltar da Primeira Guerra foi assistente de sinaleiro e, depois, sinaleiro.
O cenário de sua infância foi, por conseguinte, muito peculiar: unia um espaço rural
à estrutura social dos ferroviários, ocupação própria do mundo urbano. Existia pouca
ou nenhuma barreira social entre fazendeiros e ferroviários, que conviviam de
maneira amistosa entre si, apesar das inclinações política distintas – os fazendeiros
71
estavam para o Partido Liberal e os ferroviários para o Partido Trabalhista
(WILLIAMS, 2013, p. 5-8).
Essa organização social específica legou uma formação intelectual muito
particular: embora inserido regular e formalmente na escola – Williams, aos 11 anos,
ganhou uma bolsa de estudos para uma instituição de ensino secundário em
Abergavenny, chamada King Henry VIII Grammar School – o pensador galês teve
pouquíssima influência do currículo escolar, marcadamente nacionalista, e só veio a
desenvolver o hábito da leitura um pouco mais tarde, aos 16 ou 17 anos, no Left
Book Club, anexo cultural do Partido Trabalhista britânico. Desse modo, pode-se
dizer que a influência política viria preencher o estudante que estava sendo formado
nas instituições regulares.
O primeiro ponto a se notar dentro dessa questão é que a ida para a
Grammar School em uma cidade próxima não era fato corriqueiro para as crianças
de Pandy. No ano em que Williams conseguiu ingressar, outras seis crianças
também conseguiram – e tal feito mereceu registro fotográfico, tamanha era a
raridade do evento. Apesar do acesso, a permanência também era difícil – para
meninas por questões de gênero, dado que era comum que em um dado momento
deixassem os estudos; e para os meninos pelas dificuldades de passar no processo
de admissão (WILLIAMS, 2013, p. 13).
Desse modo, no sexto período da Grammar School, Williams era a única
criança do vilarejo de Pandy a continuar frequentando a King Henri VIII. Apesar
disso, a atividade estudantil não era considerada, pela comunidade local, como algo
anormal. Isso se deve ao fato de que, historicamente, no País de Gales, muitos
intelectuais vêm das classes menos favorecidas. Mesmo assim, a percepção de que
a educação era o meio mais fácil de mobilidade social, algo que levaria a uma
ocupação simples, porém mais bem remunerada e não necessariamente a uma
atividade puramente intelectual, ainda persistia (WILLIAMS, 2013, p. 13-14).
A visão de educação como saída de um emprego degradante persistia de tal
modo que a própria possibilidade de ida para Cambridge foi tratada em sigilo pelo
pai de Williams e pelo diretor da escola até que fosse concretizada, com o objetivo
de não criar expectativas no garoto a respeito de seu futuro. Paralelamente a isso,
Williams relata que, já naquela altura, tinha cristalizado interiormente o que queria
ser – algo próximo do que fato de fato se tornou, mas que seria mais bem acertado
se falasse de um escritor ou dramaturgo (WILLIAMS, 2013, p.14).
72
Ora, essas aparentes contradições – escassez de oportunidades de acesso à
educação versus a visão de que a atividade intelectual não era nada extraordinária;
visão da educação como fuga de uma condição penosa versus a precoce
identificação com a carreira intelectual – só são entendidas no contexto específico
em que Williams estava inserido: embora desfavorecido economicamente, e,
portanto, com oportunidades sociais raras, as características culturais do vilarejo de
Pandy no País de Gales faziam que cada conquista fosse realizada com o mínimo
de atritos.
Vejamos: da infância até o ingresso na universidade, a trajetória de Raymond
Williams passou por uma série de pequenos privilégios que se caracterizam pela
ausência. Em primeiro lugar, a ausência de uma cisão profunda entre campo e
cidade, entendida como uma alienação em relação ao mundo natural, que
certamente ele teria sentido se pertencesse a uma região mais urbanizada.
Em segundo lugar, também não houve um sentimento de exploração, dado
que seu pai era um ferroviário em uma comunidade rural, e, desse modo, não havia
quem encarnasse o poder de mando localmente. Em terceiro lugar, também não
houve qualquer relação conflituosa entre trabalho manual e intelectual, dado que as
oportunidades de educação formal não vieram acompanhadas de um desconforto
quanto ao exercício da atividade intelectual (WILLIAMS, 2013, p. 19-20).
De acordo com o próprio Williams, as oportunidades que teve fizeram com
que ele chegasse à universidade com plenas energias, um sinal da ausência dos
conflitos acima relatados. Contudo, as clivagens de classe não foram apagadas e
deixaram marcas. Segundo o próprio Williams, seu objetivo era “golpear e não ter
medo” de Cambridge (WILLIAMS, 2013, p. 21), evidenciando que, apesar de tudo, o
movimento de um membro da classe trabalhadora até o ensino superior não é feito
sem um sentimento de hierarquia.
Em nossa visão, toda essa segurança experimentada quase que por acaso na
sua trajetória pessoal forma um feixe de pequenas condições objetivas, sem as
quais não seria possível que um pensador como Williams se realizasse. O marxista
galês viveu um verdadeiro processo de ascensão social, expresso na estabilidade
da ocupação do seu pai e facilitado pelas características de Pandy. Em uma
expressão, é como se Williams estivesse no lugar e na hora certos dos
acontecimentos e, assim, pudesse enxergar de maneira privilegiada determinados
eventos e relações sociais (CEVASCO, 2007, p. 10).
73
A biografia de Raymond Williams também ajuda a iluminar outra faceta da sua
vida: a orientação política. O estudioso galês cresceu em uma família socialista e se
conectou com movimentos de trabalhadores desde muito cedo. Recorda-se da
reviravolta política do seu avô, que após ser demitido e despejado de casa, deixou
de ser liberal e aderiu ao trabalhismo. Outros eventos marcantes foram a greve geral
de trabalhadores de 1926 e a vitória do Partido Trabalhista nas eleições de 1929,
que foi seguida de muita comemoração em Pandy (WILLIAMS, 2013, p. 10-11).
O Left Book Club foi outra fonte de influência para Williams. Lá, tomava livros
emprestados dos membros do grupo, todos vinculados ao Partido Trabalhista, e
pôde se aprofundar em temas como colonialismo e imperialismo, bem como se
informar a respeito de eventos como a guerra da Abissínia, a Revolução Chinesa e a
Guerra Civil Espanhola (WILLIAMS, 2013, p. 16).
A relação com o Partido Trabalhista é um capítulo à parte. Muito da ligação
que tinha com seu pai passava pelo envolvimento com o Partido Trabalhista. Seu
pai lhe para que se filiasse ao partido em 1936. Demonstrou insatisfação, em 1945,
quando Williams declinou o pedido para concorrer às eleições locais. Vê-se que
Williams tinha uma certa intimidade com o Partido Trabalhista. Entretanto, Williams
só foi de fato filiado durante a década de 1960, por considerar a única saída política
dentro da conjuntura (WILLIAMS, 2013, p. 16-17).
A presença da política no ambiente familiar legou a Williams uma outra
importante transição sem atritos: a militância política. É comum que a opção por ser
um indivíduo ativo politicamente venha acompanhada de um estremecimento nas
relações familiares. Esse não foi o caso de Williams. É justo considerar que a
posição trabalhista de esquerda encontrada na família abriu margem para o
engajamento comunista, que viria a caracterizar a figura pública de Williams
posteriormente (WILLIAMS, 2013, p. 20).
3.5 Entrada na universidade e ambiente intelectual
Ao chegar em Cambridge, instituição que é o reduto das classes dominantes
da Inglaterra e por isso se impõe com certa superioridade, Williams encontrou
dificuldades para se integrar. As relações sociais de classe dominam Cambridge de
uma tal forma que chegam mesmo a estar formalizadas: para adentrar no grêmio
estudantil da universidade, por exemplo, era necessário ser indicado por uma outra
74
pessoa. Mesmo que seja um calouro, esse teria de recorrer a um amigo de escola
(WILLIAMS, 2013, p. 23).
Isso por si só revela que, em Cambridge, presume-se tacitamente que os
estudantes são oriundos de um mesmo segmento social, quase uma continuação do
ensino médio – os alunos da elite esperam encontrar, na universidade, as pessoas
que estudaram consigo anteriormente. Na prática, o mecanismo de indicação para
participação do grêmio funciona como meio de controle social e de manutenção de
privilégios.
Raymond Williams só foi encontrar um espaço de aderência na universidade
quando descobriu o Clube Socialista. Mais do que simplesmente uma organização
política, o clube representava um lugar onde era possível encontrar uma alternativa
política aliada a uma cultura social, pois se constituía em um espaço de
sociabilidade e de redes de amizade. Importa assinalar que o Clube Socialista, do
ponto de vista do recorte social dos seus membros, não era diverso do resto de
Cambridge: era raro encontrar nele uma pessoa oriunda da classe trabalhadora
(WILLIAMS, 2013, p. 24).
Portanto, a estrutura social da universidade não foi um mecanismo de
sociabilização para Williams, ao contrário: funcionou com uma barreira à integração,
que só foi furada graças à inclinação política que autor galês herdou da família. Essa
situação específica vivida em Cambridge se sobrepõe e reforça a cultura familiar
herdada, de modo que sedimenta em Williams a centralidade da dimensão política –
as suas atividades docentes, teóricas e criativas terão sempre essa questão em
primeiro plano.
Por meio do Clube Socialista, Raymond Williams conheceu alguns textos
marxistas e livros sobre a história do Partido Comunista Bolchevique. Filiou-se ao
Partido Comunista britânico rapidamente (um mês após entrar no Clube Socialista).
Não enxergou nisso grande contradição, porque não sentia uma oposição real entre
a perspectiva trabalhista e a comunista naquele momento (WILLIAMS, 2013, p. 25-
26).
Dentro do Partido Comunista, Williams e alguns colegas, por estarem na
Faculdade de Inglês, eram chamados de Grupo dos Escritores e eram requisitados
para trabalhos de propaganda do partido e para redação de textos (WILLIAMS,
2013, p. 27). O termo Grupo dos Escritores, embora até certo ponto jocoso, dava o
75
tom do que viria a ser o trabalho intelectual de Williams: um marxista aplicado às
Letras e à esfera da cultura.
O ponto mais importante a se notar sobre esse primeiro período em
Cambridge é a presença de uma cultura socialista muito forte. Embora a
universidade fosse majoritariamente de direita, a esquerda, nesse período,
representada pela URSS, era um ponto de atração e convergência das atividades
acadêmicas e intelectuais, sendo muito eficiente na ocupação de espaços
institucionais. Essa cultura se manteve até pelo menos o início dos anos 1940.
Nesta altura, ocorre uma abrupta interrupção na trajetória de Raymond
Williams: a ida para Segunda Guerra Mundial. O pensador galês serviu durante nove
meses na Divisão Blindada da Guarda do Exército Britânico. Seus relatos dão conta
da experiência brutal e desumanizado que é a guerra. Politicamente, tinha a
percepção de estar em um esforço conjunto com o Exército Vermelho, contribuindo
para a derrota do fascismo (WILLIAMS, 2013, p. 42-46).
O retorno à Cambridge, em 1944, é marcado por uma mudança sensível no
contexto histórico. Williams nota que a cultura dos anos 1930 havia se esfacelado e
dado lugar a uma cultura conservadora e religiosa. No plano literário, F. R. Leavis3
havia sido alçado à posição de figura central, influenciando fortemente estudantes e
colegas de profissão (WILLIAMS, 2013, p. 47).
Interessante notar que em 1945 o Partido Trabalhista venceu as eleições,
sendo esse período visto, por isso, como um momento de radicalização na
Inglaterra. Mas não era sobre a política que Williams falava, e sim do espírito dos
intelectuais da época, que havia caminhado em direção à direita – situação diversa
de quando ele deixou a universidade pouco tempo antes. Foi nesse clima que o
autor galês finalizou seu curso, produzindo trabalhos sobre Ibsen e Eliot (WILLIAMS,
2013, p. 47-50).
Que cultura era essa? Durante o período entreguerras ocorreu a consolidação
dos estudos ingleses dentro do currículo das universidades. A corrente que venceu o
debate no interior da academia foi a de Leavis que, longe de propor o fim do
isolamento da literatura inglesa, preocupou-se em estabelecer uma pedagogia
exclusivamente centrada leitura de textos canônicos. O livro Culture and Enviroment
3 Frank Raymond Leavis (1895 – 1978): crítico literário britânico com forte atuaçãono primeiro quartel do século XX. Tinha uma visão negativa da industrialização e daurbanização, opondo a esses fenômenos o que considerava ser os valores principais dohomem.
76
tornou-se o documento principal dessa nova disciplina, recomendando a leitura
metódica de textos ingleses contra a degenerescência da língua provocada pela
sociedade mercantil (MATTELART; NEVEU; 2004, p. 35-36).
A revista Scrutiny, veículo pelo qual Leavis propagava suas ideias, era um
libelo moral e cultural contra a suposta decadência trazida pela mídia e pela
publicidade. Era basicamente uma saída, não política, mas “idealista” para o novo
contexto histórico e social que vivia a Inglaterra. Deve-se recordar que o choque da
Primeira Guerra Mundial traz à tona a necessidade de reanimar a nação inglesa,
abrindo espaço para soluções do tipo messiânicas. Some-se a isso a crise causada
pelo advento de uma cultura de massa industrializada no segundo pós-guerra em
uma Inglaterra na iminência de ceder seu lugar de primeira potência aos EUA
(MATTELART; NEVEU, p. 37).
Diante desse quadro, o expediente utilizado por Leavis foi propor um retorno a
uma sociedade pré-industrializada, no qual o ensino deveria ser submetido ao
regime da Grande Tradição da ficção inglesa. Essa tradição, não é demais enfatizar,
representava nada mais do que uma escolha arbitrária de autores e obras, que
viessem a legitimar e justificar a visão cultural por Leavis propagada (MATTELART;
NEVEU, p. 38).
A aproximação, do ponto de vista intelectual, de Raymond Williams com a
nova cultura estabelecida no pós-guerra se deu por meio da realização da revista
Politics and Lettres. O projeto do periódico era unir uma perspectiva radical de
esquerda à crítica literária leavisiana. O radicalismo cultural de Leavis, o fascínio da
crítica praticada por ele e a ênfase dada à educação foram os pontos que atraíram
Williams e seus colegas de universidade (WILLIAMS, 2013, p. 53-54).
Esse é um momento muito importante, pois representa uma apropriação mais
profunda e sistemática do pensamento de Leavis e da tradição na qual ele se
inscreve. A partir disso, Williams pôde reconhecer as limitações e contradições
dessa escola de pensamento – especialmente a noção de cultura – canônica na
Inglaterra. Esse arcabouço foi colocado em diálogo com o marxismo e está na base
da sua proposta teórica e metodológica para análise da cultura.
3.6 O trabalho na educação de adultos
77
Outro capítulo de extrema relevância na trajetória pessoal e intelectual de
Raymond Williams foi o trabalho de educação para adultos que ele desenvolveu
dentro da Universidade de Oxford em parceria com a Worker’s Education
Association (WEA) – instituição filantrópica criada no início do século XX. Durante
quinze anos, de 1946 a 1961, Williams se dedicou a esse projeto educativo,
desenvolvido em paralelo as suas outras atividades.
Para Williams, o mundo do pós-guerra estava marcado por uma aguda crise
de compreensão ou consciência, que era também uma crise teórica e de
aprendizagem. Essa crise era sintomática dos problemas de comunicação,
sobretudo dentro da classe trabalhadora, que não conseguiu acesso a todos os
meios disponíveis e, por isso, não se aglutinou em torno de uma cultura comum. O
reverso dessa crise era, desse modo, uma possibilidade de reconstrução histórica:
aproveitar as novas oportunidades sociais engendradas pelas transformações
(incluindo as tecnológicas) ocorridas nos pós-guerra, fazendo, por meio da troca de
experiências, expandir as capacidades e as potencialidades humanas,
impulsionando-as a ir além do limites comercias e políticos impostos pela
configuração capitalista da educação (PAIXÃO, 2017, p. 12).
O envolvimento na educação de adultos, portanto, é parte do esforço de
formar a classe trabalhadora para uma sociedade mais democrática e participativa.
O meio para se conseguir isso é o exercício da crítica, que parte do reconhecimento
e entendimento das mudanças pelas quais passaram a sociedade. Mas que não se
encerra aí, pois o objetivo final é transformar a sociedade. Williams emprega o
método do ensino da literatura aliado à crítica sociológica para ser usado nas aulas
de educação de adultos com a intenção de dotar os estudantes do referencial crítico
necessário para captar e debater as transformações sociais (PAIXÃO, 2017, p. 11-
15).
Nesse percurso foi necessário atentar para as novas formas culturais,
principalmente aquelas produzidas e reproduzidas pela então nascente sociedade
de massa, pois era nelas que a classe trabalhadora estava em larga medida
inserida. Desse modo, análise não se restringia ao ensino da literatura canônica,
mas se estendia aos livros best-sellers, a filmes e transmissões televisivas, jornais,
anúncios e propagandas.
Ainda do ponto de vista metodológico, Williams discordava da visão de que a
educação de adultos deveria ser construída em moldes semelhantes ao da
78
educação superior – currículo escolar, atividades escritas, etc. Seu desejo era
justamente ultrapassar o modelo de extensão universitária, criando, assim, um outro
modelo educacional, um novo padrão de atividade educativa. Esse novo projeto, que
deveria ter como foco central a desalienação da classe trabalhadora, foi minado pelo
contexto em que estava inserida a WEA, que paulatinamente esvaziou a dimensão
política dos cursos, transformando-se em algo próximo a uma profissionalização de
mão-de-obra.
De qualquer modo, a dimensão da atividade educativa para trabalhadores
muitas vezes é obliterada. Além de claramente exercitar a prática política durante
esse período, Williams pesquisou e desenvolveu temas que estariam presentes em
seus mais renomados livros. Já no início dos anos 1950, seus programas de estudos
na WEA estavam marcados temática e estruturalmente por elementos que, mais
tarde, se fariam presentes em Culture and Society (1958), The Long Revolution
(1961) e Keywords (1976) (PAIXÃO, 2017).
3.7 Grupo político e intelectual
Do ponto de vista histórico, há ainda outra dimensão que deve ser analisada:
o movimento de renovação da esquerda britânica e a posição de Raymond Williams
nesse contexto. Ao penetrar nesse processo, pode-se entender como as filiações
políticas e pessoais do pensador galês influenciaram na construção de suas
propostas teóricas. Para fazer uso de um termo caro ao próprio Williams, é
necessário entender a formação na qual ele estava inserido e qual o seu projeto.
Acima foi dito que Raymond Williams experimentou uma cultura política
durante os anos 1930 até o início dos anos 1940. Esse período foi o mais áureo,
digamos assim, dessa cultura de esquerda, que estava materializada no Partido
Comunista da Grã-Bretanha. O partido comunista era basicamente formado por
intelectuais proeminentes, estando presente nas mais renomadas e tradicionais
universidades britânicas, como Oxford, Cambridge e na London School of
Economics. Os Left Book Club, que nos anos 1930 alcançaram a incrível marca de
60 mil filiados, e a frente popular contra o fascismo, que teve como momento alto o
apoio às forças republicanas na Guerra Civil Espanhola, são os maiores exemplos
da força política desse partido (CEVASCO, 2016, p. 81).
79
É importante dimensionar o Partido Comunista justamente na relação com o
Partido Trabalhista britânico: embora tivesse certa afluência em um segmento da
esquerda, particularmente a intelectualidade, o Partido Comunista nunca teve o
alcance do Partido Trabalhista na Inglaterra, esse sim um partido de massas.
De acordo com o próprio Williams (2014, p. 191; 2013, p. 82), o Partido
Comunista se comportava como o setor mais militante do movimento trabalhista, isto
é, não havia característica que o diferenciasse claramente das principais diretrizes
do movimento trabalhista. O partido se envolvia em algumas disputas locais com o
Partido Trabalhista, dominava alguns sindicatos, mas nunca chegou a ser de fato um
partido amplo. O apego às políticas locais por um lado atraíam Williams, mas por
outro exercia um limite, pois faltavam visões mais amplas de sociedade.
De todo modo, o Partido Comunista exercia certa atração para autores de
esquerda, e foi durante muito tempo o ponto de convergência do pensamento
marxista britânico – pelo menos até 1956. Alguns eventos encerraram essa
representatividade.
Primeiro, há a perda de credibilidade do partido comunista da União Soviética.
Williams relata (2013, p. 78) que o evento decisivo para a perda de preponderância
da esquerda, para ele, foi a greve dos trabalhadores da construção civil por
melhores salários na República Democrática Alemã, em 1953. Essa mobilização,
que rapidamente se transformou em um levante contra o governo instituído, por
liberdade e democracia, foi violentamente sufocada pela URSS.
Contudo, a crise que minou de vez a importância da União Soviética para a
esquerda marxista ocorreu em 1956. Nesse ano, o mundo conheceu uma série de
atrocidades praticadas por Stálin com os dissidentes do regime comunista e a União
Soviética invadiu a Hungria, em 1956, reprimindo uma mobilização popular contra o
domínio socialista. A partir de então o cenário mudou: a relação umbilical do
pensamento marxista com o mundo soviético foi rompida, de modo que se envolver
com o marxismo não significava mais uma adesão automática ao Partido Comunista
Soviético (CEVASCO, 2016, p. 82-83).
Do ponto de vista interno, há também um esgotamento das opções políticas
para a esquerda. A Inglaterra passava por um momento em que perdia a posição de
principal potência capitalista para os EUA. Acontecimentos como a derrota política
na crise do canal de Suez, onde a Inglaterra – além de sofrer pressão interna por
estar realizando mais uma demonstração de imperialismo – teve o apoio negado por
80
parte dos EUA, forçando a retirada das tropas britânicas, evidenciam uma perda de
relevância. Isso criava uma espécie de ressentimento nacional, que se expressava
como nostalgia do período de maior poder e domínio (CEVASCO, 2016, p. 84).
Esse contexto era particularmente sensível para a esquerda, porque abria
espaço para o estabelecimento de uma política cada vez mais imediatista. O Partido
Trabalhista britânico, outrora engajado em uma luta socialista, deixou
paulatinamente essa posição em direção a uma postura de centro, pragmática
(CEVASCO, 2016, p.84).
Na verdade, toda a análise do cenário interno da esquerda passa pela
compreensão do significado e da dimensão do Partido Trabalhista. Raymond
Williams reconhece isso e, em 1965, escreveu um artigo intitulado A esquerda
britânica, que se dedicou justamente a analisar o Partido Trabalhista, ponderar o
alcance de suas políticas e projetar perspectivas para uma esquerda revolucionária.
O ponto central em torno do Partido Trabalhista britânico é que ele foi se
afastando de uma política socialista de esquerda para se transformar em um partido
da ordem. Raymond Williams alertava para o fato de que a perspectiva do poder
institucional silenciava debates políticos necessários e levava a um fortalecimento
dos elementos mais numerosos do partido – aqueles que aceitavam como dado o
sistema econômico e político e se propunham apenas a buscar pequenas reformas
(WILLIAMS, 2014, p. 192).
Conforme Williams (2014, p. 192-194), essa característica trazia algumas
vantagens: proporcionava coesão interna ao partido – que foi capaz de sobreviver a
sucessivas crises internas nascidas de suas próprias contradições – e deixava
sempre aberta a possibilidade de incluir o socialismo na agenda política, pois uma
parcela importante do movimento trabalhista estava sempre ao lado do Partido
Trabalhista, historicamente com capilaridade social. A pergunta que Williams se fazia
era por qual razão, apesar desses pontos positivos, o Partido Trabalhista não se
mostrava uma opção viável rumo ao socialismo.
A resposta passa pela posição da maioria dos dirigentes sindicais, que no
mais das vezes optavam por pequenas reformas e pelo poder que a fração
parlamentar tem, que em situações de tensão conduziam o partido por dentro das
políticas capitalistas. Para além disso, havia ainda uma questão ideológica: a coesão
do movimento trabalhista britânico também se devia ao apego a certos valores pré-
81
políticos, no caso uma crítica moral ao capitalismo – a reivindicação da humanidade
contra as transformações capitalistas.
Diante disso, Williams considerou que as possibilidades para uma esquerda
socialista estavam esgotadas pelas vias do Partido Trabalhista, que, como foi dito,
ocupava posição central no campo progressista britânico. Conforme exposto acima,
também o campo internacional da esquerda estava em crise, pela perda de
centralidade da União Soviética. Estavam dadas as condições históricas para o
surgimento de outro movimento dentro da esquerda. As palavras de Williams são
suficientemente claras para merecerem uma citação:
Ora, as duas tradições que haviam fracassado, eu continuei a defini-las da seguinte maneira. Por um lado, o stalinismo. Por outro lado,essa inevitabilidade do gradualismo, que se poderia chamarsucintamente de fabianismo. Nem stalinismo, nem o fabianismo, quenos anos 1930 pareciam as duas maiores alternativas da tradiçãopolítica socialista, ofereceram-nos por muito tempo seja um sistemaintelectual aceitável, seja um modo viável de ação política. Portanto,deveria ser encontrada uma tradição inovadora (WILLIAMS, 2014, p.100).
Essa nova posição política começou a ser gestada na Campanha pelo
Desarmamento Nuclear (CND, na sigla em inglês), iniciada nos fins dos anos 1950.
Consistia em um movimento de oposição à produção de armas atômicas. A primeira
marcha ocorreu em abril de 1958, no Reino Unido: 15 mil pessoas se manifestaram
em frente ao centro de pesquisas Aldermaston contra os testes nucleares,
pressionando a Grã-Bretanha a suspensão desses testes e à saída da OTAN
(Organização do Tratado do Atlântico Norte). A CND foi um movimento de massa,
incluiu vastos setores da classe média, além dos intelectuais de esquerda. A posição
da CND incluía ainda uma reavaliação da política internacional e uma reorganização
das prioridades nacionais (CEVASCO, 2016, p. 86).
A CND foi importante por reunir os descontentes políticos naquele momento.
Uma vez reunidos, puderam perfilar algumas questões políticas centrais, para além
das pautas mais imediatas. Portanto, o que se chama de Nova Esquerda foi esse
“conjunto de respostas contra a bomba, contra o imperialismo e contra o comunismo
autoritário”; uma esquerda que se queria distinta, “ao mesmo tempo libertária e
democrática, contra o capitalismo e contra o imperialismo” (WILLIAMS, 2014, p. 92).
Ela, tendo nascido a partir de pensadores fundados na crítica moral ao capitalismo,
82
deveria ser capaz de atacar o fabianismo que acomete o Partido Trabalhista e o
dogmatismo geral da tradição marxista (WILLIAMS, 2014, p. 204).
Com as opções para atuação na política tradicional esgotadas, a Nova
Esquerda empenhou-se mais fortemente no âmbito da cultura, justamente porque
tratou-se de um momento de mudança, no mundo todo, do estatuto da cultura, que
adentrou a vida cotidiana das pessoas por intermédio dos meios de comunicação de
massa. A Nova Esquerda inseriu os pensadores britânicos na tradição do marxismo
ocidental, que buscava explicar o funcionamento do capitalismo não a partir do
âmbito econômico, mas do cultural. Esse movimento estimulou a cena cultural
britânica e se transformou em uma referência para o pensamento de esquerda
ocidental (CEVASCO, 2016, p. 88).
Raymond Williams é uma figura central nisso que se pode chamar de Nova
Esquerda Britânica. Por sua trajetória, pelo seu envolvimento político e pela
contribuição teórica que deu ao movimento, uma das mais ricas do marxismo
ocidental, a obra de Williams ajudou a colocar a cena britânica em outro patamar,
rompendo o provincianismo que a caracterizava.
3.8 Construção de uma nova área de conhecimento
A busca por uma posição de esquerda autônoma e socialista, no quadro da
cultura britânica, contribui para o fortalecimento de uma ala mais radical da
esquerda, possibilitando o advento de um novo tipo de pensamento. Condensados
em torno da questão cultural, preocupados com a nova dinâmica social estabelecida
no pós-guerra – isto é, o impacto do capitalismo nas relações culturais, o que a
Escola de Frankfurt chamou de indústria da cultura –, os pensadores da Nova
Esquerda lograram construir um corpo teórico denso para análise dos meios de
comunicação de massa e da relação entre a arte e a sociedade, que se
convencionou chamar de Estudos Culturais.
Os Estudos Culturais podem ser definidos como um espaço interdisciplinar de
investigação, que busca analisar os modos de produção e reprodução de
significados nas sociedades industriais desenvolvidas. Comumente, três são os
livros indicados para situar o início desse campo de estudos: The Uses of Literacy,
83
1957, de Richard Hoggart; Culture and Society, 1958, de Raymond Williams; e The
Making of The English of Working Class, 1961, de Edward P. Thompson4.
Os Estudos Culturais não formavam, neste momento, uma disciplina
acadêmica nos moldes tradicionais – esse campo de estudo nasceu da insatisfação
com outras disciplinas, criando um espaço no qual diferentes disciplinas (Inglês ou
Literatura Inglesa, História e Sociologia), cada qual com sua contribuição, atuaram.
Isso torna difícil localizar o elemento definidor dos Estudos Culturais, pois ao passo
que outras disciplinas materializavam claramente seu espaço institucional com
currículos, publicações, carreiras, etc., os Estudos Culturais só possuíram durante
muito tempo um centro, o Center for Contemporary Culturais Studies (ligado à
Universidade de Birmingham), e um periódico, os Working Papers.
Em termos de objetos de estudo, sabe-se o foco privilegiado que os Estudos
Culturais dão às culturas populares (além da ênfase também aos meios de
comunicação de massa e, posteriormente, às temáticas identitárias). Isso configura
uma variedade muito grande de objetos de estudo, fruto da tentativa de aliar os
produtos culturais às relações de poder.
Aqui é importante atentar para o sentido do termo “cultural” no nome do
grupo. Cultura não tem sentido estético, de adentrar a esfera do sensível, e nem
humanístico, como movimento intelectual voltando para o reconhecimento das
capacidades humanas; cultura tem um direcionamento político, e um direcionamento
muito específico: entendida como um conjunto de práticas de representação
conflituosas ligadas aos processos de construção e reconstrução de grupos
(STOREY, 1996, p. 2).
É por isso que, embora os Estudos Culturais não possam ser reduzidos ao
estudo das culturas populares, o estatuto dessas no projeto do grupo é muito
importante e não pode ser negligenciado. Se os Estudos Culturais são a
investigação das formas históricas de consciência e subjetividade – o que desloca o
texto em si como objeto de estudo, que passa a ser só um meio –, as culturas
populares, em suas diversas expressões, são o modo de adentrar tais formas de
consciência (STOREY, 1996, p.2).
Tal foco, no entanto, só foi possível com uma guinada teórica, e aqui reside a
importância de Raymond Williams para o grupo, pois a transformação da ideia de4 Edward Palmer Thompson (1914 – 2014) foi um historiador inglês de orientação
marxista, contemporâneo de Raymond Williams e fundador dos Estudos Culturaisbritânicos.
84
cultura operada nos livros Culture and Society e The Long Revolution tornou
possível o desenvolvimento dos Estudos Culturais. Resumidamente, passou-se de
uma concepção estética para uma noção antropológica de cultura, dentro da qual a
cultura deixa de designar apenas as grandes obras de arte e passa a se referir a
uma gama de representações e práticas comuns a um dado grupo – abarcando,
dessa forma, a alta literatura, a literatura de folhetim das camadas populares e os
meios de comunicação de massa. A corrente que subjaz essa reorientação
conceitual é o marxismo. Não que todos os intelectuais englobados no Estudos
Culturais fossem marxistas, mas o marco teórico a partir do qual esse campo se
desenvolveu foi o marxismo. A influência se faz sentir na concepção de que os
significados da cultura devem ser analisados na relação com a estrutura social e
com as contingências históricas e na assunção das sociedades industrias
avançadas como desiguais em termos de etnia, gênero, raça e classe – a cultura é o
lugar onde essa discussão se dá, ou seja, onde ocorre a luta pelos significados, o
que a torna ideológica (STOREY, 1996, p. 3).
Portanto, política – no sentido mais amplo do termo – e cultura se uniram nos
Estudos Culturais, se configurando em um projeto marcado por um forte discurso de
engajamento social. O objetivo não era apenas moldar um intelectual orgânico nos
termos gramscianos, mas pensar como o trabalho intelectual pode intervir nos
problemas locais. Ao situar o desenvolvimento inicial dos Estudos Culturais nos
livros fundadores – ao invés de três, alguns autores, como Green e Sparks,
consideram apenas dois, excluindo o de Thompson – pode-se perceber como
mudança no conceito de cultura foi indispensável para o surgimento do grupo, mas
há um contexto por trás que ajuda a explicar, para além das questões teóricas, o
próprio locus social do movimento (STOREY, 1996, p. 5).
A perda de prestígio da crítica literária tradicional em favor da abordagem dos
estudos culturais não se deu apenas porque os primeiros concediam atenção
somente para a alta literatura – os pensadores dos Estudos Culturais também
focavam na relação das grandes obras literárias com a estrutura social. O sentido
principal dessa divergência foi, mais uma vez, a dimensão política:
A tradição dominante era anti-democrática; os Estudos Culturais,profundamente democráticos. E a democracia aparece numareversão de termos. Os sinais de “elite” e “popular” foram trocados –temos aqui as mesmas e fundamentais noções de cultura outra vez.Os Estudos Culturais tomaram todo o projeto da crítica literária, mas
85
se diferenciaram dos seus pais pelo populismo. Isso deu aos EstudosCulturais um lugar de intensa marginalidade (que nem a sociologiaocupou): o espaço intelectual era amplamente dominado pelos “pais”da tradição (SPARKS, 1996, p. 15, tradução nossa, grifos do autor).
Portanto, o impulso formador dos Estudos Culturais está na relação política
com as disciplinas já estabelecidas, particularmente o Inglês. Por meio disso, pode-
se entender o famigerado populismo dos Estudos Culturais, a sua posição marginal
na academia e seu apego à cultura popular como objeto prioritário de análise.
Também as questões teóricas – demonstração da força e complexidade das
diferenças culturais, a noção de cultura comum, a visão de que os meios de
comunicação e educação eram antidemocráticos e o debate sobre a perda de força
da Inglaterra no cenário internacional – também podem ser mais bem
compreendidas. Porque o que começou a caracterizar esses elementos não foi um
projeto conceitual – por exemplo, a noção de um culturalismo –, mas uma dinâmica
política conectada ao surgimento de uma nova esquerda.
No entendimento de Green (1996, p. 51-52), questões políticas prementes –
ademais já discutidas, como a crise soviética e do Partido Trabalhista britânico –
possibilitaram a formação de uma nova agenda, e no topo dela estava a recusa da
neutralidade acadêmica – encarnada principalmente por Williams, Thompson e
Wright Mills. Havia, portanto, um vínculo entre a atuação na esfera da cultura e as
novas formas de política, nas quais a circularidade midiática de imagens e
linguagens tanto era uma representação negativa de certos grupos e classes para
eles mesmo como também espaço de recusa, de valores não compartilhados, do
político como espaço de conflito, em suma.
Desse modo, pode-se dizer que
Nesses dois sentidos – acadêmico e político –, os Estudos Culturaispodem ser vistos como “impuros”: como consequência, nãoreivindicou e nem lhe foi concedido um status disciplinar. Suaapresentação acadêmica sempre foi desconfortável. Justamente porisso, em nenhum caso, os assuntos relacionados poderiam serfacilmente encaixados em um corpo estável de trabalho (GREEN,1996, p. 55, tradução nossa, grifos do autor).
Apesar dessas questões, ou exatamente por causa delas, os Estudos
Culturais cresceram e se expandiram. Mas a partir dos anos 1980, o CCCS deixa de
ser o principal ponto de discussão e disseminação dos Estudos Culturais – o que
86
significou, em outros termos, uma migração da Grã-Bretanha para outras partes do
mundo, como América do Norte e Austrália, onde conheceram uma rápida
institucionalização.
Nesse novo contexto, há uma mudança de interesse dos Estudos Culturais,
que deixaram de lado as relações gerais entre poder, história e política e passaram a
analisar o que se convencionou chamar de novas identidades sociais (raça, gênero
e orientação sexual) –, e como essas se constituem e se recompõem frente a um
contexto de declínio da solidariedade tradicional. Também é marcante nesse
momento a redução dos Estudos Culturais, agora sim, a questões de texto e
textualidade.
Em uma palestra de 1986, Williams (2011a, p. 174-176) identificou e criticou
esse processo. Para ele, a recorrência em tratar o advento dos Estudos Culturais
por meio de “textos” fundadores denunciava o estreitamento de visão que
acompanhou o empastelamento desse campo de estudos nas universidades. A
crítica ficou por conta da perda de força do projeto original do grupo, que passava
pela constituição de uma educação democrática. Mas Williams não propõe um
simples retorno, porque se todo projeto depende e só se compreende por meio de
uma formação, o pensador galês sabe que as condições históricas para isso não
estão mais dadas.
A tendência para tratar o movimento inicial dos Estudos Culturais em torno
simplesmente de textos está no horizonte da mudança de paradigma teórico que a
década de 1960 assistiu: o estruturalismo, entendido seja como ênfase nas
estruturas sociais e nos seus dispositivos de reprodução seja como primado da
linguagem e do simbólico. Essa mudança está também na base da perda
substantiva de importância do marxismo no projeto dos Estudos Culturais.
Essa configuração veio acompanhada das recentes identidades coletivas
(gênero, raça, orientação sexual e etnia) e de novos sujeitos, para os quais tanto o
marxismo quanto a sua concomitante noção de classe social pareciam não dar mais
conta. A crítica de Williams acima exposta se compreende de maneira mais clara a
partir dessa constatação, pois o predomínio do estruturalismo na atividade
intelectual dos países de língua inglesa pode ser visto como um depuramento
enviesado da teoria, que se distancia da política.
É A carreira intelectual de Raymond Williams está inegavelmente atrelada aos
Estudos Culturais, pela influência que seu pensamento teve para a constituição
87
dessa área de investigação, mas é neste ponto que se pode ir além da já gasta tese
de que ele é um dos nomes fundadores, e entender que, após isso, os dois (Williams
e Estudos Culturais) tomam rumos distintos, para não dizer contraditórios.
Rivetti (2017) salienta que Williams e Estudos Culturais, a partir dos anos
1960, se afastaram paulatinamente, com o marxismo sendo o nó górdio da questão.
Como foi dito, os Estudos Culturais passaram a ter o estruturalismo e correntes afins
como principal aporte teórico. O marxismo, presente no momento inicial, foi deixado
de lado por supostamente não atender mais as necessidades deste campo de
estudo. Em Williams, ao contrário, essa presença se tornou cada vez mais forte, a
ponto de sua identificação como autor marxista ter aumentado – e se solidificado –
com o passar do tempo.
O desdobramento do pensamento de Williams, de Cultura e Sociedade e The
Long Revolution a Marxismo e Literatura e O Campo e a Cidade, é marcado por um
aprofundamento da visão marxista, que se percebe na incorporação de conceitos
essenciais como capitalismo e classes sociais. A relação de Williams com o
marxismo não se inicia na década de 1970 (data de muito antes), além de sempre
ter sido tensa. Portanto, esse desenvolvimento deve ser entendido mais como um
novo encontro, por intermédio de pensadores (Goldmann, Gramsci, Lukács, Sartre,
Escola de Frankfurt, Althusser) mais afinados às suas posições, e menos como uma
descoberta inicial (RIVETTI, 2017).
É por isso que Raymond Williams está aquém ou além dos Estudos Culturais
tais como conhecidos hoje: isto é, a sua identificação com essa área de estudos
deve ser sempre parcial. As divergências de desenvolvimento, ainda que tardias,
são suficientes para sustentar tal visão. Isso ganha relevo ainda maior para este
trabalho, pois é no momento de maturidade de seu pensamento que Williams
assenta as bases para análise social do fenômeno literário.
88
4 OS PRINCIPAIS POSTULADOS TEÓRICOS
Neste capítulo, discutem-se as bases teóricas dos estudos de Antonio
Candido e Raymond Williams sobre literatura e mundo social e quais os principais
resultados dessas orientações para as análises literárias.
4.1 Antonio Candido
O pensamento de Antonio Candido tem uma indiscutível influência no meio
intelectual brasileiro. Vindo de uma geração de estudiosos que foram os precursores
do ensino mais sistemático das Ciências Sociais no Brasil (isto é, estava ligado ao
intuito da USP de formar intelectuais com perfil mais especializado, por meio de uma
orientação acadêmica sistemática, como Gilda de Melo e Souza, José Arthur
Giannotti e Ruy Fausto, diferente da formação bacharelesca em medicina e direito
que marcou o pensamento brasileiro até então), Candido distinguiu-se desde cedo
pelo seu estilo ensaístico de escrita e pelo interesse dispensado à análise da vida
cultural brasileira.
Nesse último quesito, ganha particular relevo em suas preocupações os
vínculos que podem ser estabelecidos entre composição literária e mundo social.
Nesse sentido, então, a literatura aparecia para Antonio Candido como uma chave
para compreensão de uma sociedade, configurando-se como objeto preferido de
suas análises, o que o colocava em oposição a contemporâneos seus que
privilegiavam as questões e problemas econômicos para seus estudos. Foi por meio
da análise reversa entre sociedade e literatura que Candido construiu sua imagem
como pensador.
Sua produção intelectual, no entanto, teve diretrizes teóricas distintas.
Podemos dividir seu trajeto teórico em três fases, como se depreende das palavras
do próprio autor:
Numa primeira etapa, vista de hoje, percebe-se que eu estavapreocupado sobretudo com a busca de condicionamentos; para sermais exato, a busca de causas. Assim, no nível da “explicação”, asobras literárias me interessavam na medida em que estavam ligadas
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a determinado sistema de condicionantes do meio, e na medida emque influíam umas sobre as outras sobretudo na dimensão do tempo.Como estão vendo, no fundo uma visão positivista de cultura, queera também do marxismo reinante por aqui. No meu tempo de moço,pode-se dizer que o marxismo era extremamente positivista, e nósaprendíamos em livros de divulgação ou polêmico, como o Anti-Duhring, o resumo do Capital feito por Gabriel Deville, A História doSocialismo e das Lutas Sociais, de Max Beer, O Tratado deMaterialismo Histórico, de Bukharin. Resultava uma visãoesquemática, aliás, corrente no tempo do stalinismo, que se podiaaproximar de uma visão positivista. O livro de Bukharin, que tevegrande influência na minha geração, era bastante mecanicista. Sesomarmos a isto a formação “positivista” que tive na Faculdade (nãono sentido de Augusto Comte, mas no da tradição universitáriafrancesa de cientificismo da Filosofia), entende-se o porquê dessapreocupação com a causalidade e os condicionamentos. Ela apareceno meu primeiro livro, que foi minha tese: Introdução ao MétodoCrítico de Sílvio Romero (1945), onde formulei mais ou menospontos de partida teóricos. Uma segunda fase, até certo pontoantitética, se desenvolveu por outras influências. De um lado, aAntropologia Social Inglesa (Malinowski, Radcliffe-Brown); de outro,as ideias críticas de T. S. Eliot e o “new criticismo” americano. Eu mepreocupava então com o problema da funcionalidade, isto é, nãoapenas com a sequência temporal dos eventos ou das obras ou oseu encadeamento; não com o seu condicionamento, mas com apertinência dos traços de determinado sistema. Isso se reflete naminha tese sociológica Os Parceiros do Rio Bonito (1954) e emFormação da Literatura Brasileira, publicado em 1959. Neste, nota-seo desejo de ver um sentido diacrônico combinado ao respeito pelavisão sincrônica. Finalmente, distingo uma terceira fase, maisrecente, onde a preocupação teórica se subordina ao interesse pelaestruturação. Não pela estrutura propriamente dita, mas pelaestruturação, isto é, o processo por meio do qual o que eracondicionante se torna elemento interno pertinente. A preocupaçãonão é mais tanto o condicionamento quanto o próprio sistema. Não osistema isolado, tomado em si, mas na medida em que é umafórmula através da qual o externo se torna interno. O interesse pelafuncionalidade leva ao interesse pela estrutura, num sentido diferentedos estruturalistas, pois o que se indaga é como a estrutura seestrutura. Talvez tenha aí alguma influência de Lukács, que li emtraduções italianas no começo do decênio de 50. Mas posso dizerque não estava consciente dela quando pela primeira vez formuleiem público aquela preocupação. Foi no II Congresso de Crítica eHistória Literária, realizado em Assis (SP), 1961. Como não ficoubem registrada nos Anais, publiquei uma formulação correta e maiscompleta no livro Literatura e Sociedade, de 1965.Cronologicamente, eu diria que a primeira etapa corresponde aodecênio de 40; a segunda ao decênio de 50 e a terceira ao decêniode 60 (CANDIDO, 1974, p. 10-11).
Nota-se que as duas primeiras fases correspondem a um período de
acentuada ambiguidade institucional, isto é, Candido atuava como assistente da
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cadeira de Sociologia II, entre 1942 e 1958, e produtor de conhecimento na área de
literatura desde 1941. A partir da década de 1960 ele se vinculou às Letras,
solucionou essa questão – mais acadêmica que intelectual –, redirecionando seu
projeto teórico, passando, então, a focar especificamente nas obras e nos fatores
sociais que atuam sobre ela.
Sabemos que Antonio Candido dividiu-se entre a docência nas Ciências
Sociais e a crítica literária desde o início da década de 1940. Esse elemento é
importante porque relembra o quão precoce foi a fama intelectual de Antonio
Candido, inaugurada pelo empreendimento editorial Clima, compartilhado com
alguns colegas da USP (JACKSON, 2007, p. 126).
No entanto, o reconhecimento como intelectual público não garantia uma
estabilidade dentro da universidade. Na verdade, o sistema de cátedra vigente na
USP gerava insegurança nos assistentes e auxiliares de ensino, subordinados aos
“chefes” das cadeiras, e dos quais dependiam das possibilidades de prosseguimento
na carreira. As relações pessoais eram assim muito importantes (JACKSON, 2007,
p. 125).
Isso explica, em parte porque Antonio Candido não conseguiu espaço no
âmbito das Ciências Sociais para desenvolver seu projeto intelectual – voltado para
análises da cultura – com clareza e vigor. Defendeu a tese de doutoramento Os
Parceiros do Rio Bonito na sociologia em 1954, enquanto alguns colegas realizaram
isso antes, como Florestan Fernandes que defendeu sua tese em 1951 – vale
ressaltar que Florestan finalizou a graduação depois de Antonio Candido.
Também deve entrar em conta que a sua tese sofreu críticas da banca por ser
demasiadamente “antropológica” – o pano de fundo dessa advertência era o padrão
científico que Florestan já vinha implantando na sociologia. E vale ressaltar, por fim,
que só em 1959, quando estava vinculado às Letras na Faculdade de Assis,
consegue defender Formação da Literatura Brasileira, embora estivesse sendo
produzida ao mesmo tempo que os Parceiros.
Denota-se, por meio desses elementos, que no decorrer da década de 1950
as possibilidades profissionais para Candido no âmbito das Ciências Sociais foram
cada vez mais se estreitando.
É neste contexto que se dá a transferência de Antonio Candido para a
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. Pontes (1998, p. 193) revela que
Candido se sentiu ofendido quando alguns colegas lhe ofereceram a disciplina de
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sociologia da educação e, assim, apressaram sua saída da sociologia. É significativo
perceber que o próprio Candido se sentiu expelido do quadro institucional e
acadêmico da sociologia na época.
Esse contexto lhe impulsionou a formar uma área de atuação própria, na
tentativa de sedimentar perante os pares a sua condição de intelectual na
universidade. Por meio disso, é possível compreender a marcante tentativa, que
atravessa seu projeto teórico, de se distanciar da sociologia.
Assim, a passagem por Assis, muitas vezes negligenciada, foi muito
importante na trajetória de Antonio Candido: auxiliou no processo de transformação
da sua identidade profissional, garantindo-lhe a reputação acadêmica necessária
para legitimar o seu estatuto de professor e pesquisador na área das Letras. Por
outro lado, Assis ainda servia de refúgio para que pudesse aprofundar seus estudos
na mesma área (RAMASSOTE, 2010a, p. 117).
Em Assis se dá, por exemplo, a publicação de Formação da Literatura
Brasileira, que pode ser lida como marco simbólico desse movimento de
reconversão profissional. Essa obra legitima sua transferência para o campo das
Letras e ao mesmo tempo o notabiliza como intérprete do processo de formação da
sociedade brasileira, vista sob a perspectiva literária (JACKSON, 2007, p. 127).
Em 1961, encerrou-se a passagem de Antonio Candido por Assis. De volta à
USP, para atuar na recém-criada disciplina de Teoria Literária e Literatura
Comparada, Candido (TLLC) deu maior vazão e amplitude ao seu projeto teórico,
gestado e elaborado com maior acuidade nos últimos tempos na Faculdade de Assis
– o estudo científico da literatura, apoiado num método próprio focado no
entendimento dos seus recursos internos.
Embora nos três anos iniciais do curso de Teoria Literária e Literatura
Comparada tenha se encarregado sozinho das disciplinas oferecidas para a
graduação, Antonio Candido, por outro lado, e a exemplo do que realizou Florestan
Fernandes na cadeira de Sociologia I, preocupou-se em formar em torno de si uma
equipe capaz de dar prosseguimento ao projeto que vinha sendo desenvolvido na
área de Letras da USP. Foi nesse sentido que ocorreu a contratação de Roberto
Schwarz e Walnice Nogueira Galvão – que assumiram as atividades de docência na
graduação nos dois anos em que Candido se ausentou.
O critério para seleção de novos professores era ter sido aluno de Candido e
ter desempenho intelectual reconhecido, comprovado na participação nos cursos
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oferecidos, e padrão de excelência crítica para figuras oriundas de outras
instituições. A estratégia rendeu frutos, pois já em meados da década de 1960 o
departamento de TLLC reunia as condições que propiciaram a continuidade das
suas atividades acadêmicas em alto nível, destacando-se, além da expansão do
corpo docente, a formação de um grupo de discípulos dispostos a levar o projeto
adiante e pesquisas nas áreas temáticas designadas pelas disciplinas do curso
(RAMASSOTE, 2006, p. 71-72).
O deslocamento disciplinar não excluiu Antonio Candido do contexto
intelectual no qual estava inserido como sociólogo desde a década de 1940. Longe
de suprimir sua figura, a nova condição possibilitou a legitimação de um projeto
teórico que ambicionava reunir análise estética e sociologia. Em outros termos: por
intermédio do estudo da cultura Candido explorou a formação e a modernização da
sociedade brasileira (JACKSON, 2007, p. 128).
A guinada teórica e analítica de Antonio Candido deve ser entendida também
à luz das transformações que estavam ocorrendo nos estudos literários. Como
sustenta Pontes (1998, p. 101), já a partir da década de 1940, o campo da literatura
experimentou uma mudança no sentido de incorporar as contribuições da academia,
buscando superar a prática corrente até então baseada no impressionismo e no
amadorismo. Essa transformação significava um diálogo maior com as ciências
sociais. Candido, portanto, exerceu papel central neste processo.
De acordo com Jackson (2009, p. 273-274), a “crítica de vertentes” praticada
por Antonio Candido e seus discípulos apoiava-se em duas frentes: o estudo dos
condicionantes sociais ou psíquicos envolvidos na estruturação do texto literário e no
esclarecimento das lógicas envolvidas na organização formal do texto. Essa seria
uma orientação geral que preside Formação da Literatura Brasileira e que se
desdobrou nos escritos posteriores de Candido, chegando a ser mesmo o aspecto
central das pesquisas realizadas na cadeira de Teoria Literária e Literatura
Comparada.
Percebe-se na formulação acima a concepção de que há certa precedência
da segunda fase sobre a terceira. Embora isso seja plausível, é digno de nota, por
outro lado, que a terceira fase é o momento no qual o programa teórico-
metodológico do autor está mais bem delineado. Com efeito, depois da década de
1960, não houve mais corte epistemológico no pensamento crítico de Antonio
Candido, que continuou centrando suas atenções aos fatores genéticos do texto e
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mantendo o interesse pela estruturação (RIBEIRO JUNIOR, 1984, p. 60). Portanto,
para as preocupações deste trabalho, as formulações a respeito da relação arte e
sociedade, tais como expostas em Literatura e Sociedade5, editado pela primeira vez
em 1965, são de suma importância. Nossa discussão incidirá sobre essa obra.
Em Literatura e Sociedade, obra de maturidade do projeto teórico de Antonio
Candido, encontram-se as suas principais concepções a respeito dos processos
sociais envolvidos na construção de uma obra literária e, também, uma série de
indicações metodológicas que sugerem o modo mais satisfatório de tomar os
elementos sociais em uma análise literária. Selecionamos os artigos que tocam
diretamente nessas questões e, deles, vamos extrair os pontos fundamentais para
debatê-las.
4.1.1 A identificação dos elementos externos (sociais) e a restrição de seu alcance explicativo
Antonio Candido sempre procurou arrogar para si uma postura equidistante
tanto de um formalismo mais restrito, apartado de qualquer elemento externo à obra,
quanto de um sociologismo reducionista, que incorria não raramente no equívoco de
5 Um dos ensaios mais importantes de Literatura e Sociedade, Crítica e Sociologia, foiapresentado no II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, realizado em julho de1961 em Assis. Informação que serve para aquilatar a importância da passagem pelaFaculdade de Assis para a maturação do seu projeto intelectual.
Figura 3 – Capa do livro Literatura e Sociedae
Fonte: Candido (2006)
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tratar a arte como reflexo da sociedade. O pensador uspiano localizava esses polos
extremos de discussão e, a partir deles, pontuava a necessidade de se conjugar os
elementos internos e externos para uma análise literária.
No prefácio escrito ao livro Literatura e Sociedade no ano de 1972, o autor já
salientava a ideia central de que “só através do estudo formal é possível apreender
convenientemente os aspectos sociais”. Esse postulado é presidido, no entanto, pela
noção de “forma orgânica”, relativa à cada obra e que se constitui pela correlação
dinâmica dos seus elementos, exprimindo-se pela “coerência” (CANDIDO, 2006, p.
10).
Já aqui se manifesta uma concepção basilar em Antonio Candido. Para o
pensador, a obra é um todo em si mesma, apesar de ser formada por vários
elementos distintos. Como localizá-los, distingui-los e pesá-los com relação ao papel
e/ou à função que desempenha para constituição da obra é a tarefa do analista.
Antes, porém, de adentrar a questão de como identificar e analisar os
elementos sociais pertinentes à obra de arte, é necessário conhecer quais são os
aspectos sociais que envolvem o processo artístico como um todo, isto é, como
Antonio Candido percebe o horizonte mais extenso de fatores sociais que exercem
influência sobre a produção artística.
É este o objetivo explícito do ensaio A literatura e a vida social, que busca
“focalizar os aspectos sociais que envolvem a vida artística e literária nos seus
diferentes momentos”. Candido considera que o campo de estudos da sociologia da
arte e da literatura permaneceram deficientes por causa da ausência de um sistema
coerente de referência – um conjunto de formulações e conceitos bem delimitados –,
que permitiria, primordialmente, circunscrever objetivamente o campo de análise.
Essa notável precariedade resultou “em relações difíceis no terreno do método”
(CANDIDO, 2006, p. 27).
O argumento de Candido é o de tentar reestabelecer esse quadro de
referência, que, na verdade, se processa no ato de depurar a atividade crítica (a sua
atividade crítica, tal como estabelecida nos anos recentes) do que considera o
“arbítrio” da sociologia. Assim, o primeiro passo foi o de fazer a sociologia passar
como uma disciplina auxiliar no que tange ao entendimento do fenômeno artístico –
a sociologia não explica o fenômeno artístico, apenas traz alguns aspectos à luz. O
autor considera que para uma série de fatos, a análise sociológica é ineficaz e só
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desorienta a interpretação; só para uma outra parte ela pode ser tomada como
indispensável (CANDIDO, 2006, p. 28).
Antonio Candido já nesta altura pontua, embora não desenvolva, que a
sociologia só é necessária para um grupo específico de fatos, para outros é
dispensável. O domínio no qual o recurso à sociologia, tal como concebida por ele, é
tido como necessário, é governado por uma questão chave: a de saber qual a
influência efetiva que o meio social exerce sobre a obra de arte. De acordo com
Candido, interessam à sociologia os tipos de relações e os fatos estruturais ligados à
vida artística, seja como causa ou consequência (CANDIDO, 2006, p. 29-31).
O ponto inicial do trabalho, nessa perspectiva, é o de investigar as influências
concretas exercidas pelos chamados fatores socioculturais, que, embora sejam
difíceis de discernir na variedade e na quantidade, podem ser resumidos em três
âmbitos: aqueles relacionados à estrutura social, aqueles que se ligam aos valores e
ideologias e os que dizem respeito às técnicas de comunicação. O grau de influência
de cada grupo depende do aspecto analisado no processo criativo (CANDIDO, 2006,
p. 31).
A estrutura social se manifesta na posição social do artista e na configuração
de grupos receptores, os valores e ideologias dão forma e conteúdo às obras, e as
técnicas de comunicação se expressam na feitura e transmissão delas. Tem-se a
produção artística dividida em quatro momentos: o artista orientando-se pelos
padrões de sua época, escolhendo certos temas, utilizando determinadas formas e,
por fim, a síntese que daí resulta age sobre o meio (CANDIDO, 2006, p. 31).
Ao esboço do processo sociológico de produção artística – que, para o autor,
congrega a estrutura social, os valores e a ideologia das obras e suas técnicas de
comunicação –, segue-se imediatamente a advertência de restrição desse esquema,
o qual, na visão do pensador uspiano, não alcança o processo como um todo, mas
apenas uma de suas faces: o âmbito social da arte. Candido (2006) busca destacar
a noção da arte como uma comunicação expressiva, que revela realidades
profundamente radicadas no artista e não se esgota na transmissão de noções e
conceitos. Já nesse momento percebe-se que Candido (2006) pretende delimitar os
aspectos sociais à esfera da sociologia e os formais ao âmbito da crítica, cindindo
rigidamente as duas áreas.
Por ser vista como uma eminente ameaça à atividade crítica (voltamos a
salientar, a sua atividade crítica tal como construída a partir da saída da sociologia),
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Candido (2006, p.28-32) sente a necessidade de assinalar que há um espaço não
alcançado pela sociologia: nele, residem os elementos de caráter idiossincrático,
referentes às faculdades do artista, e que se manifestam no aspecto intuitivo e
expressivo da arte. Esses elementos, pode-se dizer, são do domínio da crítica e não
são bem tratados se postos sob a égide da sociologia.
Feita a ressalva, o autor segue o delineamento dos condicionantes sociais do
processo de produção artística, que se resumem em três momentos e se traduzem
como autor, obra, público. Tais elementos agem uns sobres os outros: a atividade
dos artistas estimula a diferenciação de grupos; a criação de obras modifica os
recursos da comunicação expressiva; as obras delimitam e organizam os públicos
(CANDIDO, 2006, p. 32-34).
No que concerne à estrutura social, é interessante investigar como ela atribui
um papel específico ao criador de arte e como define sua posição na escala social, o
que se relaciona não apenas com artistas individualmente, mas à formação de um
grupo deles. Dentro dessa perspectiva, deve-se indicar o aparecimento individual do
artista na sociedade como posição e papel configurados, as condições em que se
diferenciam os grupos de artistas e, por fim, como tais grupos se apresentam nas
sociedades estratificadas (CANDIDO, 2006, p. 34).
As relações entre o artista e o grupo se pautam por esta circunstância e são
assim esquematizadas pelo autor: inicialmente, surge a necessidade de um ator
específico tomar para si a tarefa de criar ou apresentar a obra; posteriormente, este
ator é ou não reconhecido como criador da sociedade; e, finalmente, ele utiliza a
obra como canal para transmissão de suas aspirações individuais (CANDIDO, 2006,
p. 35).
Se a arte necessita de um agente individual disposto a realizar a obra, cabe
indagar, de acordo com Candido, qual a necessidade social de reconhecer a
identidade e a posição do artista, ou, em outros termos, de delimitar a existência de
um artista definido enquanto tal. Na visão do autor, responder a essa questão é um
modo de lançar luz sobre os imperativos sociais que influenciam diretamente na
necessidade social da arte (CANDIDO, 2006, p.36).
Uma vez que determinados atores passam a ser reconhecidos como artistas,
cria-se a possibilidade de eles se associarem entre si, associação esta que pode se
dar através de uma consciência comum ou por meio de um conjunto determinado de
técnicas. Essa possibilidade é, para Candido, o pressuposto de qualquer arte,
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porque abrange fórmulas e modos de fazer que, uma vez assentados, estão
passíveis de serem conservados e transmitidos. A criação de uma circularidade de
elementos específicos da prática artística – com destaque para as obras – é, na
visão do autor, condição necessária para a configuração da dimensão artística (nos
seus termos, para a formação de um “sistema”) (CANDIDO, 2006, p.38-39).
Candido, dessa forma, concebe a diferenciação da atividade artística em si
como a ação da sociedade, distinguindo dentro do seu meio um grupo específico
possuidor dos “segredos técnicos” necessários para realizar, em um dado setor, as
atividades de todos. Para ele, nas sociedades atuais – altamente estratificadas e
estruturalmente mais complexas –, é possível notar a influência das camadas sociais
sobre a distribuição e o caráter dos grupos de artistas e intelectuais, os quais
tendem a diferenciar-se funcionalmente de acordo com o tipo de hierarquia social
(CANDIDO, 2006, p. 39).
Já a obra, segundo elemento da tríade, depende diretamente do artista e das
condições sociais que determinam sua posição. No entanto, quanto a ela o mais
importante é focar a ação exercida pelos valores sociais, ideologias e sistemas de
comunicação, que nela se transfiguram em conteúdo e forma, que vêm unidos um
ao outro. Mas, uma vez admitida a separação, é possível sustentar que os valores e
as ideologias concorrem para o conteúdo, ao passo que as modalidades de
comunicação influem em maior grau sobre a forma (CANDIDO, 2006, p. 40).
O terceiro e último ponto dessa cadeia é o receptor da arte. A configuração de
um público se dá à medida que as sociedades se diferenciam e crescem
demograficamente. Em uma sociedade pouco diferenciada, os receptores estão em
contato direto com o criador de arte. Com a paulatina complexificação das
sociedades, o artista se distingue do público, que não constitui um grupo, mas um
conjunto disforme e não estruturado de pessoas (CANDIDO, 2006, p. 44).
Para o autor, na sociedade contemporânea existem vários desses
agrupamentos não estruturados de pessoas correspondentes aos vários públicos
das artes. Eles crescem e se diferenciam em relação direta com a estrutura social,
mas possuem como denominador comum apenas o interesse estético (CANDIDO,
2006, p. 45).
Dessa maneira, a partir de uma síntese das três esferas identificadas por
Candido (2006), é possível afirmar que elas estão interrelacionadas, participando de
um jogo permanente. De acordo com o pensador da USP, o público dá sentido e
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realidade à obra, e sem a obra o autor não se realiza; o público é, desse modo, o
fator de ligação entre o autor e a sua própria obra. A obra, por sua vez, relaciona o
autor ao público, pois este se debruça primeiro sobre a obra e só depois cria
interesse pelo produtor da arte. Finalizando o esquema, o autor, por seu turno,
intermedia a obra e o público, pois se constitui no agente que desencadeia todo o
processo (CANDIDO, 2006, p. 48).
É válido assinalar que embora a perspicácia sociológica desse processo seja
percebida por Candido, ele só o faz de maneira restritiva, ao afirmar que essa
relação social é secundária para o entendimento da obra de arte e que a sociologia
– a quem caberia explicar esta relação – não alcança a dimensão estética. Nesse
ponto, percebe-se uma dinâmica quase vertical em Literatura e Sociedade: é
reconhecida a existência de determinados fenômenos sociais e a (relativa)
importância da sociologia, mas sempre restringindo seu alcance e seu potencial
explicativo para a arte.
Assim, o que chama positivamente à atenção é a acuidade de Candido em
perceber a existência objetiva desses processos, que, com efeito, influem no
processo artístico. Em outras palavras, é possível afirmar que Candido reconhece
uma série de elementos capazes de condicionar a vida artística. Estes podem ser
entendidos tanto como constrangimentos, no sentido de impor limites à prática
artística, quanto como impulsos, no sentido de criar a “necessidade social” de
produção de uma obra.
Contudo, é válido assinalar que a consideração dos fenômenos sociais só é
operada restritivamente, pois Candido aponta que estes não são capazes de
oferecer explicação para o fenômeno artístico. Por mais extensos que sejam, o autor
considera que os fatores sociológicos não têm a capacidade de explicar a vida
literária. Em suma: junto com a depuração da sociologia da atividade crítica vem
também a depuração dos processos estéticos dos processos sociais, que passam a
ser, por definição, externos à obra.
Em O Escritor e o Público, ensaio de caráter histórico mais acentuado,
Candido (2006) analisa os fatores atuantes na construção de uma vida literária no
Brasil, salientando a integração da literatura e da política sob o signo do
nacionalismo, mas também focalizando os aspectos entre público e escritor que
possibilitaram tardiamente a construção de um circuito de produção relativamente
independente.
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Dentro do último quesito, o autor retoma algumas discussões a respeito dos
fatores sociais que envolvem o processo criativo. Estes se subdividem em dois: os
internos e os externos. Os primeiros, e os mais importantes, não se subordinam a
quaisquer critérios explicativos: estão rodeando as “zonas indefiníveis da criação” e
sobre eles pesa o “mistério”. Os segundos se correlacionam a uma perspectiva
sociológica e são necessários para compreender correntes, períodos, constantes
estéticas. Os fatores externos, contudo, do ângulo explicativo, isto é, nos dizeres de
Candido, como ferramenta para a “sondagem profunda” de obras e autores, são
secundários. Interessante notar o reforço da concepção dual, relação externo e
interno, sobre os estudos literários, sintetizados nas fórmulas: sociologia – fatores
sociais – externos à obra; crítica – fatores “ocultos” – internos à obra (CANDIDO,
2006, p. 83).
Os elementos externos são aqueles ligados primeiramente ao escritor como
alguém que desempenha um papel social e que ocupa uma posição relativa a seu
grupo. Ao passo que a configuração clara de um grupo profissional depende das
condições de existência que seu membro encontra na sociedade, a posição social
do escritor como tal deriva do conceito social que os grupos elaboram em relação a
ele, isto é, está ligada a um reconhecimento coletivo da sua atividade (CANDIDO,
2006, p. 84-85).
Além disso, os fatores externos estão ligados também ao público, configurado
pela existência e natureza dos meios de comunicação, pela formação de uma
opinião literária e pela diferenciação de setores mais restritos que tendem a conduzir
o gosto (as elites). Para a formatação desses elementos, concorrem o grau de
educação, os hábitos e costumes intelectuais e os instrumentos de divulgação –
jornal, revista, livro, etc. (CANDIDO, 2006, p. 87).
Por fim, tem-se a obra, cujas forma e matéria dependem da relação entre os
elementos da personalidade do autor e sua congruência com o meio social, e, em
última instância, de uma consciência de grupo, isto é, da noção criada pelos
escritores de comporem um segmento específico da sociedade (CANDIDO, 2006, p.
84-85).
Estes três elementos organizados conformam a literatura como fenômeno da
civilização, existindo quando se encontram as condições propícias para tal em seu
entorno. Vista desse modo, a literatura é entendida como uma forma de
conhecimento, como instrumento de comunicação de um sistema social, mas não
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ainda como arte propriamente (RIBEIRO JUNIOR, 1984, p. 62). Mesmo a obra, que
com relevância maior nesse esquema, pois Candido (2006, p.84) define a literatura
como “um sistema vivo de obras, agindo umas sobres as outras e sobre os leitores;
e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-
a”, ainda não é tomada pelo aspecto artístico. Pois, de acordo com o autor quando
relacionada junto ao público e ao escritor, formando um triângulo de ação recíproca,
passando a trabalhar com elemento de junção entre os dois, iluminando um e outro,
a obra desempenha uma função de formatação de um sistema. Traduzindo: ela
ganha um estatuto sociológico. E este nível, na visão do autor, não comporta o que
ele define como a obra literária no seu nível estético.
As apreciações de ordem estética estão contidas em um ensaio analisado
mais adiante. Elas surgem em outra série de ensaios, definidos pelo próprio autor
como “mais empenhados teoricamente” (CANDIDO, 2006, p. 9). É esse o caso de
“Estímulos da criação literária”, no qual o autor se dedica a discutir as diferenças das
atividades literárias nas sociedades “primitivas” e nas sociedades “civilizadas”.
Embora a temática pareça distante, as concepções do autor sobre estes elementos
deixam entrever sua visão estética.
Nesse ensaio, Candido parte da noção básica de que no homem convivem o
mágico e o lógico, e, nessa perspectiva, as mentalidades, “primitiva” ou “moderna”,
assentam-se sobre uma mesma base. Desse modo, as culturas são relativas e as
diferenças entre elas não são de caráter ontológico, mas concernentes às condições
sociais e culturais específicas (CANDIDO, 2006, p.53).
O autor, então, localiza uma espécie de contradição no que tange às formas
orais da literatura: o crítico e o filósofo, inclinados para a análise formal, não
conseguem captar a atuação que ela tem sobre a comunidade, sobre o tecido social,
criando falso senso de autonomia. O sociólogo, por sua vez, manipula com maior
acuidade os elementos do sistema social e cultural, mas costuma ignorar o caráter
estético da literatura oral. Eis a oposição identificada por Candido: a competência de
um se ausenta no outro. É por isso que, na sua visão, se faz necessário atentar para
a “integridade estética” e distinguir o que ele define como função total, social e
ideológica de todo tipo de literatura – escrita ou oral (CANDIDO, 2006, p. 54-55).
Dessa forma, a função total se origina da constituição de um sistema
simbólico e carrega uma visão do mundo fazendo uso de determinados instrumentos
expressivos. Além disso, traduz representações ao mesmo tempo sociais e coletivas,
101
firmando-se no patrimônio geral de uma comunidade (CANDIDO, 2006, p. 55). Essa
é a função mais geral dentre as três e se refere à possibilidade de a obra literária
alcançar uma dimensão maior que aquela do seu contexto social e histórico. Com
efeito, a função total relaciona-se com a ideia de um “excesso die significação”, ou
seja, a capacidade de um objeto artístico de sobrelevar-se do período em que foi
produzido e atingir uma dimensão temporal mais larga (MARTINS, 2004, p. 64).
Sendo assim, é a função mais ampla e a que toca o nível estético, pois, de
acordo com Candido (2006), as características mais importantes de uma literatura,
ou de uma obra específica, dependem da sua intemporalidade e universalidade, isto
é, da capacidade de se desvincular dos aspectos que a amarram a um tempo e
lugar determinados – de um contexto social imediato, por assim dizer. Essa
capacidade depende diretamente da função total que a obra pode vir a exercer.
Já a segunda função, a social, pode ser definida como a “razão de ser
sociológica”, e ela compreende o papel que a obra exerce na conformação de
relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais de um grupo
e na conservação ou transformação de uma dada ordem social. Para o autor, a
função social independe da vontade ou da consciência de produtores e receptores
de literatura, pois é processada pelo próprio caráter da obra, pela sua inserção em
um dado conjunto de valores culturais e pela sua expressividade e comunicação
(CANDIDO, 2006, p. 55-56).
Essa função estaria um nível abaixo da função total e é capaz de comportar
todos os elementos externos, aqueles passíveis de serem apreendidos pela
sociologia, tais como as condições sociais de produção de uma obra, o contexto
histórico de um dado período ou gênero da literatura, a posição social do escritor, a
função política de uma determinada obra, etc. Inclusive, o triângulo autor-obra-
público, concebido pelo autor como condição para que a literatura se conforme como
fenômeno da civilização, também estaria englobado pela função social.
Interessante ainda é notar que Candido considera que essa função predomina
mais, sempre a nível explicativo, nas literaturas dos grupos primitivos e/ou iletrados,
porque estas se integram diretamente ao patrimônio da comunidade, ao passo que a
literatura erudita moderna é direcionada para o consumo individual e voltada para a
singularidade dos diversos grupos (CANDIDO, 2006, p.56).
Assim, o que se depreende dessa consideração é que, para o autor, o
processo ocorrido nas sociedades desenvolvidas, de progressiva diferenciação e
102
especificação da esfera artística, culminou com sua autonomização e em um
distanciamento absoluto da estética em relação ao âmbito social.
Que a estética se autonomizou, talvez seja um ponto pacífico. O problemático
é estabelecer que a função social, capaz de abarcar um amplo espectro de
processos sociais, pouco se percebe na literatura das sociedades modernas e que a
ela corresponde quase mecanicamente à sociologia. Ora, dentro dessa perspectiva,
a autonomização da estética como campo diferenciado de práticas implicaria
também um estranho processo de diferenciação epistemológica, dado que a
sociologia não é capaz de explicá-la. Em suma: a esfera estética se configuraria
empiricamente como um campo distinto e, analiticamente, só seria trabalhada de
modo satisfatório pela crítica e por mais nenhuma outra disciplina.
Por fim, tem-se a função ideológica, a mais cônscia e voluntariosa de todas.
Assim, o autor a define:
O artista quer atingir um fim; o leitor quer que ele mostre um certoaspecto da realidade. Esse lado voluntário da criação e da recepçãoda obra concorre para uma função específica, menos importante queas outras duas e frequentemente englobada nelas, e que se podechamar de função ideológica – tomando o termo num sentido amplode um desígnio consciente, que pode ser formulado como ideia, masque muitas vezes é uma ilusão do autor, desmentida pela estruturaobjetiva do que escreveu (CANDIDO, 2006).
Quando tomadas em conjunto, em uma análise simultânea, as três funções
permitem compreender de maneira satisfatória a obra literária, tanto a dos povos
iletrados, expressada oralmente, quanto a dos grupos modernos, representada sob
a forma de uma literatura erudita escrita. Na primeira, a função social ganha
destaque, ao passo que na segunda é a função total que predomina (CANDIDO,
2006, p. 57).
Candido (2006, p.63) considera que a arte, e a literatura aí inclusa, é uma
transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal, capaz de
organizar as coisas, os seres e os sentimentos de modo arbitrário. Para o autor, há a
combinação de elementos ligados à realidade social ou natural e de elementos
manipulados meramente pela técnica, o que implica um grau significativo de
gratuidade.
Dito de doutro modo, a criação literária se relaciona a determinadas
necessidades de representação do mundo, às vezes como abertura a uma prática
condicionada socialmente. Mas isso só se efetiva devido a uma redução ao gratuito
103
que dá acesso a um mundo ilusório. Embora essas definições abarquem qualquer
tipo de arte, tanto a “primitiva” como a “civilizada”, na primeira, os elementos
pragmáticos – isto é, não gratuitos, ligados às necessidades sociais – têm maior
influência (CANDIDO, 2006, p. 63-65).
Isso ocorre porque as distinções relativas à ordem social e cultural como um
todo estabelecem formas diferentes de arte e literatura no primitivo e no civilizado
(CANDIDO, 2006, p. 79). Da perspectiva da acomodação ao meio físico para a
sobrevivência do grupo, a literatura surge como algo que apenas a análise
sociológica é capaz de apreender de modo satisfatório, pois tem a capacidade de
demonstrar que, nas sociedades primitivas, o que se denomina sentimento estético
está ligado ao meios de vida e à organização social (CANDIDO, 2006, p. 65)
As diferenças entre os dois tipos de literatura estão assim resumidas: dadas
as características rudimentares de sua organização social, a literatura dos povos
primitivos repousa mais diretamente sobre os estímulos da vida social, sobretudo
aqueles ligados às necessidades de sobrevivência do grupo, enquanto que, nas
literaturas eruditas, esses elementos estão camuflados e só se revelam depois de
filtrados e desfigurados por uma série de outros fatores (CANDIDO, 2006, p. 73).
Toda essa construção a respeito do que diferencia as artes primitiva e
moderna é para, ao fim, concluir que as formas eruditas de literatura, próprias das
sociedades modernas, reclamam a análise estética e dispensam o estudo
sociológico; na proporção inversa, as formas orais, típicas das sociedades primitivas,
dispensam a visada estética e requerem o ponto de vista sociológico (CANDIDO,
2006, p. 69). Dessa maneira, o autor, apesar de adentrar o debate por um caminho
insólito, culmina novamente na visão restritiva para com a sociologia (especialmente
com o tipo de sociologia que ele escolhe para dialogar) e com a tentativa de
consolidação da sua atividade crítica.
A concepção subjacente é a da arte moderna como um tipo de prática
autossuficiente, com uma lógica de funcionamento própria, independente e que só
se deixa capturar por uma análise de qualquer tipo – e principalmente a sociológica
– em um aspecto restrito. Numa palavra só, isso significa autonomizar a esfera
estética para fora do mundo social – e de outras influências também.
O pensador uspiano, entretanto, reconhece as manifestações artísticas como
próprias da vida social, não havendo sociedade que não as expresse como fatores
necessários à sobrevivência. Desse modo, introduzem impulsos de expressão, de
104
comunicação e de integração que adquirem uma dimensão significativa, no mesmo
patamar de fenômenos econômicos, políticos e religiosos, pois se integram naquilo
que se pode denominar de sociedade (CANDIDO, 2006, p. 79-80).
Contudo, o caráter artístico mais importante, dentro dessa perspectiva
sociológica tomada, é a capacidade de realização individual, que está entre uma
ampla margem criadora e a possibilidade de inscrever o produto no patrimônio do
grupo. Na visão do autor, nas sociedades primitivas, esse nexo é mais claro; nas
modernas sociedades, por outro lado, a produção da arte e da literatura se dá
através de “representações estilizadas”, produção essa que só é coletiva na origem,
porque se processa por uma série de elemento mediadores (CANDIDO, 2006, p.
80).
4.1.2 Equacionando elementos internos e externos
A questão que se coloca, então, é como analisar esta passagem de uma
produção criativa, coletiva e social, para um nível estilizado, individual e envolto por
elementos ocultos que não se percebem à primeira vista. Se Candido considera que
o ponto de vista sociológico é, no máximo, útil como ferramenta elucidativa, deve-se
buscar, em seu pensamento, como se deve proceder à análise estética. Responder
a essa colocação é tornar claro o método crítico do autor.
É dessa matéria que se ocupa detidamente o ensaio Crítica e Sociologia.
Assim, o autor, inicialmente, põe ênfase às polarizações dos debates na área, que,
segundo sua visão, variam de uma análise estética “pura” até um sociologismo
redutor, para reclamar para si uma postura equilibrada. Sustenta também que deve
se buscar “um ponto de vista objetivo que não desfigure a análise de um lado e nem
de outro” (CANDIDO, 2006, p. 13)6.
6 Esta proposição deve ser entendida também dentro do quadro específico da crítica culturalbrasileira e em relação a nomes como os de Álvaro Lins e Afrânio Coutinho. Os doisrepresentavam, nesse cenário, modos distintos de se fazer análise literária: o primeiro, comum método chamado “impressionista”, com influência da crítica psicológica, que se guiavapela intuição pessoal do crítico; o segundo postulava uma crítica estritamente formalista, deforte apego aos elementos estéticos, que deveria decifrar a “verdade” das estruturasinternas da obra. Candido figura como uma terceira via nesse quadro, porque aglutina asvias da análise (textual), do julgamento (de valor, baseado no gosto) e da interpretação (comorientação histórica e sociológica) (AMORIM, 2011).
105
A questão, portanto, não é avaliar a obra por ela exprimir ou não certa faceta
da realidade, tampouco atentar apenas para os elementos formais que ela carrega.
A proposta do autor, então, é tratar essas duas visões como complementares, como
se as duas dimensões, aparentemente opostas, tivessem agora de se ajustar uma à
outra. Isso fica explícito no seguinte postulado, que pontua a necessidade de unir os
dois níveis de análise: “Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar
nenhuma dessas visões dissociadas; e que só podemos entender fundindo texto e
contexto numa interpretação dialeticamente íntegra” (CANDIDO, 2006, grifo nosso).
E completa: “Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não
como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo
papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO, 2006,
p. 14, grifos do autor). Apesar de postular o equilíbrio das análises, se observa que a
ênfase aqui é claramente no polo interno. É esse que será analisado em minúcia, e
o externo será verificado e ponderado nos termos da influência que exerce sobre
este polo interno.
Candido não deixa de assinalar de onde parte sua perspectiva: considera que
a análise estética tem primazia sobre qualquer outro tipo de consideração na
investigação das associações entre a obra e o meio social. Ou seja, se pudéssemos
definir níveis de prioridade epistemológica para análise da literatura, a estética
ocuparia o primeiro nível e o restante das áreas de conhecimento, níveis
secundários, cuja pertinência ou não será estabelecida a posteriori pelo crítico
(CANDIDO, 2006, p.13).
Assim, o autor uspiano completa sua argumentação: a sociologia é uma
disciplina científica e não tem orientação estética própria da crítica. Portanto, a
sociologia deve dar tratamento externo aos fatores externos. À crítica cabe
investigar como isso se processa internamente. Portanto, temos o corte
epistemológico que baseia a visão de Candido (2006): a sociologia trata dos fatores
externos; a crítica, dos internos.
Estabelecido em que ponto deve se centrar a análise, a problemática
fundamental passa a ser analisar a “intimidade das obras”, investigando, entre os
fatores sociais, aqueles que atuam na organização interna, de maneira a constituir
uma “estrutura peculiar” (CANDIDO, 2006, p. 14).
Ao tomar o fator social, então, deve-se averiguar se ele fornece apenas
“matéria” (ambientação, costumes, valores, traços do grupo), elementos que apenas
106
possibilitam a criação da obra, ou se ele é um elemento que influi na configuração
do produto cultural como obra de arte; em outras palavras, deve-se investigar se o
fator social apenas permite a realização do fator estético ou se é determinante para
ele (CANDIDO, 2006, p. 14-15).
Primeiro, é possível perceber como há uma visão não reducionista, mas
claramente seletiva dos fatores sociais. À ampla gama de fatores sociais que eram
levados em conta nas análises mais corriqueiras da sociologia (largamente
influenciadas pelo marxismo), Candido (2006) impõe uma bem delimitada restrição:
a pertinência dos fatores externos é a influência que ele exerce para a organização
interna. Como sustentou Ribeiro Junior (1984, p. 60): “segundo Antônio Cândido,
são decisivos, para a análise literária, os fatores sociais, no seu papel de formadores
de estrutura”.
Nota-se também que termos como externo, interno, constituição interna, entre
outros, são corriqueiros dentro do léxico do autor. De modo que, traduzindo a
fórmula fator externo com atuação para a organização interna, é possível perceber
que os elementos externos só são pertinentes se ajudarem a construir o valor
estético da obra, aquilo que ela tem de mais genuíno como arte – exatamente aquilo
de que se ocupa, na visão do autor, a crítica. O fator externo só é importante para a
crítica se for motivo fundamental do estético. A fórmula, então, pode ser sintetizada
como importa fator externo o que tem causalidade interna. É a isso que se chama
visão seletiva.
Em suas palavras:
A análise crítica, de fato, pretende ir mais fundo, sendo basicamentea procura dos elementos responsáveis pelo aspecto e significado daobra, unificados para formar um todo indissolúvel, do qual se podedizer [...] que tudo é tecido num conjunto, cada coisa vive e atuasobre a outra (CANDIDO, 2006, p. 15)
Para o autor, assim, quando se empreende uma análise dessa natureza, o
elemento social está sendo considerado não exteriormente, como algo que permite
identificar no conteúdo de uma obra a expressão de determinada época ou
sociedade, nem como enquadramento, que permite circunscrevê-la historicamente,
mas como motivo mesmo da construção artística – ou seja, estudado no nível
explicativo e não ilustrativo (CANDIDO, 2006, p. 16-17).
107
Dessa forma, a interpretação estética passa a incorporar o fator social como
fator de arte:
Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: oexterno se torna interno e a crítica deixa de ser sociológica, para serapenas crítica. O elemento social se torna um dos muitos queinterferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos,linguísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estruturaconstitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, poistudo se transforma, para a crítica, em fermento orgânico de queresultou a diversidade coesa do todo (CANDIDO, 2006, p. 17, grifodo autor).
É desse modo que o ângulo sociológico, na visão do pensador, ganha maior
validade, mas nem por isso pode ser fixado com prioridade entre os estudos
literários, porque uma crítica para ser “integral”, deve abandonar a parcialidade
sociológica, psicológica ou linguística, para lançar mão livremente de qualquer
quadro teórico capaz de orientar a interpretação (CANDIDO, 2006).
Candido concebe a obra como uma realidade superior, coesa e coerente em
si. Nessa perspectiva, os diversos recursos teóricos, se não tomados com a devida
prudência, podem aparecer como prejudiciais à análise, por fazê-la recair
demasiadamente sob um certo aspecto e esquecer que a “precedência lógica e
empírica pertence ao todo, embora apreendido por uma referência constante às
partes” (CANDIDO, 2006, p.18).
O autor ainda admite o postulado geral de que a arte, para se formar e se
caracterizar, necessita do “entrelaçamento de vários fatores sociais”, isto é, “não se
trata de afirmar ou negar uma dimensão evidente do fato literário; e sim, de
averiguar, do ângulo específico da crítica, se ela é decisiva ou apenas aproveitável
para entender as obras particulares” (CANDIDO, 2006, p .21-22).
Apesar disso, faz, outra vez, funcionar o rigor seletivo de seu método e
sustenta que, para determinar se eles “interferem diretamente nas características
essenciais de determinada obra” (CANDIDO, 2006, p.21), é preciso de um salto
grande, pois os elementos focalizados pelos estudos sociológicos e históricos são
secundários para o crítico – este, sim, responsável pela dimensão estética de uma
obra.
Todo esse rigor restritivo de Candido para com a sociologia só é entendido se
tivermos em mente que ele não poupou esforços para implantar, na universidade, a
sua cadeira de teoria literária e para sedimentar seu projeto dentro do campo
108
intelectual brasileiro. Isso significa dizer que o projeto teórico desenhado pelo autor é
também um projeto institucional, que tem como objetivo primeiro delimitar o lugar
universitário do crítico e de seu pensamento (WAIZBORT, 2007, p. 103).
E esse elemento nos leva a uma nova questão: a institucionalização de uma
nova área de conhecimento, nesse caso, os estudos literários, com todos os
instrumentos que isso implica – cátedras, assistentes, boletins, cursos, livros,
bibliotecas, alunos, assistentes, financiamentos, congressos, revistas, etc. – exige,
em consequência disso, a definição do lugar dessa área, ou seja, seus objetos e
métodos de estudo, seu caráter científico ou não, etc. Em suma, a necessidade que
se impõe no momento desta tarefa é a de conceder certa identidade epistemológica,
mas também acadêmica, à área de conhecimento que quer se estabelecer como tal
(WAIZBORT, 2007, p. 105-106). É nesse momento nesse as questões materiais e
objetivas do novo espaço institucional começam a refluir posturas teóricas.
É a partir disso que se pode entender a concepção de Candido,
incessantemente reiterada, de que a crítica não pode se confundir com a sociologia,
mas também não é apenas uma análise puramente estética, pois, a depender das
necessidades suscitadas pelo objeto, pode-se lançar mão de conhecimentos de
outra ordem.
Esse postulado da autonomização da atividade do crítico frente à tarefa do
sociólogo alude a um movimento estratégico e significativo para se compreender a
posição do autor, no sentido de tentar definir a si mesmo e a área à qual se dedica
de modo favorável. A questão que se interpõe é: quem disse que a sociologia
concebida como “instrumento de visão de mundo”, não necessariamente debruçada
sobre um “trabalho sistemático de pesquisa e análise da realidade”, não é
sociologia? (WAIZBORT, 2007, p. 112-116).
Considerada de modo amplo – como atitude hermenêutica –, a crítica de
Candido, na qual a sociologia é tratada apenas como um “ponto de vista”, poderia
perfeitamente vir a ser concebida como simplesmente sociologia. O trabalho de
Antonio Candido só deixa de ser sociologia se confrontado com uma determinada
concepção de sociologia, o que significa dizer que as áreas só ganham identidade
quando contrapostas uma com a outra (WAIZBORT, 2007, p. 114-115).
Desse modo, percebe-se como Antonio Candido elege uma concepção
cientificista de sociologia, isto é, ele projeta uma sociologia da cultura que não
abarcaria o julgamento estético das obras – como se o social não adentrasse a
109
forma, como se estivesse desvinculado dela. O fato de o autor escolher justamente a
noção cientificista de sociologia é indicativo, pois só em comparação com ela pôde
diferenciar a si e o seu lugar. Em outros termos, essa concepção é estratégica para
que o autor possa deslocar sua posição da “sociologia” para a “crítica” (WAIZBORT,
2007, p.112-115).
Esses postulados (mesmo que muitas vezes informados por interesses
departamentais) trazem algumas implicações teóricas importantes. Porque, junto
com a depuração da sociologia – e de outras disciplinas – da atividade crítica, vem
também a depuração dos fatores sociais – e também históricos, psicológicos, etc. –
da concepção de forma, o que permite, ao fim, estabelecer a ideia da obra como
algo relativamente autônomo, quase jogando-a para fora do campo epistemológico
da sociologia e da história.
Pelo seu vezo interdisciplinar – uma crítica que “impura”, que lança mão de
um tipo específico de consideração sobre elementos sociais –, fica claro porque
essa concepção não pôde se solidificar academicamente dentro das Ciências
Sociais: tais características não atendiam à necessidade de especialização e
diferenciação do campo científico-sociológico naquele momento. Se dentro da
disputa interna das ciências sociais Antonio Candido teve seu projeto preterido, por
outro lado, do ponto de vista da influência no campo da cultura no Brasil, ele se
tornou predominante.
4.2 Raymond Williams
O pensamento de Raymond Williams tem inegável importância para a
sociologia, a comunicação e para os estudos literários. É bem verdade que os
estudos culturais, ao alcançarem a América de Norte, tiveram um refluxo teórico
intenso, distanciando-se do marxismo e aproximando-se do debate sobre as novas
categorias sociais (raça, gênero, orientação sexual). Nesse percurso, fica exposto
que os estudos culturais se descolaram da influência de Williams, pensador
socialista em profundo diálogo com o marxismo.
Esse processo de “popularização” dos estudos culturais caminhou
paralelamente à sua institucionalização nas academias e foi marcado por uma
apropriação pouco politizada das contribuições iniciais britânicas – ponto no qual se
entende o afastamento do marxismo, pensamento crítico e engajado. Isso, contudo,
110
não impede o reconhecimento de Raymond Williams como um fundador da
disciplina e a penetração do seu pensamento nas diversas áreas acadêmicas. O
interesse, nas duas últimas décadas, pela obra do pensador do galês é crescente,
inclusive no Brasil, onde temos um número cada vez maior de publicações com o
intuito de discutir seu legado.
Como a obra de Raymond Williams é vasta e atende a interesses das mais
diversas áreas, faz-se necessário, para os propósitos deste trabalho, indicar o foco
principal da análise. É indispensável, assim, traçar um panorama sobre a produção
intelectual do pensador galês, apontando as fases de sua carreira intelectual e quais
obras as compõem.
A carreira intelectual de Raymond Williams, segundo Blackwell (1997, p. 34),
divide-se em quatro seções: obras de estudo e crítica do romance britânico e da
dramaturgia britânica e continental, nas quais, a partir desse critério, Williams centra
a maior parte de sua produção; um segundo grupo pode ser dedicado aos trabalhos
artísticos, nos quais se encaixam seus romances e suas peças de teatro; outro bloco
é formado pelos livros dedicados à análise do desenvolvimento cultural e política da
sociedade britânica; por fim, tem-se um grupo de trabalhos gerais e teóricos, no qual
se destacam os termos da crítica cultural marxista.
Dessa forma, fazem parte da primeira parte os livros: Drama from Ibsen to
Brecht (1968), Drama in performance (1954), The english novel from Dickens to
Lawrence (1970), Orwell (1971) e The country and the city (1973); compõem a
segunda seção: Border country (1960), Sound generation (1964), Loyaltes (1984) –
romances – e Koba (fim dos anos 1950) – teatro; na terceira parte incluem-se os
livros Culture and society (1958), The long revolution (1961), Communications (1962)
e May Day manifesto (1968); por fim, a última parte é composta de Marxism and
literature (1977) e Culture (1981).
Já de acordo com Cevasco (2001, p. 182), a obra de Raymond Williams pode
ser dividida em três frentes: a primeira seria de cunho engajado ou político, com
ênfase no processo de transformação social e na derrota do capitalismo; a segunda
teria a marca eminentemente crítica, na qual o foco principal é a literatura, mas não
apenas ela; e a terceira teria natureza marcadamente teórica.
Assim, nos moldes propostos pela autora, compõem a primeira seção: The
long revolution, Towards 2000 (1983) e alguns artigos da coletânea Resources of
hope (1989), a saber: The challenge of the new social movements e Redefining
111
socialist democracy; na segunda categoria estariam incluídos Reading and criticism
(1950), Drama from Ibsen to Eliot (1952), Moderny tragedy (1966), The english novel
from Dickens to Lawrence, The country and the city e mais algumas análises
publicadas em Writing in society (1983), além dos ensaios sobre o modernismo de
The politics of modernism (2007). Ainda teríamos, dentro do grupo crítico, destaque
para duas subclasses: a da história das ideias, composta por Culture and society,
Orwell e Cobbett, este último de 1983, e análises não literárias, tais como Preface to
film, (1954), Communications e television, (1975); por fim, a última parte congregaria
Keywords (1976), Marxism and literature, The sociology of culture e os primeiros
ensaios de Problems in materialism and culture, de 1972.
A partir de Araújo Sá (2011, p. 40), outra classificação pode ser feita.
Identificam-se não quatro, mas apenas três fases na produção intelectual de
Raymond Williams: a primeira delas tem como foco a categoria de experiência para
análise da literatura e do drama; na segunda fase, percebe-se o desenvolvimento de
uma análise geral da cultura a partir da literatura, estabelecendo um diálogo com F.
R. Leavis e com a tradição britânica cultural materialista britânica; por fim, a última
fase é centrada na construção de uma teoria materialista da cultura. São obras que
compõem a primeira fase: Reading and criticism, Drama from Ibsen to Eliot, Preface
to film e Drama in performance; os livros representativos da segunda fase são
Culture and society e The long revolution; agrupam-se no terceiro e último momento
basicamente dois livros, Marxism and literature e Culture.
É possível observar que as três categorizações não necessariamente se
contradizem, chegando, em alguns pontos, a entrarem em acordo. Cada uma delas
pode ser útil a depender dos aspectos a serem salientados na trajetória de Raymond
Williams ou dos objetivos propostos nos trabalhos que delas lançarem mão. A
primeira, de Blackwell (1997), tem a vantagem de incluir dentro das subdivisões os
trabalhos artísticos de Williams, ao passo que a segunda dedica uma seção apenas
as obras de caráter político, além de abarcar os livros de ensaios publicados
postumamente.
A última categorização, contudo, não se apoia em definições gerais sobre as
obras, tais como “análise do romance britânico”, “desenvolvimento cultural britânico”
ou “obras críticas”, mas no principal pilar teórico dos livros. Por isso, vemos as fases
serem definidas como experiência, análise geral da cultura e teoria materialista da
cultura. Para os propósitos desta parte do nosso trabalho, que visa especialmente
112
discutir os sentidos da proposta teórica de Raymond Williams, a classificação de
Araújo Sá (2011) é mais fecunda.
Nosso debate, desse modo, se centrará na terceira fase do pensamento de
Williams, momento no qual ele solidifica as bases da sua teoria materialista da
cultura, que é denominado, neste trabalho, de maturidade intelectual. Além disso,
há, sem dúvidas, referências aos trabalhos das outras fases, mas estas devem
entrar como elementos que facilitam o entendimento da proposta de Williams –
principalmente para perceber o desenvolvimento de suas principais ideias e
conceitos. Orbitam, portanto, a sua produção intelectual madura, exposta em livros
como Marxismo e Literatura, Cultura e em ensaios, como Base e superestrutura na
teoria marxista, nos quais a relação com o marxismo é mais intensa.
4.2.1 A influência da tradição idealista britânica e o marxismo das obras iniciais
Antes de entrar nos termos mais precisos da interlocução de Raymond
Williams e no marxismo, que toma maior parte desta seção, é necessário ter em
mente que existe uma outra influência muito forte sobre o pensamento do autor
galês: a tradição de crítica literária britânica. Grande parte do esforço intelectual do
autor localiza-se na tentativa de ir além das tradições idealista e marxista ortodoxa.
Tendo recebido larga influência das duas correntes, a tentativa de superá-las revela-
se também em um esforço para integrá-las. Portanto, é necessário perceber qual a
crítica que Williams faz a cada uma e o que ele conserva delas no seu pensamento.
Apesar de Williams ter percebido certa cultura de esquerda quando chegou à
Universidade de Cambridge nos anos 1930, a verdade é que, já nessa época, o
debate sobre cultura era dominado pelo pensamento de Leavis, um autor
eminentemente conservador, que fazia da crítica um instrumento de proteção dos
elevados valores humanos contra os supostos males trazidos pelo progresso da
civilização.
Leavis e seus seguidores escoavam suas produções na revista Scrutiny (a
publicação se iniciou em 1932; até 1953 Leavis foi editor). Ao criticar a sociedade
britânica em plena expansão, principalmente no que tange à mudança de valores
trazida com os progressos tecnológicos da modernidade, o periódico conseguiu
ocupar um espaço privilegiado na intelectualidade britânica. Vale ressaltar que o
espaço era para a crítica literária, possivelmente a área de onde nascem os estudos
113
culturais – com isso, é possível dimensionar, pelo menos em parte, a influência que
exerceu sobre Williams.
Mesmo que a crítica à sociedade realizada pela Scrutiny fosse feita de
maneira enviesada, pois Leavis concebia o mundo como dividido entre as esfera da
cultura e da civilização, colocando a literatura em um estado fora da sociedade,
deve-se reconhecer que o leavisanismo conseguia descrever satisfatoriamente
como as experiências humanas se concretizavam na literatura, sendo “forte
exatamente no que o marxismo era fraco” (CEVASCO, 2016, p. 122). Desse modo,
Williams retém muito dessa perspectiva de tentar perceber como arte e a cultura
estão permeadas de experiências humanas reais, porém, trabalhando no polo
oposto: concebendo as obras literárias inscritas no mundo real.
No pós-guerra, além de Leavis, outro pensador, também advindo da crítica
literária, tinha grande proeminência no debate sobre cultura: o poeta T. S. Eliot. De
acordo com o autor, a cultura era algo cujo crescimento se dava de maneira
espontânea, não sendo necessário, desse modo, estimular seu crescimento, mas
apenas protegê-la e conservá-la. Fica claro que os temas presentes, rejeição à
mudança e visão negativa sobre o progresso, estão inscritos na tradição britânica,
só que de modo atualizado (CEVASCO, 2001, p. 131-134).
No entanto, Eliot cunhou a noção de cultura como um modo de vida total (ou
whole way of life), que Raymond Williams considerava importante. Por isso, Williams
também entrou em diálogo com o pensamento de Eliot, atacando-o e corrigindo-o
onde considerava pertinente: primeiro, argumentando contra a ideia de cultura como
um âmbito especializado; e segundo, ao criticar a proposição de que se deve
difundir apenas um tipo de cultura. Esse grande debate com a tradição (que Williams
quer debater e criticar) está presente em Cultura e Sociedade (CEVASCO, 2001)
Em suma, de acordo com Robinson (1991, p.80), Raymond Williams toma de
empréstimo de pensadores idealistas, como Eliot, Leavis e mesmo Richards (um dos
fundadores do New Criticism Britânico e mentor de Leavis), a concepção de cultura
como um modo de vida total, melhor expressa no próprio Eliot, que, apesar de tratar
com desdém as culturas de massa e popular, teve o mérito de reconhecer que não
apenas a arte é cultura.
No que tange ao marxismo, a discussão é mais longa. Isso porque a relação
de Williams com a herança marxista nem sempre foi intensa ao longo de sua obra,
embora seu interesse em construir um novo olhar sobre a cultura permanecesse.
114
Sabe-se que, no início de sua carreira intelectual, apesar de o marxismo estar
presente como referencial, a reformulação teórica dessa tradição de pensamento
ainda não ocupava o centro das suas atenções – o que só viria acontecer na fase
final de sua carreira. Esse movimento algumas vezes já foi chamado de progressiva
radicalização da obra de Williams, na qual o “reformismo” das obras iniciais seria
contrastado com a visão marxista mais consistente da fase final (ALCALÁ, 2010, p.
67).
O certo é que, em maior ou menor grau, a relação com o marxismo sempre
existiu. Algumas questões marcantes da fase madura já existiam inicialmente, como
a intenção de rediscutir a noção de uma esfera cultural dependente de uma
dimensão real e prática do mundo já estavam presente em Cultura e Sociedade, por
exemplo (CEVASCO, 2001, p. 137).
Essa dependência da esfera cultural era oriunda do modelo base e
superestrutura, tal como usado pela tradição marxista britânica dos anos 1930, a
única que Williams tinha acesso até esse momento. Para o autor, esse modelo
criava limitações à análise da cultura no mundo da vida prática. Por isso, em Cultura
e Sociedade, Williams pesa a mão exatamente nos pontos fracos do marxismo: a
incapacidade de conceber a centralidade da cultura nas sociedades avançadas e em
explicar satisfatoriamente as manifestações artísticas na sociedade (CEVASCO,
2001, p. 139-141).
Fica claro, pelo exposto até aqui, que a concepção de cultura de Raymond
Williams não encontrava amparo nem na tradição literária britânica, de cunho
idealista, e nem no marxismo vulgar da Grã-Bretanha de então. De modos diversos,
as duas correntes chegavam ao mesmo resultado prático: concebiam a cultura como
algo fora da sociedade, como uma dimensão contrária ao âmbito de produção
material da vida. À cultura, cabem os elementos “espirituais”: obras de arte, valores,
sentimentos; ao mundo real, os elementos materiais: alimentos, riqueza,
ferramentas, etc.
Dessa forma, Williams buscava reivindicar para a cultura e a arte o estatuto
de atividades materiais. Ao postulá-las como práticas sociais materiais, Williams
também reposicionaria o lugar da cultura para o entendimento do mundo social: ao
invés de apartada e/ou dependente de outras dimensões mais importantes – em
uma palavra, secundária –, a cultura adquiriria imensa importância para
compreensão da organização social e das relações entre grupos e classes. Entender
115
como, ao longo de sua obra, Williams ajusta seu argumento em direção à
centralidade e à materialidade da cultura, é compreender, de uma só vez, sua crítica
ao idealismo, sua relação com o marxismo e a construção de sua própria teoria
materialista da cultura.
O argumento inicial está localizado na ideia de totalidade social, do livro The
Long Revolution: para Raymond Williams, e, de acordo com isso, não faz sentido
relacionar a cultura e a arte com a sociedade: estas fazem parte da sociedade e,
portanto, nela estão inseridas como qualquer outra atividade, tais como a política, o
comércio, etc. Desse modo, o autor galês dilui a necessidade de tralhar com os
polos opostos “arte” e “sociedade”: se a primeira é uma prática inscrita na última,
basta estudar as interrelações entre todas as atividades sociais (AZEVEDO, 2014, p.
174).
Raymond Williams estava lançando mão do conceito de totalidade como uma
a alternativa às noções herdadas do idealismo e do materialismo para análise da
cultura: através dele, o pensador galês esperava não incorrer no risco de separar a
sociedade em duas esferas contrapostas. O problema é que, no mesmo gesto de
postular a materialidade da cultura, Williams a colocou no mesmo patamar de
importância de outras atividades do ponto de vista da causação histórica, ao dizer
que não deve existir concessão de prioridade a nenhuma área da sociedade ao
estudar suas inter-relações (AZEVEDO, 2014, p. 175).
Isto é, o que Williams estava sustentando, a essa altura, era que a cultura
tinha o mesmo peso que a economia ou a política para direcionar os rumos da
sociedade – era como se, espremido entre duas tradições, Williams tivesse forçado
demais seu argumento para dar ênfase a sua visão, incorrendo no erro de inflar em
demasia a influência histórica da cultura - ou, no caminho inverso, de diminuir a de
outras áreas:
Williams assinala, no bojo de um debate sobre as relações entre artee sociedade, a ambiguidade e heterogeneidade das mudanças, asquais podem ser examinadas por meio do estudo das inter-relaçõesentre atividades particulares, e não necessariamente através dahipótese de centralidade de uma área à qual todas as outrasestariam subordinadas. […] a causação histórica não é propriamentenegada, mas fica sugerido que a atribuição de prioridade a certosistema real significa necessariamente a escolha por abstrair essesistema, ignorando suas inter-relações. Uma coisa, contudo, nãoconduz obrigatoriamente à outra: afirmar a ideia de totalidade nãoimplica negar, em qualquer sentido, a noção de ordenamento causal(AZEVEDO, 2011, p. 176)
116
A mesma ênfase continua no livro subsequente de Raymond Williams,
Communicantions, no qual o autor sustenta uma equivalência entre cultura e política
na formação da sociedade. As dificuldades teóricas encontradas nos primeiros livros
do autor residem no fato de que a totalidade estava ancorada na noção de
experiência: se experimentamos/vivenciamos as estruturas sociais de maneira
unificada, é porque, de fato, elas assim o são (AZEVEDO, 2011, p. 178-179).
Os livros iniciais de Raymond Williams (Cultura e Sociedade, The Long
Revolution e Communications) têm, no entanto, o mérito de lançar as bases do que
viria, futuramente, a ser chamado de materialismo cultural e que tem como
fundamento a noção que as estruturas econômicas, políticas e simbólicas são
inseparáveis – elemento que dá o tom o de continuidade à carreira intelectual do
pensador galês (AZEVEDO, 2011, p. 179).
Dessa maneira, o autor só consegue ajustar os termos de seu pensamento
um pouco mais tarde, naquilo que, neste trabalho, chamou-se de fase madura da
sua produção intelectual. Em Marxismo e Literatura, Williams deixa de lado o foco no
conceito de experiência, porque ele próprio oferecia limites à percepção da
totalidade social, e passa a trabalhar com a ideia de que os processos sociais têm a
mesma especificidade: por serem todos materiais, são comuns uns aos outros. Ao
realizar essa operação, o pensador galês deixou de lado a exigência da equivalência
histórica causal entre as diferentes estruturas sociais e passou a focar no processo
social como indivisível. Em outras palavras: não há mais a negação de que existem
assimetrias causais, apenas a afirmação de que os elementos sociais estão unidos
no processo social (AZEVEDO, 2014, p. 180-181).
Essa nova abordagem teórica também permitiu o avançar das proposições
em outra direção: no reconhecimento de que existem diferenças temporais na
formação e no desenvolvimento das estruturas. Assim, Raymond Williams conseguiu
o máximo de refinamento de sua proposta teórica, que pode ser resumida da
seguinte forma: “os procedimentos econômicos e políticos organizam a vida social.
Já a cultura é o campo por meio do qual essa organização se expressa no concreto,
na forma de um modo de vida real” (AZEVEDO, 2014, p. 183).
A confecção dessas premissas teóricas é de extrema importância, pois é o
ponto no qual Williams busca equalizar as duas tradições de pensamento que lhe
influenciaram. Ao reestabelecer a primazia de certas práticas sociais (como as
117
sociais e as políticas) sobre o processo de desenvolvimento histórico, o autor
encaixa seu pensamento nos postulados mais básicos do marxismo; e, ao recolocar
a experiência como o maneira pela qual, através de certos padrões, experimentando
essa complexa conjunção de fatores políticos e sociais, ele preservou o que
considerava importante da tradição idealista.
É demasiado importante frisar: com essas propostas, Williams não tem receio
em salientar que existem fatores causais que operam sobre as forças artísticas –
não ao modo do marxismo vulgar, para o qual a economia quase que prescreve as
manifestações de arte de uma época, mas no sentido de que todas as forças
materiais (e a cultura aí inclusa) pressionam, em um certo sentido, as formas de arte
de um tempo – ao mesmo tempo que resguarda a autonomia da atividade artística –,
porque ela agora não depende mecanicamente de outras dimensões da sociedade.
Grande parte do debate que dominou a sociologia da arte por longo tempo
girou em torno, justamente, da necessidade de equilibrar o idealismo e o
materialismo: reduzir demasiadamente a atividade artística, de modo que seja vista
apenas como epifenômeno de outras áreas mais importantes, nem inflar a
autonomia da arte a um ponto em que ela se desconecte do mundo social:
Ao escolher como campos centrais do livro o marxismo e a literatura,Raymond Williams nos apresenta duas grandes tradições a partir dasquais desenvolve sua teoria da cultura, opondo-se, na primeira, àrigidez de certos modelos que não davam conta das complexidadesda sociedade e, na segunda, ao seu idealismo exacerbado(GLASER, 2008, p. 77).
Para entender os termos mais profundos dessa proposição, o materialismo
cultural, faz-se necessário analisar, detalhadamente, como ela se constrói em
Marxismo e Literatura. Nesse movimento, poderemos responder a algumas
perguntas: como conceber a cultura como força material produtiva? Qual a crítica de
Raymond Williams ao modelo base e superestrutura da teoria marxista e qual sua
relação com os pensadores do marxismo ocidental? Quais conceitos, em
contrapartida, são utilizados pelo autor galês?
Figura 4 – Capa do livro Marxismo e Literatura
118
4.2.2 A materialidade da cultura em Marxismo e Literatura
O primeiro movimento teórico de Raymond Williams é retirar a ênfase da
noção base e superestrutura e focar em outra premissa marxista, a de que o ser
social determina a consciência. A passagem inicial de Marxismo e Literatura é
idêntica a do ensaio Base e superestrutura na teoria marxista:
Qualquer abordagem moderna de uma teoria marxista da culturadeve começar pelo exame da proposição de uma infra-estruturadeterminante e de uma superestrutura determinada. De um ponto devista rigorosamente teórico, não será este, talvez, o ponto de partidaque escolheríamos. Seria preferível, sob muitos aspectos, sepudéssemos começar com uma proposição que originalmente eratambém importante e também autêntica: a proposição de que o sersocial determina a consciência. As duas proposições não se negamnecessariamente nem se contradizem. Mas a de infra-estrutura, comseu elemento figurativo e com sua sugestão de uma relação espacialfixa e definida, constitui, pelo menos em certas mãos, uma versãomuito especializada e por vezes inaceitáveis da outra proposição.Mas na transição de Marx para o marxismo, e no desenvolvimento dacorrente principal do próprio marxismo, a proposição da infra-estrutura determinante e da superestrutura determinada foiconsiderada, comumente, como sendo a chave da análise culturalmarxista (WILLIAMS, 1979, p. 78).7
7 Essa citação também pode ser encontrada em WILLIAMS, 2014, p. 43.
Fonte: Williams (1979)
119
Pelas palavras de Williams (1979), percebe-se que ele critica, é claro, a
centralidade do modelo base e superestrutura para a análise da cultura dentro da
tradição marxista, mas também os sentidos e os usos desses termos – isto é, ao que
certa tradição marxista quer referir-se quando os utiliza. Por isso, o primeiro passo
de Williams foi discutir os significados que esses termos possuem – alterando-os,
quando possível, e substituindo-os, quando necessário.
Williams (1979, p.82) assinala que os usos dessas palavras por Marx tinham
sentidos metafóricos, não assertivos. Mas, na “transição de Marx para o marxismo”,
as palavras foram trabalhadas como se tivessem significados extremamente
delimitados com a função de descrever áreas observáveis do mundo social. Se,
portanto, inicialmente, em Marx, as palavras foram utilizadas para enfatizar uma
relação, posteriormente, elas passaram a significar ou categorias fechadas ou áreas
fechadas de atividades. Contradição maior, na visão do autor, justamente porque
Marx queria argumentar, não a favor, mas contra a separação da sociedade.
A superestrutura teve, comumente, três sentidos: o de formas jurídicas e
políticas que expressam relações de produção reais e existentes, o de formas de
consciência que expressam uma determinada visão de classe do mundo e, por
último, um processo no qual os homens se tornam conscientes de um conflito
econômico e tentam solucioná-lo. Respectivamente, cada um desses sentidos
coloca o foco em: instituições, formas de consciência, práticas culturais e políticas.
Assim, o que o autor questiona não é o simples reconhecimento do fato de, no
mundo real, essas áreas estarem interligadas (muitos autores, pelo menos em seus
preceitos teóricos, o fazem), mas a questão de que o conceito, quando usado, é
aplicado separadamente a uma dessas áreas (WILLIAMS, 1979, p. 81).
No caso da base, Williams (1979) nota que o termo passou a ser tomado
quase como um objeto material – uma percepção reduzida de uma existência
material – e revestida de propriedades muito gerais e uniformes. Para o pensador
galês, só quando se compreender que a base é, na verdade, um processo dinâmico
e contraditório é que será possível se livrar das noções de área ou categoria; para
ele, “não é a base e a superestrutura que necessitam de estudo, mas os processos
reais específicos e indissolúveis” (WILLIAMS, 1979, p. 85-86).
Após criticar os sentidos dos termos base e superestrutura, o próximo passo
foi reavaliar a noção de determinação também cara ao marxismo e que preconiza as
relações materiais e/ou econômicas de uma sociedade impostas sobre as formas
120
culturais, direcionando sua forma e seu conteúdo. Essa proposição é o ponto de
apoio das análises marxistas para a cultura. É por causa dela que o marxismo é
comumente acusado de não reconhecer a especificidade da cultura ou da arte, que
passa a ter existência secundária e dependente de um fator econômico com força
primordial.
Segundo Williams (1979), dado que o marxismo tem como premissa teórica a
noção de que as condições objetivas (isto é, aquela dimensão de onde parte a
determinação) são o resultado das ações dos homens, a verdadeira polarização se
dá entre uma objetividade histórica, entendida como as condições acessíveis aos
homens numa certa época, e uma objetividade abstrata, na qual o processo histórico
adquire um sentido absoluto e os homens não podem controlá-lo – o determinismo
abstrato é, ele próprio, um fruto de um momento histórico, no qual a força da
sociedade capitalista fez com que as pessoas sentissem que não tinham controle
sobre o processo histórico (WILLIAMS, 1979, p. 89-90).
Se, então, a sociedade e o processo histórico não podem ser desvinculados
dos indivíduos e das vontades destes, o conceito de determinação ganha outro
sentido: não apenas o de estabelecer limites, mas também o de exercer pressões:
isto é, determinar que algo seja feito, estar disposto fazê-lo – como um ato de
vontade individual. Essas são as determinações positivas – sentidas como algo
individual, mas sempre sociais –, que mantém relações complexas com as
determinações negativas, os limites para as ações (WILLIAMS, 1979, p. 91).
Portanto, de acordo com Williams (1979), a sociedade não pode ser vista
como algo inerte, que tem apenas a característica de tolher a ação dos homens, ela
é um processo constitutivo dessas ações, pois se expressa em formações políticas,
econômicas e culturais internalizadas pelas pessoas. Feita a ressignificação do
termo, o autor o liga à sua noção de totalidade: essa determinação – positiva, que
impele a algo ou impulsiona ação – não está em uma área específica da sociedade,
abstraída e isolada, mas no todo do processo social (WILLIAMS, 1979, p. 91).
A internalização de impulsos sociais, expressos em formas culturais, é um
ponto fundamental da discussão, pois é o modo como Williams (1979) soluciona a
questão de como a arte é um fenômeno eminentemente social, uma prática social no
seu dizer, abrindo o caminho para análises das obras de forma coletiva: ao analisar
a arte, estamos analisando toda uma experiência social que é compartilhada pelos
membros grupo.
121
Uma vez redefinido o sentido de determinação, Williams (1979) embarca no
desafio de discutir o termo forças produtivas: quando se evoca essa expressão
dentro do marxismo, ao que se quer remeter? Primeiro, de acordo com o pensador
galês, é necessário atentar para o fato de que o capitalismo é um tipo histórico
particular de produção, isto é, um capítulo de uma história geral da produção, mas o
problema se estabelece porque se utilizam os termos que caracterizam a produção
capitalista para também indicar o que é o processo geral de produção. A discussão
torna-se mais pertinente se atentarmos que Marx, em grande parte de sua obra,
argumentava justamente contra as pretensões de universalidade do modo capitalista
de produção (WILLIAMS, 1979, p. 93).
Como consequência dessa discussão, Raymond Williams tenta definir, do
modo mais geral possível, as forças produtivas, dissociando-as das forças
produtivas capitalistas:
O que é, então, uma “força produtiva”? É qualquer um dos, e todosos meios de produção e reprodução da vida real. Pode ser um tipoparticular de produção agrícola ou industrial, mas esse tipo já é certomodo de cooperação social e a aplicação e desenvolvimento de certocorpo de conhecimento social. A produção dessa cooperação socialespecífica, ou desse conhecimento social específico, é realizadapelas forças produtivas. Em todas as nossas necessidades, nomundo, produzimos não só a satisfação de nossas necessidades,mas também novas necessidades e novas definições dasnecessidades. Fundamentalmente, nesse processo históricohumano, produzimos a nós mesmos e nossas sociedades, sendodentro dessas formas em desenvolvimento e variáveis que a“produção material”, em si mesma variável tanto em modo comoâmbito, é realizada (WILLIAMS, 1979, p. 94).
Williams (1979) sustenta que, se a produção, nas sociedades capitalistas,
indica apenas a produção de mercadorias, então, outros termos, cuja função é
provocar confusão, são utilizados para as outras formas de produção. E conclui:
O que se suprime com mais frequência é a produção material de“política”. Não obstante, qualquer classe dominante dedica uma partesignificativa da produção material ao estabelecimento de uma ordempolítica. A ordem social e política que mantém o mercado capitalista,como as lutas sociais e políticas que o criaram, é necessariamenteuma produção material. Dos castelos, palácios e igrejas até asprisões, oficinas e escolas; das armas de guerra até uma imprensacontrolada: qualquer classe dominante de várias maneiras, massempre materialmente, produz uma ordem social e política. Taisatividades não são nunca superestruturais. São a produção materialnecessária dentro da qual só um modo aparentemente auto-subsistente de produção pode ser realizada (WILLIAMS, 1979, p. 96,grifos do autor).
122
Essa é uma das passagens mais conhecidas de Marxismo e literatura,
possivelmente porque ela indique o que é, ou onde estaria, a materialidade de uma
atividade (a política), comumente realocada para superestrutura e, por conseguinte,
não material. Raymond Williams lidou com críticas a essa passagem em A Política e
as Letras, uma série de entrevistas conduzidas por Perry Anderson, Anthony Barnett
e Francis Mulhern, à época (entre 1977 e 1978) membros do comitê editorial da New
Left Review.
Nessa série, os entrevistadores acusam Williams de criar uma circularidade
na definição dos elementos da ordem social: são todos iguais porque são todos
materiais. Argumentam ainda que existem formas de matéria mais materiais do que
outras, afirmando que fábricas e maquinários são mais necessários à economia
capitalista industrial do que tribunais ou prisões e que armamentos de guerra e
imprensa controlada dependem de um processo industrial primário. A crítica também
se estende à falta de reconhecimento do peso qualitativo de certas atividades, como
a industrial, que, nesse sentido, teria mais força para interromper o pleno
funcionamento da economia capitalista do que outras atividades (WILLIAMS, 2013,
p. 358-361).
Williams (2013) reconhece, sem considerar uma concessão, que existem
formas de produção material que precedem outras: produção de alimentos e
abrigos, por exemplo. Mas a questão está em uma correção histórica: a centralidade
desse tipo de produção é relativa à sociedade descrita por Marx, que atacava
diretamente a dificuldade em satisfazer as necessidades humanas mais básicas no
capitalismo. Nas sociedades avançadas, esse tipo de produção ocupa uma parte
muito menor da economia; e quando se move para além desse âmbito, entram em
uma ordem que é política e cultural (WILLIAMS, 2013, p.359-360).
A explanação de Williams (2013) se torna mais clara quando ele argumenta
que a hierarquia das produções, isto é, a definição de que tipo de produção tem
preferência e mais peso qualitativo, não acontece em uma esfera à parte, onde se
imagina o que é importante para vida, e depois passa à execução, mas ocorre
dentro de uma certa ordem cultural, um espaço de disputa a respeito do que é mais
necessário para uma sociedade. Desse modo, deve-se observar como as
sociedades organizam a sua produção, e, nelas, o que tem mais peso: a título de
exemplo, uma greve no setor de informações e de entretenimento nos EUA tem o
123
poder de provocar um caos social, pois esse setor ocupa uma posição fulcral
naquela ordem social (WILLIAMS, 2013, p. 361-362).
Possivelmente é este trecho da entrevista da New Left Review a qual
Azevedo (2014, p. 182) se refere quando afirma que a formulação tardia de Williams
(a de Marxismo e Literatura) sofreu críticas de circularidade. De acordo com
Azevedo (2014), a acusação é injusta porque não se pode polarizar as posições
marxistas entre o reconhecimento de que diferentes estruturas têm mais peso causal
e a equivalência de eficácia causal, típica dos trabalhos iniciais de Williams.
Isso, por outro lado, também indica a necessidade de sempre relacionar a
teoria de Raymond Williams com a leitura histórica. Entre a formulação de Marxismo
e Literatura e as respostas de A Política e as Letras, o ponto principal foi a correção
histórica: entre aquilo que Marx analisou (sociedade de seu tempo) e o que próprio
Williams tinha em mente quando formulou seus pressupostos (do modo como
expostos em Marxismo e Literatura), o pensador galês dizia insurgir-se contra a ideia
de que a produção industrial é foco da sociedade britânica (WILLIAMS, 2013, p.
361).
Vê-se, desse modo, que Raymond Williams não está centrado na discussão
do que é superestrutural. Dito de outro modo, o interesse dele não é colocar a
cultura na “infraestrutura” da sociedade, mas se pautar pela premissa de que o ser
social determina a consciência, o que coloca as contradições essenciais da
sociedade não mais entre o que uma esfera social prescreve a outra, mas entre as
relações de produção (como vimos, a cultura também ganha o estatuto de força
produtiva) e as relações sociais, as formas de consciência de um tempo (GLASER,
2008, p. 121).
Esse é o recuso utilizado por Raymond Williams para fugir de uma prática
bastante comum no marxismo ao analisar obras de arte: a de comparar, seja o
conteúdo ou seja a forma da obra, a uma realidade social correspondente. Isso
levou muitas vezes ao erro de acusar uma obra de não retratar adequadamente o
mundo social ao qual pertence, não raramente por algum tipo de desvio ideológico –
o que acarretou a criação de um controverso sistema de valor dentro do
materialismo: as obras boas seriam aquelas que conseguiriam retratar fielmente a
sociedade.
Essa postura, de procurar nas obras de arte algo que espelhe o mundo social,
é chamada de teoria do reflexo e, para Raymond Williams, ela foi uma consequência
124
do modelo teórico base e superestrutura. A análise e o julgamento das noções de
reflexo e mediação nascem da discussão central da metáfora base e superestrutura,
porque, para Williams, as primeiras são decorrentes da segunda: conceitos práticos
que se prestaram a operacionalizar os postulados marxistas. Isso levou o pensador
galês a ingressar numa longa jornada de revisão do marxismo.
Para o autor, a teoria do reflexo depende da tendência a se conceber as
esferas sociais (infra e superestrutura) como objetos. Assim, a infraestrutura poderia
ser estudada antecipada e separadamente por meio do conhecimento científico, e
seus reflexos julgados de acordo com um paralelismo, ou não, com a realidade
previamente estabelecida. A teoria do reflexo foi refinada e passou a conceber a
realidade não como objeto, mas como um processo regido por leis. O pensador
galês considera que dessa maneira é uma teoria insatisfatória, pois tende a
objetificar o processo e seus reflexos por meio da adequação a essas leis
(WILLIAMS, 1979, p. 99).
A teoria do reflexo encontrou uma concorrente no marxismo, que não mais
pregava a necessidade de encontrar realidades refletidas na arte, e sim colocar a
ênfase na intersecção entre as diferentes esferas – sociedade e arte, infra e
superestrutura –, a teoria da mediação. A partir dessa perspectiva, o conteúdo
original do mundo social é mediado até encontrar sua expressão em formas
artísticas. Nesse sentido, as realidades sociais estariam projetadas ou disfarçadas
nas obras – acompanhada do conceito de ideologia, esta perspectiva buscou muitas
vezes “desmascarar” o social por trás da arte (WILLIAMS, 1979, p. 101).
Outra versão da teoria da mediação veio com a Escola de Frankfurt, para a
qual as mediações envolvidas não poderiam ser tratadas apenas em termos de
disfarces de uma realidade, pois todas as relações ativas entre os tipos de ser e
consciência são inevitavelmente mediadas. Desse modo, a mediação não estaria em
algum ponto entre a obra e a sociedade, mas no objeto mesmo, dado que ela não é
algo separável das relações, mas, pelo contrário, constituinte desse processo
(WILLIAMS, 1979, p. 101).
A contribuição da Escola de Frankfurt pode ser vista como a primeira grande
mudança, na teoria do reflexo, dentro da tradição marxista. Os pensadores do
125
instituto (não só Adorno8 e Horkheimer9, mas também Marcuse10) consideravam a
cultura como uma esfera relativamente autônoma, embora tenham enfatizado que,
no contexto capitalista avançado, a cultura (dessa vez, cultura de massa ou
comercial) pudesse estar associada à lógica de produção de mercadorias, perdendo,
assim, a capacidade crítica e a autonomia. Contudo, o ponto central aqui é o
reconhecimento da complexa relação dialética da cultura na era burguesa – uma
cultura que ao mesmo tempo nega e afirma o desejo humano de emancipação
(ROBINSON, 1991, p. 71-72).
No entanto, os teóricos de Frankfurt ainda estão presos numa visão dualista
da sociedade, entre cultura e economia. A recorrente separação entre o simbólico e
o econômico perpetua a suposição de que existe uma esfera primária e outra
secundária na sociedade (ROBINSON, 1991, p. 75). É precisamente essa a crítica
de Williams:
É difícil ter certeza do quanto se pode ganhar substituindo a metáforada “mediação” pela metáfora do “reflexo”. De um lado, ela vai alémda passividade da teoria do reflexo; indica alguma forma de processoativo. Por outro lado, em quase todos os casos, perpetua umdualismo básico. A arte não reflete a realidade social, asuperestrutura não reflete a base, diretamente: a cultura é umamediação da sociedade. Mas é praticamente impossível manter ametáfora da “mediação” (Vermittlung) sem certo senso de áreasseparadas e preexistentes, ou ordens de realidade, entre as quais oprocesso de mediação ocorre, quer de maneira independente, querdeterminado pelas suas naturezas anteriores (WILLIAMS, 1979, p.102, grifos do autor).
Sabe-se que Williams (1979) sustenta a inseparabilidade do processo social,
ou das áreas que o compõem, e a materialidade da linguagem e da cultura. As
teorias dualistas tendem a interpretar a produção e a reprodução como se elas se
referissem, respectivamente, ao processo primário da economia e ao processo8 Theodor Adorno (1903 – 1969) foi um filósofo alemão de orientação marxista. Fundou a
chamada Escola de Frankfur ao lado de Horkheimer. Suas maiores contribuiçõespassam pelo debate sobre a sociedade de consumo e pela construção do conceito deindústria cultural.
9 Max Horkheimer (1895 – 1973) foi um filósofo alemão responsável pela fundação daEscola de Frankfurt. Fundamentou a noção de uma teoria crítica, que parte de uma visãototalizante das relações sociais, e se opõe ao ideal científico típico da Modernidade, arazão instrumental.
10 Herbert Marcuse (1898 – 1979) alemão, filósofo e também membro da Escola deFrankfurt. Ganhou notoriedade por aliar marxismo e psicanálise, sustentando que ocapitalismo é responsável pela repressão e domesticação dos impulsos vitais dos sereshumanos.
126
dependente dos símbolos, impedindo, assim, uma visão total da sociedade
(WILLIAMS, 1979, p. 102-103).
Toda esse percurso de revisionismo teórico marxista – também um esforço
para superar a crítica literária leavisiana –, principalmente no que tange à crítica do
modelo base e superestrutura, no conjunto de definições incluído nele e na natureza
da noção de determinação, teve como ponto de partida o encontro o pensamento de
Georg Lukács e Lucien Goldmann, uma versão do marxismo mais facilmente
adaptável aos seus interesses (ALCALÁ, 2010, p. 69). É importante saber, então,
quais as contribuições de Lukács e Goldmann e se e como Williams avança em
relação a elas.
De acordo com Robinson (1991), Lukács se posicionou contra a ortodoxia
dentro do marxismo, além de enfatizar as noções de totalidade e dialética. A
totalidade, concepção tomada de empréstimo de Hegel, busca dar a primazia ao
todo em detrimento das partes, resistindo à abstração da cultura e da economia
como esferas distintas do mundo social. Do ponto de vista das análises, Lukács
argumenta que o conteúdo dos textos deve ser estudado, mas esse conteúdo deve
ser localizado dentro de toda uma gama de experiência social. Assim, os elementos
intrínsecos ao texto (o que o trabalho diz) devem estar integrados aos elementos
extrínsecos (como o trabalho está embutido na realidade social) (ROBINSON, 1991,
p. 75-76).
Para explicar como os elementos intrínsecos e extrínsecos se conectam ao
texto, Lukács constrói a teoria da tipificação: os textos culturais têm sua origem na
experiência, mas os artistas tentam simbolicamente representar os “tipos” ou
“universais” existentes nos fenômenos particulares e reveladores do todo. A teoria da
tipificação sugere que o artista é capaz de criar “tipos” que possuem validade
universal, mas que são historicamente específicos, por meio dos quais os indivíduos
podem perceber o todo ou totalidade social – a boa arte, nesse direcionamento,
apresentaria imagens que integrassem os fenômenos individual e universal em um
estado de unidade e completude (ROBINSON, 1991, p. 76).
Não é difícil perceber o que atraiu Williams para essa perspectiva: tanto a
ênfase na questão da totalidade do processo social quanto o foco na experiência do
artista, ao mesmo tempo individual e social e ponto de partida para ele retirar da
alçada do idealismo a criação artística. No entanto, na visão de Williams, Lukács
ainda parece resguardar o dualismo das teorias do reflexo e da mediação: a visão
127
de que a arte deve representar a totalidade pressupõe a distinção entre uma
realidade sócia e uma forma cultural já conhecida e abstraída. Essa concepção
parece sugerir que o processo social material deve ser analisado como uma
formação estática, o que só pode ser sustentado se as ações humanas e os
processos sociais forem concebidos como objetos (ROBINSON, 1991, p. 77).
São esses os termos da crítica de Williams (1979, p.106): a premissa de que
existe uma realidade reconhecível, a partir da qual se extrai uma tipificação que
posteriormente poderá ser verificada no estudo das obras. Para o pensador galês,
isso ainda retém noções dualistas de análise.
No caso de Goldmann, segundo Robinson (1991), a ênfase também recai em
um forte senso de totalidade social como ponto de partida da análise cultural. O
diferencial da contribuição do sociólogo francês fica por conta da construção de uma
teoria da correspondência (ou da homologia), na qual as obras individuais
simbolizam (ou expressam) a visão de mundo de um determinado grupo social. Essa
visão de mundo constitui o todo da vida social e intelectual de um grupo e nasce da
vida econômica e social desse grupo, fazendo com que elementos aparentemente
desconexos – autor, texto e classe social – sejam vistos de modo unitário, através do
reconhecimento das homologias existentes entre eles. O estruturalismo genético de
Goldman estabelece, desse modo, a correspondência entre ordem social, ideologia
e formas culturais (ROBINSON, 1991, p. 78).
As limitações da teoria de Goldmann residem, primeiro, no fato dele analisar
textos que corroboram sua premissa, ignorando outros que poderiam contradizê-la –
tornando-a, na prática, seletiva. Segundo, na tentativa de traçar a correspondência
entre textos culturais e ordem social, essa ordem cultural é dada em uma forma
estruturada e abstrata, tendendo a ignorar as práticas e processos ativos que
compõem a ordem social. Assim, a teoria de Goldmann depende de uma história
conhecida, estruturas conhecidas e produtos já conhecidos (ROBINSON, 1991, p.
79).
Mesmo reconhecendo que não são exatamente a mesma coisa, Williams
(1979, p.108) aponta que as teorias da correspondência ou da homologia podem ser
variantes sofisticadas da teoria do reflexo, porque um dado fenômeno cultural só
ganha sentido quando é considerado uma forma de um processo ou estrutura social
geral. Portanto, nessa perspectiva, a obra de arte é uma estrutura social
128
formalizada, isto é, arte e estrutura não são processos, mas objetos já acabados e
definidos.
É importante observar, em termos mais precisos, a crítica de Williams (1979):
a teoria da homologia não busca a análise de um “processo imediatamente
observável”; se apoia em um estudo histórico já concluído e em um estudo da
estrutura social, na qual uma forma geral se tornou evidente – a partir disso, casos
específicos dessa forma geral podem ser descobertos (não no conteúdo, mas na
forma) e correlacionados à forma geral (WILLIAMS, 1979, p. 108).
Nesse momento, há um ponto chave da discussão, porque Williams não está
apenas atacando a permanência do dualismo herdado do modelo base e
superestrutura, mas expondo uma de suas preocupações centrais: a necessidade de
focar, não em elementos já acabados e conhecidos, mas em processo imediatos e
palpáveis, isto é, analisar algo que esteja próximo da experiência real das pessoas.
É nesse sentido que deve ser entendida a crítica de que as teorias da
correspondência ou da homologia dependem de uma história, estrutura ou produtos
conhecidos.
Williams (1979), então, expõe a insuficiência dessas teorias para tratar
elementos imediatos e processuais. Para que fazer uma análise de fenômenos já
conhecidos? Apenas para provar a característica social da arte? Não que essa
relação entre arte e sociedade tenha sido sempre autoevidente (tanto o debate geral
no campo de estudos artísticos quanto o debate contextual de Raymond Williams
com o idealismo britânico estavam atravessados por essa questão), mas as teorias
da homologia propõem análises que são, na prática, limitadas: e quando as
evidências históricas e artísticas disponíveis não confirmarem a correlação que é
dada como premissa? Caminha por aqui a crítica à seletividade, porque a tendência
a negligenciar os fenômenos que se negam é grande.
Desse modo, a revisão teórica de Raymond Williams o levou não só a
desconstruir os sentidos arraigados do modelo base e superestrutura, mas também
a mostrar como todas as inovações teóricas subsequentes (teorias do reflexo ou da
mediação, teorias formalistas ou superestruturalistas da correspondência ou da
homologia) não conseguem explicar satisfatoriamente a prática artística
contemporânea. E, nesse ponto, o autor deixa claro por qual caminho vai seguir sua
própria inovação teórica.
129
Para Raymond Williams (1979), a análise dos processos e das relações
sociais envolve muito mais do que a manipulação das formas fixas, isto é, dos
elementos acabados da estrutura social. Ao fazer isso, Williams quer explorar as
áreas ou ignoradas ou subvalorizadas pelas metáforas da totalidade dominantes no
pensamento do século XX, tais como estrutura, código ou sistema. Essas zonas não
exploradas são aquelas preenchidas pelos sentimentos e pela experiência, por
exemplo (RIQUELME; PARDO, 2014, p. 176).
A inovação teórica de Raymond Williams – o conceito de estrutura de
sentimentos – aborda a tendência do pensamento cultural em transformar os fatos
da experiência social em produtos reificados da observação impessoal: aquilo que
ainda estamos vivendo é transformado em uma totalidade já acabada. Desse modo,
o conceito de estrutura de sentimentos visa justamente a uma reconstrução
totalizante e experiencial – isto é, não reificada – dos significados e valores são
vividos como uma realidade histórica particular que os organiza. Além disso, não são
reduzidos a sistemas formalizados de crenças: a distribuição é caracteristicamente
afetiva e manifestada em formas vividas de experiência individual e transindividual
(ALCALÁ, 2010, p. 75). De acordo com as palavras do pensador galês:
Se o social é sempre passado, no sentido de que é sempre formado,temos na verdade de encontrar outros termos para a experiênciainegável do presente: não só o presente temporal, a realização desteinstante, mas o presente específico de ser, o alienavelmente físico,dentro do que podemos realmente discernir e reconhecerinstituições, formações, posições, mas nem sempre como produtosfixos, definidores (WILLIAMS, 1979, p. 130).
Sabe-se que essa ênfase, na experiência e na própria noção de cultura como
uma totalidade, Williams herdou do idealismo britânico, mas como a totalidade de
Eliot era vazia – exatamente porque a ela faltava um sentido de determinação que
pudesse responder como a cultura é organizada e estruturada, como a cultura muda
e qual é o papel da agência nessa mudança –, o pensador galês elabora o conceito
de estrutura de sentimento. Assim, a estrutura de sentimento serve como princípio
organizador do “modo de vida total”. Ela descreve, em um nível muito geral, um
padrão de experiência social tal como vivido (ROBINSON, 1991, p. 81).
O conceito quer captar tudo de firme que o termo estrutura pode sugerir e
todas as áreas delicadas e menos tangíveis que a noção de experiência pode
abarcar, indicando um modo particular de vida como resultado de todos os
elementos da organização social (WILLIAMS, 1961, p. 48), tornando clara a intenção
130
experiencial de designar um modo de vida prático e a noção totalizante, porque
resultou, não de uma, mas de todas as formas de determinação social (econômica,
política, cultural).
Para Robinson (1991, p. 81-82), a estrutura de sentimentos descreve
vagamente as expressões formais e informais do mundo social e material. Essas
expressões são estruturadas no sentido de serem formalmente mantidas e
sistematicamente articuladas – são estruturas de significação. Mas elas também são
ativamente sentidas e vividas. Como consequência, a estrutura de sentimentos se
refere, ao mesmo tempo, à organização formal da cultura e à maneira pela qual ela
é vivida e sentida.
Portanto, pode-se sustentar que a noção de uma estrutura de sentimentos faz
parte da tentativa de Williams (1979) de integrar as tradições idealista e materialista
para análise cultural: do lado idealista, percebe-se a influência na ênfase que ele dá
ao papel que as forças expressivas e os sentimentos têm na definição do significado
de experiência. Aqui, fica clara a herança que Williams tem do Romantismo, com a
celebração do poder expressivo e criativo dos seres humanos. No entanto, qualquer
traço elitista é rapidamente afastado, pois o crítico galês nega qualquer privilégio ao
artista talentoso ao afirmar que a comunicação cultural é representativa de uma
criatividade humana geral e compartilhada. Por fim, Williams ainda argumenta que a
cultura não pode ser entendida isoladamente – ela faz parte de uma ordem material
e social (ROBINSON, 1991, p. 82-83).
Portanto, a formulação de uma estrutura de sentimentos representa uma
tentativa de congregar as noções objetivista e subjetivista de cultura – a cultura, de
uma só vez, expressa e ilumina ideias e pensamentos de sujeitos sociais, mas
também se articula com estruturas sociais objetivas (ROBINSON, 1991). Essa
intenção integrativa já estava presente nas primeiras caracterizações do conceito,
que remetem às obras Preface to Film e The Long Revolution. Nelas, Raymond
Williams já salientava que a experiência de viver no mundo é inseparável de um todo
complexo e é a partir dessa totalidade que o artista cria suas obras.
Nessas obras, o pensador galês estava tentando se contrapor às visões
dominantes que definiam a prática criativa, que se encontravam fundadas nas
oposições sujeito/objeto e arte/realidade. Estas constituíam uma falsa descrição,
dado que a própria atividade humana, da maneira como Williams a tenta definir,
rechaça essa dualidade, porque consciência e realidade fazem parte uma da outra
131
no processo geral de organização de um modo de vida. Assim, o ato de criar
relaciona-se com a totalidade da experiência sensorial com objetivo de ligá-lo à vida
social, e a comunicação humana é um processo total, sem oposições ou dualismos
(RIQUELME; PARDO, 2014, p. 177-179).
No entanto, essas formulações iniciais foram duramente criticadas, inclusive
por colegas seus, a exemplo de E. P. Thompsom, para quem a vertente idealista era
muito mais forte na proposição integrativa de Raymond Williams, notada, sobretudo,
na propensão a definir a cultura como um todo abrangente. Para Thompson,
considerar a cultura como um modo de vida total é ignorar os confrontos e as lutas
entre modos de vida opostos. Nessa perspectiva, Williams não daria conta do fato
de que a cultura é estruturada em relações de dominação e subordinação, e a
estrutura de sentimentos, assim como outras teorias idealistas, encobria essa
questão (ROBINSON, 1991, p. 86).
Essa crítica levou Williams a rever suas formulações iniciais por meio de uma
outra contribuição teórica fundamental: a noção gramsciana de hegemonia, que
abriu o conceito de estrutura de sentimentos para uma dimensão ausente nos
primeiros trabalhos – a de determinação como estabelecimento de limites e o
exercício de pressões, conforme posto em Marxismo e Literatura, o que, por sua
vez, implica um senso de poder constituído (ROBINSON, 1991).
De fato, a vantagem da noção de hegemonia em relação à de totalidade é
que a primeira não ignora a específica intencionalidade de classe de uma formação
social. A ideia de totalidade oferecia o ganho de fundamentar uma explicação sem
prefigurações ou determinismo abstratos, mas corria o risco empobrecer o que o
modelo base e a superestrutura melhor evidenciavam: a intenção social, o caráter de
classe uma dada sociedade (ALCALÁ, 2010, p. 71).
A lógica da hegemonia pressupõe uma totalidade na qual os fatos da
dominação de classe são afirmados não em um senso especializado e abstrato, mas
de uma maneira complexa e multifacetada, até o ponto de constituir o senso comum
da maior parte das pessoas. Na derivação gramsciana, a hegemonia deve ser
diferenciada de domínio, que se refere ao controle político em dada formação social.
A hegemonia indica uma efetiva penetração de classe e uma específica distribuição
de poder através do tecido social, que não é restrito a nenhuma esfera especializada
(ALCALÁ, 2010, p. 72).
132
Assim, de acordo com Williams (1979), o conceito de hegemonia avança em
relação ao de ideologia. Este último indica um sistema relativamente formal e
articulado de significados, valores e crenças, compreendido nos termos de uma
visão de mundo. Mas, para o autor, o que importa não é apenas o sistema
consciente de ideias e crenças, mas todo o processo social vivido, organizado por
significados específicos e dominantes. Para tanto, a ideia de hegemonia parece
atender bem aos propósitos, pois não reduz a consciência ao sistema formal de
significados e valores: na verdade, enxerga as relações de subordinação e
dominação como consciência prática, como resultado da saturação de todo o
processo de vida, não só de atividade social manifesta, mas de toda a gama de
identidade e relações vividas, a tal ponto que as pressões e limites do que, em
última instância, é o sistema político, econômico e cultural, percebido apenas como
pressões e limites da experiência e do bom senso (WILLIAMS, 1979, 112-113).
Assim, o conceito de estrutura de sentimento é uma forma de alcançar esse
nível saturado da vida, na qual se manifesta a consciência prática, que é:
quase sempre diferente da consciência oficial, e isso não é apenasuma questão de liberdade relativa ou controle. A consciência práticaé aquilo que está sendo realmente vivido, e não apenas aquilo queacreditamos estar sendo vivido. Não obstante, a alternativa real asformas fixas recebidas e produzidas não é o silêncio: não a ausência,o inconsciente, que a cultura burguesa mitificou. É um tipo desentimento e pensamento que é realmente social e material, mas emfases embriônicas, antes de se tornar uma troca plenamentearticulada e definida. Suas relações com o que já está articulado edefinido são, então, excepcionalmente complexas (WILLIAMS, 1979,p. 133).
Esse conceito de estrutura de sentimentos, alimentado pela concepção de
hegemonia, se distingue do conceito anterior de “cultura como processo social
completo” ou “cultura como modo de vida total” pela noção de poder nele incluído,
que lhe deu uma orientação particular e um senso histórico claro (ALCALÁ, 2010, p.
72).
Percebe-se também que apropriação de Raymond Williams do conceito de
hegemonia significou um meio de fugir das dificuldades oferecidas pelas teorias do
reflexo, da mediação, tipificação e homologia, que tentaram construir uma ponte sob
o fosso existente entre a base e a superestrutura, mas que continuaram a teorizar a
cultura como uma atividade secundária da produção material e a construir uma
133
dualidade abstrata entre uma realidade social conhecida e um fenômeno em
particular (ROBINSON, 1991, p. 89)
Segundo o próprio Williams (1979, p.133), ao buscar apreender um qualidade
particular da experiência social e das relações sociais, distinta de outras qualidades
sociais, e cujas relações com instituições e formações são abertas, dependendo de
questões históricas específicas, o que se ganha é que as modificações qualitativas
específicas não são consideradas como epifenômenos das instituições, formações e
crenças ou simplesmente evidências secundárias de novas relações econômicas
entre e dentro das classes. Assim, a estrutura de sentimentos pode ser definida
como uma hipótese cultural:
derivada na prática de tentativas de compreender esses elementos esuas ligações, numa geração ou período, e que deve sempreretornar, interativamente, a essa evidência. É inicialmente menossimples do que as hipóteses mais formalmente estruturadas dosocial, mas é mais adequada a gama prática da evidência cultural:historicamente certa, mas ainda mais (e é o que tem maiorimportância) em nosso atual processo cultural. A hipótese temrelevância especial para a arte e literatura, onde o verdadeiroconteúdo social está num número significativo de casos desse tipopresente e afetivo, que não podem ser reduzidos sem perda esistemas de crença, instituições, ou relações gerais explicitas,embora possa incluir todas essas como vividas e experimentadas(WILLIAMS, 1979, p.135).
O motivo pelo qual o conceito tem como objeto privilegiado de estudo a arte e
a literatura é que nelas existem características que ainda não foram formalizadas,
permitindo acesso qualitativo aos padrões de experiência de um certo período. Nas
palavras de Filmer (2009, p. 390), a literatura é o agente de descoberta da
linguagem, e esta, por sua vez, autoriza a literatura tanto a articular a experiência
geral quanto a expressar a particularidade do escrever crítico, autoral e reflexivo.
Desse modo, a manipulação específica da linguagem, na literatura, é o modo como
o escritor reflete sobre a experiência e como ele teste a comunidade social a qual
pertence.
De acordo com Williams (1977), a presença desses elementos não cobertos
por sistemas formais é a verdadeira fonte das categorias especializadas do
“estético”, “das artes” e da “literatura imaginativa” (WILLIAMS, 1977, p. 135), que, no
entanto, devem ser reconectados, por meio de uma compreensão materialista, com
sua dimensão social a partir da experiência, que é sempre social e coletiva.
134
É necessário pontuar que, dentro das questões centrais de Marxismo e
Literatura, estava a necessidade de interrogar, problematizar e revogar, se preciso,
os conceitos de literatura e crítica tal como hegemonicamente constituídos no
discurso especializado. No caso da literatura, os efeitos dela geraram uma área
compartimentalizada de escrita, isolada de correlação com a realidade social. No
caso da crítica, o perigo estava na dissolução das reais condições de produção de
um texto em particular, fazendo com o que o julgamento de um tipo especializado,
chamado literário, seja uma ameaça a qualquer envolvimento com a historicidade da
qual o texto participa (ALCALÁ, 2010, p. 75).
Desse modo, para Raymond Williams, a literatura (e também a arte) é uma
atividade especializada, uma maneira muito peculiar de divisão do trabalho na
sociedade burguesa, normalmente voltada para a produção de mercadorias. A
literatura tem, portanto, um lócus histórico. Paralelamente a essa divisão,
desenvolveu-se a atividade crítica, que, ao focar no texto e nas características
particulares dele, tende justamente a negar a dimensão social que eles possuem –
como uma tentativa de diferenciá-lo do mundo ordinário das mercadorias.
Um dado importante de ser trazido para a discussão é que, mesmo que a
noção de estrutura de sentimentos seja voltada para a arte e literatura, nem toda
arte se vincula à estrutura de sentimentos do seu tempo. A maior parte da produção
artística de um período se relaciona com formações sociais já manifestas, que, para
o pensador galês, podem ser dominantes ou residuais. A estrutura de sentimentos
está correlacionada às formações emergentes (WILLIAMS, 1977, p. 138).
Nessa altura, faz-se necessário esclarecer o que é o dominante, o residual e
o emergente e qual a importância deles para discussão proposta. Grande parte da
contribuição teórica de Raymond Williams passa pela feitura desses conceitos.
Também reside um capítulo importante do debate com Gramsci, pois Williams põe a
serviço do seu interesse (superar os dualismos) o conceito de hegemonia, mas
também o torna flexível para as relações de dominação em uma sociedade.
Para o pensador galês, em qualquer sociedade e em qualquer período, existe
um sistema central de práticas e valores que se pode chamar de dominante e eficaz.
Esses significados e valores não são meramente abstratos, mas são organizados e
vividos – e é por isso que a hegemonia não pode ser vista apenas como mera
opinião e manipulação: define-se, de fato, como um conjunto de práticas e
135
expectativas. Mas a hegemonia não é algo inerte: ao contrário, suas estruturas
internas são muito complexas e devem ser renovadas, recriadas e defendidas a todo
momento. Por esse mesmo motivo, podem ser constantemente desafiadas e, em
alguns aspectos, modificadas. Ou seja, o processo da cultura dominante está
continuamente se adaptando (WILLIAMS, 2011b, p. 52-54).
O residual, por sua vez, abarca um conjunto de experiências, significados e
valores que não podem ser verificados no presente, isto é, foram formados no
passados, e não podem ser expressos nos termos da cultura dominante – são, por
isso, vividos e praticados como resíduos de formações sociais anteriores. Já o
emergente engloba os novos significados e valores, as novas práticas, novos
sentidos e experiências que estão sendo continuamente recriados (WILLIAMS,
2011b), sinalizando, portanto, o surgimento de uma nova realidade social e/ou uma
nova fase da cultura dominante (ALCALÁ, 2010, p. 73).
Entende-se, assim, que as estruturas de sentimentos são voltadas para
captar os valores e significados emergentes em uma sociedade, que, segundo
Williams (1977, p. 138), são experiências sociais em solução, isto é, dispersas,
pouco ou nada sistematizadas, no tecido social. É nesse sentido que Cevasco
(2001) aponta que o conceito busca captar a emergência do novo:
A estrutura de sentimento é então uma resposta a mudançasdeterminadas na organização social, é a articulação do emergente,do que escapa à força acachapante da hegemonia, que certamentetrabalha sobre o emergente nos processos de incorporação, atravésdos quais transforma muitas de suas articulações para manter acentralidade de sua dominação (CEVASCO, 2001, p. 157-158).
Essa atenção ao emergente e ao novo torna Raymond Williams comumente
classificado como um autor que construiu um aparato teórico voltado para a análise
dos processos de mudança social. As estruturas de sentimento, assim, “são geradas
através da interação imaginativa e das práticas culturais e sociais de produção e
resposta – que são, em essência, práticas sociais de comunicação reflexiva de
experiência que estão na raiz da estabilidade e da mudança das sociedades
humanas” (FILMER, 2009, p. 373).
Toda a empreitada teórica de Raymond Williams, o esforço em criticar e fazer
dialogar a tradição idealista e a corrente materialista, pode ser sintetizada no termo
materialismo cultural, que tem como maior força a reivindicação da materialidade da
cultura, pensada como prática, se não equivalente em termos causais históricos,
136
pelo menos igualmente produtora (de significados), e inter-relacionada com outras
atividades sociais.
Ora, se o postulado da materialidade faz com que a cultura não possa mais
ser concebida em termos de reflexo ou expressão de fatores sociais mais básicos e
que os processos de significação sejam realizados por si, por meio da materialidade
da linguagem, observa-se, aqui, um importante avanço teórico: o pensamento de
Williams está esvaziado de qualquer sentido de mediação ou formalização.
Isso implica em dizer que Raymond Williams atenua “a ênfase dada à
cristalização formal propriamente dita […], o que mais lhe interessa é a intensidade
com que as relações sociais, as convenções, etc., são trabalhadas” (GLASER, 2010,
p. 171). Ou seja, é de menor importância, para Williams, como fatores sociais são
transpostos para a dimensão estética – sua teoria não buscar explicar como o social
é filtrado até alcançar a categoria de elemento formal. Não só porque isso mantém o
dualismo, mas porque responde pouco sobre os processos de dominação, aquilo
que o autor galês só conseguiu reestabelecer no final da carreira intelectual.
Portanto, ele prefere focar como a arte materializa certas relações sociais de
dominação e subordinação de um dado contexto histórico.
Esse fator é de profunda importância, pois inaugura um novo momento para a
sociologia da literatura: retira a necessidade de, através da análise materialista,
tentar provar ao outro polo da discussão, as correntes idealistas, como, quando e
em que medida a obra simboliza o social. Essa questão Williams resolve antes, no
momento no qual recupera os termos da proposição de que o ser social determina a
consciência: todo o processo de formação de consciência é eminentemente
fundamentado na práxis humana – o maior exemplo disso é a linguagem. Isso faz
com que, por necessidade, qualquer definição da experiência humana tenha de
englobar também a dimensão social. Assim, a criação artística e a produção cultural
são, desde a origem, atos humanos e sociais.
Dessa forma, o pensamento de Williams representa, assim, um novo
momento das teorias sociais sobre arte, pois extrapola o campo da crítica e se
espraia para diversas outras áreas, como a comunicação e a linguística. Do ponto
de vista das análises cultural e artística, o materialismo cultural pode ser definido
como uma sociologia da cultura, tal como pensada por ele próprio.
137
5 O EXERCÍCIO ANALÍTICO
Neste capítulo, discute-se como Antonio Candido e Raymond Williams
analisam obras literárias. O objetivo é refazer o percurso crítico, expresso em obras
seminais de ambos os autores, para trazer à luz o modo como a literatura e o mundo
social são discutidos.
5.1 As análises de Antonio Candido
Em Literatura e Sociedade, Candido (2006) sustentou que a análise literária
deve se focar na lógica da organização formal do texto, que tem primazia sobre
outras partes e outras influências extratextuais. O analista deve passar a investigar
qual o elemento (social, histórico, psicológico) principal dessa lógica interna,
estabelecendo uma dialética que, nas suas palavras, vai do texto ao contexto e vice-
versa. Essa dialética pressupõe a existência de elementos mediadores entre a obra
e o meio social e é isso que o analista deve destrinchar – como a arte foi capaz de
filtrar o externo para transformá-lo em interno.
Uma vez expostas as bases teóricas que orientam a atividade crítica de
Candido (2006), conforme o capítulo anterior, faz-se necessário investigar como o
autor mobiliza o seu método para estudar obras e autores específicos, isto é, como
se processa sua análise. Nesse sentido, serão úteis aos propósitos deste trabalho
os estudos realizados pelo autor durante a década de 1970, um dos pontos altos da
sua liderança no departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da
Universidade de São Paulo.
No período de 1958 a 1960, Antonio Candido atuou como docente no curso
de Letras, na Faculdade de Assis, no interior de São Paulo. Algumas vezes
negligenciada em sua importância, a passagem pela Faculdade de Assis ajudou
Candido a sedimentar sua identidade como professor e pesquisador do campo das
Letras, propiciou a maturação do seu projeto crítico e legou a ele a plataforma de
ensino que mais à frente iria implementar na USP (RAMASSOTE, 2010a, p. 106).
Em 1959, quando estava lecionando em Assis, Antonio Candido e outro grupo
de professores propuseram a criação da disciplina Teoria Literária para integrar o
currículo do curso de Letras da Universidade de São Paulo, o que acabou
138
ocorrendo. Do ponto de vista geral, pode-se entender a criação dessa disciplina
como uma maneira de alocar institucionalmente Candido no curso de Letras da USP,
pois ele não podia atuar em outras “cátedras”, porque elas já estavam
completamente preenchidas (RAMASSOTE, 2006, p. 55)
Ao assumir a direção do curso, Antonio Candido imediatamente mudou o seu
nome para Teoria Literária e Literatura Comparada, por considerá-lo mais adequado
aos parâmetros que queria implantar. O período que vai de 1961 a 1965 pode ser
considerado um período de formação, no qual Candido assenta as bases do curso e
organiza as disciplinas e seus conteúdos, fortemente influenciado pela experiência
em Assis (RAMASSOTE, 2006, p. 55-56).
Depois de passar um período de dois anos fora do país, Candido retorna ao
país em 1965 e inicia a pós-graduação do curso de Teoria Literária e Literatura
Comparada (TLLC). As transformações operadas, nessa época, marcam a
consolidação dessa área de estudos, que, a partir de então, ganha suas
características mais importantes e que se conservarão pelos anos seguintes
(RAMASSOTE, 2006, p. 73).
Em 1968, devido ao aumento da perseguição operada pelo regime militar,
Antonio Candido resolveu ir para fora do Brasil outra vez. Estabeleceu-se nos
Estados Unidos, onde lecionou, na Universidade de Yale, um curso sobre o romance
naturalista. Ao retornar, retomou suas atividades na USP e ministrou um curso sobre
a política em Ricardo III, de Shakespeare – o tema se distancia um pouco das suas
preocupações, mas insere-se dentro da efervescência política do regime militar
(RAMASSOTE, 2006, p. 75).
Em 1968 foram deflagradas algumas mudanças no ensino superior, que
extinguiram o sistema de cátedras e redefiniram a estrutura organizacional da
universidade, que, desde então, reformulou-se em torno da reitoria e dos respectivos
departamentos e coordenações de curso. Com isso, a pós-graduação passou a
funcionar através do sistema de créditos, com disciplinas de duração semestral.
Essa reforma está no bojo do recrudescimento da vigilância no regime militar
brasileiro (1964 – 1985), que perseguiu e censurou opositores, e teve como um dos
objetivos centrais o maior controle na escolha dos dirigentes universitários, o que
reduziu, juntamente com a unidade de gestão financeira, a autonomia das
universidades.
139
Essas transformações trazidas pela reforma no ensino superior possibilitaram
o aumento do corpo docente da área. Novos profissionais, como Alexandre Barbosa
e Teresa Pires Vara, foram contratados. Esses pesquisadores eram orientandos de
Antonio Candido e tinham o aval dele para assumir os encargos dos cursos de
graduação e pós-graduação (RAMASSOTE, 2006, p. 78). Esse movimento se
ampliou e se concretizou na década de 1970, marcada pelo advento de uma nova
leva de professores de renome, como Marlyse Meyer, João Luiz Lafetá e Ligia
Chiappini. Esses docentes (e outros) deram um novo vigor ao departamento de
TLLC, o que proporcionou maior visibilidade à área e conferiu projeção intelectual
aos seus líderes.
Muitos dos cursos da grande área das ciências humanas da USP foram
atacados com cassações e aposentadorias compulsórias. Isso, no entanto, não se
passou com o departamento de TLLC. O único nome do corpo docente afetado foi
Roberto Schwarz, que, embora não tenha perdido o cargo, preferiu se exilar na
França, com receio da perseguição política da ditadura militar (RAMASSOTE, 2006,
p. 81). Dessa forma, o prestígio de Antonio Candido, a visibilidade alcançada pela
área de TLLC dentro da USP e a origem social de seus membros (a maioria das
classes médias paulistanas) explicam, em parte, porque o departamento foi menos
atingido pela perseguição política do regime militar.
Durante esse último período (a década de 1970), Antonio Candido realizou
dois de seus mais renomados ensaios, dedicados a analisar algumas obras-chave
da literatura brasileira. O primeiro deles é Dialética da Malandragem11, que se
debruça sobre o romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio
de Almeida; o segundo, intitulado De Cortiço a Cortiço, analisa o livro O Cortiço, de
Aluísio de Azevedo12.
Esses ensaios, junto com outros de mesmo teor, foram reunidos em um
mesmo volume pela primeira vez apenas em 1993, no livro O Discurso e a Cidade
11 Publicado exatamente no ano de 1970, no nº 8 da Revista do Instituto de EstudosBrasileiros.12 Esse estudo foi finalizado em 1973, mas algumas de suas partes foram utilizadas em doisoutros trabalhos: "Literatura-Sociologia: A análise de O Cortiço de Aluízio Azevedo", Práticade Interpretação Textual, Série Letras e Artes, Caderno nº 28, Pontifícia UniversidadeCatólica do Rio de Janeiro, 1976; e "A Passagem do Dois ao Três (Contribuição para oestudo das mediações na análise literária)", Revista de História, n° 100, São Paulo, 1974(data correspondente à seriação em atraso; na verdade, 1976). A versão final, tal como aconhecemos, só foi publicada em 1991, pela revista Novos Estudos, do CEBRAP (CentroBrasileiro de Análise e Planejamento).
140
(1993). Essa obra é de suma importância, porque o programa delineado em
Formação da Literatura Brasileira (2006) e trabalhado de modo mais contido nos
principais ensaios de Literatura e Sociedade (1995), encontra aqui sua realização
máxima, cujo destaque para a ideia de “crítica integradora” se encontra logo no
prefácio do livro e, posteriormente, diluída em suas análises (WAIZBORT, 2007, p.
91).
A seção do livro na qual foram situados os dois referidos ensaios é homônima
ao título da obra e reúne, não por acaso, um livro realista e outros três naturalistas –
todos, portanto, dedicados, de algum modo, a reproduzir a realidade. A ideia de
aglutinar em uma só parte os textos com lastro social e histórico mais nítido e com
uma clara intenção realista faz parte da estratégia de Antonio Candido. Como o seu
objetivo é salientar a autonomia estética da obra em detrimento do mundo histórico-
social, a seleção de livros realistas vai lhe servir para mostrar que o valor da obra
reside mais no modo que ela organiza os diferentes elementos de maneira lógica e
menos na proximidade com o meio social.
Dessa forma, atravessando o seu interesse de demarcar a fronteira rígida que
separa a autonomia da obra e as influências histórico-sociais, mas sempre
investigando obras que tem um claro cunho social, as análises realizadas em O
Discurso e a Cidade (principalmente as duas aqui indicadas) estão marcadas pela
necessidade de mostrar quando e como a obra literária se constitui a partir de
materiais extraliterários.
Fonte: Candido (2010)
Figura 5 – Capa do livro O discurso e a cidade
141
5.1.1 Do contexto para o texto: como as obras incorporam elementos sociais em Dialética da Malandragem e em De Cortiço a Cortiço
Antes de iniciar suas próprias considerações sobre as Memórias de um
Sargento de Milícias, Antonio Candido precisava dialogar, mesmo que minimamente,
com a fortuna crítica existente sobre a obra. Era necessário identificar as
classificações que já envolviam o romance de Manuel Antônio de Almeida e, no
mesmo passo, apontar suas insuficiências. Só a partir disso, passa a apresentar e
argumentar em prol de sua própria perspectiva.
Logo no início do ensaio Dialética da Malandragem, Candido (2010) discute
as contribuições de José Veríssimo, Mário de Andrade e Darcy Damasceno a
respeito da obra de Almeida. O pensador uspiano ataca basicamente dois pontos: a
caracterização do livro como romance de costumes e a designação de Leonardo,
personagem central da trama, como anti-herói pícaro. Sobre esses dois pontos (o
primeiro mais ligado à questão da influência social e o segundo alinhado às
influências estéticas) se erguerá a crítica de Candido.
Vejamos como isso se processa. Sobre a influência picaresca, Antonio
Candido aponta algumas diferenças: como o fato de o romance brasileiro ser
narrado em terceira pessoa – ao passo que os romances pícaros o são em primeira
pessoa – e a constatação de que o herói brasileiro é um personagem entre outros e
não o instituidor do mundo fictício. Além disso, Leonardo (o personagem principal da
obra de Almeida) não tem uma origem humilde, o que acarreta diferenças decisivas:
ele não precisa lutar pela sua sobrevivência e nem viver ao acaso, como é comum
aos personagens pícaros (CANDIDO, 2010, p. 19-21).
Ainda é importante salientar, segundo o autor, que, nos romances pícaros,
domina o senso do espaço físico e social, pois a ambientação acompanha a
peregrinação do personagem central, que atravessa vários lugares e camadas
sociais, ao passo que, nesse sentido, o livro de Manuel Antônio de Almeida é mais
“fixo”, tanto em termos de localidade espacial quanto de estrato social (CANDIDO,
2010, p. 21).
Depois de afastar a semelhança com o romance pícaro, Antonio Candido
pôde realizar a sua própria classificação: Leonardo seria o primeiro grande malandro
do romance brasileiro, oriundo de uma tradição em certa medida folclórica,
correspondente ao clima cômico e popular da época. À semelhança do pícaro, o
malandro também seria um exemplar do aventureiro comum às histórias folclóricas,
142
com a diferença de que predomina uma certa gratuidade do truque e da trapaça,
característica dos personagens astuciosos das histórias populares (CANDIDO, 2010,
p. 22-23).
Essa releitura da influência estética – embora não seja o ponto alto do ensaio
– não tem nada de gratuita. Pelo contrário: faz parte do projeto intelectual maior de
Antonio Candido forjar a existência de uma tradição literária brasileira. Se sabe que
esse era um interesse recorrente de Candido (2013), que atravessa, por exemplo,
sua obra seminal Formação da Literatura Brasileira, na qual sustenta que, no Brasil,
houve uma paulatina rotinização de autores e obras até se constituir o que ele
chamou de sistema literário. Dessa maneira, ao classificar Leonardo como
malandro, Antonio Candido busca construir o que seria o ponto inicial de uma
tradição literária propriamente brasileira.
Sobre a questão de Memórias serem um romance de costumes, retrato do
Rio de Janeiro da época, Antonio Candido afirma que uma consideração dessa
natureza só pode ser sustentada se for provado que o livro reflete o período joanino
no Brasil e, principalmente e na esteira de seu método analítico, que ele deve a esse
fator externo “sua característica e seu valor” (CANDIDO, 2010, p. 27).
Essa passagem, aparentemente despretensiosa, deixa entrever bastante da
atividade crítica de Antonio Candido e do modo como ele aprecia os elementos
sociais. A ideia básica é a de que a classificação do romance depende do tipo de
influência que o elemento social exerce (nesse caso, a designação genérica de
“costumes”). E que tipo de influência seria essa? Aquele que concorre para a
qualidade artística da obra.
Expressa como está, essa noção deixa entrever o seguinte: pode-se até
interpretar o livro como romance documentário, mas se o fator social em foco não
está atuando diretamente para a realização do valor estético (que é interno e
autônomo), deve ser preterido na análise. Ou seja, não importa, para análise de
Candido, qualquer influência externa geral que atuou limitando ou direcionando o
trabalho artístico, só aquela absorvida internamente pela obra.
Esse é o lastro para leitura crítica de Antonio Candido sobre Memórias.
Assim, o autor não nega que a obra de Manuel Antônio de Almeida passa ao leitor a
impressão do Rio de Janeiro do início do século XIX, mas sustenta que essa
impressão se deve menos a elementos sociais dispersos no romance e mais ao
modo como ele organiza esses e outros tantos elementos. Na tentativa de fugir do
143
que considerava um sociologismo reducionista, Candido se afasta dos processos
sociais que possam ter influenciado desde longe a obra (isto é, daqueles processos
que, por mais que tenham atuado, não se transformaram em material estético
visível) e adensa uma leitura internalista, que quer apenas mostrar como a obra
filtrou algo externo a ela.
Vejamos como isso se constrói. Antonio Candido começa por pontuar o que,
na obra, se distancia da realidade. Em primeiro lugar, a obra seria restrita do ponto
de vista espacial: a ação se desenvolve nas áreas centrais do Rio de Janeiro e
raramente foge disso. Em segundo, o estrato social dos personagens seria restrito
ao das pessoas livres, o que se poderia chamar de pequena burguesia. Não há a
presença nem de reis ou de pessoas do seu séquito e nem, na outra ponta, outro
segmento muito importante, o dos escravos. Por tudo isso, a obra não pode ser tida
como documento de época (CANDIDO, 2010, p. 27-28).
Se o conteúdo histórico-social presente na obra não é forte o suficiente para
que ela seja classificada como documento de época (lembre-se: o diálogo de
Antonio Candido é com uma tradição de análise que toma a obra como um reflexo
da realidade; é dela que Antonio Candido quer se diferenciar), de onde vem a
sensação de que a obra, ainda assim, transmite o ambiente do Rio de Janeiro do
início do século XX?
Desse modo, o conceito que o pensador uspiano elabora para isolar e
enfatizar a autonomia da obra literária na conjunção dos elementos sociais é o da
formalização ou redução estrutural dos dados externos (CANDIDO, 2010, p. 28).
Como que para alertar o seu leitor sobre o que o espera, Candido (2010, p.9) já
tinha anunciado o conceito de redução estrutural na introdução do livro, que, àquela
altura, foi definido genericamente como o processo de transformar a realidade do
mundo em componente da estrutura literária.Em outro momento, quando discutia a
influência picaresca, Candido (2010, p.25) havia também utilizado a expressão
reduzir, sugerindo que os personagens, tipos e situações que moveram a história –
ainda que baseados em relatos orais – foram, por necessidade, generalizados, se
distanciando do elemento imediato.
Entretanto, apenas nesse ponto do ensaio (quando discute o mode da
influência histórica e social sobre as Memórias), a intenção do autor se torna mais
clara: a armadura conceitual da redução é, em última instância, um mecanismo para
enfatizar o processo de criação e feitura da obra por parte do escritor.
144
Assim, Antonio Candido identifica alguns níveis no estudo de Memórias: em
primeiro, os fatos narrados, envolvendo os personagens; em segundo, os hábitos e
costumes descritos; e, por fim, os juízos feitos pelo narrador e por outros
personagens. Para o autor, esses elementos só ganham força quando o escritor os
organiza satisfatoriamente. Desse modo, o exemplo da capoeira é significativo não
porque é um costume da época, mas porque se tornou, por meio do trabalho do
escritor, parte constitutiva da ação do romance. Ocorre, dessa maneira, o que ele
entende por sentimento de realidade (CANDIDO, 2010, p. 28-30).
Portanto, na visão de Antonio Candido, o sentimento de realidade
proporcionado pelo romance não vem diretamente do conteúdo histórico-social do
Rio de Janeiro joanino, mas de uma intuição do destino das pessoas nessa
sociedade, de modo que o real só adquire vigor quando entrelaçado aos atos dos
personagens e às situações. Esse é o primeiro estrato universalizante do livro, no
qual se localizam arquétipos válidos para um amplo ciclo de cultura. O segundo
estrato universalizador é mais restrito: forma o sistema de referência do livro, se
revela nas relações humanas trabalhadas e pode ser definido como a dialética da
ordem e da desordem (CANDIDO, 2010, p. 31).
Pode-se afirmar que Antonio Candido considera essa camada inferior como a
mais importante para compreender a força estética do livro, porque ela é
responsável por estruturar a obra. Em suma, a dialética da ordem e da desordem
não é um dado social ou externo. Ela é o próprio processo de redução estrutural ou
formalização estética e, portanto, atua decisivamente na organização interna da
obra.
Esse, então, é o ponto central do ensaio. É possível notar que Antonio
Candido flutua entre as concepções sobre Memórias, ora negando-as de fato, ora
relativizando sua força explicativa, para, enfim, culminar nesta ideia. A dialética da
ordem e da desordem deve ser vista menos como um dado social factual e mais
como um critério de subordinação dos informes presentes no livro; precisa ser
reconhecida e tratada como um filtro do que vai da sociedade para a obra, ou,
parafraseando o próprio pensador uspiano, do que vai do contexto para o texto.
Antonio Candido (Id, p. 39) é excessivamente didático ao explicar a dialética
da ordem e da desordem, chegando ao ponto de usar uma figura para esclarecer
sua argumentação.
Figura 6 - Esquema da dialética da ordem e da desordem
145
De acordo com Candido (2010), OD é a dialética da ordem e da desordem.
AB é plano do mundo real e AB’ é o plano fictício. OD é o princípio de generalização:
organiza os elementos de AB (mundo histórico social) para que tenham organicidade
em AB’ (o universo ficcional).
Ora, se bem analisado, essa explicação revela o caráter da proposta
metodológica de Antonio Candido, que se encerra numa espécie de teoria da
mediação. O pensador da USP anunciou conceitualmente que busca enxergar como
os fatos sociais ou externos se transmudam em internos, por intermédio do conceito
de redução estrutural. Analiticamente, essa transmutação é orientada pelo princípio
de generalização nomeado de dialética da ordem e da desordem. Assim, é possível
construir um outro quadro explicativo, que ajude entender e a interpretar melhor o
esquema visual proposto por Candido (2010):
Fonte: Candido (2010).
Figura 7 - Esquema conceitual: teoria da mediação de Antonio Candido
146
Temos, aqui, o mundo social, no qual se localizam todos os dados externos.
Não só diferenciados em dados sociais, psicológicos, etc. (conforme a discussão em
Literatura e Sociedade, Candido faz essa distinção), mas também em termos de
dados externos com influência geral e dados externos capazes de atuar
internamente, isto é, com repercussão interna diretamente visível.
Desse modo, o princípio de generalização conduz o processo de redução
estrutural que, por sua vez, media a relação do mundo social com o universo
ficcional, lugar da autonomia estética. Uma vez concluído o processo de
formalização, observam-se os dados internalizados, aqueles constituintes da parte
interna da obra. O exercício de Candido, assim, é, por consequência, orientar uma
leitura de Memórias capaz de comprovar isso.
O autor, então, constata, no plano do livro, uma ordem comunicando-se com
uma desordem, correspondente à relação entre ordem e desordem na sociedade
brasileira do século XIX. A respeito disso, o autor nota que há uma linha central,
formada pelo personagem Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, abaixo da qual está o
ilícito e acima o lícito. Além disso, conclui que há, no plano da obra, um hemisfério
da ordem e um hemisfério da desordem, funcionando como polos de atração para
Leonardo; a narrativa se desenvolve ora pendendo para um lado, ora para outro, e
se encerra com Leonardo sendo absolvido pela primeira esfera (CANDIDO, 2010, p.
32).
Isso também poderia ser verificado na estrutura da obra, pois, quando
eliminou os escravos, Manuel Antônio de Almeida também teria eliminado o trabalho;
e quando excluiu as classes dirigentes também teria subtraído hierarquias de mando
(CANDIDO, 2010, p. 39); de modo que a sensação é a de um mundo desoprimido,
onde não existe subordinação hierárquica nem necessidade de trabalho. Isso daria
ao livro o seu caráter especial: a inexistência de julgamentos morais, a aceitação
dos homens e das coisas tais como são, o que acaba por resultar em certa
equivalência entre a ordem e a desordem – entre o bem e o mal, por assim dizer
(CANDIDO, 2010, p. 34).
Fonte: do autor.
147
Assim, Antonio Candido (2010) pôde concluir que a impressão de realidade
que o romance passa ou sua classificação como romance social são oriundos não
do conteúdo histórico social, mas do modo pelo qual esse conteúdo está organizado
na organizado na obra. Também pôde, desse modo, postular a autonomia da obra: o
universo ficcional de Memórias, embora pressuponha o elemento externo localizado
pelo autor, não depende dele, sendo oriundo mais dos elementos mediadores – que
são, por sua vez, ocultos.
Outro ensaio no qual Antonio Candido põe em prática seu método de análise
literária é intitulado De Cortiço a Cortiço, no qual o romance O Cortiço, de Aluísio de
Azevedo, aparece como foco central da discussão. Mais uma vez veremos os
princípios norteadores da sua crítica, embora perceba-se, desde já, uma distinção
com a análises de Memórias, já que estas não tinham um correlato direto nas letras
europeias.
Perseguindo o problema da “filiação de textos e de fidelidade a contextos”
(CANDIDO, 2010, p. 107), o pensador uspiano a focaliza a relação do romance de
Aluísio de Azevedo com o livro L’Assomoir, de Émile Zola. Antonio Candido (2010)
tenta alcançar uma postura distante tanto da noção de que uma obra é formada
principalmente pela influência de outras obras quanto da ideia tipicamente
naturalista de que o texto é uma cópia direta da realidade. A questão é sopesar tanto
a herança estética quanto as influências sociais.
De modo semelhante ao ensaio Dialética da Malandragem, Candido
reestabelece o que seria o princípio da generalização, responsável por filtrar e
organizar os elementos sociais na obra literária. Este seria um ditado popular
corrente no Rio de Janeiro do fim século XIX, conhecido como a língua do pê: “Para
português, negro e burro, três pês: pão para comer, pano para vestir, pau para
trabalhar”.
Um dos movimentos mais importantes do ensaio é a localização desse ditado
popular e sua posterior restauração como categoria explicativa. Antonio Candido
(2010) utiliza o dito para adentrar o complexo de relações do Brasil do século XIX e
como forma também de elucidar o romance.
De acordo com Antonio Candido, o que resulta desse adágio é uma
equiparação dos três elementos (português, negro e burro), o que consagra, no
plano sonoro, a confusão econômica e social visada pelo enunciado. Como
consequência, aquilo que é próprio aos homens se prolonga aos animais e o que é
148
inerente a estes também se aplica aos primeiros – pano para o burro e para o
homem, pão para o homem e também para o burro, e assim por diante (CANDIDO,
2010, p. 112).
Na visão do autor, a operação do dito não consiste em um nivelamento
positivo do animal ao homem, mas de uma pejorativa equiparação do homem ao
animal, na qual o homem não é tomado em sua completude, mas apenas enquanto
trabalhador. Candido (2010, p.112) conclui, então, que a confusão levada a cabo
pelo ditado não é “ontológica, mas sociológica”, porque objetiva assentar uma
relação de trabalho na qual o homem pode ser confundido com o animal e tratado
desse modo.
Ainda de acordo com o pensador uspiano, essa máxima serve como chave
para adentrar as relações humanas da obra de Aluísio de Azevedo, não apenas pelo
sentido sociológico nele encerrado, mas também porque contempla uma ilusão do
brasileiro livre da época, que é o seu emissor e que no enfoque do romance se
manifesta ora com lucidez ora com ofuscação (CANDIDO, 2010, p. 112).
O brasileiro livre da época seria um tipo “com tendência mais ou menos
acentuado para o ócio, favorecido pelo regime de escravidão” e, por causa disso,
enxergava o trabalho manual como ultrajante. O português seria alvo do dito raivoso
por trabalhar muito e, por isso, poderia ser igualado ao escravo e ao burro, mas
também porque o trabalho era uma forma de ascensão social. Tanto que João
Romão, figura central da narrativa e dono do cortiço, que ascende socialmente
através do ascetismo e de formas duras de exploração, encarna, na visão do
romancista, a detestável exploração do nacional pelo estrangeiro – percebida pela
inexistência, no plano do livro, do sentimento de injustiça social e de exploração de
classe e pela forte presença do nacionalismo e da xenofobia (CANDIDO, 2010, p.
113-114).
O que está por trás do dito é uma “gíria ideológica de classe”, de gente
“cônscia de ser branca, brasileira e livre” e que tem como objetivo central bradar de
modo estridente os “débeis privilégios” angariados numa nação em que as posições
ainda eram recentes e relativas e, ao mesmo tempo, se diferenciar tanto do negro
escravo quanto do branco português (CANDIDO, 2010, p. 115).
O desenvolvimento dessa máxima, no plano do livro, atenta para que, na
verdade, “o português não é português, o negro não é negro e o burro não é burro”;
a tríade se revela na noção de que o primeiro é o explorador capitalista, o segundo é
149
o trabalhador reduzido a escravo e o terceiro é o homem rebaixado ao nível do
animal (CANDIDO, 2010, p. 116).
O dito dos pês, que dá a feição de cunho social ao livro, é animado por uma
dinâmica particular de desenvolvimento da narrativa. Antonio Candido nota que, se o
cortiço francês de L’Assommoir é vertical e apartado da natureza, o brasileiro é
horizontal e convive com bichos e árvores, com a natureza, enfim. Isso leva Aluísio
de Azevedo a tratá-lo como realidade orgânica e um tipo de continuação do mundo
natural (CANDIDO, 2010, p. 116-117).
Mas o desenvolvimento do cortiço vai sendo paulatinamente controlado, na
proporção em que aumenta a sede do lucro de João Romão, agindo, no universo do
livro, como força racional. Dito de outro modo, é como se o cortiço, inicialmente,
fosse governado pelas leis natural e biológica, mas a ação de João Romão vai aos
poucos podando esse movimento espontâneo e pondo em seu lugar um padrão
mais mecânico de crescimento (CANDIDO, 2010, p. 117).
Os dois movimentos estão sempre presentes na obra, mas a narrativa
caminha lentamente do primeiro para o segundo, sugerindo que a atuação
capitalista paulatinamente abarca e conduz a dinâmica das relações locais. Desse
modo, Candido (2010, p.117) conclui que a obra é governada por uma dialética do
espontâneo e do dirigido, que sintetizaria o movimento do desenvolvimento natural
para o racional.
Para Candido (2010), isso fica claro após um incêndio acometer o cortiço e
ele ser reconstruído por João Romão com mais espaço para as casas e com um
maior alinhamento, além do estabelecimento de horário para entrar e sair. No plano
da obra, percebe-se que o novo cortiço é descrito por uma imagem mecânica, ao
passo que o primeiro era trabalhado com imagens orgânicas. A passagem do
espontâneo ao dirigido revela, desse modo, o processo de acumulação capitalista,
que disciplina à medida que se autodisciplina, enquanto o sistema metafórico passa
do orgânico da natureza para o mecânico do mundo urbano (CANDIDO, 2010, p.
117-118).
São muitas as semelhanças com Dialética da Malandragem, desde a
localização de uma dinâmica social, passando pela reconstrução de um princípio
regente da mediação e organização dos elementos externos na obra até a
similaridade de recorte social dos dois escritores (Manuel Antônio de Almeida e
150
Aluísio de Azevedo), que trabalharam, ainda que de modos diversos, a visão das
classes médias em seus romances.
No entanto, para os objetivos deste trabalho, um ponto não pode passar
despercebido. As diferenças nos cortiços brasileiro e francês, apontadas por Antonio
Candido quando descreve o que seria a dialética do espontâneo e do dirigido, só
são entendidas, porque, anteriormente, o pensador uspiano já havia diferenciado os
contextos sociais do Brasil e da França e como eles solicitavam tratamentos
estéticos diversos.
No início do ensaio, Candido (2010, p.109) aborda claramente que o mundo
ficcional sofre a “solicitação da realidade natural e social imediata”. Com isso, o
autor quis justificar as distinções entre os romances de Azevedo e Zola –
obviamente, romances naturalistas feitos em lugares distintos vão se alimentar de
materiais distintos.
Quais as diferenças apontadas por Candido? Para o autor, na sociedade
francesa a diferenciação é mais acentuada e, por isso, há maior influência na
especialização do trabalho literário, que é levado a tratar cada temática de modo
compartimentado; no Brasil, ao contrário, tem-se um meio social pouco desenvolvido
e pouco especializado, de modo que os elementos estão muito mais dispersos e,
como tais, podem ser tratados. É desses aspectos que provêm a singularidade do
romance de Aluísio de Azevedo: a coexistência do explorado e do explorador,
elemento central da trama, só se torna possível pela “natureza elementar da
acumulação num país que economicamente ainda era semicolonial” (CANDIDO,
2010, p. 109-110).
Antonio Candido se aproxima de reconhecer a influência externa (e não
apenas interna) de um fator social. Isso significaria maior equilíbrio ao seu programa
intelectual, que deixaria de desprezar a influência geral de determinados fatores
externos. É necessário ressaltar, por outro lado, que De Cortiço a Cortiço foi escrito
em uma outra atmosfera intelectual, por isso a sensível mudança de ênfase. De
acordo com Merquior (1970, p.130),
por volta de 1960, na sua luta em duas frentes – contra o formalismoe o sociologismo – o crítico acentuava a conversão do elementoexterno em interno; hoje, porém, reagindo contra a maré doformalismo “estruturalista”, prefere salientar ambos os pólos daanálise, valorizando os determinismos sociais.
151
Essa mudança é percebida de maneira gradual. Em Literatura e Sociedade, a
ênfase era excessivamente na passagem do externo para o interno. Em Dialética da
Malandragem, observa-se a ênfase em um princípio que contrapesa os dois polos.
Em De Cortiço a Cortiço, além disso, o reconhecimento das exigências históricas e
sociais de um determinado contexto.
Contudo, a prioridade analítica de Candido (2010) recai sempre sobre o texto
literário, com autonomia quase absoluta, encerrado em si, embora acomodando
influências externas quando estas obedecerem à lógica do texto:
Embora filha do mundo, a obra é um mundo, e que convém antes detudo pesquisar nela mesma as razões que a sustêm como tal. A suarazão é a disposição dos núcleos de significado, formando umacombinação sui generis, que se for determinada pela análise podeser traduzida num enunciado exemplar. Este procura indicar afórmula segundo a qual a realidade do mundo ou do espírito foireordenada, transformada, desfigurada ou até posta de lado, paradar nascimento ao outro mundo (CANDIDO, 2010, p. 107).
Esta é a base epistemológica do ensaio e o destaque pelo qual a razão da
obra literária é, na prática analítica de Antonio Candido, a busca pela função dos
chamados dados externos. É como se o pensador uspiano estivesse a todo
momento investigando se existe e qual a função dos fatores sociais, sendo isso o
importante na análise.
Essa orientação denota, por outro lado, a dificuldade de Antonio Candido em
conceber a consistência de uma obra literária como oriunda do seu contexto social e
histórico – qualquer consideração dessa ordem é prontamente rejeitada como
agressão à autonomia estética.
Ao contrário, em Candido, a “estabilidade estética […] é antes efeito de uma
concepção mais tributária de uma visão tradicional do que estava disposto a admitir”
(LIMA, 1992, p. 159). Essas palavras, dirigidas à Formação da Literatura Brasileira,
são elucidativas também para o caso dos ensaios de O Discurso e a Cidade.
A dificuldade provém do fato de que Antonio Candido teve uma formação
humanística muito sólida, adquirida por intermédio de sua família. De modo mais
direto, isso se trata de um capital cultural incorporado13 no pensador uspiano. Essa
dificuldade talvez teria sido vencida se Candido se abrisse ao debate teórico, que o
teria levado a esbarrar nestas questões e enfrentá-las – mas, como se sabe, se
13 Ver Bourdieu (1998).
152
envolver em longas discussões teóricas nunca foi o interesse de Candido. Não que o
pensador não tenha tentado superar os dualismos análise social/análise estética,
externo/interno, mas o crítico acaba esbarrando nas suas próprias limitações. Assim,
cabe, então, esclarecer qual o artifício utilizado pelo autor para reestabelecer a
conexão da obra com o mundo social.
É nessa altura que deve se reabilitar a ideia de Antonio Candido de “ato
crítico”, que se refere ao empenho da personalidade na tarefa analítica. O método,
por definição, é algo exterior. Por isso, não pode se impor por si mesmo. Ele fica
disponível em um “estoque de variáveis” a partir do qual o crítico selecionará aquele
que julgar necessário para analisar o objeto artístico (LIMA, 1992, p. 157).
Desse modo, para “trazer a dinamicidade sócio-histórica à própria forma” é
necessário “conceber a crítica como atividade dirigida por valores” (LIMA, 1992, p.
157, grifo do autor). Em outras palavras, a leitura social e histórica é instaurada não
pela necessidade inerente à tarefa de analisar e criticar (não como uma prerrogativa
de método), mas pelo ato genuíno do crítico, que redescobre sua legitimidade.
Isto já foi reconhecido até mesmo em Roberto Schwarz, discípulo de Antonio
Candido. Ao notar que a “apreensão e descrição da forma literária” é acompanhada
por uma descrição das “realidades históricas pertinentes”, o crítico assinala que não
há resposta geral para a pergunta “quais são as realidades históricas pertinentes?”,
e que esse elemento sempre vai depender de um “achado crítico” do analista
(SCHWARZ, 2014, p. 34).
Muito elucidativo, neste ponto, é a metáfora utilizada por Lima: ele diz que a
crítica, definida como atividade dirigida por valores e envolta em uma cadeia de
decisões, implica que o analista não pode ser confundido com um caçador orientado
pelos rastros deixados pela caça. Ao crítico e ao historiador só cabe a analogia se
for levado em consideração que um e outro não apenas seguem os rastros
deixados, mas que, assim procedendo, também deixam outros rastros. São estes
que indicam aos outros porque tal caminho foi traçado. Em suma: os rastros
deixados na atividade crítica denunciam os valores do analista (LIMA, 1992, p.158).
No caso de Dialética da Malandragem, os rastros são percebidos quando
Antonio Candido sustenta que o “universo sem culpabilidade e mesmo sem
repressão” das Memórias e do qual decorre a “ideia de simetria ou equivalência” do
bem e do mal, do polo positivo e do negativo, em uma “sociedade meio caótica”
153
(CANDIDO, 2010, p. 40-42), correspondem à dinâmica própria da realidade
brasileira.
Ainda para Candido (2010), o Brasil é um lugar onde os grupos e indivíduos
nunca tiveram o interesse pela ordem, a não ser de modo rarefeito e distante, e
onde a liberdade surge como “capricho”. Resulta disso um espaço no qual reinam as
“formas espontâneas de sociabilidade” e no qual os choques entre norma e conduta
são brandos e amenos (CANDIDO, 2010, p. 44).
O que Candido faz, então, é alçar a dialética da ordem e da desordem a um
traço cultural tipicamente brasileiro. Se não é possível responsabilizar Antonio
Candido pela invenção do mito do brasileiro arredio a regras e normas, é possível
pelo menos sustentar que há, nesse ponto, uma visão aquiescente do tipo de
sociabilidade gestada nos trópicos.
No caso de De Cortiço a Cortiço, os rastros ficam claros quando Antonio
Candido afirma que Aluísio de Azevedo, ao interpretar a mistura de raças e a sua
convivência como promiscuidade da habitação coletiva, faz o próprio cortiço se
transmudar em um “Brasil em miniatura”, no qual brancos, negros e mulatos eram
igualmente explorados pelo português branco, ávido pelo lucro (CANDIDO, 2010, p.
119).
Isso também acarreta uma diferença central entre L’Assommoir e O Cortiço:
enquanto a obra de Emile Zola representa apenas um estrato, o modo de vida do
operário, o romance de Aluísio de Azevedo simboliza todo um país. Com o despudor
qualificativo que caracteriza sua crítica, Antonio Candido chega a qualificar como
“excelente” a fórmula estética criada pelo romancista brasileiro, porque graças a ela
o livro logrou maior alcance, pois “o coletivo exprime a generalidade do social”
(CANDIDO, 2010, p. 119).
É válido assinalar que, ao creditar a representatividade do livro de Aluísio de
Azevedo para pensar o Brasil com o fato de ele trabalhar a mistura e o choque das
raças, Antonio Candido está se vinculando à matriz de pensamento modernista, que
consagra, no plano intelectual brasileiro, a ideia de que a peculiaridade da
constituição social brasileira provém do resultado cultural da miscelânea de três
raças – branco, negro, índio.
Em suma, para a questão levantada de como é restabelecida a dimensão
histórico-social da obra literária, é possível afirmar que o mundo sem culpa e sem
pecado, de Memórias, e a mistura de raças no mesmo espaço, de O Cortiço, nos
154
quais Antonio Candido alça a categorias de alegorias do Brasil, são valores que
denunciam o autor. Isso significa que a limitação de seu programa teórico-
metodológico é vencida por sua própria personalidade e por seus próprios valores e
ideias.
5.2 As análises de Raymond Williams
No capítulo sobre a produção intelectual dos dois autores em deste trabalho,
vimos como Raymond Williams armou teoricamente sua discussão sobre cultura:
para ele, esta última tem uma dimensão também material na sociedade, produzindo
ideias e valores capazes de organizar a experiência social dos diferentes grupos.
Nesse ponto, a arte e literatura tem papéis decisivos, pois elas trabalham com ideias
e valores ainda não sedimentados, podendo muitas vezes serem indicativas de
mudanças sociais. Contudo, para compreender mais profundamente sua visão sobre
literatura e sociedade, faz-se necessário estudar uma obra de caráter crítico
acentuado, sendo útil, assim, o trabalho dele realizado durante a década de 1970.
Sabe-se que Raymond Williams saiu do País de Gales, no início da década
de 1930, para cursar Inglês em Cambridge e que seus estudos foram interrompidos
por ocasião da Segunda Guerra Mundial, que eclodiu no fim do mesmo decênio.
Williams só conseguiu completar seu curso em 1946, após retornar da guerra.
Durante os quinze anos seguintes, o pensador galês se dedicou a um projeto de
alfabetização de adultos.
Essa experiência na periferia do pensamento acadêmico foi importante para
os estudos sobre os significados do termo cultura – do que foi desenvolvido, na
visão de Williams (2011c), como resposta às transformações trazidas pela
Revolução Industrial – reunidos no influente Cultura e Sociedade, lançado em 1958.
Essa obra deu novo destaque ao pensamento de Raymond Williams e foi sua porta
de entrada para o retorno a Cambridge, em 1961. O pensador galês iniciou como
pesquisador do Jesus College e depois se tornou professor de teatro da
universidade (1973-1984).
Paralelamente a Cultura e Sociedade, Williams trabalhou também em uma
obra cujo objetivo era analisar o capitalismo industrial na relação com as novas
formas de comunicação (imprensa, publicidade, etc.): The Long Revolution (1961).
Esse livro coloca como questão central, nas sociedades avançadas, a disputa pelo
155
controle do sistema de comunicações. A ênfase no debate em torno dos meios de
comunicação permaneceu durante a década de 1960. É possível pontuar, na
publicação de Communications (1961), a participação em debates televisionados e
os artigos enviados para a Revista da BBC – que, mais à frente, foram compilados
no livro Televisão: tecnologia e forma cultural (1974).
No entanto, já no fim da década de 1960, Williams retomou a publicação de
obras críticas com foco na arte e na literatura especificamente. Foi o caso de
Moderny tragedy (1966) e de Drama from Ibsen to Brecht (1968) para a análise do
teatro. No início da década de 1970, o autor publicou também obras voltadas para
análise do romance inglês: The english novel: from Dickens to Lawrence (1970) e O
campo e a cidade (1973).
De acordo com Rivetti (2015, p. 100-101), O campo e a cidade pode ser
interpretado como um desenvolvimento de The english novel: as duas obras
analisam os mesmos temas e autores, inclusive fazendo uso de citações iguais. A
diferença fica por conta do foco: ao passo que em The english novel a discussão
recai sobre a mudança nas formas e nas convenções literárias por meio da análise
de obras e autores particulares, O campo e a cidade debate o quadro ideológico
mais geral dessas mudanças.
De fato, O campo e a cidade aborda a interpretação da história realizada por
autores e autoras ao longo do tempo acerca dessas duas formas de vida, insistindo
que a posição social dessas pessoas era um fator determinante da visão histórica
deles. Williams estava perseguindo uma de suas preocupações centrais: a dimensão
prática e material da consciência e das formas culturais.
Conforme recorda Sarlo (2001, p. 13), as décadas de 1960 e 1970 foram
marcadas pelas teorias discursivistas e estruturalistas, com ênfase na crítica do
sujeito e marcadas pela desvalorização da experiência. Raymond Williams, portanto,
estava na contramão das correntes acadêmicas até então em voga. Em O campo e
a cidade, Williams estreitou suas relações com o marxismo (com subcorrentes
específicas do marxismo, a saber: o marxismo de Gramsci) e assentou as bases
para a formulação do que, poucos anos mais tarde, seria chamado de materialismo
cultural.
Por conta desses fatores e por conjugar a análise histórica de duas formas de
vida com a leitura de poemas e romances representativos do pensamento inglês, O
campo e a cidade aparece como a obra na qual, por necessidade, Raymond
156
Williams vai discutir os temas prementes deste trabalho: os modos pelos quais os
fatores sociais influem na literatura e como pode se processar uma análise que
resguarde uma relativa autonomia do fenômeno artístico.
5.2.1 As imagens do campo e da cidade na história da literatura inglesa
Raymond Williams, no início de O campo e a cidade, assinala a problemática
sobre a qual se debruçará durante todo o livro: o fato de que sobre essas duas
formas de comunidade humana se formaram o que ele denomina de atitudes
emocionais poderosas no decurso de tempo. Ao passo que o campo passou a ser
visto como o lugar de formas simples de vida, ao qual são agregadas características
como simplicidade e inocência, a cidade se vinculou às ideias de realizações, de
saberes, comunicações etc., relacionando-se a adjetivos negativos, como barulho,
interesses, mundanidade (WILLIAMS, 2011d, p. 11).
Embora o interesse de Raymond Williams seja o de discutir relações gerais
entre campo e cidade, a análise é realizada com base em exemplos extraídos da
literatura inglesa. No entanto, o autor galês considera representativa essa literatura,
visto que a Inglaterra experimentou muito cedo, e de modo muito intenso, a
Figura 8 – Capa do livro O campo e a cidade
Fonte: Williams (2011d)
157
Revolução Industrial, resultado de um capitalismo agrário que já vinha, desde muito
antes, corroendo o que se denomina de campesinato tradicional. Esses são eventos
que, portanto, alteraram profundamente as relações entre campo e cidade. Apesar
da Revolução Industrial e outros acontecimentos históricos terem transformado
mutuamente campo e cidade, o autor nota que, ao longo do tempo, as atitudes
inglesas para com esses dois lugares permaneceram praticamente as mesmas
(WILLIAMS, 2011d, p. 12-13).
O leitor atento notará que Raymond Williams, ao apontar para essa questão,
começa a delinear sua visão sobre os fatores sociais e literários. Em primeiro lugar,
o autor galês trabalha com fenômenos históricos gerais e de amplo alcance
histórico, e não com fenômenos que se encerram em um determinado contexto. Em
segundo, ele também destaca que, apesar de os eventos históricos indicarem
transformações, a literatura permaneceu com a mesma atitude durante longo
período, o que, se bem visto, significa a relativa autonomia que o fenômeno literário
guarda em relação aos fatos históricos.
A título de ilustração, Raymond Williams elenca como diversos escritores se
referem a um processo de transformação rural, para os quais o campo estaria
perdendo algo de sua característica principal e, portanto, morrendo. Assim, George
Sturt se refere a uma mudança ocorrida em um momento anterior ao seu, mas
coincidente com o período no qual Thomas Hardy produziu suas obras. Hardy, por
sua vez, também era visto como um escritor que trabalhava as transformações
ocorridas no campo em uma época anterior a sua. Essa época, no entanto, coincide
cronologicamente com o tempo em que Richard Jefferies viveu e escreveu. E assim,
de modo sucessivo, o momento em que o campo ainda não havia sido afetado por
mudanças drásticas é jogado permanentemente para trás (WILLIAMS, 2011d, p. 22-
26).
Com certa dose de ironia, Raymond Williams nota, nesse movimento –
batizado por ele de escada rolante –, uma digressão histórica incessante e que, ao
cabo, levará até o estágio inicial da humanidade de acordo com a teologia cristã: o
Éden. Portanto, o problema colocado em questão é algo maior do que a história –
isto é, não se trata de checar a veracidade histórica dos escritos. Para Williams, o
problema é de perspectiva histórica (WILLIAMS, 2011d, p. 25-27), o que pode ser
entendido como a posição ocupada pelos autores na sociedade em um determinado
momento histórico e que faz com que eles tenham certa percepção social.
158
É importante frisar que Raymond Williams identifica não a continuidade de
uma mesma imagem ao longo do tempo, mas a insistência de uma atitude ou
maneira de lidar com o campo e a vida rural. Na realidade, o significado que a
imagem dessa comunidade vai adquirir no decurso histórico é variável, isto é, o
sentido de “vida campestre” ou “Velha Inglaterra” se altera conforme muda a época e
o momento – isso significa que, em cada momento, são mobilizados valores e
relações distintos.
Desse modo, é possível falar de uma mesma atitude em períodos histórico-
sociais diferentes. Esses períodos históricos são, no entanto, trabalhados dentro dos
marcos formais e convencionais da literatura em cada momento. Por isso, o
pensador galês afirma que, ao lado do problema de perspectiva e fatos históricos,
existem também questões de perspectivas e fatos propriamente literários, porque o
que é dito não é dito sempre “em uma mesma modalidade discurso”, variando de
poemas a peças de teatro e romances (WILLIAMS, 2011d, p. 27).
O modo como cada momento histórico organiza e localiza socialmente os
atores sociais (autoras e autores de literatura) é um fato objetivo com impacto direto
sobre os fatos literários, baseados nas percepções, perspectivas e impressões de
cada ator social, formando, assim, uma realidade histórica particular. Essas
realidades históricas influenciam ideias e sentimentos gerais de um dado momento,
capazes de orientar o modo como os atores sociais vão perceber cada período
histórico (ou a atitude deles para cada momento histórico). Desse modo, Raymond
Williams pressupõe uma dialética entre realidades históricas e ideias gerais, a partir
da qual a veracidade histórica será medida não em termos de uma construção de
eventos feita a priori, mas a partir da experiência e da perspectiva dos atores
sociais.
Cada modo de se posicionar em um dado momento histórico é apreendido
por meio da noção de estrutura de sentimentos, que busca compreender justamente
como a experiência do que é vivido numa realidade histórica particular limita,
direciona e impulsiona atitudes. Ou seja, é uma noção usada para apreender
alternativas históricas de realização e posicionamento dos atores sociais. Conforme
Sarlo (2001, p.18),
a “estrutura de sentimento” é um horizonte de possibilidadesimaginárias (expostas tanto sob a modalidade de ideias, como deformas literárias e experiências sociais); as mudanças na literatura
159
ocorrem quando essas ‘estruturas de sentimentos’ já não podemmais abarcar as novidades sociais e nem estão em condições deformulá-las dentro do elenco de convenções conhecidas. A “estruturade sentimento” é um campo de possibilidades, um limite a essecampo e um conjunto de linhas de deslocamento para fora (grifos daautora).
Raymond Williams se propõe, então, a analisar cada movimento de
retrospecção da escada rolante, buscando evidenciar as relações sociais que são
ativadas por escritoras e escritores no momento em que constroem suas atitudes
para com o campo e a cidade. Assim, os pontos centrais dessa análise serão
revistos e discutidos.
O debate se inicia com o bucolismo neoclássico da Inglaterra e a sua
tendência, identificada por Williams, de idealizar o mundo rural. No bucolismo
clássico (de Teócrito, Hesíodo ou Virgílio), embora, algumas vezes, seja possível
notar o surgimento do tom de idealização da vida campestre, está presente uma
tensão entre tipos determinados de experiências: entre verão e inverno, entre cantar
e viajar, entre deleite e perda. Desse modo, o que a tradição bucólica renascentista
fez foi retirar essas tensões centrais e deixar apenas as imagens de um mundo
agradável. É a seletividade da tradição operada pela tradição bucólica (WILLIAMS,
2011d, p. 29-37).
Portanto, o que o pensador galês assinala é um processo de transformação
do sentido original do termo bucólico, antes com a dimensão descritiva
supervalorizada, tornando-se uma forma literária com ênfase na observação (da
perspectiva não do trabalhador, mas do turista ou do cientista) da beleza natural do
mundo rural. Assim, pouco a pouco, o bucolismo se transformou na descrição
idealizada da vida rural e de suas relações sociais e econômicas (WILLIAMS, 2011d,
p. 40-50).
Esse é o caso dos poemas dedicados a exaltar mansões senhoriais da
Inglaterra rural do século XVII. Raymond Williams analisa os poemas To Penhurst,
de Ben Jonson, e To Saxham, de Thomas Carew, e pontua que neles a vida do
homem rural é celebrada em oposição à vida da corte e da cidade. A celebração é
dada em termos de alguns valores próprios de uma “Idade do ouro”: a ausência de
orgulho, de ganância e mesquinhez seriam marcas das mansões de nomes
homônimos aos poemas, não só por oposição à cidade, mas também em relação a
outras casas do mundo rural (WILLIAMS, 2011d, p. 53-55).
160
A intenção dos poemas era, então, exaltar as mansões e o comportamento
caridoso dos seus senhores a um tal ponto que os valores morais se sobrepunham a
toda uma ordem social. Raymond Williams enfatiza que essa operação só é possível
porque os autores, como hóspedes das casas, identificavam-se com a posição
social dos seus donos. Desse modo, por meio de uma operação mitificadora em
torno de uma abundância natural da terra, os poetas obliteraram o trabalho da
paisagem e produziram escritos com descrições da vida rural e elogios sociais da
aristocracia de então (WILLIAMS, 2011d, p. 59-62).
Raymond Williams pontua que essa referência ao passado está dentro dos
marcos de uma estrutura de sentimentos, cujo ponto central não é a explicação e a
análise histórica, mas um modo de reagir às mudanças, que tem “causas sociais
mais concretas e mais interessantes”. Assim, o que é mais importante, nesses
poemas, nos quais a idealização de valores feudais vem à tona, é que eles
coincidem temporalmente com outro momento: o advento da agricultura capitalista
na Inglaterra. Desse modo, a operação realizada pelos poemas é de mobilizar os
ideais aristocráticos como crítica ao capitalismo, então nascente, provocando uma
crise de valores (WILLIAMS, 2011d, p. 65-66).
Essa questão elucida bem o tratamento dado por Raymond Williams aos
fenômenos sociais e literários. O que o pensador galês realiza nessa discussão, se
bem percebido, é mostrar como fatores sociais atuam diretamente como causas
externas das transformações na literatura. Os textos literários são quase respostas a
um dado contexto ou fenômeno sócio-histórico.
Williams não se preocupa em mostrar como um autor ou obra filtraram para
dentro das fronteiras estéticas um dado elemento do mundo social, nem busca
analisar a função interna dessas causas externas – nesse sentido, nota-se que o
elemento social não é específico, mas um processo social geral, o capitalismo. O
que o pensador galês quer é mostrar como esses elementos sociais atuam desde
fora exercendo pressões sob a atividade artística.
Raymond Williams pontua o quão forte é esse tipo de atitude para com a
mudança, sustentando que ela permaneceu por muito tempo na Inglaterra. Na sua
visão, essa espécie de radicalismo retrospectivo é constantemente mobilizada como
crítica ao capitalismo atual, em um movimento que envolve opor sentimentos
humanitários aos supostos valores da ordem capitalista (ambição, egoísmo etc.).
Desse modo, ele observa que uma crítica social importante é deslocada para o
161
passado e esvaziada, porque os valores sociais por ela mobilizados se transformam
em posturas reacionárias, porque acorrem hierarquias sociais e estabilidades morais
de uma ordem anterior (WILLIAMS, 2011d, p. 66).
Raymond Williams é duro em relação a essa crítica ancorada em valores
passados. Para o autor, ela é frágil, porque para se opor ao capitalismo procede a
um apagamento das contradições sociais da época exaltada: a agricultura do
período era tão bruta como a de qualquer outra ordem social, antecessora ou
sucessora; baseava-se na exploração das terras e também das pessoas, tidas
igualmente como propriedades e amarradas a essas relações pelas leis e costumes
da época (WILLIAMS, 2011d, p. 68-69).
Para destrinchar essa questão, Raymond Williams analisa a estrutura social
da época e o papel das classes intermediárias do campesinato inglês, as que se
situavam entre o senhor feudal e o servo ou entre o grande proprietário e o
trabalhador despossuído de terra. Era essa classe que mais sofria com as
mudanças e estava sendo pressionada pelos grandes proprietários de terra. Os
escritores, em sua maioria, identificavam-se com essas classes. Desse modo,
produziam críticas morais ao capitalismo, pois socialmente eram também
proprietários (embora de pequenas porções de terra) – isto é, atacavam a ganância
e o interesse excessivos e não o fator social preponderante, a propriedade
(WILLIAMS, 2011d, p. 72-80).
Na literatura sobre a vida rural, a idealização de um passado feliz convive
também com a noção de inocência e pureza do mundo rural, contrapostas à vida
citadina. Na visão de Raymond Williams, tal antagonismo só pode se sustentar
porque houve um processo de separação ideológica da exploração entre o mundo
rural e o das cidades. O interesse do autor galês é mostrar como campo e cidade,
na verdade, se relacionam por meio do processo social geral denominado
capitalismo; assim, para o autor, o que não se percebe é que a cidade se alimenta
daquilo produzido pelo campo, e que, acima da rede de exploração do mundo rural
(aquela vocalizada pela tradição bucólica), há a exploração do campo como um todo
pela cidade como um todo. Portanto, conclui:
Se o que se via na cidade não podia ser aprovado, por tornarevidente a sordidez das relações decisivas que regiam a vida daspessoas, o remédio não era jamais a moralidade da vida simples edos pensamentos nobres trazida por um visitante, nem uma conversavazia sobre campos verdejantes. Era uma mudança das relações
162
sociais e da moralidade essencial. E era precisamente nesse pontoque a ficção “cidade e campo” era útil: para promover comparaçõessuperficiais e evitar comparações reais (WILLIAMS, 2011d, p. 94).
A partir de alguns eventos históricos, como a Guerra Civil, a Commonwealth e
a Restauração, que alteraram socialmente a Inglaterra, Raymond Williams nota uma
mudança do ideal de contemplação do mundo rural para o ideal de virtude produtiva.
O autor galês faz uma comparação entre os poemas Upon appleton house, de
Andrew Marvell, e Epistle to Burlington, de Alexander Pope, para mostrar como, no
primeiro, começa a ocorrer uma legitimação da propriedade fundiária conseguida
através do esforço e, no segundo, há uma pregação moral em prol do uso da casa
para o investimento produtivo, uma ética de melhoramento das terras (WILLIAMS,
2011d, p. 95-103).
A ética do melhoramento do poema de Pope deve ser entendida no horizonte
do aprofundamento das transformações da estrutura fundiária da Inglaterra, que
continuava a assistir ao desaparecimento das pequenas propriedades e o
crescimento das grandes porções de terra, cada vez mais voltadas para o aumento
progressivo do cultivo. Nessa época, a propriedade deixou de ser considerada
apenas herança e passou a ser vista como uma oportunidade de investimento.
Assim, uma ideologia do melhoramento ganhou força e começou a orientar as
relações sociais entre proprietários, arrendatários e trabalhadores (WILLIAMS,
2011d, p. 104-105).
Estes fatores históricos influenciam uma outra via, contribuem para o
recrudescimento de outras formas literárias – isto é, toda uma forma coletiva de
produzir pensamentos nasce como resposta a um momento histórico.
Assim, Williams pontua que houve uma afluência para a forma literária do
romance, que tematizou o impacto desse novo momento na vida das pessoas. É o
caso de Clarissa (1748), de Samuel Richardson, e Tom Jones (1749), de Henry
Fielding, que dramatizam a tensão pela escolha entre vantagem econômica e certos
valores sociais no espaço privados das famílias. A força dos livros, na visão do
pensador galês, encontra clara limitação, pois não criticam a sociedade ou a
estrutura social, mas uma abstração chamada o mundo; ou, no caso de Daniel
Defoe, em A tour though of england and wales (1927), a questão entre fortuna
163
material e necessidade se resolve por meio de uma revelação feliz no fim da trama
(WILLIAMS, 2011d, p. 106-112).
Mas é na poesia que essas pressões sócio-históricas são retrabalhadas de
modo mais significativo. Raymond Williams assinala que há uma mudança de tom:
se antes era predominante a imagem do arrendatário feliz, construído por meio do
eu idealizado da tradição bucólica, agora percebem-se elementos como perda,
mudança e pesar. Esse sentimento melancólico convive com elogios da ordem
social. Por isso, a nova postura frente às mudanças é essencialmente ambígua, que
exalta e censura a dinâmica da vida rural, além de caminhar de um contraste claro e
consciente entre os homens humildes do mundo rural e ambição da corte e da
cidade – The seasons (1730), de James Thomson – até um contraste ético entre
campo e cidade, no qual as virtudes do campo estão transpostas para o passado –
The deserted village (1770), de Oliver Goldsmith (WILLIAMS, 2011d, p. 115-133).
Essa postura é ambígua porque o próprio capitalismo é ambíguo: ao mesmo
tempo em que estimula o crescimento econômico, distribui de modo desigual a
riqueza, por exemplo. Assim, o contraste entre elementos opostos é uma
característica dessa nova ordem social. Essa ambiguidade, com origem dentro
dessa nova ordem, deu vez ao que Raymond Williams denominou de estrutura
romântica de sentimentos, cuja operação consiste em afirmar a natureza em
oposição à indústria; e é responsável por isolar comunidade e humanidade na noção
de cultura, concebida também em oposição a relações sociais concretas
(WILLIAMS, 2011d, p. 135-141).
Dessa forma, o que Raymond Williams (2011d) procura analisar é justamente
o que está por trás dessa estrutura de sentimentos que recorrentemente desloca
para o passado a existência de uma sociedade rural mais afortunada e que vê no
presente a existência de uma vida campestre destruída – como se percebe, por
exemplo, na melancolia do poema The village (1783), de George Crabbe. Para o
pensador galês, a fonte dessa postura se encontra em uma leitura estreita da
história da Inglaterra, segundo a qual o evento dos cercamentos das terras por
ordem do Parlamento é identificado como o principal vetor de destruição da vida
rural estável.
Os ataques de Raymond Williams se dirigem a essa perspectiva que
identificava o advento do industrialismo urbano, e não o capitalismo, como causa
das transformações no mundo rural. O autor galês não quer diminuir a importância
164
da campanha dos cercamentos, mas enfatizar que ela não se desconecta de outros
eventos, dando destaque para a mudança nas relações de propriedade, que, desde
muito antes, vinham apontando para a concentração de terras nas mãos de uns
poucos (WILLIAMS, 2011d, p. 165-166).
Os cercamentos não introduziram novidades na estrutura rural inglesa, mas
foram importantes na medida em que completaram as pressões econômicas sobre
os pequenos proprietários ao abolir as últimas aldeias onde vigorava o sistema de
campo aberto e de direitos comuns. Fazem parte, assim, de um movimento que
corresponde à consolidação de um sistema capitalista, que realizou confiscos
legalizados com vistas a beneficiar os grandes proprietários; desse modo, já no fim
do século XVIII, era possível falar em uma sociedade capitalista organizada
(WILLIAMS, 2011d, p. 167-169).
Dos deslocamentos realizados por Raymond Williams (2011) ao longo do
livro, esse talvez seja o mais importante e represente a culminância do seu
argumento. O pensador galês esvazia de peso histórico a questão dos cercamentos
como causa isolada e põe ênfase no sistema capitalista, porque, a seu ver, esse
fator explicar melhor as transformações do mundo rural inglês. Pôr em destaque o
que chamou de capitalismo é, na verdade, enfatizar mais um fio condutor, uma linha
histórica, e menos um evento.
O que Raymond Williams quer mostrar é que tanto os cercamentos quanto o
industrialismo urbano não são constantes históricas isoladas – se ligam a outros
processos encadeados de modo a dar explicações mais satisfatórias aos
desenvolvimentos da literatura inglesa. O reposicionamento realizado por Williams é
tão mais importante porque é a partir dele que a análise e a crítica de obras e
autores são realizados – é, inclusive, a base para ponderar o peso relativo de certos
escritores para a literatura inglesa, elemento que fica mais claro na discussão sobre
Thomas Hardy, que veremos mais à frente.
Dito de outro modo, a reconstrução histórica com peso em um processo social
geral serve para Raymond Williams mostrar que “a contraposição ‘Inglaterra rural do
passado’ versus ‘Inglaterra urbana do presente’ carece de sentido, posto que aquilo
que se via – e celebrava – como passado rural já era o campo alterado pelo
capitalismo” (RIVETTI, 2015, p. 106). Williams já não havia poupado críticas aos
poemas da mansão senhorial, que tematizavam a transição do mundo rural para o
burguês, ao afirmar que eles praticavam a idealização de uma ordem social tão cruel
165
como qualquer outra. Mas é a partir da identificação do nascimento dessa estrutura
de sentimentos romântica que a crítica ganha mais força, pois é possível mostrar o
quão ideológica é a perspectiva que associa a destruição do campo a um único fator
histórico – o advento do industrialismo urbano.
Essa perspectiva, como já foi dito, só pode ser compreendida na relação com
a experiência dos atores sociais – no caso, os escritores. Williams (2011) compara
as perspectivas de três escritores sobre a mesma localidade (Farnham, ao sul de
Londres). São eles: William Cobbett, Jane Austen e Gilbert White. O primeiro deles,
Cobbett, introduziu nos romances a figura do trabalhador, identificando-se com ele e
tematizando uma nova interação entre as classes. Para Williams (2011), isso
respondia às necessidades impostas por um momento de maturidade do
capitalismo, que pedia o nascimento de uma oposição sistemática a ele (WILLIAMS,
2011d, p. 183-190).
Já a escritora Jane Austen, por outro lado, analisa, em seus romances,
condutas pessoais, buscando elucidar os padrões orientadores do comportamento
humano em certas situações. Austen desenha algumas situações – o recebimento
de uma herança, por exemplo – e tenta mostrar como elas impulsionam a ação dos
personagens. Já nessa altura, Raymond Williams opera a primeira releitura da
tradição, afirmando que Austen, por concluir em suas obras que moralidade e classe
social não necessariamente coincidem, está menos para Fielding e Richardson e
mais para Coleridge, Eliot e Arnold (WILLIAMS, 2011d, p. 191-197).
Por fim, em Gilbert White, aponta Raymond Williams, os comentários não são
de ordem social. Ele faz uma descrição do campo com ênfase nos elementos físicos.
Esse é o ponto principal de diferenciação: ao passo que os dois primeiros (Cobbett e
Austen), cada a um a seu modo, discutem e analisam pessoas ou contextos sociais,
White descreve uma ordem física e natural, abrindo a possibilidade de a natureza
ser afastada do homem (WILLIAMS, 2011d, p. 198-200). Era o nascimento da
chamada técnica do paisagismo.
Essa observação distanciada do mundo rural, reduzido à sua estrutura física e
natural, só é possível porque quem descreve de modo idealizado e distante um lugar
não trabalha nele – “raramente uma terra em que se trabalha é uma paisagem”
(WILLIAMS, 2011d, p. 201). O autor identifica o surgimento de outro tipo de homem,
completamente distanciado do mundo do trabalho rural; um sujeito que é apenas um
observador e é consciente disso. Isso implica ser consciente de que se é, antes de
166
tudo, um proprietário, classe a quem é dada o privilégio de enxergar toda uma
estrutura social como apenas um mundo físico e natural.
A construção dessas paisagens, isto é, a reorganização física do mundo rural
que é coetânea à reorganização produtiva do campo provocada pelo capitalismo, é a
concretização da ideologia da mansão senhorial, dos poemas de Johnson sobre
Penshurst: uma imagem do mundo rural onde não existe trabalho, trabalhador ou
qualquer elemento ligado à produção, apenas descrição de elementos naturais –
florestas e matas, águas e rios, etc. (WILLIAMS, 2011d, p. 208).
Essa separação e esse distanciamento chegam ao ápice com a “linguagem
verde”: o sentimento egocêntrico de perda. De acordo com Raymond Williams,
poetas como William Wordsworth e John Clare introduziram a figura do observador
solitário e sedimentaram a postura de isolamento e solidão como veículos da
natureza e da comunidade, em oposição à busca fria por prosperidade da sociedade
dita normal. Esses dois poetas configuraram uma espécie de repercussão subjetiva
das transformações da natureza – isto é, os efeitos internos dos cercamentos e das
transformações fundiárias rurais (WILLIAMS, 2011d, p. 213-240).
Paralelamente às transformações no campo e às imagens sobre ele que eram
construídas por poetas e romancistas, a cidade – no caso Londres, o exemplo mais
significativo – também se transformava e se expandia, mas com mais rapidez. A
cidade foi retrabalhada por William Blake como o lugar da multidão, do ruído e da
rapidez, porém, foi com Charles Dickens que foi trabalhada com profundidade. De
acordo com Raymond Williams, Dickens conseguiu alcançar o foco da questão da
vida na cidade: a coexistência da variação e da aleatoriedade dentro de um sistema
determinante geral – que direciona de modo comum situações e destinos
(WILLIAMS, 2011d, p. 241-261).
Para Raymond Williams, Dickens traz um modo de descrever a cidade com
foco na movimentação acelerada e aparentemente fortuita de pessoas, mas faz isso
se coadunar com conexões e relacionamentos profundos, que só se desenham
paulatinamente à medida em que a ação se desenrola, e que, no entanto, são
camuflados pela caracterização do barulho, da pressa e da multiplicidade. Dickens
utiliza imagens sombrias, como, por exemplo, de uma nuvem escura que paira sobre
a cidade, para simbolizar as consequências humanas de uma ordem social. Na
167
visão do pensador galês, Dickens é quem melhor consegue apreender a dinâmica
social de transformação e mobilidade constantes de Londres.
Como faz durante toda a obra, Raymond Williams credita essa realização à
dimensão prática de um autor em um dado contexto histórico. Assim, Williams
salienta que os artifícios formais, os mecanismos de caracterização e o tipo de
narrativa empregados por Dickens têm sua origem justamente no modo de viver e
perceber a cidade de Londres. Para o pensador galês, a experiência do autor na
cidade e seus recursos ficcionais são o reverso um do outro: “a experiência da
cidade é o método da ficção; o método da ficção é a experiência da cidade. O
importante é que a visão […] é a forma da escritura” (WILLIAMS, 2011, p. 262).
Um dos pontos altos das análises de O campo e a cidade é a discussão sobre
o romance realizada por Raymond Williams em torno da noção de comunidade
cognoscível. Para o autor, todo romance se constitui como uma comunidade
cognoscível na medida em que o autor da obra busca mostrar pessoas e
relacionamentos de maneira cognoscível e comunicável. Como o foco de Williams é
a experiência que materializa pensamentos, ele aponta que os sujeitos que
observam (os autores) também são cognoscíveis, portanto, deve-se atentar não
apenas para a realidade da comunidade rural, mas também a posição de quem
escreve em relação a ela (WILLIAMS, 2011, p. 278-279).
Desse modo, Raymond Williams passa a analisar como Jane Austen, George
Eliot e Thomas Hardy trabalham em seus romances as transformações no campo.
Sobre Austen, Williams pontua que a romancista descreve relacionamentos
interpessoais face a face, cotejados com avaliações morais sobre as escolhas dos
personagens, de um modo muito restrito: basicamente, a ação se passa entre
proprietários; os outros grupos de pessoas, trabalhadores, por exemplo, são
completamente invisibilizados. Ser retratado em um romance de Austen, então,
significa fazer parte uma classe específica (WILLIAMS, 2011d, p. 279-280).
George Eliot é sucessora de Austen no que concerne à continuidade das
avaliações morais, mas essa semelhança convive com uma distinção fundamental:
Eliot inclui, em seus romances, pessoas de outros estratos sociais, trazendo para as
análises das condutas individuais as questões socioeconômicas. Mas Eliot encontra
suas limitações; no fundo, um problema no modo de retratar as classes
trabalhadoras: a descrição dos personagens rurais de classes baixas nunca é
realizada plenamente, pois a autora não consegue transcender sua própria posição
168
na comunidade que quer observar – de acordo com Williams, os personagens
populares não são mais que “elementos de uma paisagem” (WILLIAMS, 2011d, p.
283).
A solução para o impasse, assim, é o que podemos chamar de
condescendência narrativa, essencialmente um problema de linguagem: como sabe
que os personagens retratados são diferentes do público ao qual destina seus
romances, Eliot se propõe a torná-los cognoscíveis emprestando sua própria
consciência a esses personagens – culminando na ideia estereotipada de que os
personagens rurais são simples, têm fala exótica, mas são agradáveis e honestos.
Os romances de Eliot ainda encontram dificuldades para trazer soluções sociais
para os problemas levantados na narrativa, resumindo-se ao desfecho de uma ação
individual isolada de retorno ao passado rural, passado idealizado de valores morais,
no qual apenas algumas classes, as mais abastadas, têm importância. (WILLIAMS,
2011d, p. 284-302).
Essas questões ganham novo tratamento com Thomas Hardy. Para Raymond
Williams, Hardy alcança uma abordagem mais satisfatória dessas temáticas, mas,
para sustentar isso, o pensador galês teve, primeiro, que retirar as classificações
usuais feitas pela tradição inglesa de Hardy e de sua obra. Williams salienta que
Hardy não veio de um mundo rural distante, mas de um local onde vivia intensas
transformações sociais; essas transformações, na ficção de Hardy, são tematizadas
como a experiência da mudança e a dificuldade da escolha. Esses elementos, na
visão do pensador galês, constituem uma realidade ainda viva, concernente a todos,
e, portanto, observar Hardy como escritor regionalista, cronista da vida rural, é algo
equivocado (WILLIAMS, 2011d, p. 327-328).
De acordo com Raymond Williams, a discussão central em Hardy diz respeito
ao embate entre tradição e costumes, de um lado, e a educação formal, de outro.
Portanto, ele não vem de uma velha sociedade rural – se insere, ao contrário, no
contexto de uma experiência social ainda ativa. Essa capacidade de colocar em
pauta questões atuais deriva da própria posição social de Hardy: ele não veio de um
lugar onde predominava camponeses, mas sim composto por proprietários,
arrendatários e comerciantes; Hardy também estudou arquitetura e experimentou
um processo de ascensão social, no qual passou a ocupar a classe das pessoas
instruídas, não se tornando necessariamente um proprietário, mas possuindo laços
sociais com essa classe (WILLIAMS, 2011d, p. 330-332).
169
Desse modo, a obra de Hardy é marcada por essa tentativa de descrever e
valorizar uma forma de vida (a do meio rural) com a qual se ligava de maneira
parcial. A problemática central das pressões e das escolhas, inclusive do ponto de
vista dos problemas de linguagem, afinal Hardy também escrevia para um público
que via o campo de maneira estereotipada, é discutida em torno de uma trajetória: a
de quem sai do seu meio, adquire instrução formal e, ao retornar, não se sente mais
parte desse mundo – a chamada volta do nativo, discutida claramente em Jude, the
obscure (1985).
Dessa maneira, são dois os pontos mais importantes a destacar das
avaliações que Raymond Williams faz de Hardy, e que ajudam a entender porque o
pensador galês considera esse romancista tão importante: primeiro, ao trabalhar as
questões desta maneira (os dilemas de uma pessoa que passeia entre dois mundos
e não se vê totalmente ligada a nenhum deles), Hardy mostra a articulação existente
entre campo e cidade. Assim, não há mais a oposição superficial entre mundo
urbano e rural, mas uma discussão em torno de um processo histórico capaz de
colocar a instrução formal como um fator importante para a ascensão social em uma
sociedade de classes; e, segundo, Hardy percebe que essas questões impõem
limitações que não podem ser simplesmente resolvidas pela nostalgia ou pelo apelo
à simplicidade da natureza (WILLIAMS, 2011d, p. 335-337).
Por isso, Thomas Hardy não resolve suas histórias com uma postura reativa,
pois não via o campo como “locus amoenus onde as pessoas, em contato com a
natureza e por meio do trabalho braçal, deteriam em si grandes valores morais”
(MORELLI, 2009, p. 26); isso fez com que se desapegasse do passado e nutrisse
suas expectativas para o futuro. Ora, esse elemento ganha maior densidade porque
vai contra o movimento de se remeter a um passado rural idealizado – Hardy, na
visão de Williams, é grande por isso.
O que é denominado como reposicionamento histórico operado por Raymond
Williams, a saber, o ato enfatizar um processo histórico geral, o capitalismo, e não
um evento isolado, cercamentos, é o ponto gravitacional das análises do pensador
galês em O campo e a cidade. O debate em torno da ficção de Thomas Hardy é, de
algum modo, o corolário da discussão proposta por Williams. Como o
reposicionamento histórico é o critério crítico do pensador galês, a partir do qual ela
valoriza obras e autores, Hardy significa o ponto em que a literatura inglesa produziu
170
um tipo de romance capaz de apreender a totalidade do processo social em
questão.
Como proposta teórico-metodológica, significa pesar autores e obras com
relação a eventos históricos amplos e avaliá-los a partir das ideias e percepções que
constroem sobre esses eventos, julgando, não a fidelidade histórica, mas modos de
perceber a realidade. Isso é a base, por exemplo, para Raymond Williams reler a
tradição da literatura inglesa e colocar Hardy, e não Henry James, como herdeiro
direto de Eliot. E, no fim dessa linha, está D. H. Lawrence.
Como modo de interpretar a dinâmica social da arte e da literatura, percebe-
se que estas são vistas por meio das pressões sociais sofridas constantemente,
além de guardarem relativa autonomia, porque produzem atitudes voltadas para
interferir no mundo social, mas nunca completamente independentes e absolutas.
Mais do que isso, a literatura só é compreendida mediante uma análise paralela às
transformações históricas da sociedade. Não se faz uma análise de uma única obra,
mas de várias obras, no decorrer do transcurso histórico. A partir disso, é possível
julgar seus pontos altos e baixos.
Como visão de sociedade, Raymond Williams demonstra sua ênfase em um
processo social total. A concepção subjacente é a de que a sociedade moderna é
dominada por um extenso processo social, o capitalismo; este, no entanto, localiza
diversos atores sociais em pontos distintos da estrutura social, provocando, assim,
percepções distintas, quando não contraditórias, sobre o mesmo processo. O
objetivo de Williams, nesse livro, é mostrar como, no decorrer do tempo, foram
produzidas as percepções hegemônicas sobre a sociedade inglesa.
A ênfase dada à totalidade do processo social fica mais clara com o
desenvolvimento do argumento do livro. Quando a linha do tempo se aproxima do
nosso tempo histórico, particularmente a partir do início século XX, Raymond
Williams alça a discussão que ele propôs para a Inglaterra a toda sociedade global.
Para o autor, a coexistência de países desenvolvidos, centros de poder político,
cultural e econômico, e de países subdesenvolvidos, basicamente países agrícolas
ou subindustrializados, só ocorre por meio de um inter-relacionamento, no qual os
segundos alimentam os primeiros, e a isso são presos por uma relação de
dependência econômica e pela ideologia do “desenvolvimentismo”, sustentada por
uma falsa ideia etapista de desenvolvimento (que significa basicamente tornar-se
171
industrial). Desse modo, o imperialismo é ele próprio um modelo atualizado de
cidade e campo (WILLIAMS, 2011d, p. 456-464).
Se há a ideia de separação entre campo e cidade, que se tornou mais aguda
com os cercamentos e advento do industrialismo culminam no imperialismo do início
do século XX, é porque o campo e cidade são “realidades históricas em
transformação tanto em si próprias quanto em suas inter-relações” e a comparação
dessas duas realidades históricas é “uma das principais maneiras de adquirirmos
consciência de uma parte central de nossa experiência e das crises de nossa
sociedade” (WILLIAMS, 2011d, p. 471). Williams estabelece claramente sua
insistência no processo histórico amplo e na visão total de sociedade.
O que constata, no começo de sua obra e que serviu de problema inicial, foi a
persistência de certas ideias e imagens sobre campo e cidade; o seu objetivo é fazer
uma reavaliação crítica dessas ideias e imagens, pois a persistência delas caminha
lado a lado com pequenas mudanças, internas ou mesmo inconscientes, com
conteúdos históricos específicos. Assim,
A cada momento histórico é necessário confrontar essas ideias comas realidades históricas, que por vezes se as confirmam, outrasvezes a negam. Contudo, precisamos também, ao ver o processocomo um todo, confrontar as realidades históricas com as ideias, poishá ocasiões em que estas exprimem […] interesses e objetivoshumanos a que não temos como nos referir de outro modo. Oproblema não é apenas a dificuldade ou impossibilidade de encontrartermos mais específicos; a questão é que no campo e na cidade,fisicamente presentes e substanciais, a experiência encontra ummaterial que corporifica os pensamentos (WILLIAMS, 2011d, p. 475).
Ao estabelecer essa relação dialética, na qual se caminha não só de uma
realidade histórica para um conjunto de ideias, mas também deste para uma
realidade histórica, Raymond Williams está afirmando que, certos períodos da
história, e mais a história ampla como um todo, só podem ser compreendidos com
referência à experiência dos atores sociais. Como essas ideias se expressam em
termos de arte e literatura, a base de conexão entre a literatura e o mundo social
não estão em propriedades mediadoras, mas na própria experiência – que é social,
histórica, política e também simbólica.
172
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho, buscou-se pontuar e discutir os elementos
principais da vida e da obra de Antonio Candido e Raymond Williams. Na visão
apresentada neste estudo, as questões trazidas permitem esclarecer as principais
distinções e semelhanças entre os dois autores no que concerne à análise da
relação arte e sociedade.
Todas as aproximações e distanciamentos devem ser tomados dentro do
quadro de referência, formado pelas contribuições das tradições idealista e
materialista para o estudo da arte e da literatura. Certamente não é um debate novo,
mas orientou a produção intelectual quando Candido e Williams escreveram suas
obras e ainda hoje tem relevância, servindo de parâmetro para a área.
Isso se torna mais importante, porque a força das obras de Candido e
Williams aqui analisadas foi extraída do diálogo que buscaram eles estabelecer
entre as duas tradições. Foi por isso que chamamos o tipo de abordagem de ambos
os autores de sintética. Sintetizar, contudo, não significa fazê-lo do mesmo modo.
Observou-se que o trabalho dos dois autores se diferencia em pontos cruciais para a
sociologia da literatura. E isso começa com o modo pelo qual se estruturou a
atividade intelectual nos dois pensadores.
A entrada em um espaço atravessado por relações de poder, como é o caso
das instituições de ensino superior, é governada, em larga medida, por questões
concretas, como a classe social dos indivíduos. Antonio Candido era oriundo das
classes médias paulistanas e tinha exemplos familiares de atuação intelectual
pública. A fácil sociabilidade na USP, a empreitada crítica na revista Clima e em
jornais de circulação diária de São Paulo devem ser interpretados por meio dessas
questões.
Do modo inverso, Raymond Williams, oriundo da zona rural e da classe
trabalhadora, não encontrou espaços de sociabilidade que não fossem as secções
dos partidos políticos de então. Esse fator vem sedimentar a própria herança familiar
de Williams, fortemente ligado à política pela atuação do seu pai no sindicato dos
ferroviários.
Tanto quanto é possível enxergar, essas diferenças de trajetórias repercutem
fortemente nas obras dos autores em questão. Todo o projeto intelectual de
173
Raymond Williams está atravessado pela questão política, no sentido mais amplo do
termo, de profunda transformação das estruturas sociais capitalistas em direção ao
socialismo. Muitos dos seus textos refletem os novos desafios para construção de
uma sociedade igualitária e socialista por meio da cultura.
Já na teoria e na crítica de Antonio Candido, a dimensão política não é tão
forte. Com isso não se quer afirmar que Candido, como intelectual, não se inserisse
no debate público e não entrasse em questões políticas. Sabe-se que o pensador da
USP participou da fundação da União Democrática Socialista, em 1945, e do Partido
dos Trabalhadores, em 1980, além de ter se posicionado contra a opressão ditatorial
durante o Estado Novo e o Regime Militar. A própria revista Clima passou por um
momento de politização, no qual alguns dos seus membros passaram a reivindicar
para si um tipo de socialismo independente.
Apesar de todos esses fatores, o debate político não se transpôs de maneira
aberta para os escritos de Antonio Candido (salvo raríssimas exceções, como o
artigo A verdade da repressão, publicado no periódico Opinião, em 1972). Na
maioria das vezes, a sua produção teórica guardou relativa distância dessas
questões. Isso quer dizer que uma correlação entre a política e a crítica de Candido
não pode ser estabelecida? Sem dúvida, pode. Mas é significativo que tal
movimento exija um grande esforço de exegese, como o realizado por Celso Lafer
(1992, p. 292-294).
O projeto teórico de Antonio Candido é engajado em outra frente. O pensador
uspiano faz parte de uma geração de pensadores de traço modernista, cuja
preocupação central está em entender o processo de formação do Brasil para poder
modernizá-lo. Assim, Candido define o perfil do crítico na periferia do pensamento:
aquele que é ou está empenhado nas questões nacionais. Essa preocupação de
Candido guarda íntima relação com os objetivos da fundação da Universidade São
Paulo, que era a de forjar quadros para retomar da hegemonia política no país, e
isso não é simples coincidência. Tal objetivo só estaria ao alcance de pessoas como
o próprio Candido.
As preocupações iniciais de cada autor se consolidaram de tal forma que se
transformaram em marcas do seu projeto intelectual e tiveram reverberações
importantes, porque esbarraram nos elementos estruturais dos seus respectivos
contextos. No caso de Antonio Candido, a busca pela explicação do processo de
formação do Brasil, por meio das contribuições literárias, culminou na composição
174
de um tipo de avaliação crítica marcadamente interdisciplinar que não foi
comportada pelo espaço institucional das Ciências Sociais. Raymond Williams, por
seu turno, visava explorar a centralidade do termo cultura para a dinâmica das
relações sociais na Inglaterra e, por isso, entrou em confronto direto com a tradição
de crítica britânica, que afastava a literatura das questões sociais.
Nos dois casos, as contendas levaram à construção de um novo espaço
interdisciplinar (Teoria Literária e Literatura Comparada, em Candido, e Estudo
Culturais, em Williams) que apontam para a marginalidade de propostas
interdisciplinares, tanto no Brasil quanto na Inglaterra, até àquela altura.
Focando especificamente as características de cada um desses espaços,
percebemos que eles admitem como objeto de estudo aquilo que, ao mesmo tempo,
eram as preocupações intelectuais originais dos seus autores e estava sendo
negado pelas correntes dominantes dos seus respectivos meios: a literatura, em
Candido, e as novas formas de expressão cultural, notadamente aquelas dos meios
de comunicação de massa, em Williams.
Em nossa perspectiva, esses eventos se processaram como exigências dos
respectivos meios intelectuais – ou da margem que cada meio intelectual concedia
às questões que cada autor pretendia trabalhar. Houve uma justaposição entre as
solicitações do ambiente intelectual dos autores e suas preocupações mais
genuínas, tais como formadas pela influência familiar e pelas experiências de vida
de cada um deles.
Assim, a chave para a compreensão do pensamento de ambos os autores
reside no modo como responderam aos seus contextos sociais e aos desafios a que
foram lançados. No Brasil, é importante dimensionar o peso que o movimento
armado de 1930, paralelo a uma profunda crise econômica, teve na vida cultural
brasileira. Pode-se dizer que, de maneira geral, o interesse pelo Brasil e pelas suas
questões sociais cresceu. Na intelectualidade, esse elemento expressava-se por
meio de uma consciência do país e na denúncia de seus males sociais.
Em diversas ocasiões, Antonio Candido expressou a influência que esta
efervescência política e social teve sobre ele e sua geração. O interesse pelo lado
social dos fenômenos e a preocupação cada vez maior com os estudos sobre o
Brasil levaram-no a optar pelo recém-criado curso de Ciências Sociais. Desse modo,
podemos sustentar que muitos dos traços mais duradouros do pensamento de
175
Candido (o interesse pela cultura brasileira, a crítica como instrumento de
modernização social) são em larga medida estruturados a partir desse contexto.
A atividade intelectual brasileira passaria, posteriormente, por um momento de
afirmação durante a década de 1940, na qual ocorreu uma tentativa de consolidação
do padrão de construção conhecimento inaugurado pela USP. A década de 1950,
marcada pelo advento da sociedade de classes e pelo novo regime democrático e
populista, seria um momento de renovação, no qual o intelectual pôde fazer uso da
autonomia, que a posição social de Candido conferia, para refletir em meio ao novo
contexto.
Durante esse período, nas Ciências Sociais, enquanto Florestan Fernandes
buscava sintonizar a produção brasileira com os padrões científicos internacionais,
Antonio Candido visava refletir sobre o passado brasileiro e as questões projetadas
por ele para o presente. De um lado, com Os parceiros do rio bonito, que, por
motivos já aludidos, não se estabeleceu nas Ciências Sociais, e, já no fim da
década, com Formação da Literatura Brasileira – momentos decisivos.
Mais do que os objetivos a que se propõe ou os resultados alcançados, o que
interessa nessa última obra é que ela abre o espaço intelectual (e mesmo
institucional, se pensarmos no curso de TLLC da USP), no qual a literatura e a crítica
poderiam dialogar com a sociologia e as ciências sociais. Ela confere a Antonio
Candido também a identidade com a qual seria conhecido.
Na Inglaterra, a década de 1930 – período no qual Raymond Williams estava
adentrando a universidade – assistiu ao estabelecimento do estudo da literatura
inglesa como principal área de conhecimento das humanidades. À época, estudar as
obras literárias do cânone inglês era a principal atividade intelectual das
universidades, expressa em um suposto modo de debater as questões mais
fundamentais da vida humana.
O estudo do inglês tinha como projeto a preservação dos valores humanos e
sua posterior difusão por meio da educação. Se bem percebido, a ascensão dessa
disciplina deve-se às necessidades intelectuais e ideológicas do mundo britânico da
primeira metade do século XX. Contra a rápida expansão urbana e industrial, a
experiência da guerra e a perda de força da Inglaterra no cenário mundial,
ofereciam-se os valores humanos superiores.
Grande parte da obra de Williams deve ser compreendida por intermédio do
modo pelo qual ele se posiciona dentro desse debate. O que um contexto com essas
176
características oferece especialmente a um sujeito estranho (aquele que não tem
pertencimento orgânico ao grupo e, portanto, tem uma experiência dual de
aproximação e distanciamento) é a possibilidade de investigar de onde nascem e a
que servem tais visões. Assim, o traço marcante do pensamento de Williams é o ato
de tentar descortinar as disposições encerradas em modos particulares de perceber
a cultura e a literatura.
O estudo da literatura inglesa saturou o panorama intelectual britânico pelo
menos até 1960. Mas dois anos antes, Williams publicou a obra que o lançou como
intelectual público e mudaria o rumo do debate britânico: Cultura e sociedade.
Portanto, mais do que o conteúdo contido na obra, a relevância está nela inverter o
sinal do termo cultura (passa da espiritualidade para a materialidade) e ampliá-lo
para além da produção literária. Ou seja, esgarça o espaço de discussão e insere
um novo modo de consideração da literatura frente ao mundo social.
Em algum momento, depois de abrirem seus próprios espaços de atuação
intelectual, os autores foram chamados a saldar questões teóricas de suas
respectivas posições. As abordagens sintéticas, propostas por ambos, eram novas,
situavam-se às margens das disciplinas e, por isso, suscitavam debates.
Precisavam, assim, ser esclarecidas e defendidas.
No caso de Candido, a obra semifinal Literatura e Sociedade vem consolidar
o espaço aberto por Formação e oferecer respaldo teórico ao curso de Teoria
Literária e Literatura Comparada na USP. Antenado com a voga estruturalista e
formalista, o pensador brasileiro procurou aproximar sua área à Nova Crítica
estadunidense e conectá-la com alguma orientação sociológica, que, de maneira
prática, é a solução teórica da restrição aos fatores sociais. O debate encontrado em
Marxismo e Literatura é o de um Raymond Williams tardio, no qual procura resumir a
transformação de suas concepções nos últimos vinte anos, e passando, sobretudo,
pelo aprofundamento da sua relação com o marxismo. Atando a posição
“culturalista” do início da sua carreira com a tradição marxista, o pensador galês
constrói o que chamou de materialismo cultural.
É necessário notar que a obra em que cada um dos autores mais se dedica a
discussões teóricas estão em momentos distintos de suas respectivas carreiras.
Candido fez de Literatura e Sociedade seu libelo em prol da sua área de estudos,
circunscrevendo o espaço de atuação intelectual. Tanto que os famosos ensaios
sobre Memórias de um sargento de milícias e sobre O Cortiço só vieram depois. Já
177
o Marxismo e Literatura de Williams não está cercado pela necessidade de firmação
em um dado contexto; ao contrário, surge como liquidação teórica de várias obras
críticas renomadas.
Porém, o mais relevante é perceber como essas disposições se diferenciam
teoricamente. A literatura, em Candido, é um evento, que pode ser capturado no
momento em que transpõe para si algo do mundo social – metaforicamente, uma
fotografia do instante em que a obra plasmou em material estético algo do meio
social, sem, no entanto, se reduzir. Em Williams, a literatura é um processo social
que responde às disputas do seu contexto, por isso é a chave para iluminar relações
ideológicas das lutas entre as classes e os grupos sociais. Como desconfia da
categoria estética, Williams historicizou radicalmente a produção cultural, o que, em
última instância, ameaça a concepção usual de literatura como discurso
especializado.
Em suma, constatou-se que, no Brasil, o panorama intelectual do segundo
quarto do século XX levantava o interesse e a preocupação pela dimensão social
dos fenômenos; na Inglaterra, o estudo da literatura era dominado pelo debate a
respeito de questões morais e de elevação espiritual. Para construir seus
respectivos olhares, Candido e Williams tiveram que ser vetores nas direções
contrárias de seus meios intelectuais. O primeiro visou a autonomia da obra literária
frente aos métodos históricos e sociais de análise; o segundo buscou salientar a
dimensão social da cultura.
Desse modo, os espaços institucionais e intelectuais de Antonio Candido e
Raymond Williams, além de se comportarem como objetos de estudo elementos
bem distintos, também caminharam, do ponto de vista epistemológico, em direções
opostas entre si, porque responderam às questões postas por seus respectivos
contextos sociais. Dito de outro modo: ambos autores deram respostas aos desafios
dos seus respectivos ambientes intelectuais. Esses ambientes abriram
possibilidades de relacionar forma literária e mundo social, mas ofereceram caminho
particulares. Em uma comparação entre os dois, isso acarreta diferenças profundas.
Essas distinções também se percebem nas análises de obras literárias
realizadas pelos autores. No caso de Dialética da Malandragem e De Cortiço a
Cortiço, de Antonio Candido, temos uma análise orientada pela redução estrutural
dos dados externos que desemboca, ao fim, na reconstrução do universo ficcional
da obra literária – em um esforço quase didático de mostrar a pertinência dos
178
achados. Esse universo ficcional, denominado por Candido de todo coeso, pode, no
limite, ser alçado a metáfora de uma comunidade, a depender dos valores
mobilizados pelo crítico.
No caso de Raymond Williams, em O campo e a cidade, temos a noção de
estrutura de sentimentos, que tenta reconstruir, por meio da análise de obras,
realidades históricas particulares limitadoras e impulsionadoras de modos de sentir e
perceber. As obras, para Williams, são indicativas das relações sociais de um dado
contexto histórico – e, principalmente, das transformações destes. A partir deste
trabalho, foi possível concluir que os dois autores têm ênfases analíticas distintas.
As análises e críticas de Candido e Williams estão mais próximas do ponto de
vista cronológico – foram escritas e publicadas até a primeira metade da década de
1970. De algum modo, ambos os autores reagem à perda de força do
estruturalismo. Em comparação com Literatura e Sociedade, o pensador uspiano
flutuou com mais desenvoltura sobre a questão dos fatores sociais que circundam a
literatura, chegando a afirmar que o meio social faz “exigências” à obra literária,
talvez o limite da sua sociologia da literatura. Williams acentuou a noção de que, por
meio de uma experiência socialmente localizada, os atores sociais produzem
percepções que estruturam o modo sentir o mundo e, principalmente, de reagir às
mudanças – também o ponto alto de seu programa.
Ao comparar as duas análises, constatamos que o ponto que mais as
distancia é o modo de relacionar a literatura ao mundo histórico. As críticas de
Candido constroem uma ponte com o contexto histórico, mas sem expandi-lo para
frente ou para trás. Assim, as análises de Candido, apesar de bem realizadas, ou
justamente por isso, se resumem a uma especificidade histórica. Já em Williams
todo o esforço só faz sentido porque ele busca analisar as transformações e as
permanências na literatura à luz do transcurso histórico.
Também é importante assinalar que, quando publicou O campo e a cidade,
Williams ainda buscava acertar as contas com a intelligentsia britânica e o modo
como ela concebia o campo e o fenômeno da industrialização. Fez isso por meio da
análise da literatura, o que resultou em um profundo movimento de releitura do
cânone. Já Candido estava inserido no contexto da censura e da perseguição do
regime militar brasileiro. Percebem-se, nas duas análises selecionadas de O
discurso e a cidade, a tentativa de oferecer uma visão positiva sobre a sociedade
brasileira e de seu processo formativo, seja a partir da construção de um mundo
179
avesso a regras, seja a partir da mistura de raças. Tomadas em conjunto, e como
corolário das análises realizadas em Formação, as críticas de Candido ajudam a
conformar o que seria o cânone da literatura brasileira.
De modo geral, todas essas distinções devem ser discutidas no quadro da
sociologia da arte e de sua preocupação central: a necessidade de enraizar a arte
no mundo social. É interessante notar como a posição na qual os autores
adentraram no debate geral sobre os estudos de arte e literatura fizeram com que
eles tivessem percepções e necessidades distintas.
Antonio Candido se inseriu a partir do campo da sociologia e terminou no
campo das Letras e com uma posição teórica de restrição à sociologia e aos fatores
sociais. Williams foi introduzido no debate a partir do campo das Letras, ocupou um
entrelugar na academia (professor de dramaturgia) e nas suas últimas posições
teóricas (Marxismo e Literatura e Cultura) trata abertamente sobre o programa de
uma sociologia da cultura. Esses percursos, de algum modo, indicam por onde
caminharam os interesses de ambos os autores, estruturados a partir da dinâmica
social de seus respectivos lugares, além de sugerir seus limites e alcances.
No caso de Antonio Candido, o ponto central é a sua dificuldade em
reconhecer a sociedade, ou os fatores sociais, como causalidade externa para as
obras literárias. Isso ocorreu quando o pensador formulou a ideia de que só
importam os fatores transformados em internos; os externos não são considerados e
não devem entrar na análise. O tipo de sociologia da literatura construída em torno
desse programa é excessivamente focado em uma leitura internalista, inebriada com
a solução teórica e retórica do “texto ao contexto e vice-versa”.
Por outro lado, do ponto de vista dos compromissos intelectuais e políticos de
Antonio Candido, é válido lembrar que seu programa foi construído e maturado em
um período em que os países subdesenvolvidos estavam marcados por um projeto
muito peculiar de modernização nacional, que pautava a superação da condição de
subalternidade por meio da apreensão da cultura europeia.
Essa consciência do subdesenvolvimento acarretou um tipo de interpretação
da cultura nacional que tinha a cultura dos países centrais como principal parâmetro.
Discutia-se a possibilidade de se formar, aqui, uma tradição literária por meio de
expressões genuínas que reapropriavam o modelo cultural europeu. Com os sinais
de esgotamento desse projeto modernizador, percebido, sobretudo, nos papéis
assumidos pelos países subdesenvolvidos na nova ordem global, o desafio que se
180
coloca é pensar novas formas de diálogo com a cultura eurocêntrica, e,
consequentemente, novas formas de interpretação da cultura local.
A sociologia da cultura no Brasil precisa, assim, de uma alternativa à análise
interna dos fenômenos externos de Antonio Candido e à sociologia dos intelectuais
de orientação bourdieusiana empreendida por Sérgio Miceli, com foco em escritores
e intelectuais da geração do próprio Candido.
É interessante notar ainda que a sociologia como ponto de vista de Antonio
Candido pode ter algo a ensinar a sociologia da arte internacional no que possui de
mais forte: como método crítico capaz de interpretar uma obra à luz dos elementos
que a cercam. A posição periférica, nas relações de produção de conhecimento,
impede, até o momento, maior alcance.
Também sua prosa ensaística pode oferecer algo ao fazer científico e à
produção de conhecimento no contexto atual. O Brasil vive um momento de
profundo anti-intelectualismo e de fortes ataques às instituições formais de saber;
passa também por uma aguda crise econômica, o que repercute no financiamento
público da educação e da pesquisa. Sendo assim, a figura de Candido suscita a
independência intelectual, o comprometimento com o Brasil e oferece uma saída
para a produção de conhecimento (o ensaio), caso as perspectivas mais
pessimistas, do ponto de vista financeiro e cultural, se confirmem.
Pensando em Raymond Williams, a solução teórica dentro do marxismo para
o problema da materialidade da cultura pode, atualmente, parecer paralisante. Não
porque a cultura não tenha a dimensão material identificada por ele, mas porque ela
veio acompanhada de uma noção de hegemonia com pretensões de centralidade no
debate marxista. Centralidade, diga-se, no lugar da metáfora base e superestrutura.
Vivendo em um momento onde há uma intensa produção de cultura com vistas a
preencher as diversas esferas da vida com imagens, signos e símbolos de
mercadorias, não seria razoável restabelecer a noção de infra e superestrutura, pelo
menos como princípio operativo?
Em outra frente, a noção de cultura, inaugurada pelo pensador galês, tinha
como principal ganho, do ponto de vista político, a inclusão de diferentes formas e
expressões culturais e de distintos modos de vida como coabitantes de uma mesma
comunidade. Atualmente, em um contexto histórico onde a discussão sobre o
multiculturalismo está assentada, inclusive do ponto de vista de políticas públicas,
esse conceito de cultura pode parecer gasto.
181
No entanto, talvez o maior legado desse conceito não está no que ele
descreve (seja a cultura como significados comuns a todos os membros de uma
comunidade, seja como um terreno no qual diferentes modos de vida, ainda que
atravessados por relações de poder, coexistem), mas sim no que ele analisa (a ideia
de que as práticas sociais estão todas interconectadas, porque as estruturas sociais
são inseparáveis).
Assim, é a noção de totalidade que deve ser resguardada, como uma forma
de iluminar os caminhos para se refletir sobre um mundo no qual a cultura é vivida,
percebida e estudada cada vez mais de modo fatiado. Ou seja, a totalidade pode ser
uma ferramenta importante, reconstituir a cultura como objeto, interligando os
diversos espaços de produção de cultura.
Por fim, pensamos que trazer esses dois autores para discussão é um modo
de manter vivo seus respectivos legados. E esse legado, a nosso ver, está mais no
papel intelectual exercido por eles, sempre buscando refletir sobre os problemas e
as questões de suas próprias sociedades. Se tivermos em mente que vivemos em
uma sociedade que privilegia o debate teórico descompromissado, é possível
concluir que a obra deles deve continuar ativa.
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