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Ariano Suassuna, o palhao-professor e sua Pedra do Reinopor

Anna Paula Soares Lemos Departamento de Cincia da Literatura

Rio de Janeiro/ UFRJ 2007

Ariano Suassuna, o palhao-professor e sua Pedra do Reino.por

Anna Paula Soares Lemos Departamento de Cincia da Literatura

Dissertao de Mestrado em Literatura Comparada apresentada ao Programa de Ps-graduao em Cincia da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia da Literatura Orientador: Professor Doutor Andr Luiz de Lima Bueno

Rio de Janeiro/ UFRJ 20072

LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhao-professor e sua Pedra do Reino. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2006.132 fl. mimeo. Dissertao de Mestrado em Literatura Comparada.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________ Professor Doutor Andr Luiz de Lima Bueno Orientador ______________________________________________ Professor Doutor Frederico Augusto Liberalli de Ges UFRJ Depto. de Cincia da Literatura ______________________________________________ Professor Doutor Latuf Isaias Mucci UFF Instituto de Artes e Comunicao Social SUPLENTES: ______________________________________________ Professor Doutor Luiz Edmundo Bouas Coutinho UFRJ Depto. de Cincia da Literatura ______________________________________________ Professor Doutor Nonato Gurgel UFRJ Depto. de Literatura Brasileira

Defendida a Dissertao:

Conceito:

Em 15 de maro de 2007.

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Este trabalho dedicado ao meu av Jos Maria Franco Soares. Um sertanejo, antes de tudo um forte. Ele inventava e recontava histrias que sempre comeavam com Diz que era uma vez.... Um mentiroso lrico!

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Agradecimentos: A todos os que fizeram parte desta caminhada, o meu muito obrigado, o meu sonho, o meu riso, a minha festa! Ao meu orientador Andr Bueno, por toda a pacincia, pela amizade, pela confiana e pelas inmeras sesses de terapia. Ao Coordenador do Depto. de Cincia da Literatura da UFRJ, Alberto Pucheu, por reger a banda com toda a maestria e sempre acreditar na celebrao da festa do pensamento. Aos meus pais, Jos Alberto e Henriqueta Lemos, porque sem eles o meu espetculo da vida jamais teria comeado. Ao amigo Nerval Mendes Gonalves, que fez a reviso deste trabalho e que nunca me abandona mesmo com todos os meus sumios. Todo carinho queles que colaboraram de forma direta e rica com a minha pesquisa. So eles: Antonio Luiz Mendes, Antonio Sanseverino, Bete Rabetti, Cristina Cmara, Fred Ges, Eleonora Ziller, Grupo de Pesquisa CNPq Formao do Brasil Moderno: literatura, cultura e sociedade, Guga Monteiro, Iziane Mascarenhas, Jos Almino de Alencar, Jlio Dales, Luis Alberto Nogueira Alves, Nonato Gurgel e Vera Lins. E a todos os que, mesmo no citados, sabem que passaram pelo picadeiro e que fizeram parte deste espetculo. A vocs o meu agradecimento pelo trgico e pelo cmico que formam o circo da vida.

Aplausos, muitos aplausos antes que as cortinas se fechem e o sonho acabe!

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[...] Escrever estar no extremo De si mesmo, e quem est Assim se exercendo nessa Nudez, a mais nua que h, Tem pudor de que outros vejam O que deve haver de esgar, De tiques, de gestos falhos, De pouco espetacular Na torta viso de uma alma No pleno estertor de criar [...] Joo Cabral de Melo Neto

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[...] o mais importante e bonito, do mundo, isto: que as pessoas no esto sempre iguais, ainda no foram terminadas mas que elas esto sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. o que a vida me ensinou. Guimares Rosa

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O homem, dizem, um animal racional. No sei por que no se disse que um animal afetivo ou sentimental. Talvez, o que o diferencie dos outros animais seja muito mais o sentimento do que a razo. Vi mais vezes um gato raciocinar do que rir ou chorar. Talvez chore ou ria por dentro, mas por dentro talvez tambm o caranguejo resolva equaes de segundo grau.

Miguel de Unamuno

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Resumo:

A presente dissertao de Mestrado trata do Romance da Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta do escritor paraibano Ariano Suassuna. O fio condutor o narrador Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna, que, do centro de uma narrativa meio palco, meio picadeiro, na posio de um palhao-poeta, lida com as diversas tenses de pensamento que seu discurso provoca. Em ltima anlise, a pesquisa aponta como, no romance, o autor Ariano Suassuna faz a mediao entre a cultura popular e a erudita, o arcaico e o moderno, o rural e o urbano, a cultura oral e a letrada, o Brasil Real e o Brasil Oficial.

Abstract: The present Masters thesis intends to discuss the Romance da Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta by Ariano Suassuna, author from Paraba, which is a state in the northeast of Brazil. The focus is on the narrator Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna who tells his story from the center of a half-stage narrative - half circus ring, enacting as a clown - poet, deals with the many thought provoking tensions which his speech instigates. Hereafter, the research indicates how, in the romance, the author Ariano Suassuna, makes the mediation between popular culture and the highbrow, the ancient and the current, the rural and the urban, the oral culture and the lettered, the real Brazil and the official Brazil.

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SUMRIO:

O professor , REI e PROFETA...

1. 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 2. 2.1 2.2 2.3

Pequeno cantar acadmico a modo de introduo O professor em tenses armoriais O palhao-professor... ...da cultura popular O emparedado e a antena parablica O intelectual mediador gramsciano Regionalismo e cosmopolitismo: da utopia ideolgica modernidade capitalista Jos de Alencar e Ariano Suassuna: o encontro de romnticos A catequese s avessas Da Oralidade Popular Oralidade Transfigurada

12 15 17 22 25 28 34 36 43 45

O POETA, O palhao...

3. 3.1 3.2 3.3 3.4. 3.5. 4 4.1 5 5.1 5.2 5.3 6. 7. 8. 9. 10.

Ariano Suassuna e suas dualidades O popular e o erudito Quaderna A morte Caetana e a religiosidade popular O narrador e romancista-homenagem O castelo potico um aspecto da transfigurao O Brasil Real versus o Brasil Oficial: Quaderna, Corregedor, Dona Margarida A Pedra do Reino no debate cultural do pas D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna: letrado, trovador, cangaceiro, palhao O memorialista Quaderna: Rei do Quinto Naipe do Baralho O romanceiro popular do Nordeste A literatura de cordel: um parntesis histrico O jogo da ona Tia Filipa, o cantador Joo Melchades e a velha Maria Galdina, a Louca A Diana do Pastoril. O palhao, mestre de pista... ...e o espetculo no pode parar Referncias Bibliogrficas .

50 54 57 62 66 69 77 82 88 92 93 96 102 105 110 119 127

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O Professor, Rei e Profeta... [...] quem disser que escreve, pinta, esculpe ou canta para recreao prpria, se der ao pblico o que faz, mente; mente se assinar seu escrito, sua pintura, sua esttua ou sua cano. Quer, quando menos, deixar uma sombra de seu esprito, algo que sobreviva a ele. Miguel de Unamuno 11

1. Pequeno cantar acadmico a modo de introduo

Os palhaos esto presentes em todos os circos. No entanto, suas funes e inseres alteram-se de acordo com o tipo de espetculo.1 Os circos mdios e pequenos colocam o palhao no centro da trama e, de acordo com o enredo, o palhao adapta-se personagem. Eram esses pequenos circos que, na dcada de 1930, passavam pela tambm pequena cidade de Tapero, no serto da Paraba, onde o escritor paraibano Ariano Suassuna passou a infncia e comeou a construir todo o imaginrio dual popular-erudito que retrata e transfigura em sua obra.O mundo um circo e o mundo de meu teatro procura se aproximar dele: um mundo de sol e de poeira, como o que conheci em minha infncia, com atores representando gente comum e, s vezes, representando atores, com cangaceiros, santos, poderosos, assassinos, ladres, prostitutas, juzes, avarentos, luxuriosos, medocres enfim, um mundo de que no estejam ausentes nem mesmo os seres de vida mais humilde, as pastagens, o gado, as pedras, todo este conjunto de que o serto, como qualquer terra do mundo, est povoado. (SUASSUNA, 2000. In O PERCEVEJO, p. 110 e 111)

Ao se referir sua produo literria, Suassuna diz o meu teatro. Define-se ator e circense frustrado. Eu tenho voz baixa, feia e rouca [...] por isso que eu escrevo para teatro, para botar os outros para falar por mim.2 E escreveu mesmo a maioria de seus textos para teatro: em 1947, o ento estudante de direito escreve o primeiro deles, Uma mulher vestida de sol, e da por diante so mais 16 peas escritas.3 Mas no s por isso ele se resume teatral. A estrutura de seu romanceiro no foge regra. Seus romances transbordam em teatro circense, que engloba inclusive o mundo do teatro grego e da commedia dellarte, que por sua vez influenciam o Romanceiro popular do Nordeste (literatura de cordel), fio condutor de toda a obra do autor.

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BOLOGNESI, Mrio Fernando. Palhaos. In: O PERCEVEJO. Nmero 8, 2000. p. 65 a 73. In SUASSUNA, Ariano. Aula Magna Universidade Federal da Paraba. 1994. p.20. 3 O desertor de princesa (1948), Os homens de barro (1949), Auto de Joo da Cruz (1950), Torturas de um corao ou em boca fechada no entra mosquito (1951), O arco desolado (1952), O castigo da soberba (1953), O rico avarento (1954), Auto da Compadecida (1955), O casamento suspeitoso e O santo e a porca (1957), O homem da vaca e o poder da fortuna (1958), A pena e a lei (1959), Farsa da boa preguia (1960), A caseira e a Catarina (1962), alm dos espetculos de dana A demanda do Graal danado e Pernambuco do barroco ao armorial (1998).

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por influncia da cultura oral e de cima de um palco ou do centro de um picadeiro que ele sempre se expressa por meio de suas aulas-espetculo e de sua literatura e o bibliotecrio, editor de folhetos, astrlogo e memorialista Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, narrador-personagem de O Romance da Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta, no diferente. O tom circense aparece logo na primeira pgina do romance, lembrando os palhaos que chegam anunciando o espetculo pelo megafone que reverbera pela cidade:Romance da Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta Romance-enigmtico de crime e sangue, no qual aparece o misterioso Rapaz-do-Cavalo-Branco. A emboscada do Lajedo sertanejo. Notcia da Pedra do Reino, com seu Castelo enigmtico, cheio de sentidos ocultos! Primeiras indicaes sobre os trs irmos sertanejos, Arsio, Silvestre e Sinsio! Como seu Pai foi morto por cruis e desconhecidos assassinos, que degolaram o velho Rei e raptaram o mais moo dos jovens Prncipes, sepultando-o numa Masmorra onde ele penou durante dois anos! Caadas e expedies hericas nas serras do Serto! Aparies assombrticas e profticas! Intrigas, presepadas, combates e aventuras nas Caatingas! Enigma, dio, calnia, amor, batalhas, sensualidade e morte! (SUASSUNA, 1971)

Repara-se a o tom tragicmico dessa obra que j se anuncia palco do que se prope a trilogia ainda inacabada: A maravilhosa desventura de Quaderna, o decifrador e que continua com a Histria do rei degolado nas caatingas do serto: ao sol da ona caetana e segue com O romance de Sinsio, o Alumioso, prncipe da bandeira do divino do serto, em produo desde o fim da dcada de 1970 e que, segundo Suassuna, ter mais de oitocentas pginas. Vontade de Sherazade, de As mil e uma noites, como veremos mais adiante. Muita f em Deus, diz Suassuna em entrevista4. Religiosidade e vaidade que buscam a imortalidade do artista e do discurso. O personagem-narrador Quaderna, do centro do picadeiro, medeia, qual palhao em funo de mestre de pista, cada dualidade, cada discurso que perpassa a obra. Ele ao mesmo tempo fidalgo e popular, tradicional e peculiar, religioso e satrico, sangrento e cheio de gargalhadas. Do risvel e cmico ao dramtico e trgico, Quaderna, nesse ponto, transparece a voz de seu criador Suassuna e um maestro conciliador de suas4

In O Globo, 6 de agosto de 2006, p. 13.

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contradies e das tenses de pensamento que provoca com o seu discurso. Regente de tenses opostas. O que coincide diretamente com a noo de artista do terico espanhol Miguel de Unamuno em seu O sentimento trgico da vida. Ao tom de Unamuno, o artista espalha contradies. Contradio naturalmente. Pois que a vida uma tragdia, e a tragdia perptua luta, sem vitria nem esperana de vitria, contradio. (UNAMUNO, 1913, p. 13). Durante todo O Romance da Pedra do Reino, Quaderna narrador que nos parece tambm a representao em personagem do prprio Movimento Armorial criado por Suassuna em 1970 est sempre em questionamento, sob juzo, no meio de tenses de pensamento, entre o popular e o erudito: mora em uma casa que tambm biblioteca e Academia de Letras dos Emparedados do Serto, tem dois tutores de ideologias opostas o promotor alourado e poeta de direita Samuel Wandernes e o advogado negro e filsofo de esquerda Clemente Har de Ravasco Anvrsio. O prprio ttulo do primeiro captulo do romance j mostra o encontro entre o popular e o erudito: Pequeno cantar acadmico a modo de introduo. Alm disso, Quaderna responde a um inqurito pela morte de seu padrinho Sebastio Garcia Barreto e pela (possvel) participao nos acontecimentos que levariam entrada de uma cavalgada moura trazendo o Prncipe do Cavalo Branco (Sinsio, o Alumioso) Vila de Tapero. durante esse inqurito que ele conta sua epopia ao Corregedor e a sua escriv, Dona Margarida. E durante esse depoimento, e mesmo entre personagens de tons de legalidade Clemente advogado e Samuel promotor , que constri o seu castelo potico, a sua obra lapidar que une o popular e o erudito numa nica obra. Na voz de Quaderna, Suassuna concilia, observa e justifica as crticas que seu discurso Armorial provoca. Transfigura as tragicidades de um serto nordestino que ele pretende universal e raiz da cultura brasileira, deixando transparecer nesse momento o tom professoralideolgico do autor: eis a o corao do problema.

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1.1 O professor em tenses armoriais

Em 1969, Ariano Suassuna convidado, pelo ento reitor Murilo Guimares, para dirigir o Departamento de Extenso Cultural da Universidade Federal de Pernambuco. poca, Suassuna, j conhecido por seus textos teatrais, convoca, ento, Capiba, GuerraPeixe, Cussy de Almeida, Jarbas Maciel e Clovis Pereira para juntos procurarem uma msica erudita nordestina, a msica armorial, baseada em razes populares e que viesse se juntar a seu teatro, pintura de Francisco Brennand, ngelo Monteiro e Marcus Accioly, e ao romance de Maximiano Campos. Pretendia criar uma arte brasileira erudita baseada na cultura popular. Em 18 de outubro de 1970, com o concerto Trs sculos de msica Nordestina do barroco ao armorial, e com uma exposio de gravura, pintura e escultura, lana-se, no Recife, o Movimento Armorial, base de toda a sua obra. a arte popular nordestina, portanto, que alinhava e d forma ao Movimento Armorial criado por Ariano Suassuna e tem no seu O Romance da Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta e na continuao Histria dO rei degolado nas caatingas do serto: ao sol da ona Caetana suas representaes atravs da literatura. A terica Idelette Muzart-Fonseca do Santos, que defendeu tese de doutorado na Sorbonne sobre o assunto, bem lembra que essa arte popular orientadora da pesquisa armorial e condiciona a criao de artistas cultos que se renem por confluncia de interesses para recriar ou, nas palavras de Suassuna, transfigurar esse material popular segundo modos pertencentes prtica artstica erudita. O Movimento Armorial, que tem sua base no romanceiro popular nordestino (literatura de cordel), difere, ento, do Regionalista, manifestado por Gilberto Freyre em 1926, porque destaca uma esttica que se compromete com a religiosidade e a transfigurao potica da realidade (tal qual no teatro grego, no medievo ibrico, no circo e na commedia dellarte), e d menos peso

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(e menos aqui quer dizer mesmo um tom a menos) ao tom sociolgico/histrico predominante em Freyre. Vejamos o que dito textualmente na apresentao do manifesto O Movimento Armorial, de 1974:[...] tem-se que perquirir as origens de nossa cultura, respeitando sua forma pura e simples de apresentao, e procurando encontrar [...] uma Arte e uma Literatura eruditas nacionais, com base em suas razes populares. (SUASSUNA, 1974, p. 5)

Pretende, portanto, um Nordeste como representao da cultura brasileira, filtrada por uma dimenso erudita. Essa referida dimenso erudita armorial, ainda seguindo Idelette Muzart, se manifesta tanto na reflexo terica, desenvolvida em paralelo criao, quanto na multiplicidade de referncias culturais. por isso que Suassuna se definiu certa vez como um intelectual de gabinete que homenageia a fala desse povo [nordestino] sem efetivamente fazer parte dele. Ariano Suassuna filho de Joo Suassuna, governador da Paraba que foi morto na dcada de 1930 por desavenas polticas. Portanto, parte do chamado Brasil Oficial, na expresso de Machado de Assis. Brasil Real e Brasil Oficial expresso machadiana que est muito presente na obra em questo ser mais bem desenvolvida durante o estudo. Com base nessas afirmaes e sem esquecer as tenses ideolgicas provocadas por tericos como Jos Miguel Wisnik, defensor de uma viso multifacetada das manifestaes populares , este estudo procura, por outras palavras, localizar as mediaes do palhao Suassuna diante de tais tenses ideolgicas na modernidade, alm das buscas de intertextualidade e interdiscursividade do intelectual tradicional, (professor Suassuna), com os demais representantes da cultura popular do Nordeste, os intelectuais orgnicos, principalmente os cantadores e cordelistas. Veremos o que Suassuna consegue em sua obra ao se pretender esse intelectual mediador da cultura popular, no sentido gramsciano, ao transfigurar a realidade, j que se diz no um regionalista, mas escritor de um Realismo Transfigurado. Em que medida ele busca, na Pedra do Reino, a pureza na cultura e o galope do sonho como resistncia e em que 16

medida essa resistncia grita e encobre, encobre e grita, seco como pedra, o peso trgico do serto atravs de um romance em estrutura de picadeiro. Um circo como metfora da vida.

1.2 O palhao-professor...

Tanto a voz tradicional do professor quanto a voz circense e mediadora do palhao so configuradas no narrador Quaderna, que o homem que fala no romance e figura principal de nossa anlise. Ento, segundo Quaderna, o romance o nico gnero literrio que concilia tudo:[...] Quando cheguei na palavra romance, tive um sobressalto: era o nico gnero que me permitia unir, num livro s, um enredo, ou urdidura fantstica do esprito, uma narrao baseada no aventuroso e no quimrico e um poema em verso, de assunto herico [...] O romance conciliava tudo! [...] Faria do meu Castelo sertanejo a nica Obra ao mesmo tempo em prosa e em verso, uma Obra completa, modelar e de primeira classe! (SUASSUNA, 1971, p.198)

Tomando o terico russo Mikhail Bakhtin e a sua Teoria do Romance como base, podemos dizer que Quaderna tem sua ao sempre iluminada ideologicamente, sempre associada ao discurso. A ao, o comportamento do personagem no romance so indispensveis tanto para a revelao como para a experimentao de sua posio ideolgica, de sua palavra. (BAKHTIN, 1993, p. 136) Quaderna ainda encontra Bakhtin e o seu plurilingismo do romance quando diz que o romance conciliava tudo!. Segundo Bakhtin, o pesquisador depara-se em tal gnero com combinaes de unidades estilsticas. O estilo do romance uma combinao de estilos. Ento, no toa que Suassuna escolheu o romance como estilo que resume toda a sua obra. Ariano diz que A Pedra do Reino um resumo de tudo o que fez e pensou at hoje. por isso que combina todos os estilos e formas de expresso alinhavadas pela cultura popular nordestina que, em seu pensamento armorial, constroem, do forma cultura brasileira:

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as xilogravuras que ilustram e so parte importante do inqurito palavras de Quaderna e as citaes (em poema de cordel) do Romanceiro Popular do Nordeste.

A literatura de cordel a fonte autntica de uma literatura nos termos que eu busco: uma literatura brasileira feita margem da civilizao urbana e suas influncias cosmopolitas. (SUASSUNA, Jornal do Brasil, 10 de setembro de 1971).

Suassuna diz que no o compreender quem no o focar pelas lentes de um caleidoscpio. Mas h ressalvas na composio alqumica dessa heterogeneidade estilstica que fundamenta o caleidoscpio de Suassuna. A contradio que persegue e angustia sua personalidade e proposta artstica que, mesmo defendendo uma ideologia que nega as influncias, incorporaes e o cosmopolitismo da cultura de massa ao buscar a forma pura e simples da nossa cultura, como diz textualmente no depoimento acima, de l, do urbano cosmopolita, que ele recebe atualmente os (merecidos) aplausos por sua esttica, que se quer, a um s tempo, regional e universal. Aceitao que se traduz em adaptaes constantes para a televiso e o cinema de suas obras, que, com isso, passam a fazer parte do jogo de livre uso comercial de vozes de diversas procedncias da indstria do entretenimento, o que implica falar em contaminaes inevitveis do mundo globalizado na busca da pureza original da arte popular...5 No fragmento inicial de O Romance da Pedra do Reino possvel perceber como, por meio do narrador, o autor expe suas angstias e medeia o tom trgico desse serto a que pertence e est... preso, como num isolamento causado por uma modernidade, uma urbanizao e uma oficialidade que o sufocam, mas s quais, ao mesmo tempo, ele no pode negar que faa parte, j que nesse urbano, nessa modernidade, nessa oficialidade que ele Suassuna constri todo o arcabouo terico que aplica aoEntre suas obras adaptadas para a tev esto: O santo e a porca, O auto da compadecida (tambm adaptada para cinema), Uma mulher vestida de sol. Em 2007, sero adaptados pelo diretor Luiz Fernando Carvalho oito captulos de O Romance da Pedra do Reino para um projeto da TV Globo intitulado Quadrante. O Romance da Pedra do Reino tambm foi adaptado para o teatro pelo diretor Antunes Filho.5

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analisar a cultura popular nordestina. Haja vista o fragmento do primeiro folheto dA Pedra do Reino Pequeno Cantar Acadmico a Modo de Introduo:[...] talvez por causa da situao em que me encontro, preso na Cadeia, o Serto, sob o sol fagulhante do meio-dia, me parece, ele todo, como uma enorme cadeia, dentro da qual, entre muralhas de serras pedregosas que lhe servissem de muro inexpugnvel a apertar suas fronteiras, estivssemos todos ns, aprisionados e acusados, aguardando a deciso da justia; sendo que, a qualquer momento, a Ona-Malhada do Divino pode se precipitar sobre ns, para nos sangrar, ungir e consagrar pela destruio [...] (SUASSUNA, 1971, p. 32)

Suassuna, ento, coloca o narrador Quaderna como esse artista emparedado (preso) porque so seus desejos ideolgicos que o prendem e o distanciam do veloz e impaciente crescimento do cosmopolitismo6 que o assusta. Aqui, podemos traar uma analogia, um possvel intertexto com o poema em prosa de Cruz e Sousa, O Emparedado, que trata justamente dessa impossibilidade dos desejos vitais do poeta, do emparedamento da Arte Desde que o Artista um isolado, um espordico, no adaptado ao meio, mas em completa, lgica e inevitvel revolta contra ele [...] (CRUZ E SOUSA, p.392) Veja que, mesmo ao escolher o plurilnge e hbrido gnero romanesco como sntese de toda a sua obra, Quaderna, em A Pedra do Reino, ao construir sua obra lapidar, s aceita referncias e influncias especficas e vinculadas s questes da Arte Armorial.[...] aquela que tem como trao comum principal a ligao com o esprito mgico dos folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Msica de viola, rabeca ou pfano que acompanha seus cantares e com a xilogravura que ilustra suas capas [...] (SUASSUNA, 1974, p. 7)

Pela filosofia kantiana, o cosmopolitismo uma atitude ou doutrina que prega a quebra das fronteiras entre as culturas, os interesses e/ou soberanias nacionais com a alegao de que a ptria do homem o universo. (In KANT, Immanuel. Idea for a Universal History with Cosmopolitan Intent. In: The Philosophy of Kant: Immanuels Kant Moral; and Political writings. Translation by C. Friedrich. New York: p. 116-131,1949).

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Portanto o hbrido de sua obra tem o seu limite ideolgico armorial.7 E a tambm um ponto de conciliao em que Suassuna, parece-nos, mesmo transitando pelos veculos de massa, no se mostra nem o integrado e nem o apocalptico de Umberto Eco. Na voz do personagem-narrador Quaderna, sua pretenso ainda maior e a partir desse momento o palhao, o bufo Suassuna comea a se entremostrar - ao escrever um Romance herico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminolgico-dialtico e tapuio-enigmtico de galhofa e safadeza, de amor legendrio e de cavalaria picosertaneja ou ainda uma espcie de Sertaneida, Nordestada ou Brasilia: Ao tom de um riso tragicmico universal. Importante perceber que o serto descrito no realismo transfigurado de Suassuna tem um tom romntico, idealizado, muito semelhante ao que podemos identificar nos romances de Jos de Alencar. Alencar segrega o sertanejo no sentido de coloc-lo num limiar parte do mundo, num instinto de proteo da velocidade urbana, em tom lrico e, talvez, ingnuo. Assim ele faz com seu personagem Arnaldo em O sertanejo, quando descreve a relao deste com uma ona pintada e brava. Alegorias do arcaico protegido, de olho num cosmopolita que ameaa:Devia de achar-se mais de cem ps acima da terra; e nessa grande altura, suspenso por duas finas cordas de algodo tranado, estava mais tranqilo do que se pousasse no cho, onde o poderiam incomodar a m companhia dos rpteis e a visita de alguma fera [...] No somente por esta razo estava Arnaldo seguro de si, mas tambm pela confiana em sua superioridade [...] (ALENCAR, p. 53 e 58)

Estava mais tranqilo do que se pousasse no cho... Suspenso de realidade emprica, possibilidade de segurana - tom romntico sertanista. Alis, veja que esse romantismo sertanista iniciado em Alencar tem o exato tom ideolgico do armorial de Suassuna. Vale destaque o que Nelson Werneck Sodr8 fala ao analisar o Alencar sertanista (vale lembrar, em obras do sculo XIX):

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O Romance da Pedra do Reino traz citaes do romanceiro popular do Nordeste e todo ilustrado com xilogravuras de brases e insgnias armoriais. 8 In BOSI, Alfredo. Histria concisa da literatura brasileira. So Paulo: Editora Cultrix, p. 156.

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[...] como aspecto formal e insistente na inteno de transfundir um sentido nacional fico romntica. Tal preocupao importa em condenar o quadro litorneo e urbano com aquele em que a influncia externa transparece, como um falso Brasil. Brasil verdadeiro, Brasil original, Brasil puro seria o do interior, o do serto, imune s influncias externas, conservando em estado natural os traos nacionais.

Contedo que poderia ter sido anlise do prprio texto armorial. Como se Suassuna o tivesse retirado l do sculo XIX e tentasse continuar essa mesma ideologia dois sculos depois. A diferena esttica que Suassuna apresenta um sertanejo mais erudito (no caso da Pedra do Reino) e de esperteza admirvel (no caso, por exemplo, de Chic e Joo Grilo de O auto da compadecida) e o liberta, de certa forma, salva esse mesmo sertanejo por intermdio do riso, da carnavalizao. Do riso a cavalo ambivalente, para no perder o forte tom medieval da obra. Por intermdio de seu castelo potico que a literatura. Portanto num tom mega, que de nuances diferentes das de Alencar, lrico e, seguindo ainda a expresso utilizada pelo prprio Werneck Sodr, ingenuamente minucioso. Ento, no sentido esttico, Ariano afina mais ao tom do romantismo de Dom Quixote de Cervantes. Quixote, como o narrador Quaderna de Suassuna, se liberta no mbito do castelo potico de tom letrado. Mas ambos esto presos: Quaderna emparedado, encarcerado na cadeia pblica de Tapero, e Quixote preso em sua prpria loucura alegrica. Ambos numa tentativa de libertao e imortalidade por meio da literatura. Suassuna o palhao quando - ou ele prprio ou suas personagens - serve de mediador de oposies aparentes. Isso porque, como j se viu no incio do captulo, no universo circense, o corpo do palhao que surge intermediando o srio e o risvel, o trgico e o cmico, a morte e o riso. A matriz do circo o corpo, ora sublime, ora grotesco. Diferentemente do ator de teatro, o artista, no circo, no representa; ele vive seu prprio tempo, com ritmo e pulsao prprios. Ou melhor, ele representa porque est inserido em um espetculo, mas representao de si mesmo. No circo, o sublime representado pelo corpo perfeito e o desempenho do acrobata; j o grotesco 21

representado pelo corpo disforme e desajustado dos palhaos. O espetculo circense desloca-se facilmente entre a morte e o riso. A exposio do grotesco no corpo do palhao serve de antdoto para sedimentar a experincia de assombro (sublime) que o pblico vivencia com as acrobacias que trazem a morte como possibilidade constante. nesse sentido morte e riso que, em sua obra, Suassuna utiliza o circo como metfora da vida e nesse contexto que homenageia e defende a cultura popular em que acredita. Transforma-se no bobo que trata rindo de questes trgicas e trata srio de questes cmicas. Num jogo de espelhos constante entre o bobo e o professor (entre o Rei e o Palhao, que segundo Suassuna so as duas vertentes da alma humana). Joga a isca e deixa que essas dualidades tragdia e comdia - se choquem.

1.3. ...da cultura popular

Agora, ser importante destacar o contorno conceitual da idia de popular utilizado por Ariano Suassuna. Conceito muito especfico, pois o autor quer reconceber o sentido da palavra folclore, ao tentar definir a base cultural do povo nordestino que o influencia. Sobre o conceito de cultura popular, o terico Peter Burke, em seu Cultura popular na idade moderna, destaca que o problema que uma cultura um sistema com limites muito indefinidos. Concorda Jos Miguel Wisnik quando critica o tom nacionalista de determinados movimentos que tentam colocar num estojo museolgico as manifestaes populares que, do seu ponto de vista, no podem ser precisamente definidas, nem em suas aes, nem em suas influncias, que mudam, se movimentam e assimilam constantemente uma diversidade de influncias. So, portanto, hbridas e renovveis. Se pensasse assim, Suassuna deixaria de sentir-se emparedado. Entenderia, nas palavras do terico Stuart Hall, que os espaos so fixos, mas que os

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locais so mveis. Que a identidade cultural se move do que parece ser definido pelo territrio, pela geografia, para o campo aberto da constante reinveno. Movimento que passa de uma busca de identidade para um processo de identificao. Ao pensar nessa identificao, vamos entender que para Suassuna intelectual tradicional gramsciano o seu popular, o que ele visita e interpreta com o seu recorte erudito, aquele das manifestaes artsticas orgnicas do serto do Nordeste brasileiro. O seu espao fixo ento o serto nordestino e as suas manifestaes que aparecem (a contragosto) na maioria das vezes denominadas de folclore. Sobre a palavra folclore, Cmara Cascudo nos diz, em seu livro Literatura oral no Brasil, que tem essa denominao tudo aquilo que decorre da memria coletiva, que popular, mas que no pode ser exatamente localizado no tempo seno como annimo e antigo, resistindo ao esquecimento pela oralidade. No ser, portanto, diz ele, um documento literrio ou um ndice de atividade intelectual. Suassuna, quando cria em 1970 o Movimento Armorial, mostra um contraponto definio de Cascudo, j que, com esse movimento, quer destacar o que h de documento potico, literrio e de relevncia intelectual na cultura popular nordestina. Portanto, quer trazer essa cultura popular ao mbito do erudito, documentando-a na sua prpria obra e, ao fazer isso, desfolcloriza essa cultura. Desfolcloriza, entretanto, ao mesmo tempo em que a coloca num estojo museolgico das correntes nacionalistas, na expresso de Wisnik. que, ao poetizar, ao sacralizar e recortar em tom erudito, por intermdio do armorial, essa arte popularsertanejo-nordestina, Suassuna no afina em discurso com o outro tom, aquele das massas urbanas e do cosmopolitismo que, espalhados e envoltos na modernidade das cidades, provoca um qu de desconforto ao discurso de quem - mesmo quando tambm entende e bebe das mltiplas referncias populares que a cultura urbana moderna hbrida assimila - procura uma voz da terra, afastada e protegida das influncias

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externas, americanizadas. Isso se mostra quando Suassuna diz que o serto nordestino - por ser distante do litoral - mais protegido da americanizao que assola a modernidade. Para Suassuna, o serto um mundo fechado, intocado pela modernizao e, portanto, reserva da nao. Essa busca do nacional-popular sem influncias externas teve incio j em Mrio de Andrade em seu Ensaio sobre a msica brasileira (1928), quando ele se referia s virtudes autctones e tradicionalmente nacionais da msica rural que serviriam de base pesquisa da expresso artstica brasileira e que deveriam ser cuidadosamente separadas da influncia deletria do urbanismo9. Hoje, ao tratar do tema - a msica Wisnik reconhece que tal escolha correspondia paixo e defesa de uma espcie de inconsciente musical rural, regional, comunitrio contido nos reisados, cantos de trabalho, msicas religiosas, cantorias e repentes que fundiam a msica ibrica, sagrada, profana e carnavalesca com a msica negra e indgena, o que promovia a magia, o trabalho, a festa, a improvisao. Mas aponta um problema no que se refere a essa busca nacional-popular modernista:

que o nacionalismo musical modernista toma a autenticidade dessas manifestaes como base de sua representao em detrimento das movimentaes da vida popular urbana porque no pode suportar a incorporao dessa ltima, que desorganizaria a viso centralizada homognea e paternalista da cultura nacional. O popular pode ser admitido na esfera da arte quando, olhado distncia pela lente da estetizao, passa a caber dentro do estojo museolgico das correntes nacionalistas, mas no quando, rebelde classificao imediata pelo seu prprio movimento ascendente e pela sua vizinhana invasiva, ameaa entrar por todas as brechas da vida cultural, pondo em xeque a prpria concepo de arte do intelectual erudito. (WISNIK, 1982, p. 133)

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Mrio de Andrade registra essa busca tambm em O turista aprendiz, nas questes estticas propostas no prprio romance Macunama etc. Sobre Macunama, para quem se interessar por aprofundar as questes de Mrio de Andrade, vale uma leitura da pesquisa da terica Gilda de Mello e Souza O tupi e o alade.

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1.4 O emparedado e a antena parablica

A escolha ideolgica de Suassuna tem o tom nacional-popular modernista que tenciona as influncias cosmopolitas. O autor transparece na obra que analisamos, pela voz de Quaderna, uma angstia de emparedamento da cultura do serto diante da cultura de massa urbana ainda que essa mesma cultura urbana o receba o autor Suassuna com aplausos, reconhecimentos e adaptaes. Parece-nos que Suassuna receia que as culturas locais percam suas prprias vozes, sob um pseudomanto unificador de um outro padro cultural, supostamente dominante e internacionalizado. Teme uma substituio de valores centrais da identidade nordestina por outros que sejam estranhos s razes regionais. Mas, paradoxalmente, tenta no aceitar que essas chamadas razes regionais reverberem por conta prpria pela modernidade, colocando-se como o mediador, o filtro representante dessa cultura. Escolhe quem pode adaptar e como cada uma de suas obras deve ser adaptada, acompanha de perto, traz a voz de controle para o seu serto. ento fiel em ao de proteo, ao mesmo tempo em que forte em certo poder miditico. Assim, olhou com desconfiana o movimento Mangue Beat, que surgiu na dcada de 1990, liderado pelo msico pernambucano Chico Science (ou, para Suassuna, Chico Cincia), que, numa espcie de tropicalismo tardio em Pernambuco, utiliza como metfora a fertilidade dos mangues do Recife. Essa fertilidade justamente associada troca incessante de matria orgnica entre as guas doces do rio e as salgadas do mar. Diz Science, com tal metfora, que h de se intensificar trocas culturais entre as mais diversas tradies de vida. O isolamento cultural para ele, assim como o aterro dos esturios dos rios, s bloqueia a permuta de diferenas. A imagem do Mangue Beat uma antena parablica enfiada na lama. Com essa imagem, ele quis mostrar que era

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possvel conectar o espao frtil dos manguezais rede mundial de circulao de informaes [representada poca pela antena parablica]10. O mangue para o Mangue Beat qualquer parte, qualquer ponto de partida do qual um artista faz e desfaz articulaes com outras partes. Eles partiram ento de suas toadas de cavalo-marinho, emboladas, batidas quebradas de coco e maracatus e divulgaram-nas tanto em suas primeiras manifestaes regionais como por meio do hibridismo musical. Mostra-se a que, com a globalizao, ainda que os espaos de vida permaneam fixos, os locais de interao que registram a individualidade dos grupos sofrem desterritorializao e estranhamento, desmanche da geografia. Ento, por intermdio da mdia, do ambiente acadmico, dos museus, da Internet, as relaes no so estabelecidas de modo polarizado; ao contrrio, h uma negociao da diversidade. E esses contatos constantes com o que diferente produzem, por fim, o carter das sociedades contemporneas. E Suassuna, que tem certa dificuldade em aceitar essa negociao, se sente emparedado, preso, ainda que paradoxalmente aplaudido pela mesma contemporaneidade. No entanto importante ter um olhar crtico a tal viso de negociao da diversidade para que no se tenha uma impresso de que todas as misturas so vlidas quando feitas indiscriminadamente. O [...] Chiclete eu misturo com banana e o meu samba vai ficando assim [...] do Jackson do Pandeiro define e d uma medida crtica ao que o Tropicalismo na dcada de 1960 queria: a mistura do moderno com o arcaico, do artesanal com o industrial, do rural com o urbano, do chiclete representante forte da indstria americana com a banana principal fruta tropical brasileira. Tanto assim que a prpria palavra tropicalismo, escolhida para dar nome ao manifesto criado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, foi inspirada na palavra tropiclia por causa das afinidades com o trabalho de mesmo nome do artista plstico Hlio Oiticica. Tratava-se de uma instalao que consistia num labirinto ou mero caracol de paredes de madeira, com areia no cho para ser pisada sem sapatos, um caminho enroscado,10

In ANJOS, Moacir dos. Local/ Global: arte em trnsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 62.

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ladeado de plantas tropicais, indo dar, ao fim, num aparelho de televiso ligado, exibindo a programao normal11. Portanto um caminho tortuoso com representaes da floresta tropical que chegam modernidade do veculo de massa mais moderno da poca a televiso. Caetano Veloso, em Verdade tropical, diz que no gostava muito do tal ismo inserido palavra tropiclia pelo ento jornalista iniciante Nelson Motta.

[...] eu achava que, ao contrrio de tropiclia, uma palavra nova, tropicalismo, me soava conhecida e gasta, j a tinha ouvido significando algo diferente, talvez ligado ao socilogo pernambucano Gilberto Freyre12 (o que mais tarde se comprovou), de todo modo algo que parecia excluir alguns dos elementos que mais nos interessava ressaltar, sobretudo aqueles internacionalizantes, antinacionalistas, de identificao necessria com toda a cultura urbana do Ocidente (VELOSO, 1997, p. 192).

Nesse sentido, se a viso nacionalista extrema provoca a tal sensao de emparedamento, como transparece nos emparedados do serto do Suassuna, a antinacionalista e internacionalizante no deve perder de vista que a negociao da diversidade - que se iniciava nesse momento tropicalista de tom urbano no era e no feita sem alguns prejuzos das foras mais frgeis e perifricas da cultura. As foras econmicas europias e americanas, por exemplo, influenciam muito e em certa medida ditam regras culturais aos pases ditos subdesenvolvidos. E a Jackson do Pandeiro critica e defende a sua escolha: Eu s boto bip-bop no meu samba quando o Tio Sam tocar um tamborim [...].13 Vamos trocar de igual para igual? o que pergunta. Ento, se h tal diversidade, h tambm o direito de escolha crtica. Suassuna sabe disso. Como artista que espalha contradies, se por um lado criticava o movimento Mangue Beat que no prprio nome nacionaliza e internacionaliza a cultura: mangue da terra em beat, em ritmo de mutao , por outro, como quem em gestos reconhece tal valor, se debrua e chora no caixo de Chico Science quando este prematuramente morre. De um11 12

In VELOSO, Caetano. Verdade tropical, p. 188. Gilberto Freyre utiliza pela primeira vez o conceito de tropicalismo ou luso-tropicalismo em novembro de 1951, numa conferncia realizada em Goa. Tal conceito, primeiro descrito em duas publicaes Aventura e rotina e Um brasileiro em terras portuguesas deu origem luso-tropicologia, que era uma proposta de cincia ligando a antropologia ecologia de modo a estudar a cultura europia e a cultura tropical. 13 Chiclete com banana fez sucesso na voz de Jackson do Pandeiro e de autoria de Gordurinha e Almira Castilho.

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choro que pode ter sido ambivalente (e aqui, dizendo isso, nos permitimos que seja apenas uma provocao): tanto pelo reconhecimento da perda de um artista rico em idias e expresses culturais como pela incapacidade que ele prprio Suassuna, no tom de quem se mostra o forte da mediao com o Nordeste teve de arrebanhar para o Armorial tal artista criativo. Constante vontade de mediao que nos parece rondar o projeto Armorial de Suassuna. Vem da a necessidade de olhar com cuidado as questes do intelectual mediador da cultura de Gramsci. Prximo tpico, onde utilizamos como fonte as anlises de Marilena Chau.

1.5 O intelectual mediador gramsciano

Diante desse panorama, e de todas as ambivalncias suassunianas, preciso, mesmo assim, entender a sua escolha: a identificao de um artista/escritor que no ingnuo com a expresso nacional-popular. Tal expresso constantemente convertida em nacionalismo cultural ou em populismo nacionalista, como bem lembra Marilena Chau. Conceitos controvertidos como j vimos at aqui. Ento, na busca por entender esse nacional-popular e traduzir a interpretao da postura de Suassuna com relao ao popular diante da modernidade, encontramos em Marilena Chau (e depois conferido na fonte: O Intelectual e a formao da cultura) a definio dos conceitos de intelectual mediador da cultura popular de Antonio Gramsci que em certa medida coincide com a posio de Suassuna e de seu chamado realismo transfigurado. Para Gramsci, a mediao do popular 14:

1. A capacidade de um intelectual ou de um artista para apresentar idias, situaes, sentimentos, paixes e anseios universais que, por serem universais, o povo reconhece, identifica e compreende espontaneamente.14

In: CHAU, Marilena. Seminrios. O Nacional e o popular na cultura brasileira. SP: Editora Brasiliense, 1983. p. 15.

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2. Tambm a capacidade para captar no saber e na conscincia populares instantes de revelao que alteram a viso de mundo do artista ou do intelectual, que, no se colocando numa atitude paternalista ou tutelar diante do povo, transforma em obra o conhecimento assim adquirido.

3. A capacidade para transformar situaes produzidas pela formao social em temas de crtica social identificvel pelo povo.

4. Por fim, a sensibilidade capaz de ligar-se aos sentimentos populares, exprimilos artisticamente, no interessando qual o valor artstico da obra.

Marilena Chau complementa e resume a posio de Gramsci:O popular na cultura significa, portanto, a transfigurao expressiva de realidades vividas, conhecidas, reconhecveis e identificveis, cuja interpretao pelo artista e pelo povo coincide. [grifo meu] (CHAU, 1983, p. 15).

Se pudermos fazer ento um paralelo dessa teoria de Gramsci com as caractersticas da obra de Suassuna, tomando por base os seus depoimentos e o romance que analisamos aqui, podemos entender que ele pretende ser esse intelectual mediador da cultura popular quando destaca os anseios universais da cultura nordestina por meio da construo da obra do narrador-personagem Quaderna que pretende um serto universal , mostra os instantes de revelao do personagem que alteram a viso do mundo do artista ou do intelectual quando fala de sua cegueira epopica e da Demanda do Sangraal relao direta com a Demanda do Santo Graal e trata das revelaes e cegueiras por que passa. Haja vista a fala do narrador durante o depoimento ao personagem Corregedor e escriv Dona Margarida:

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-- Uma cegueira? E o senhor cegou? Est cego? [...] -- Sr. Corregedor, de fato, uma cegueira muito estranha, essa que me assaltou os olhos, naquele dia. A meu ver, ela parenta prxima da epilepsia-genial que tambm me atacou, como lhe disse. Deixaram-me as duas numa espcie de vidncia-penumbrosa, na qual o Mundo me parece com um Serto, um Deserto, o De-Serto [...] H pouco, quando eu vinha chegando aqui para a cadeia, tive essa idia de que o prprio serto era uma Cadeia enorme, cercada de pedras e sombras, de lajedos fantsticos e solitrios, parecidos com lagartos venenosos, cinzentos e empoeirados que dormissem numa terra desolada [...] ns, Sertanejos, somos descendentes diretos do Tapuia, do Homem castanho inicial, brotado da terra parda do serto num dia em que ela estava umedecida e, depois, errante por entre os espinhos e as muralhas de pedra sertanejas [...] (SUASSUNA, 1971, p. 573).

E veja ainda que, utilizando a mesma alegoria da cegueira, Suassuna estrutura na voz do narrador Quaderna a sua formao, que encontra o popular-erudito-catlico citando as influncias do professor de esquerda, Clemente, e do filsofo de direita, Samuel:[...] sou, ao mesmo tempo, clssico e romntico, isto completo, genial, modelar e rgio. Eu, Sr. Corregedor, tendo nascido com dois olhos sertanejos, solares e clssicos, sofri depois, no Seminrio, a influncia romntica e proftica do genial Bardo alagoano e judaico, o Padre Ferreira de Andrade, ficando da em diante, no mundo, com um olho cego queimado pela demncia romntica do Deserto judaico e sertanejo assim como pela asa de fogo e navalha da Musa do genial poeta paraibano Augusto dos Anjos. O que mais curioso, porm, que o olho romntico e queimado, que o direito, depende do olho clssico e vidente, que o esquerdo! E vice-versa! Porque, se o Gavio romntico e fogoso-desrtico no tivesse queimado e despedaado um dos meus olhos, o outro no teria obtido o privilgio de ver, na realidade parda e afoscada, essas Cavalhadas e batalhas, cheias de bandeiras, essas Estrelas e moedas que vejo de vez em quando coroando as frontes dos Cavaleiros sertanejos. Tambm, se eu no gastasse toda a prata e todo o Sol do meu sangue com o olho clssico e vidente, o outro no seria capaz de enxergar o sofrimento e a misria, a feira desdentada e barriguda das pessoas, os morcegos, os urubus e as corujas das furnas sertanejas, onde moram as Divindades infernais, satrnicas e subterrneas do meu Mundo astrolgico e zodiacal! (SUASSUNA, 1971, p. 576-577)

A tradio das publicaes populares em versos vem da Europa. No sculo XVIII, j era comum entre os portugueses a expresso literatura de cego, por causa da lei promulgada por Dom Joo V, em 1789, permitindo Irmandade dos Homens Cegos de Lisboa negociar com esse tipo de publicao. Ento, ao se dizer acometido de cegueira, Quaderna quer mostrar tambm oficialidade representada pelo Corregedor que pode e tem todo o direito de representar, transitar e comercializar (a muito mais no sentido de distribuir) os folhetos que o inspiram.

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Por outro lado, tal cegueira descrita por Quaderna tambm remete quela relatada por Euclydes da Cunha. dito em Os sertes que o sertanejo sofre de uma molstia extravagante, uma falsa cegueira feita pelas reaes da luz do serto: [...] nasce nos dias claros e quentes dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. uma pletora do olhar. Mal o sol se esconde no poente a vtima nada mais v. Est cega. A noite afoga-a, de sbito, antes de envolver a terra. E na manh seguinte a vista extinta lhe revive, ascendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar, de novo, tarde, com intermitncia dolorosa. (CUNHA, Euclydes da, 2000, p.116) Ariano transparece em Quaderna a conscincia do peso trgico sertanejo, mas, ao tomar conscincia desse mesmo trgico da pedra, poetiza e se d o direito de construir e ser o rei do seu Castelo potico quando se assume cego e d o tom medieval joiaria popular:

[...] tanto acho belas as partes esquerdistas e despojadas da realidade sertaneja fosca, parda, empoeirada, faminta, miservel, cheia de ossamentos de Vacas, Cabras e jumentas mortas como acho belo o Sonho de prata e joiaria que, s vezes, vem se juntar a ela para transfigur-la. Muitas vezes j me aconteceu isso, quando nas tardes de muito sol, estou, por acaso, em cima do meu lajedo. Estou ali, em cima , olhando o Mundo sertanejo, fosco e empoeirado, porm j se animando de uma Coroa gloriosa que o Ouro do sol-poente vai lhe emprestando. [...] na mesma hora d-se, em mim, uma virao; meu sangue e minha cabea se incendeiam, e a realidade parda e afoscada se funde ao fogo do sol e dos diamantes do sonho. O Serto selvagem, duro e pedregoso, vira o Reino da Pedra do Reino [...] (SUASSUNA, 1971, p. 564)

Na narrativa, Suassuna d o tom medieval carnavalizando o mito da busca do Graal arthuriano. Parece-nos importante ento exemplificar a medida dessa analogia. Diz-se do romance arthuriano que, no incio (em fins do sculo XII), Persival ou o conto do Graal, de Chrtien de Troyes, teve como caracterstica dominante o tom guerreiro com destaque para a cavalaria dos nobres; logo depois comeam a se esboar traos de ntida conotao mstica, anunciando assim a passagem cavalaria celestial; mais adiante, embora os valores mais altos sejam ainda a cavalaria e o sacerdcio, e ainda se 31

destaque a aventura assumindo o sentido de sentimento herico da vida, o romance j dedica certo destaque descrio de trajes, jias e recepes mundanas. No entanto o romance em prosa mais clebre do ciclo mesmo aquele o qual Ariano toma de referncia A Busca do Santo Graal. Nele o leitor encontra o drama da condio humana, tomada entre o pecado e a beatitude e permeado de significao eucarstica. medida que nos afastamos da Idade Mdia e penetramos no Renascimento, a noo de viagem espiritual, de busca, perde a pureza e a narrativa assimila os elementos da cultura popular: o grotesco, a pardia, o detalhe obsceno, a alegria solar, o destaque para o riso e para o corpo que veremos mais detalhadamente em seguida. Por enquanto diremos que nesse ponto que Ariano toma a influncia com o vinho do Sangraal: mostra Quaderna entre pecado e beatitude, d volta e meia um tom grotesco e parodstico narrativa, carnavaliza e destaca as ambigidades do personagem que , entre outras coisas, um heri carnavalizado de um romance de ritmo trotantecavaleiresco. Ariano o professor, o intelectual tradicional, quando defende suas questes armoriais, mesmo correndo riscos, mesmo se sentindo emparedado por uma cultura mltipla em suas influncias e impossvel de ser encaixada em limites de puras razes nacionais andradianas. Mais ainda na contemporaneidade quando vai se tornando impossvel, pela velocidade e fcil acesso s tecnologias modernas para as mais diferentes classes e culturas, que exista esse intelectual mediador da cultura popular de Gramsci. Mas Ariano , alm disso, o bufo, o palhao inventivo quando, travestido dessa mscara, carnavaliza, transfigura, poetiza, ri de um riso tragicmico com a fora vital da cultura popular do seu serto nordestino por intermdio da sua festa, a sua literatura. Brinca, transforma, transfigura as mscaras do palhao quando, por meio de sua arte, reconhece e incorpora o erudito no popular; e brinca com as vozes de tenso que seu

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discurso causa na modernidade, criando embates entre elas e aplaudindo, ao fim, do centro de seu picadeiro. E ele deve ser aplaudido, reverenciado e incorporado ao mundo contemporneo, justamente pela especificidade de sua voz criativa. Dito isso, vamos continuar a observar essa aula-espetculo15 produzida pelo mega palhao-professor, regionalistatransfigurado, emparedado pela modernidade. No prximo captulo, o panorama regionalista aprofunda algumas influncias diretas de Suassuna e traz Antonio Candido como base terica, o que nos deixa numa posio nem integrada e nem apocalptica, e, no entanto, sempre crtica, com relao modernidade e s negociaes e trocas das diversas vozes culturais.

A primeira aula-espetculo aconteceu quando Suassuna era secretrio de Cultura do governo de Miguel Arraes em Pernambuco. A partir do Recife, Ariano Suassuna queria deflagrar uma discusso sobre a cultura brasileira e, para isso, criou as aulas-espetculo dadas nos teatros, universidades e espaos pblicos de todo o pas. Falas emolduradas por msicas, danas e artes plsticas da cultura popular brasileira e de artistas do Movimento Armorial. Cultura popular discursada no picadeiro, contornada pela esttica da mscara da bufonaria.

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2. O regionalismo e o cosmopolitismo: da utopia ideolgica modernidade capitalista

Para Antonio Candido, existem duas formas de pensar o atraso e a dependncia cultural dos pases da Amrica Latina: a primeira associada noo de pas novo e uma conscincia amena do atraso; a segunda a conscincia de pas subdesenvolvido e a viso catastrfica do atraso. Para Candido, ambas se entrosam intimamente e orientam a atuao intelectual latino-americana. Explica que a idia de pas novo produz na literatura algumas atitudes derivadas da surpresa, do interesse pelo extico, de certo respeito pelo grandioso. Que tal idia destacou um tom de esperana de que a Amrica fosse um lugar privilegiado e isso se exprimiu em projees utpicas que atuaram na fisionomia da conquista e da colonizao. O primeiro documento relativo ao nosso continente, a carta de Colombo, inaugura o tom de deslumbramento e exaltao que se comunicaria posteridade. E nesse ponto impossvel no incluir, na seqncia histrica, a carta de Pero Vaz de Caminha, que seguia o mesmo tom e qual Suassuna se refere constantemente como um poema. Antonio Candido continua sua anlise e lembra que no sculo XVII, misturando pragmatismo e profetismo, Antonio Vieira aconselhou a transferncia da monarquia portuguesa para o Brasil, que estaria fadado a realizar os mais altos fins da histria como sede do Quinto Imprio. Nessa noo de pas novo que se encontram certos valores da fico regionalista: a ptria relacionada com a natureza extica, percebida como grandiosamente bela e frtil, e por isso capaz de justificar todo o sentimento de otimismo social. E os intelectuais latino-americanos, que herdaram esse estado de euforia, transformaram-no em instrumentos de afirmao nacional e em justificativa ideolgica. Na literatura, em se tratando deste contexto, h uma opo por um tom celebratrio, cuja

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linguagem, influenciada por tendncias romnticas, se apia no sentimentalismo, na hiprbole, na exotizao. No entanto, logo que os discursos regionalistas comearam a vir tona, esses intelectuais eram ambivalentes: ao mesmo tempo em que imitavam sem filtro as sugestes e influncias europias, buscavam uma independncia radical. Os movimentos regionalistas brasileiros, desde quando surgiram no fim do sculo XVIII, em vozes do romantismo como a de Jos de Alencar, seu indianismo e seu sertanismo romntico, ou de Franklin Tvora e o prefcio de seu livro O cabeleira, de 1876, pendulavam entre a aceitao dessas influncias europias e a utopia ideolgica16 de encontrar razes puramente nacionais. Franklin Tvora, por exemplo, v no Norte (que para ele engloba o Nordeste) o verdadeiro Brasil. possvel comparar o seu discurso com o de Suassuna no Movimento Armorial. Veja o que Tvora diz em O cabeleira:

As letras tm, como a poltica, certo carter geogrfico; mais no Norte, do que no Sul abundam os elementos para a formao de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra. A razo bvia: o Norte ainda no foi invadido como est sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro. A feio primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raas, as ndoles e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda se conserva ali em sua pureza, em sua genuna expresso.

Mesma voz ideolgica do puro e do genuno que Ariano utiliza no Manifesto Armorial, em 1974, com o objetivo de destacar essa cor local do serto. No toa, por intermdio do narrador Quaderna, Ariano assume a influncia de Franklin Tvora, assim como agradece e homenageia tambm Jos de Alencar em toda a trajetria do livro. Separadamente analisaremos esse encontro de discursos Alencar-Suassuna. Um (Alencar) no sculo XIX e outro (Suassuna) um sculo depois, no entanto com os mesmos fundamentos. Veremos tal comparao Alencar-Suassuna no prximo tpico. Mas no sem antes lembrar que o que Antonio Candido chama de viso catastrfica do atraso est mais bem analisado no tpico Catequese s Avessas.16

Expresso de Antonio Candido.

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2.1 Jos de Alencar e Ariano Suassuna o encontro de romnticos

O intertexto entre o discurso de Suassuna no Manifesto Armorial e o discurso romntico de Alencar claro e direto, sendo este inclusive citado em lista de homenagens logo no incio do livro e depois durante O Romance da Pedra do Reino. O narrador Quaderna, no folheto O Caso dos Trs Emparedados, assume claramente a influncia de Alencar:[...] eu, tendo lido, aos quinze anos, os herosmos e cavalarias de Peri e Arnaldo Louredo, assim como as safadezas de alcova de Lucola, fiquei fascinado e me tornei tambm, devoto do autor de O Sertanejo, a quem Clemente [filsofo, negro e de esquerda] e Samuel [poeta, alourado e de direita] consideravam um autor de segunda ordem. (SUASSUNA, 1971. p. 178)

E no folheto Cantar de Nossos Cavalos, Quaderna fala do seu cavalo Pedra-Lispe, da honra de ter um cavalo de sela e de, tambm metaforicamente, cavalgar pelos caminhos de suas influncias:

[...] todos os heris de Jos de Alencar, meu mestre e precursor, andavam a cavalo, principalmente aqueles que, como Arnaldo Louredo Prncipe guerreiro daquela epopia17 que O Sertanejo -,eram ao mesmo tempo Fidalgos, vaqueiros e cavaleiros do Serto. (SUASSUNA, 1971, p. 272).

Nesse ponto, pela voz de Quaderna, Suassuna tensiona e discorda de crticas como a do prprio Antonio Candido, que diz que [...] aqui [no Brasil] o regionalismo inicial, que principia com o Romantismo, antes dos outros pases nunca produziu obras consideradas de primeiro plano, mesmo pelos contemporneos, tendo sido tendncia secundria, quando no francamente subliterria, em prosa e verso. (CANDIDO, 1983, p. 161) Inclui ento a obra de Jos de Alencar como tendncia secundria. Tal crtica a autores como Alencar, mostrada no romance sob a voz dos personagens Clemente e

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Grifos meus.

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Samuel. So eles que criticam as preferncias de Quaderna. E este, por sua vez, defende sempre suas escolhas. Foi pela voz do escritor cearense Jos de Alencar que surgiu a primeira forma de expresso do nacionalismo no Brasil com o indianismo. Essa forma de nacionalismo literrio romntico foi firmada na poesia com Gonalves Dias (1846), tambm encontrado como influncia direta do narrador Quaderna da Pedra do Reino. proporo que o ndio, como potencial de expresso mtico-herica representante da mais pura nacionalidade brasileira, comea a se esgotar, j que Alencar, em O guarani e Iracema, cria a partir de um reduzido material histrico essas razes mticas para a nacionalidade, entra em cena na obra do autor o sertanejo homem do interior, de regies pouco afetadas, segundo a viso romntica, pelo contato externo. Diz Alencar, referindo-se ao sertanismo: a poesia brasileira ressoa, no somente nos rumores da brisa e nos ecos da floresta, seno tambm nas singelas cantigas do povo e nos ntimos seres de famlia. Discurso que, embora em tom buclico e de certa ingenuidade, se assemelha ideologicamente ao da defesa de Suassuna cultura do serto nordestino. Veja o que diz Suassuna no Manifesto Armorial, referindo-se ao artigo que ele mesmo escreveu em 1950 sobre a msica do serto: Nos centros mais populosos do Litoral, difcil observar os resqucios da Msica primitiva. [...] No Serto fcil, porm, estud-la, pois ali a tradio mais severamente conservada. A Msica sertaneja se desenvolve em torno dos ritmos que a tradio guardou. (SUASSUNA, 1974, p. 57) A gnese do sertanismo alencariano, do sculo XIX, foi o sentimento de ameaa aos valores tradicionais provocado pela penetrao cada vez mais intensa da influncia estrangeira no Brasil da poca. na segunda metade do sculo XIX que ocorre o primeiro impulso para que o Brasil passe da fase agrcola e patriarcal para a fase industrial e burguesa. As estradas de ferro chegam ao Brasil em 1854 sob as ordens do Baro de Mau, que inaugura a primeira delas entre Mau e Petrpolis. Alm disso, na

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dcada de 1870 (O sertanejo de 1875) h impactos diversos que refletem nas expresses culturais brasileiras: o fim da Guerra do Paraguai, a propaganda republicana, a intensificao do crescimento urbano e industrial, a divulgao de filosofias materialistas como o positivismo, o darwinismo, o evolucionismo, alm das correntes estticas realismo e naturalismo originrias da Frana e de Portugal que j eram plantadas pelo pas, mas que s frutificariam na dcada seguinte. Toda essa evoluo encontra repercusso direta na obra de Alencar18, que, com o sertanismo, passa um sentimento de ameaa cosmopolita s tradies j formadas:

[...] nossa literatura [...] espera escritores que lhe dem os ltimos traos e formem o verdadeiro gosto nacional fazendo calar as pretenses hoje to acesas de nos recolonizarem pela alma e pelo corao j que no o podem pelo brao. Neste perodo a poesia brasileira, embora balbuciante ainda, ressoa, no j somente nos rumores da brisa e nos ecos da floresta, seno tambm nas singelas cantigas do povo e nos ltimos seres da famlia. Onde no se propaga com rapidez a luz da civilizao, que de repente cambia a cor local19, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nossos pais, tradies, costumes e linguagem, com um sainete todo brasileiro.

Assim como em Suassuna, o texto de Alencar transparecia essa tal conscincia do perigo que representava a importao indiscriminada de cultura em um pas jovem [...], tem apreo por tudo quanto represente uma tradio autntica brasileira [...], situa a oposio campo/cidade [...]20. Mas bom lembrar que essa oposio campo/cidade trabalhada no discurso por autores de formao urbana e que olha esse campo pela janela de seus gabinetes, como j vimos na voz do prprio Suassuna. Portanto, na modernidade, essa oposio campo/cidade passa a ser um falso problema e a conciliao como preservao uma tentativa constante em diversas vozes estticas, inclusive a de Suassuna. Sobre essas vozes e movimentos de destaque e preservao da cor local, possvel perceber que surgem a cada momento histrico em que houve, de alguma

18

1920

In prefcio de Jos de Alencar ao livro Sonhos douro, de 1872.

Grifo meu.ALMEIDA, Jos Maurcio Gomes de. A tradio regionalista no romance brasileiro. Rio de Janeiro. Achiam, 1981.

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maneira, uma acelerao desenvolvimentista, urbanizadora: j vimos que no sculo XIX, ao Movimento Republicano surge o Romantismo; no sculo XX, dcadas de 1920 e 1930, a acelerada industrializao e desenvolvimento urbano, que abriu estradas e facilitou o acesso ao interior, ouviu nas artes o Movimento Modernista com Mrio de Andrade, Oswald de Andrade, Villa-Lobos, entre outros; e, mais recentemente, na dcada de 1990, quando houve, no Brasil, um acelerado desenvolvimento da Internet, que facilitou o acesso a todas as informaes culturais e novidades eletrnicas, eis que o discurso de Alencar ganha atualidade com essa acelerada proliferao da cultura de massa. Ento a chamada gerao zabumba e os adeptos do samba de raiz, por exemplo, entram em cena. Alm deles, ou mesmo, a reboque deste contexto, os movimentos de origem Armorial, representados pelo msico e bailarino Antonio Nbrega e pelo prprio Suassuna, idealizador do projeto Armorial na dcada de 1970, voltam sob holofotes da modernidade, com seus trabalhos (paradoxalmente) adaptados para a TV e levando milhares de pessoas a seus espetculos. Outro encontro entre Suassuna e Alencar. que, alm de escritor, Alencar21 tambm era poltico homem de ao que no podia recusar as vantagens que a moderna civilizao industrial podia trazer, mas que no conseguia dissimular a preveno e hostilidade que alimentava contra ela. Veja uma citao de O sertanejo:

De dia em dia aquelas remotas regies vo perdendo a primitiva rudeza, que tamanho encanto lhes infundia. A civilizao que penetra pelo interior corta os campos de estradas e semeia pelo vastssimo deserto as casas e mais tarde as povoaes. No era assim no fim do sculo passado... (ALENCAR, 1875. p. 7-8)

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Tambm filho de poltico, o ex-seminarista e senador Jos Martiniano de Alencar, o escritor Jos de Alencar era advogado, jornalista, poltico, orador, romancista e teatrlogo. Seu pai e sua av Dona Brbara de Alencar foram presos na Bahia por aderirem ao movimento revolucionrio de 1817 irrompido em Pernambuco. Alencar vai em 1844 para So Paulo, onde permanece at 1850, terminando os preparatrios e cursando direito. Formado, comea a advogar no Rio e passa a colaborar no Correio Mercantil, convidado por Francisco Otaviano de Almeida Rosa, seu colega de faculdade, e a escrever para o Jornal do Commercio os folhetins que, em 1874, reuniu sob o ttulo de Ao correr da pena. Redator-chefe do Dirio do Rio de Janeiro em 1855. Filiado ao Partido Conservador, foi eleito vrias vezes deputado geral pelo Cear; de 1868 a 1870, foi ministro da Justia. No conseguiu realizar a ambio de ser senador como o pai. Desgostoso com a poltica, passou a dedicar-se exclusivamente literatura.

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Alencar no sculo XIX, assim como Suassuna no sculo XX, considera que o serto encanta por sua primitiva rudeza e que a modernizao tem valor discutvel. O trao nacionalista, ento, nunca abandona os romnticos. E Suassuna em certa medida um romntico sertanista tambm. Mas se nega regionalista e naturalista. Tem a habilidade de brincar e manipular as linhas que tencionam esse bufo-marionete de vozes sertanejas duais. Lano mo do riso para me defender, assumiu ele em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. E manipula essas linhas da marionete durante todo o romance: a cada tom de discurso ideolgico, alterna-se uma rabelaisiada. Essa imagem da marionete de Henri Brgson em seu livro O riso. Voltaremos a ela mais adiante quando tambm discutiremos a medida do riso de Rabelais em sua obra. Por ora, seguimos afirmando que Suassuna vai pintando, colocando mscaras e danando seu discurso quando diz em muitas entrevistas que tem preguia de explicar; quando o dizem regionalista, ele diz que e pronto. Antonio Candido lembra que, a partir de 1930, numa segunda fase, as tendncias regionalistas, j sublimadas e como que transfiguradas pelo realismo social, comeam a demonstrar amadurecimento e saem do descritivismo e da cor local. Candido ainda salva autores como Graciliano Ramos mas no destaca Suassuna como autor de obras que saem da estrutura do primeiro regionalismo (conscincia amena do atraso), ponto em que, com todo respeito, discordamos em parte (pelo menos no que trata da esttica), j que, parece-nos, Suassuna demonstra que h um tom mgico e potico em sua estrutura narrativa que no se encontra na esttica regionalista.[...] no prprio enredo, o Auto da compadecida, como pea realista, no convence ningum. Porque no tem cangaceiro que caia numa cilada to idiota como quela de dar a bexiga para o cachorro escondida numa camisa. Aquilo uma coisa que, para gostar do meu teatro, preciso que o pblico faa um acordo com o autor: ns vamos acreditar juntamente com voc, para que a gente possa pensar que isso pode acontecer durante duas horas. Ento a diferena colocada exatamente por isso, pela presena do fantstico, do mgico, do potico [...]22

22

In: Revista Continente Multicultural . Acessada no endereo: www.continentemulticultural.com.br/revista020/materia.asp?m=Especial&s=3 em 11 de agosto de 2006.

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Tom potico que no encobre o trgico do serto, visto que, a cada tom potico, Quaderna ouve de algum personagem ou fala ele mesmo sobre o seco, o feio, a dor e a pobreza que o real emprico mostra. Em seguida, o narrador defende a funo da poesia, da literatura e da arte para transfigurao desse real emprico. Suassuna deixa essa preocupao mais clara em O Rei Degolado. como se o primeiro volume da trilogia, O Romance da Pedra do Reino, desse o tom mais potico de Quaderna, e o segundo volume, O Rei Degolado, com a personagem Morte Caetana como centro, transparea no mesmo narrador Quaderna conscincia do feio real emprico:

[...] Foi um ano de terrvel seca, no Serto paraibano. quela hora, perto do meio-dia, o Sol estava esbraseado, a Caatinga pardacenta e queimada, a terra cheia de gretas e escaras, e a poeira, o sujo, a pobreza e a feira cobriam todo aquele velho pedao deste mundo velho de meu Deus. Ossos e carnias de homens e animais apodreciam, secavam ou branquejavam ao Sol. Por outro lado, o Profeta Nazrio vinha barbado, sujo, imundo mesmo. Faltavam-lhe os dois dentes da frente, ele era feridento, gafo, fedorento, e, ainda por cima, estava coberto de andrajos, de farrapos e molambos to sujos quanto o dono. Sua mulher, Si Maria Umbelina, s no era paraltica: mas era to feia, suja, desdentada, fedorenta, esmolambada e feridenta quanto ele. Assim, ningum pode mais me acusar, a mim, Dom Pedro Dinis Quaderna, o Decifrador, de esconder a feira do Serto e a misria sombria de meu Povo. (SUASSUNA, 1977, p. 5)

a o mentiroso lrico, mas no pelo enfoque de que a mentira ausncia de verdade. O mentiroso que ele incorpora aquele que se movimenta sempre para no ser pego, que muda de mscara todo o tempo para que o seu discurso no seja emparedado, ainda que se sinta assim o tempo todo. ainda, e talvez principalmente, o poeta fingidor. No entanto, parece-nos tambm, e paradoxalmente, que a obra de Suassuna, apesar das diferenas estticas, tem sim o tom ideolgico romntico que encontra muitos laos em comum com o regionalismo. Um regionalismo que, por sua vez, enfatiza os elementos diferenciais que caracterizam uma regio no sentido amplo em oposio s demais regies e busca que esses diferenciais sejam reconhecidos no plano nacional e que abrange toda a fico vinculada descrio das regies e dos costumes rurais desde o romantismo. A, sob o enfoque ideolgico, concordamos com a crtica de Antonio Candido. Diz ele que a ambivalncia do intelectual latino-americano, 41

traduzida por impulsos de cpia e de rejeio, aparentemente contraditrios quando vistos em si, podem ser complementares se forem encarados por esse vis da busca da identidade nacional. Candido diz que o regionalismo, ao parecer afirmao da identidade nacional, pode ser na verdade um modo insuspeitado de oferecer sensibilidade europia o exotismo que ela desejava; e se torna desta maneira forma aguda de dependncia na independncia. Com relao ao impulso de cpia, Candido no alivia: ...a imitao servil dos estilos, temas, atitudes e usos literrios tem um ar risvel ou constrangedor de provincianismo, depois de ter sido aristocratismo compensatrio de pas colonial... (CANDIDO, 1989: p. 157). E sobre o impulso de rejeio diz assim:

(...) Talvez no sejam menos grosseiras, do lado oposto, certas formas primrias de nativismo e regionalismo literrio, que reduzem os problemas humanos a elemento pitoresco, fazendo da paixo e do sofrimento do homem rural, ou das populaes de cor, um equivalente dos mames e dos abacaxis. Esta atitude pode no apenas equivaler primeira, mas combinar-se a ela, pois redunda em fornecer a um leitor urbano europeu, ou europeizado artificialmente, a realidade quase turstica que lhe agradaria ver na Amrica. Sem o perceber, o nativismo mais sincero arrisca tornar-se manifestao ideolgica do mesmo colonialismo cultural que o seu praticante rejeitaria no plano da razo clara, e que manifesta uma situao de subdesenvolvimento e conseqente dependncia (...). (CANDIDO, 1983: p.157)

Vale aqui lembrar da expresso catequese s avessas que Candido utiliza. que, se por um lado, importante perceber e criticar o tom um tanto radical e arriscadamente pitoresco na fala regionalista, um tom pouco negociador com as mltiplas referncias da modernidade, por outro, o regionalismo foi uma etapa necessria que fez da literatura um meio de apontar a realidade local; e essas mltiplas referncias, que, pelo desenvolvimento das tecnologias, esto mo para quem quiser ter acesso a elas, tambm esto presas s rdeas dos veculos de massa que por sua vez seguem a catequese do capitalismo. E, ao utilizar a palavra catequese, oua-se um poder de tom quase religioso. Ou seja, no se pode perder de vista - mesmo

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entendendo a riqueza das trocas culturais, como falamos no primeiro captulo - que o capitalismo-cosmopolita, utilizando as armas dos veculos de massa, transfigura a seu favor qualquer que seja o discurso ideolgico. Mesmo os que se acham mais radicalmente opostos a ele ou se acham capazes de impedir a sua total assimilao. E absolutamente tudo, ento, assimilado, transformado em mercadoria, transfigurado segundo os seus interesses. Contradizemo-nos nesse ponto? Afinal afirmamos anteriormente que Suassuna encontra a conciliao, uma brecha, entre o apocalptico e o integrado de Umberto Eco. E agora, fomos radicais em dizer que absolutamente tudo se transforma em mercadoria. Vamos por partes ento e diremos que Suassuna, ambivalente, e no uma exceo quando se trata desse assunto: transformao absoluta das obras em mercadoria. Para isso falaremos um pouco mais, em tpico separado, sobre a expresso de Antonio Candido, catequese s avessas.

2.2 A catequese s avessas

Antonio Candido, ao utilizar a expresso catequese s avessas, se refere ao que acontece com o homem que tendo crescido no campo, com as influncias rurais e alfabetizado no imaginrio oral (do cordel, por exemplo), quando chega cidade, no ambiente urbano, jogado diretamente nos veculos de massa, que o re-alfabetizam na oralidade urbana.

... No tempo da catequese os missionrios coloniais escreviam autos e poemas, em lngua indgena ou em vernculo, para tornar acessveis ao catecmeno os princpios da religio e da civilizao metropolitana, por meio de formas literrias consagradas, equivalentes s que se destinavam ao homem culto de ento. Em nosso tempo, uma catequese s avessas converte rapidamente o homem rural sociedade urbana, por meio de recursos comunicativos que vo at inculcao subliminar, impondo-lhe valores duvidosos e bem diferentes dos que o homem culto busca na arte e na literatura... (CANDIDO, 1983, p. 145)

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Portanto, esse homem passa do tom oral rural para o tom oral urbano sem ter muito ou quase nenhum acesso literatura que, em sua maioria, tem sido filtrada, adaptada e readaptada pelos veculos de massa. Como se o exerccio da leitura fosse, em certa medida, na modernidade, trocada gradativamente pelo audiovisual. Ento, nesse contexto, o discurso Armorial de Suassuna ganha variaes de fora esttica, mas perde fora ideolgica. O tom desfolclorizante desse discurso acaba, paradoxalmente, sendo espetacularizado por uma modernidade altamente audiovisual. Veja que no o caso aqui de entender que Suassuna um desses homens rurais e nem que ele se deixa assimilar totalmente por essa catequese. J deixamos claro que ele um intelectual de gabinete, como ele mesmo se define:

No pretendo passar pelo que no sou. Egresso do patriarcado rural derrotado pela burguesia urbana de 1889, 1930 e 1964, ingressei no patriciado das cidades como o escritor e professor que sempre fui. Continuo, portanto, a integrar uma daquelas classes poderosas [...] Sei, perfeitamente, que no o fato de me vestir de certa maneira, e no de outra, que vai fazer de mim um campons pobre. Mas acredito na importncia das roupagens para a liturgia, como creio no sentido dos rituais. E queria que minha maneira de vestir indicasse que, como escritor pertencente a um Pas pobre e a uma sociedade injusta, estou convocado, a servio.23

Ele, portanto, fala desse homem rural do serto, mas um homem de formao letrada e urbana. E se coloca, como iniciamos a discutir, pretendente a mediador desse povo. De forma sonhadora, mas por outro lado pragmtica. Ento, levando em conta o sistema (ao tom de Candido), no qual fazem parte autor, obra e pblico, possvel que, no movimento acelerado capitalista, poucos leiam O Romance da Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta com suas mais de setecentas pginas e que continua ainda com O rei degolado nas caatingas do serto ao sol da ona Caetana. Questo que fez com que o romance ficasse mais de vinte anos sem ser reeditado. O Romance da Pedra do Reino foi lanado em 1971; em 2005, uma edio revisada foi relanada pela editora Jos Olympio e, ao ser adaptada para a TV pelo diretor Luiz Fernando Carvalho

23

Fragmento do discurso de posse da Academia Brasileira de Letras.

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em 2007, e ainda antes, em 2006, adaptado para o teatro por Antunes Filho, vai significar, provavelmente, que o primeiro contato do grande pblico com o livro ser pelo filtro audiovisual. E provavelmente poucos letrados tero acesso ao livro em si. Ento, na contemporaneidade, concordo com Candido quando ele diz que a grande maioria de leitores em potencial passa pela obra de escritores como Suassuna vendo e ouvindo suas histrias mais do que lendo. Suassuna parte da oralidade dos cordis e do serto, filtra, poetiza, transfigura e d tom erudito a seu texto, mas, paradoxalmente, atinge a grande maioria contempornea pelas adaptaes e aulas-espetculo, portanto por uma oralidade transfigurada pelos veculos de massa modernos. Nesse sentido no exceo: espetaculariza suas obras e atinge o grande pblico por meio da indstria da cultura. Mas, por outro lado, quando no simplesmente aceita, mas negocia esteticamente suas adaptaes, escolhe seus diretores, cuida de perto da seleo dos textos e produzido em empresas escolhidas e aprovadas por ele, sem sair de Pernambuco, exceo porque consegue caminhar pela brecha, pela linha tnue, palhao-equilibrista entre o integrado e o apocalptico. Transitando pela modernidade, dando voltas e cambalhotas no cosmopolitismo, na indstria cultural e nas crticas que o emparedam.

2.3 Da oralidade popular oralidade transfigurada

O que chamamos de oralidade transfigurada aquilo em que se transforma uma obra que j tem uma influncia oral rural ao ser adaptada para o oral urbano atravs dos intelectuais mediadores e dos veculos de massa. Essa transfigurao ento, segundo Antonio Candido, o recorte, a delimitao, as escolhas e as cores das figuraes do real. figurao da figurao. Ariano Suassuna, quando adaptado, no perde fora esttica nem sua fora de voz, mas como se ele mesmo assumisse por

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aes, no por palavras, que a busca de razes puramente nacionais comeadas l em Mario de Andrade no fosse mais uma voz possvel. Mas, mesmo assim, Suassuna no deixa de, no papel desse personagem palhao, mediador do trgico e do cmico da vida, gritar sua ideologia at o fim e, por meio do narrador Quaderna da Pedra do Reino, reconhece os discursos que o questionam e ri de um riso de absolvio. Afinal, a oralidade, a cantoria, a poesia e a literatura que o fazem Rei sem risco. Veja a voz do narrador Quaderna figurao de sua ideologia Armorial:

[...] Era me tornando Cantador que eu poderia reerguer, na pedra do Verso, o Castelo do meu Reino, reinstalando os Quadernas no Trono do Brasil, sem arriscar a garganta e sem me meter em cavalarias, para as quais no tinha nem tempo nem disposio, montando mal como monto e atirando pior ainda! Assim firmou-se em mim a importncia definitiva da Poesia [...] continuei a refletir e sonhar, errante pelo mundo dos Folhetos. (SUASSUNA, 1971, p. 107)

E se torna rei, paradoxalmente, quando incorporado pela modernidade como mais uma voz. Aquela que trata do acesso s letras pela oralidade. Ou seja, o homem contemporneo, quando alfabetizado j que em pases subdesenvolvidos o grau de analfabetismo altssimo se comparado aos pases ditos desenvolvidos , recebe muito mais estmulos vindos da televiso, do cinema etc. Portanto, sai pouqussimo da oralidade para entrar de fato na ao de leitura e escrita. E nesse contexto a literatura atinge uma minoria letrada. Ariano, portanto, inicialmente, filtra a cultura popular e a oralidade nordestina, incorpora seu vis erudito e constri a sua literatura intertextual para a leitura de um terceiro pblico tambm letrado. S quando se permite adaptar pelos veculos de massa, aos quais ideologicamente critica, que consegue atingir um mbito maior com a sua obra. Lembremos, no entanto, que, assim como Candido cuidadosamente destaca, no se trata aqui de fazer parte do grupo dos absolutamente integrados e catequizados pela indstria da cultura, j que entendemos tambm o perigo iminente para a cultura e para a literatura caso se viva em funo plena e acrtica do discurso de massa urbano. No entanto, no vamos aderir tambm aos 46

apocalpticos, que so radicais contra as negociaes e intercmbios de influncias e discursos da modernidade. No livro Apocalpticos e Integrados, Umberto Eco propunha a diviso nas categorias que davam ttulo obra relativamente s reaes em face da cultura de massas e da indstria cultural: de um lado, os apocalpticos, que consideravam que a massificao da produo e consumo constitua a perda da essncia da criao artstica, da aura24 de que falava Walter Benjamin, e, do outro, os integrados, que acreditavam estar perante enormes avanos civilizacionais, de uma efetiva e criadora democratizao da cultura. preciso ter noo da impossibilidade de defender uma cultura pura quando o acesso informao se faz de forma to simples e rpida; toda cultura inegavelmente hbrida e preciso negociar criticamente influncias e incorporaes a todo tempo diante de uma indstria cultural que tende a uniformizar. Antonio Candido lembra desse olhar crtico quando diz que no h interesse, para a expresso literria da Amrica Latina, em passar da segregao aristocrtica da era das oligarquias para a manipulao dirigida das massas, na era da propaganda e do imperialismo total. (CANDIDO, 1983, p. 146) preciso sempre, ento, fincar os ps em seu local e absorver criticamente o global. Suassuna, ento, por esse vis, finca os ps em seu palco e parte da sua oralidade sertaneja nordestina. Luiz da Cmara Cascudo, em seu livro Literatura oral no Brasil, diz que o termo literatura oral, na qual se inclui o romanceiro popular nordestino, fonte de inspirao de Suassuna, uma denominao de 1881, criada por Paul Sbillot em sua Littrature Oral de la Haute-Bretagne. Sbillot afirma que La littrature orale comprend ce qui, pour le peuple qui ne lit pas, remplace les productions litraires25. Portanto, sua caracterstica mais forte a persistncia pela oralidade. So duas as fontes que mantm essa corrente viva:2425

In: Walter Benjamin A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Tcnica.

Em livre traduo, Sebillot diz que se compreende por literatura oral aquela que feita por pessoas que, porque no sabem ler, substituem suas produes literrias escritas pela habilidade oral de contar uma histria.

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1. A exclusivamente oral: as histrias, os cantos populares e tradicionais, as danas cantadas, de roda, acalantos, jogos infantis, anedotas, adivinhaes, lendas, etc. 2. A reimpresso de antigos livrinhos vindos de Portugal e Espanha, a exemplo de Donzela Teodora, Imperatriz Porcina, Carlos Magno e Os doze pares de Frana.

Impressos ou no impressos, todas essas fontes pertencem literatura oral, principalmente os livrinhos que no Brasil so chamados de lunrios perptuos e as novelas ao estilo de Carlos Magno e os doze pares de Frana, e so citadas por Ariano Suassuna em suas obras. As formas de expresso citadas acima so consideradas matria de literatura oral porque foram feitas para o canto, para a declamao, para a leitura em voz alta. Assim, cada uma das fontes orais rapidamente absorvida nas guas da improvisao popular. Cada tema assimilado na potica dos desafios, dos versos, das quadras nos sertes do Brasil. As danas dramticas, os autos populares, as louvaes e lapinhas tambm so elementos vivos da literatura oral e trazem uma alta carga de religiosidade, que Ariano, por sua vez, tambm traz em sua obra. Construo de raciocnio absolutamente compreensvel, ao se levar em considerao que Ariano foi educado em colgio protestante, optou mais tarde pelo catolicismo e cresceu com os circos e cantadores que passavam ou viviam em sua cidade. Religiosidade, poesia, erudio e transfigurao circense que veremos na obra durante o estudo. Depois de expostas, em alguma medida, as questes ideolgicas do professor, vamos viso esttica, Pedra do Reino. Ao castelo potico. s mscaras do palhao para cada peso do rei. Veremos, nos prximos captulos, como cada personagem na Pedra do Reino se faz representao da ideologia de Suassuna e em que medida a sua obra dual popular e erudita e representa, poetiza e supera o Manifesto Armorial de 1974.

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Mateus do cavalo marinho, auto de Pernambuco.26 ...O Poeta, o Palhao. Bem vedes, no sou eu O Pierr bufo e belo, Filho de Cassandrino Ou de Polichinelo! No! Eu sou o Mateus De vermelho e de preto. Sou o Diabo-Encourado, O Sangue-do-Esqueleto Que procura espargir Pelo Mundo tristonho, No sangue e ao p da Morte O Galope do sonho, Na Ona-do-imprevisto O guizo do Burlesco, No Mocho do fantstico O Tigre romanesco! (SUASSUNA, 1971, p. 252)26

O cavalo-marinho um auto originrio de Pernambuco, tambm conhecido noutras regies como bumba-meu-boi, boi-de-reis, bumba e tantas outras denominaes. Sofreu influncia do elemento holands, do totemismo africano e do esprito indgena, formando um amlgama das trs raas que compem o nosso povo. Surge no terreiro, onde danam, brincam, tiram a sorte e so acompanhados de tocadores de bumbo, tringulo, ganz, violo e atabaque. Esse complexo espetculo, que envolve msica, dana e teatro, chamado de dana dramtica por Mrio de Andrade e que at hoje representa uma das manifestaes mais ricas de Pernambuco, foi fotografado por Verger em Recife em 1947.

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3. Ariano Suassuna e suas dualidades [...] o que no tem salvao metafsica tem salvao esttica27

, diz Ariano

Suassuna quando d sua arte alguma funo em sua vida. Se a arte no precisa ter utilidade, ela pode, como na arte de Suassuna, ter essa funo esttica de tornar eterna a vida. Uma arte que mescla literatura, artes plsticas e msica produzida com base na arte popular por um autor de formao erudita e catlica. Por isso, a obra de Suassuna costurada por uma linha da cultura popular e de superao e estetizao da morte. A busca da eternidade. Da ressurreio. E, claro, para um autor de formao inicialmente protestante, mas que buscou na religio catlica e catlico-sertaneja a presena da Rainha do Meio-dia (persona de Nossa Senhora e da prpria me), o problema fundamental do qual todos os outros dependem o de Deus. Seja a afirmao, a negao ou a dvida com a existncia Dele. [...] h uma ligao entre religio e arte: ambas tm um carter de absolvio [...], diz Suassuna28. E nesse sentido h, no Romance da Pedra do Reino e o prncipe de sangue do vai-e-volta, a personagem Moa Caetana como possibilidade de perdo esttico, como uma forma de superao das mortes que perpassam a sua vida: a morte do pai, o governador da Paraba Joo Suassuna29, a morte da cultura popular nordestina diante da urbanizao e da modernizao um dos sentidos de ao quixotesca em boa medida j discutido e, tambm, a possvel vontade de superao da sua prpria morte. No vou morrer. J fiz minhas avaliaes e vi que no um bom negcio. A morte tem um pouco de suicdio. Se voc deixar, ela vem e te leva.30 E quando diz isso, com a

27

28

Em entrevista publicao Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles.

29

Idem.

Joo Suassuna, governador da Paraba e deputado federal, foi assassinado em 9 de outubro de 1930 a tiros, em conseqncia da diviso na poltica paraibana. Defensor da cultura rural nordestina, Joo Suassuna fazia oposio ao governo de Joo Pessoa, defensor da cultura urbana e da modernizao. Rixa que j contribura para a ecloso da Revoluo de 30. Dantas Suassuna, tio de Ariano, foi quem matou Joo Pessoa. E numa poca e regio em que sangue se lavava com sangue, Joo Suassuna foi morto tambm. Ariano era um menino que tinha entre trs e quatro anos nessa poca.

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Discurso proferido quando recebeu o ttulo de Doutor Honoris Causa, no Teatro Odylo Costa Filho, na UERJ, Rio de Janeiro em 2002.

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ironia e a cambalhota do palhao que lhe so peculiares, deixa claro para o ouvinte mais cuidadoso que no pode nem quer ter seu discurso ou a si mesmo plenamente entendido, criticado, analisado ou, principalmente, colocado em algum estojo museolgico31, se bem que paradoxalmente faa isso com seu prprio conceito de cultura popular. Mas que talvez saiba que o homem est sempre em constante modificao e que nunca possvel compreender sua alma plenamente32, que nisso difere da personagem que faz parte de uma realidade criada. S possvel ainda que arbitrariamente entender