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ANPOF XV2 - Filosofia Do Renascimento e Moderna

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  • Nota preliminar Estes livros so o resultado de um trabalho conjunto das gestes 2011/12 e 2012/3 da ANPOF e contaram com a colaborao dos Coordenadores dos Programas de Ps-Graduao filiados ANPOF e dos Coordenadores de GTs da ANPOF, respon-sveis pela seleo dos trabalhos. Tambm colaboraram na preparao do material para publicao os pesquisadores Andr Penteado e Fernando Lopes de Aquino. ANPOF Gesto 2011/12Vinicius de Figueiredo (UFPR)Edgar da Rocha Marques (UFRJ)Telma de Souza Birchal (UFMG)Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR)Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC)Darlei DallAgnol (UFSC) Daniel Omar Perez (PUC/PR) Marcelo de Carvalho (UNIFESP) ANPOF Gesto 2013/14Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N. Brito (UNISINOS)Ethel Rocha (UFRJ)Gabriel Pancera (UFMG)Hlder Carvalho (UFPI)Lia Levy (UFRGS)rico Andrade (UFPE)Delamar V. Dutra (UFSC)

    F487 Filosofia do renascimento e moderna/ Organizao de Marcelo Carvalho, Vinicius Figueiredo. So Paulo : ANPOF, 2013. 559 p.

    Bibliografia

    ISBN 978-85-88072-15-2

    1. Filosofia do renascimento 2. Filosofia moderna 3. Filosofia

    - Histria I. Carvalho, Marcelo II. Figueiredo, Vinicius III. Encontro Nacional ANPOF CDD 100

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

  • 3Apresentao

    Apresentao

    Vinicius de FigueiredoMarcelo Carvalho

    A publicao dos Livros da ANPOF resultou da ideia, que pautou o progra-ma da Diretoria da ANPOF em 2011 e 2012, de promover maior divulgao da produo filosfica nacional.

    Esse intuito, por sua vez, funda-se na convico de que a comunidade filo-sfica nacional, que vem passando por um significativo processo de ampliao em todas as regies do pas, deseja e merece conhecer-se melhor. O aparecimento da primeira srie de Livros da ANPOF junta-se a outras iniciativas nesta direo, como a criao de uma seo voltada para resenhas de livros de filosofia publicados no Brasil ou no exterior que possuam repercusso entre ns, assim como da moder-nizao (ainda em curso) da pgina da ANPOF, para que ela permanea cumprindo a contento a funo de divulgar concursos, congressos, trabalhos, livros e fatos de relevncia para a comunidade. Essas iniciativas s sero consolidadas, caso o esp-rito que as anima for encampado por mais de uma gesto, alm, claro, do interes-se da prpria comunidade em conhecer-se melhor. A estreita cooperao entre as duas gestes a de 2011-2012 e a de 2013-2014 faz crer que a iniciativa lograr sucesso. Bem rente consolidao da filosofia no Brasil, em um momento em que fala-se muito em avaliao, o processo de autoconhecimento cumpre funo indis-pensvel: ele , primeiramente, autoavaliao.

    Os textos que o leitor tem em mos foram o resultado de parte significativa dos trabalhos apresentados no XV Encontro Nacional da ANPOF, realizado entre 22 e 26 de outubro de 2013 em Curitiba. Sua seleo foi realizada pelos coordenadores dos Grupos de Trabalho e pelos coordenadores dos Programas Associados a ANPOF. A funo exercida por eles torna-se, assim, parte do processo de autoconhecimento da comunidade.

  • 4 Apresentao

    Alm desse aspecto, h tambm outros a serem assinalados nesta apresenta-o. O ndice dos volumes possibilitar que pesquisadores descubram no trabalho de colegas at ento ignorados novos interlocutores, produzindo o resultado esperado de novas interlocues, essenciais para a cooperao entre as instituies a que per-tencem. Tambm deve-se apontar que essa iniciativa possui um importante sentido de documentao acerca do que estamos fazendo em filosofia neste momento.

    Nesta direo, a consulta dos Livros da ANPOF abre-se para um interessante leque de consideraes. perceptvel a concentrao dos trabalhos apresentados nas reas de Filosofia Moderna e de Filosofia Contempornea. Caber reflexo so-bre a trajetria da consolidao da filosofia no Brasil comentar esse fenmeno, exa-minando suas razes e implicaes. Como se trata de um processo muito dinmico, nada melhor do que a continuidade dessa iniciativa para medir as transformaes que seguramente esto por vir.

    Cabe, por fim, agradecer ao principal sujeito dessa iniciativa isto , a todos aqueles que, enfrentando os desafios de uma publicao aberta como essa, apresen-taram o resultado de suas pesquisas e responderam pelo envio dos textos. Nossa parte esta: apresentar nossa contribuio para debate, crtica e interlocuo.

  • 5Sumrio

    Filosofia do Renascimento e Moderna

    ALEXANDRE LEONE (GT Pensamento do sculo XVII)A Carta sobre o Infinito de Espinosa como Recepo da Crtica de Crescas a Maimnides .....................................................................................................................................9ANANDA MILA KOHN (UFSM)Da relao inversamente proporcional entre liberdade natural e liberdade civil: consideraes a partir de Rousseau ..............................................................21ANDR MENEzES ROCHA (GT Pensamento do sculo XVII)Gnese e Lgica do Poder Poltico em Maquiavel e Espinosa ...............................................29ARTHUR DE BULHES (GT Histria da Filosofia da Natureza)Teoria da Viso e Revoluo Cientfica: Descartes e tradio medieval da Perspectiva..................................................................................................................................................37BRUNO CAMILO DE OLIVEIRA (UFRN) O argumento teleolgico de Isaac Newton ....................................................................................45BRUNO SANTOS ALEXANDRE (USP)A glria do povo em Maquiavel ..............................................................................................................65CAINAN FREITAS DE JESUS (UFBA)Imaginao e conjuntura em David Hume .........................................................................................71CARLOS EDUARDO PEREIRA OLIVEIRA (GT Pensamento do sculo XVII)Entre Toms e Descartes: a simplicidade divina ..........................................................................79CINELLI TARDIOLI MESqUITA (GT tica e Poltica na Filosofia do Renascimento)Da inconstncia de nossas aes: Montaigne e Sneca .............................................................87CLARA CARNICERO DE CASTRO (USP)A filosofia eltrica do Marqus de Sade .........................................................................................95DANTE ANDRADE SANTOS (GT Estudos Cartesianos)A hiptese da loucura na primeira meditao cartesiana luz da polmica entre Foucault e Derrida ...................................................................................................................... 103DELMO MATTOS (GT Hobbes)Representao e autoridade poltica em Hobbes .................................................................... 111

  • 6 Sumrio

    DONIzETI APARECIDO PUGIN SOUzA(GT Filosofia, Histria e Sociologia da Cincia e da Tecnologia)O ceticismo e o naturalismo na filosofia de David Hume .................................................... 119Edgard Vincius Cacho zanette (GT Estudos Cartesianos)As figuras da subjetividade na antropologia cartesiana ................................................... 127Edmilson Menezes (GT Filosofia da Histria e Modernidade)Pascal e a noo de progresso ............................................................................................................. 135ELIzANGELA INOCENCIO MATTOS (UFSCAR)Da natureza e da moralidade: um dilogo entre Sade e Rousseau ................................. 147RICO ANDRADE M. DE OLIVEIRA (GT Estudos Cartesianos)Um imperativo sentimental: generosidade e altrusmo na tica cartesiana .......... 153ESTEFANO LUIS DE SA WINTER (GT Histria do Ceticismo)A sabedoria humana de Pierre Charron: exerccio ctico do esprito forte .......... 171EVELINE CAMPOS HAUCK (USP)Garve como mediador de Adam Ferguson ...................................................................................... 187FABRINA MAGALHES PINTO (GT tica e Poltica na Filosofia do Renascimento)Humanismo cristo e retrica no Enchirdion Militis Christiani, de Erasmo de Rotterdam ............................................................................................................................... 193FLVIA ROBERTA BENEVENUTO DE SOUzA (GT tica e Poltica na Filosofia do Renascimento)Maquiavel e os Humores constitutivos do corpo poltico ................................................. 207FRANCISCA JULIANA BARROS SOUSA LIMA (GT Benedictus de Spinoza)Imaginao e Paixes: notas introdutrias sobre a terceira parte da tica de Benedictus de Spinoza ........................................................................................................... 213GERMANO GIMENEz MENDES (UFSC)Os mecanismos do poder e a conscincia humana: razo e histria em Locke ......... 221GERSON LEITE DE MORAES (GT tica e Poltica na Filosofia do Renascimento)Lorenzo Valla como precursor do Renascimento e as crises do papado ..................... 235Giorlando Madureira de Lima (GT Histria da Filosofia da Natureza)A noo de tabula rasa em Locke ....................................................................................................... 251HEITOR PAGLIARO (UFG)Naturalismo e Convencionalismo em Rousseau ......................................................................... 257

  • 7Sumrio

    HELTON MACHADO ADVERSE (GT tica e Poltica na Filosofia do Renascimento)Maquiavel, poltica e secularizao ................................................................................................ 271HOMERO SANTOS SOUzA FILHO (USP)A Desnaturao do Emlio: educao e destino do homem no pensamento de Rousseau .................................................................................................................................................... 279ISRAEL ALEXANDRIA COSTA (GT Rousseau e o Iluminismo)Rousseau e as leis da guerra entre potncias estatais ........................................................ 291JAyME MATHIAS NETTO (UFC)A potncia da imaginao na tica de Spinoza ........................................................................... 303JOO ANTNIO FERRER GUIMARES (GT Estudos Cartesianos)A noo de sujeito em Descartes ........................................................................................................ 319JOO CARLOS LOURENO CAPUTO (UFPR)A alma e o Deus magro de Voltaire .................................................................................................... 329JOO PAULO MIRANDA (UFC)Filosofia e histria em Voltaire ......................................................................................................... 339JOSETE SOBOLESKI (GT Hobbes)Estado: institudo pela paixo do medo? ....................................................................................... 347LEON FARHI NETO (GT Pensamento do sculo XVII)Uma tipologia das formas de imperium a partir de Spinoza ........................................... 355LOUIS DE FREITAS RICHARD BLANCHET (UFPR)Descartes: tempo, liberdade e ontologia ..................................................................................... 363LUCIANO DA SILVA FAANHA (GT Rousseau e o Iluminismo)Romance para Solitrios na escrita romanesca de Rousseau ........................................... 375LUS FERNANDES DOS SANTOS NASCIMENTO (UFSCAR)Engenho e humor na filosofia de Shaftesbury ......................................................................... 393LUIz FELIPE SIGWALT DE MIRANDA (GT Filosofia, Histria e Sociologia da Cincia e da Tecnologia)A polmica sobre o fundamento do Clculo: Anlise a partir da Prop. X, livro II dos Principia de Isaac Newton ........................................................................................... 403LUIz MAURCIO BENTIM DA ROCHA MENEzES (PPGLM/UFRJ)A Poltica do Invisvel .............................................................................................................................. 425

  • 8 Sumrio

    MARTHA GABRIELLy COLETTO COSTA (USP)Tumultos, liberdade e democracia: entre o elogio e o horror. Uma leitura lefortiana dos Discorsi .............................................................................................. 433PATRICIA CARVALHO REIS (GT Filosofia e Direito)O poder constituinte na filosofia de Condorcet .................................................................... 443PATRICIA NAKAyAMA (GT Hobbes)Consideraes sobre o mtodo cientfico em Thomas Hobbes e a Inventio latina ..........447PAULO TADEU DA SILVA (GT Filosofia, Histria e Sociologia da Cincia e da Tecnologia)Mersenne e sua agenda cientfica ..................................................................................................... 459PEDRO FALCO PRICLADNITzKy (UFRGS)A Teoria da Substncia em Descartes Luz do Argumento da Distino Real ........ 467PEDRO PAULO DA COSTA CORA (GT Rousseau e o Iluminismo)Rousseau e os gregos ................................................................................................................................. 481RAFAEL DE ARAJO (UFPR)O luxo em Rousseau: um problema de trs nveis ..................................................................... 487RAVENA OLINDA (UFC)Algumas premissas sobre a natureza dos corpos ..................................................................... 497 RENATA RAMOS DA SILVA (GT Pensamento do sculo XVII)Apercepo e Continuidade: o Problema Leibniziano da Conscincia .......................... 503RENATO MOSCATELI (GT Rousseau e o Iluminismo)Rousseau e os limites da cidadania ................................................................................................... 515RONALDO JOS MORACA (GT Pensamento do sculo XVII)John Locke e as questes em torno da linguagem .................................................................... 523SILVIO SENO CHIBENI (GT Filosofia da Cincia)Locke e a distino entre qualidades primrias e secundrias ...................................... 529Suellen Caroline Teixeira (UFU)A relao de Deus com as verdades eternas em Ren Descartes .................................... 537SUzANE DA SILVA ARAJO (UFPA)Rousseau e os primeiros romanticos ............................................................................................... 547VANILDA HONRIA DOS SANTOS (UFU)A contribuio da nova cincia de Giambattista Vico para os estudos polticos ...... 553

  • 9A Carta sobre o Infinito de Espinosa como recepo da crtica de Crescas a Maimnides

    A Carta sobre o Infinito de Espinosa como recepo da crtica de Crescas a Maimnides

    Alexandre Leone* * Pos-Doutorando no Departamento de Filoso-fia FFLCH-USP.

    GT Pensamento do Sculo XVII

    ResumoNa Carta sobre o Infinito Espinosa cita a prova da existncia de Deus feita por Hasdai Crescas (1340 - 1411), que fez a mais veemente crtica ao aristotelis-mo medieval judaico. A crtica de Crescas comea pela refutao das propo-sies que Maimnides usou para com elas provar a existncia de um Deus radicalmente transcendente. As primeiras trs negam o infinito atual. Crescas em sua crtica terceira proposio argumenta em prol da existncia da srie infinita de causas e efeitos, entendendo a causa primeira como causa ontol-gica imante a toda srie que determina a existncia dos infinitos efeitos. Para Crescas essa causa primeira simultnea aos seus infinitos efeitos Deus. Eis a primeira formulao da imanncia na filosofia judaica. Ler de Espinosa a luz desse debate interno filosofia judaica medieval faz emergir sua relao com a filosofia judaica que o precedeu.

    Palavras-chave: Espinosa, Infinito, Crescas, Maimnides, Existncia de Deus.

    I

    Sobre a relao de Baruch Espinosa com o pensamento judaico, escrevia j h quase cem anos Meyer Waxman, em um artigo que hoje um clssico, que este um tema que ento j era debatido por geraes1. Naquele momento o debate era com relao ao grau de proximidade de seu pensamento com a filo-sofia judaica medieval e, dentro do paradigma histrico, da influncia da matriz

    1 WAXMAN, Meyer Baruch Spinozas Relation to Jewish Philosophycal Tought and to Judaism, The Jewish Quartely Rewew, New Series, Vol 19, No 4 (abril, 1929). Pp 411 430. University of Pennsylvania Press. http://www.jstor.org/stable/1451532

  • 10 Alexandre Leone

    judaica em seu sistema. Waxman lembra que uma das primeiras interpretaes dessa relao atribuda a Leibnitz, que de modo muito erudito afirmava ento que a fundao do sistema de Espinosa poderia ser traada at o neoplatonismo dos filsofos rabes, o qual foi transmitido por meio da leitura de Maimnides. certo que Espinosa demonstra conhecer bem o Guia dos Perplexos, que possivel-mente estudou diligentemente quando ainda era aluno das academias rabnicas de Amsterd, em sua juventude. A afirmao de Leibnitz parece favorecer um dos lados desse debate tal como ele se deu no incio do sculo XX, quando dois acad-micos alemes sustentavam teses opostas. Por um lado, Emanuel Joel, buscou pro-var que Espinosa demonstraria grande dependncia de diversas fontes da filosofia judaica medieval. E assim sustentava que haveria uma forte continuidade entre as ideias de Espinosa e as fontes judaicas anteriores. Por outro lado, Kuno Fischer, minimizava ao mximo esta relao, ressaltando a ruptura entre o espinosismo e o pensamento judaico.

    Em seu artigo, Waxman assume prudente e retoricamente uma posio intermediria2 ao afirmar que o conceito de influncia, to central no estudo da histria da filosofia no paradigma por ele adotado, no deveria ser construdo no sentido de significar emprstimo ou imitao, mas como percepo da existncia de pontos de contato entre o pensamento de Espinosa e as tradies sapienciais judaicas medievais, principalmente a filosofia e a cabala. Para sintetizar sua posi-o Waxman usa o termo alemo anregungspunkte (pontos de excitao), que ele entende como quando uma forma de pensamento suprir outra de um poder moti-vador (motive power), dando-lhe impulso numa certa direo. Como exemplo no caso de Espinosa, Waxman nota um interessante paralelismo entre os trs temas discutidos na tica, a saber, Deus, o Homem e a felicidade com estrutura semelhan-te encontrada em duas obras centrais da filosofia judaica medieval: Sefer Emunot Ve-Deot (O Livro das Crenas e das Opinies) de Saadia Gaon e o Mor Nevukhim (Guia do Perplexos) de Maimonides. Segundo ele, apesar Espinosa afastar-se das ideias em geral afirmadas por estes filsofos judeus medievais, seu pensamento parece mover-se atravs da mesma atmosfera. Isso claramente vai ecoar em seu pensamento maduro mesmo quando faz a crtica dessa tradio sapiencial recebi-da por ele na juventude. Em Spinozas Critique of Religion, Leo Strauss interpreta o pensamento de Espinosa como sendo motivado pela crtica ideia do Deus radicalmente transcen-dente defendida por Maimonides no Guia3. Essa ideia da transcendncia radical divina cara ao aristotelismo medieval era negada na poca pela literatura mstica

    2 WAXMAN, Meyer Baruch Spinozas Relation to Jewish Philosophycal Tought and to Judaism, The Jewish Quartely Rewew, New Series, Vol 19, No 4 (abril, 1929). Pp 412. University of Pennsylvania Press. http://www.jstor.org/stable/1451532 4123 STRAUSS, Leo. Spinozas Critique of Religion, Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1930, pp. 154

  • 11A Carta sobre o Infinito de Espinosa como recepo da crtica de Crescas a Maimnides

    de tendncias pantesticas4, que a partir do sculo XII referia-se a Deus como o Ein Sof (Infinito) e ganha roupagens neoplatnicas nos escritos de Azriel de Gerona (sc. XIII). Mas apenas em Hasdai Crescas (1340 - 1411), no incio do sculo XV, que a crtica filosfica ao aristotelismo e ao Guia dos Perplexos elaborada de modo sistemtico. Devemos, sobretudo, a Harry Wolfson, que viveu na primeira metade do sculo XX, autor de vrios importantes estudos em filosofia judaica medieval e moderna, entre eles um sobre Espinosa e outro sobre Hasdai Crescas a consagra-o da tese segundo a qual toda a discusso espinosiana sobre o infinito, tanto a reformulao dos argumentos contra o infinito atual quanto sua contestao, esto diretamente baseados na crtica de Crescas a Maimnides. Diramos hoje que nos escritos de Espinosa feita uma recepo de vrios aspectos da crtica de Crescas ao aristotelismo medieval de Maimonides e o de Averris, tal como apresentados em seu livro Or Ha-Shem, em hebraico Luz do Nome (Luz de YHWH - Adonai), pu-blicado em 1410. Duzentos e cinquenta anos antes de Espinosa, Crescas, em sua crtica ao aristotelismo medieval, j defende a possibilidade do infinito atual, dos infinitos atributos divinos, determinismo, do que Deus preenche a extenso do mundo com sua Presena tal como o vcuo preenche todo o espao infinito. Cres-cas chega mesmo contrapor o Deus radicalmente transcendente de Maimonides e dos aristotlicos medievais a uma noo de Deus onde a imanncia e a transcen-dncia coabitam e interagem. Interessante que, no entanto, Hasdai Crescas s mencionado diretamente por Espinosa uma nica vez em toda sua obra, na famosa Carta sobre o Infinito.

    IIA Carta No. 12, escrita quando Espinosa ainda residia em Rijsnburg, em 20

    de abril de 1663, dirigida a Lodewijik Meyer, conhecida tambm como Carta sobre o Infinito parte de um conjunto de textos que incluem tambm a tica I e os Pen-samentos Metafsicos na Parte I e o incio da Parte II. No conjunto destes textos so discutidos os temas relacionados s noes espinosianas de infinito, substncia, existncia, ser necessrio, causa sui, imanncia e onde so formuladas suas provas para existncia e unidade de Deus. O comeo e a maior parte da carta lida com ex-plicao da distino entre duas formas de infinito atual: aquele que o infinito por sua natureza e aquele que infinito por no ter fim, isto embora seja conhe-cido seu mximo e mnimo no podem ser representadas apenas por um nmero determinado. Em seguida ele passa a distinguir substncia de modo e tambm a distinguir eternidade de durao e chega rapidamente s concluses de que subs-tncia aquilo cuja existncia pertence sua essncia, de que no h mltiplas substncias, mas que ela nica quanto sua natureza e finalmente de que ela s pode ser compreendida como infinita. Em seguida ele, distinguindo eternidade de

    4 SCHOLEM, Gershon. Grandes Correntes da Mstica Judaica. So Paulo: Perspectiva, 1972. (Col. Es-tudos, 12).

  • 12 Alexandre Leone

    durao, concebe a eternidade como fruio infinita do existir ou fruio infinita do ser. Algo como existir eterna e permanentemente em ato. Prossegue esclarecendo a relao entre eternidade e substncia e entre extenso e substncia. Discorre so-bre a dificuldade da mente humana em entender a distino entre infinito e nme-ro, entre tempo e durao e entre extenso infinita e distncia finita. Chegando, no que seria aparentemente a concluso de seu raciocnio na carta, em uma distino geral entre o infinito e o finito, no apenas em potencial, mas tambm em ato. Sem explicitar ao seu leitor ocidental, no caso imediato Lodewijik Meyer5, ele, Espinosa, percorreu vrios temas do debate travado em torno da controvrsia maimonidiana que agitou os crculos filosficos judaicos, entre os sculos XII e XV, nas academias e crculos filosficos na Provena e em Arago. Debate este que foi continuado, logo em seguida, por alguns filsofos judeus e cristos no Renascimento italiano, entre eles Leone Hebreu e Picco Della Mirandolla. Este debate tem seu ponto culminante na crtica de Crescas s provas de Maimnides para a existncia de Deus6.

    Todavia, nada disso foi explicitado por Espinosa, ento a meno prova da existncia de Deus enunciada por Hasdai Crescas no final da carta, no ltimo pargrafo, aparece como uma mudana brusca no fluxo do texto. Numa rara pas-sagem em sua obra e sobre um aspecto importante de sua filosofia, referindo-se a Hasdai Crescas por nome, Espinosa parece citar, mas est a parafrasear, sem criticar, a prova daquele para a existncia de Deus, demonstrando alguma con-cordncia com Crescas.

    Como j dito, nome de Crescas mencionado por Espinosa uma nica vez em toda sua obra justamente nesta passagem final da Carta sobre o Infinito. Quase de passagem, como se fora num apndice, ele refere-se demonstrao da existncia de Deus conforme enunciado por certo judeu chamado Rab Ghasdj7:

    Se houver um nmero infinito de causas, tudo o que ser causado, mas nenhuma coisa causada pode existir necessariamente pela fora de sua na-tureza; logo nada h na Natureza a cuja essncia pertena uma existncia ne-

    5 Lodewijk Meyer (tambm Meijer) (1629-25 novembro 1681) foi um mdico holands, erudito, tradutor, lexicgrafo e dramaturgo. Ele era um radical do Iluminismo, que era um dos membros mais proeminentes do crculo ao redor do filsofo Benedictus de Spinoza. Ele publicou um trabalho an-nimo, a Philosophia S. Scripturae interpres. Ele foi inicialmente atribuda a Spinoza, e causou furor entre os pregadores e telogos, com as suas alegaes de que a Bblia era em muitos lugares opacos e ambguo, e que a filosofia o nico critrio para a interpretao de cruxes em tais passagens. Logo aps a morte de seus amigos Meyer revelou que ele era o autor da obra, que havia sido banido. Di-cionrio de XVII e XVIII filsofos do sculo holandeses (2003), Thoemmes Press (dois volumes), artigo Meyer, Lodewijk, p. 694-9. O modo como Espinosa se refere a Hasdai Crescas na carta por um certo judeu chamado Rab Ghasdj indica que ele o estava a apresentar Meyer que certamente desconhecia o debate judaico medieval, assim como muitos leitores contemporneos de Espinosa. 6 CRESCAS, H. Or Ha-Shem (Shlomo Fisher editor), Sefrei Ramot, Jerusalm, 1990 Primeiro Discurso, Terceira Seo, Captulos 1 a 47 Em sua Gramtica Hebraica, Espinosa prope um sistema de transliterao do hebraico para o latim e o holands. O nome Hasdai transliterado na carta por ele conforme esse sistema. Gh em holands se pronuncia como hag aspirado e j como i.

  • 13A Carta sobre o Infinito de Espinosa como recepo da crtica de Crescas a Maimnides

    cessria. Mas isso um absurdo; logo a premissa tambm o . A fora do ar-gumento no se situa em que seja impossvel haver um infinito em ato ou um progresso das causas ao infinito, mas apenas em que se supe que as coisas que no existem necessariamente por sua natureza no so determinadas a existir por uma coisa que existe necessariamente por sua natureza.8

    Interessante que esta demonstrao seja menciona por Spinoza na carta de uma forma um tanto quanto truncada se comparada ao modo mais sucinto (mais elegante) em como ela aparece Or HaShem 1:3:2. Escreve Crescas:

    A realidade depende de um determinante capaz de privilegiar a existncia dos (infinitos) entes em detrimento de sua no existncia, sendo desse modo a causa da totalidade dos efeitos em privilgio de sua existncia. Este ser Deus, bendito seja ele. 9

    Crescas chega a esta prova a partir da sua crtica terceira das vinte e seis proposies aristotlicas enunciadas por Maimnides da segunda parte do Guia dos Perplexos. Em ensaio anterior A Idia de Infinito em Hasdai Crescas (1340 1411) Tecida a Partir da Crtica s Vinte e Seis Proposies de Maimnides (1138 1204) explicada mais longamente a crtica de Crescas s trs primeiras propo-sies do Guia, neste ensaio tal crtica ser apresentada de modo mais breve.

    A terceira proposio de Maimnides afirma:

    A existncia de um nmero infinito de causas e efeitos impossvel, ainda que no sejam magnitudes. Se por exemplo um intelecto fosse a causa de um segundo, a segundo a causa de uma terceiro, o terceiro a causa de um quarto e assim por diante, as sries no poderiam continuar at o infinito, pois uma clara falsidade.10

    No sculo XIII, Muhamad Al-Tabrizi, um muulmano persa, escreveu um co-mentrio em rabe sobre as proposies que foi, em virtude de sua importncia traduzido para o hebraico. Em sua explicao da terceira proposio ele afirma que uma srie infinita de seres que guardem entre si alguma ordem [seder] ou posio [matzav] de magnitudes [gedolim] na natureza [ba-teva] de tal modo que a relao entre eles seja de causa [il] e efeito [alul] impossvel, porque uma causa aquilo cuja existncia implica a existncia do efeito e se fosse concebida a no existncia da causa o efeito no tambm existiria11. esta relao entre causa e efeito que

    8 ESPONOSA, B Carta sobre o Infinito, So Paulo, Abril Cultural, Coleo os Pensadores 1979.

    9 , , . , , , , .10 , , , , , ,

    11 CRESCAS OH 1,1,3 , , , , . , .

  • 14 Alexandre Leone

    torna impossvel, segundo a tradio aristotlica, uma srie infinita de causas e efeitos. Isso porque segundo esta posio:

    O efeito [alul] tem apenas uma existncia possvel [efshari hametziut] por si mesmo. E ele (desse modo) precisa de um determinante [makhriah] que determi-ne [iakhriah] a preponderncia da sua existncia [metziuto] sobre a no existncia [hedero]12, esse determinante sua causa. Por isso inevitavelmente numa srie de causas e efeitos infinita [levilti takhlit] ou todos os elementos so efeitos ou alguns no so efeitos. E se todos forem efeitos eles tm apenas existncia possvel [efsha-ri hametziut], pois eles necessitam de um determinante [makhriah] que determine [iakhriah] a preponderncia da existncia [metziutam] deles sobre a no existn-cia [hederam], o que pressupem a existncia de uma causa no causada [il bilti alua]. Mas se eles no so todos efeitos, pois um deles uma causa no causada, ela mesma marca o limite da srie. Mas a srie foi concebida como infinita, e isso uma contradio [sheker batel]. E tal contradio s ocorre por termos admitido a existncia de uma srie infinita [ein takhlit l misparam] de causas e efeitos.13

    A argumentao de Al-Tabrizi se apoia no comentrio que Avicena14 faz da Metafsica , 2, onde so formulados os conceitos de ser necessrio, cuja existncia igual essncia e ser contingente, cuja existncia diferente da essncia. Como os efeitos tm apenas existncia possvel, pois sua causa est fora deles, assim eles podem tanto existir como no, sendo assim, os efeitos necessitam de uma causa no causada para determinar sua existncia. Essa causa concebida como anterior a todos os outros elementos da srie e , portanto, logicamente colocada no come-o da srie, assim ela a primeira causa que gera a srie toda. Se h uma primeira causa a srie assim apenas potencialmente infinita para um lado, mas ela nunca ser infinita em ato o que s ocorreria se no tivesse incio.

    Crescas rebate Al-Tabrizi argumentado que mesmo para Maimonides15 o ser necessrio poderia gerar infinitos efeitos A argumentao de Crescas em prol da possibilidade de uma srie infinita de causas e efeitos leva em conta, por um lado, a restrio de Al-Tabrizi segundo a qual necessria uma primeira causa no causada que determine a existncia da srie, e por outro, a possibilidade, aceita por alguns filsofos, entre eles Maimonides, de que um agente que ope-ra por vontade prpria pode causar infinitos efeitos16. Assim Crescas faz em Or H-Shem 1,2,3, duas suposies. A primeira que se possvel para uma causa

    12 Literalmente em hebraico falta de forma, estado amorfo.13 CRESCAS Or H-Shem (Shlomo Fisher editor), Sefrei Ramot, Jerusalm, 1990 (OH 1,2,3):, . , , . , , , . , ; , . , , . . . :14 AVICENA, Al-Najat sobre a Metafsica II editado em McGINIIS, J e REISMAN, D. Classical Arabic Phi-losophy: Na Anthology of Sources, Indianapolis e Cambridge, Hackett publishing Company, 2007 pp 211 a 216.15 Maimonides Guia 1,74 e Guia II, 2216 , . ,

  • 15A Carta sobre o Infinito de Espinosa como recepo da crtica de Crescas a Maimnides

    que age por vontade, um ser necessrio, emanar infinitos efeitos. A segunda que estes infinitos efeitos c podem coexistir com a primeira causa. Ento, por que estes efeitos no poderiam ser arranjados numa serie em que cada um aparece depois do outro mantendo entre si uma relao de causalidade acidental? Cada elemento deve sua existncia causa comum que imanente a toda a srie e simultnea em relao a cada um deles. Os efeitos poderiam surgir um aps o ou-tro mantendo entre si uma relao de causalidade acidental. Essa srie poderia ser infinita, pois a primeira causa no apenas causa do segundo elemento da srie e este do terceiro e assim por diante, marcando assim o limite da srie, mas causa comum e imanente srie inteira, que assim poderia ser infinita, apesar de composta por seres contingentes. Respondendo tambm objeo levantada por Moises Narboni, Crescas argumenta que a primeira causa tem para com os efeitos uma anterioridade ontolgica e no meramente temporal, assim ela pode ser entendida como simultnea aos efeitos.

    Note-se que Crescas parafraseia o argumento de Al-Tabrizi quanto primeira causa como ser necessrio referindo-se a ele como fator determinante [makhriah] que determina [iakhriah] a preponderncia da existncia sobre a no existncia dos efeitos que so os seres contingentes. Os conceitos avicenianos de ser necessrio e ser contingente17 so entendidos, por Crescas, a partir da noo de que o ser contingente s tem a princpio uma existncia possvel, pois, no pode fazer-se existir por si mesmo, uma vez que sua existncia no parte de sua essncia, apenas um acidente, assim ele depende sempre de uma causa externa a si para existir. Assim, ele pode tanto existir como no, depende de algo que o determine. Porm, para Avicena se o ser contingente no necessrio em relao a si mesmo, preciso que seja pelo menos possvel em relao a si mesmo e necessrio em relao a outro para existir. Desse modo, tanto o ser necessrio quanto o contingente existem necessariamente. Em relao ao conjunto dos seres, que Crescas denomina a realidade (metziut), o ser necessrio o fator que determina a preponderncia da existncia do contingente, isto , do possvel, sobre sua no existncia. Segundo Wolson e Harvey, essa parece ser a leitura de Avicena que Crescas recebe e compartilha com os islmicos Al- Ga-zali e Al-Tabrizi e com Moiss Narboni, judeu catalo como ele.

    Interessante que segundo Wolfson essa noo de um determinante que faz preponderar a existncia sobre a no existncia tambm est presente no pensamento do kalam. Para a teologia medieval islmica, porm, ela tem um sen-tido diverso da conotao que lhe deu Avicena. As noes de determinao e particularizao so usadas pelas escolas kalamicas no contexto dos argumentos formulados por eles para provar a criao do mundo18. O kalam entende que a

    17 AVICENA, Al-Najat sobre a Metafsica II editado em McGINIIS, J e REISMAN, D. Classical Arabic Phi-losophy: Na Anthology of Sources, Indianapolis e Cambridge, Hackett publishing Company, 2007 pp 211 a 216.18 WOLFSON, H. A. The Philosophy of Kalam, Londres e Cambridge, Harvard University Press, 1976, pp. 440 - 447.

  • 16 Alexandre Leone

    doutrina ortodoxa islmica afirma a criao do mundo no tempo. Assim segundo seu argumento antes do mundo ser criado ele poderia existir ou no, pois sendo tudo fruto da vontade divina, ento Deus poderia escolher que tipo de mundo seria criando. Ao criar o mundo Deus particulariza que este especfico mundo exista e no outro e determina a todo instante que continue existindo. A discus-so entre as escolas teolgicas apenas quanto a se a vontade divina criada ou consubstancial com Deus. A tradio do aristotelismo medieval rabe e judai-co, no entanto contra argumenta perguntando por que razo o mundo teria sido criando num determinado instante, no antes nem depois. Avicena propem a tese da eternidade da criao e Maimnides da criao do mundo e do tempo si-multaneamente. Maimnides critica esse argumento do kalam na primeira parte do Guia (I, 74) ao comentar os sete mtodos dos telogos para provar a criao do mundo. Este, o sexto argumento, , apesar de elogiado como persuasivo, no final entendido por Maimnides como apenas retrico e sofistico. Harvey, nota que em seu comentrio ao Guia, o averrosta Moises Narboni esclarece que quan-do os telogos do kalam referem-se possibilidade eles querem dizer imagina-o e os filsofos quando se referem possibilidade querem dizer contingencia em virtude de sua causa. Para os telogos islmicos Deus imagina o mundo antes de cri-lo, mas isso implica a passagem da potencia ao ato em Deus e isso no possvel segundo paradigma aristotlico, pois Deus entendido como ato puro. Em outras palavras, no h design anterior ao de criar. Assim, para os filso-fos a contingencia do mundo entendida de outro modo, ela relaciona-se sua causa ser externa sua essncia, ou seja, sua existncia embasada na existncia do ser necessrio, que , portanto, seu fator determinante.

    Harvey afirma que o comentrio de Narboni tem uma direta influncia no modo como Crescas vai enunciar sua prova para a existncia de Deus19 que duzentos anos depois parafraseada por Espinosa em Carta sobre o Infinito. Isso ele descreve como avicenizao feita por Crescas da prova kalmica. Mas no s isso, no apenas que Crescas segue o entendimento de Narboni, e antes o de Avicena, e entende o conceito de determinao pela causa e no pela imagi-nao substituindo este aspecto da prova do kalam pela determinao segundo o entendimento de Avicena. A inovao de Crescas usar a ideia aviceniana de determinao para embasar sua prova da existncia de Deus enquanto o kalam usa sua noo de determinao para provar a criao do mundo. A ideia do ser necessrio como determinante da preponderncia da existncia do contingente sobre a possibilidade de no existncia aparece em Crescas no contexto da ar-gumentao em prol da causa primeira. por Al-Tabrizi e Narboni entenderem anterioridade da causa primeira como cronolgica que ambos afirmam a impos-sibilidade da srie infinita de causa e efeito. Mas Crescas demonstra que ela pode

    19 HARVEY, Warren Zeev. Physics and Methaphysics in Hasdai Crescas, Amsterdan, J.C. Gieben Pub-lisher, 1998 (Coleco Amsterdan Studies in Jewish Thought), pp. 85 -86

  • 17A Carta sobre o Infinito de Espinosa como recepo da crtica de Crescas a Maimnides

    ter uma anterioridade ontolgica e ser tambm simultnea aos efeitos e, por sua vez, que podem eles, os efeitos, serem ordenados numa sucesso temporal geran-do assim a possibilidade uma srie infinita de causas e efeitos que mantm entre si uma relao acidental enquanto a causa primeira permanece imante a toda a srie. Assim vemos que a partir da crtica terceira proposio, em OH 1,2,3 que formulada o primeiro enunciado de sua prova:

    No entanto o que ns precisamos manter dessa proposio (a constatao da) existncia de uma causa primeira no causada, pouca importando serem os efeitos infinitos e cada um causa (acidental) do outro ou finitos20.

    IIIAps este percurso retornemos parfrase que Espinosa faz da prova de

    Crescas no final da Carta sobre o Infinito:

    Se houver um nmero infinito de causas, tudo o que ser causado, mas nenhuma coisa causada pode existir necessariamente pela fora de sua na-tureza; logo nada h na Natureza a cuja essncia pertena uma existncia ne-cessria. Mas isso um absurdo; logo a premissa tambm o . A fora do ar-gumento no se situa em que seja impossvel haver um infinito em ato ou um progresso das causas ao infinito, mas apenas em que se supe que as coisas que no existem necessariamente por sua natureza no so determinadas a existir por uma coisa que existe necessariamente por sua natureza.21

    Agora possvel perceber com maior nitidez aquilo que antes parecia uma parfrase truncada. Espinosa est nesta passagem a combinar a concluso da crtica de Crescas, OH 1,2,3, terceira proposio do Guia dos Perplexos que no apenas conclui ser possvel a existncia da srie infinita de causas, isto a tese avicenia-na da eternidade do mundo, mas que tambm necessrio postular uma primeira causa, isso combinado, com a tese, em OH 1,3,2, de que Deus causa ontolgica pri-meira e imanente toda a srie infinita de causas e efeitos, isto , o ser necessrio que determina a existncia dos seres possveis sobre sua no existncia. Em outras palavras, mesmo infinita e eterna, a realidade, o universo infinito, deve ter uma cau-sa primeira, simultnea ainda que ontologicamente anterior e ele. Essa combinao busca captar os passos que levam prova de Crescas para a existncia de Deus.

    21 A realidade depende de um determinante capaz de privilegiar a existncia dos (infinitos) entes em detrimento de sua no existncia, sendo desse modo causa (primeira) da totalidade dos efeitos em privilgio de sua existncia. Este ser Deus, bendito seja ele.

    No entanto o que ns precisamos manter dessa proposio (a constatao da) existncia de uma causa primeira no causada, pouca importando serem os efeitos infinitos e cada um causa (aciden-tal) do outro ou finitos.

    20 CRESCAS OH 1,2,3 , , , O , :

  • 18 Alexandre Leone

    Espinosa, porm, no est somente a combinar duas passagens da prova de Crescas, ele tambm introduz um elemento novo que no est em Crescas quando afirma que Deus o ser que existe necessariamente por sua natureza. Enquanto a existncia necessria est implcita nos argumentos de Crescas que em vrias passagens refere-se a Deus como ser necessrio (haiav hametziut) a ideia de que ele existe por fora de sua natureza um elemento novo aportado por Espinosa. Essa definio aparece na tica I nas famosas VII e XI proposies. Essa linguagem a mesma usada na demonstrao da Proposio VII, onde a cerca da substncia dito que sua essncia envolve a existncia, ou em outras palavras, o existir per-tence sua natureza.

    Por um lado interessante que Espinosa esteja num dilogo to prximo de Crescas ao ponto de parecer seguir o entendimento daquele sobre Deus. Vemos isso na Proposio XI onde tambm trazia baila a noo dos infinitos atributos que aparece em Crescas e em seu discpulo imediato Yossef Albo, autor do Sefer H-Ykarim, que, como Wolfson demonstra, Espinosa cita quase textualmente em sua definio de Deus como tendo infinitos atributos sem mencion-lo por nome22. Por outro lado na ideia segundo a qual existir pertence sua natureza onde est a chave para entender em que Espinosa est a divergir de Crescas e da filosofia judai-ca medieval em geral. no desenrolar do novelo dessa ideia que surge a definio de Deus com causa de si (causa sui). Notemos que Crescas usa outra linguagem, ele refere-se a Deus como causa sem causa (il bilti ilua).

    Wolfson prope duas interpretaes para o sentido da expresso causa sui aplicada a Deus por Espinosa. Notando que tal expresso inexiste na tradio filo-sfica judaica medieval a antes dela na tradio filosfica rabe. De fato a prpria expresso Espinosa recebe de Descartes, que a usa antes dele. Wolfson interpreta causa sui quando entendida por Espinosa como uma expresso para referir-se existncia necessria e que apesar de parecer uma expresso positiva, que afirma-ria algo sobre Deus, no entanto, ela seria de fato uma expresso de negao e seu sentido seria referir-se de modo breve quilo que no tem causa (causelessness)23. Ao propor esta primeira interpretao Wolfson de fato est a reconciliar Espinosa e Crescas, pois, segundo esta interpretao para ambos a quididade divina esta-ria alm dos limites do entendimento humano. Interessante que Wolfson prope tambm uma segunda interpretao que d um sentido positivo expresso causa sui: A expresso seria a referncia autossuficincia entendida como existncia continuamente atual. Notando que essa expresso usada por Espinosa para refe-rir-se essncia da substncia, isto natureza, ele identifica nela o centro da afir-mao espinosiana de que a natureza e Deus so a mesma coisa. Assim, para Wolf-22 WOLFSON, H. A. The Philosophy of Spinoza: unfolding the latent processes of his reasoning. Cam-bridge e Londres, Harvard University Press. 1990, pp. 115 -11723 WOLFSON, H. A. The Philosophy of Spinoza: unfolding the latent processes of his reasoning. Cambridge e Londres, Harvard University Press. 1990, pp. 127

  • 19A Carta sobre o Infinito de Espinosa como recepo da crtica de Crescas a Maimnides

    son, aqui estaria a ruptura de Espinosa com a tradio filosfica judaica medieval, a identificao do ser necessrio com o ser contingente, que so em Espinosa con-cebidos como substncia e modo. Portanto, o pantesmo, ou seja, a imanncia seria a ruptura espinosiana com a tradio judaica medieval.

    Mas essa interpretao problemtica, pois tendncias imanentistas e pan-testas j existiam na tradio judaica medieval e renascentista. Um exemplo co-nhecido a literatura mstica, cabalista, em especial os escritos de Azriel de Gerona (sc. XIII) onde feita a identificao de Deus com o Infinito (Ein Sof) e a realidade. Tambm em Crescas, como procurei mostrar no artigo A Relao entre Makom (Lugar) e Ha-Makom (Deus) em Hasdai Crescas no Contexto de sua Crtica ao Aris-totelismo Medieval, so notadas tendncias imanentistas e mesmo a identificao da extenso como atributo divino. Espinosa radicaliza a ideia de imanncia, mas isso no seria em si uma ruptura com a tradio medieval.

    Uma terceira interpretao proposta por Marilena Chau, segundo ela, a expresso causa sui usada por Espinosa como definio positiva que permite o entendimento da essncia intima da substncia, ou seja, de sua quididade24. Em Or Ha-Shem 1,3,1, que o captulo anterior e que prepara seu enunciado da prova da existncia de Deus, l ele estabelece dois parmetros que balizam seu enun-ciado no captulo seguinte, OH 1,3,2 da prova da existncia de Deus. Em primeiro lugar ele concorda com a tradio e com Maimnides que a quididade divina incompreensvel a outro ser que no Deus, isso no exatamente pelos menos mo-tivos de Maimnides como veremos adiante. Em segundo lugar, ele discorda de Maimnides quando este afirma que a existncia divina de um tipo radicalmente diferente, exterior e sem relao com a existncia dos entes contingentes, s sendo possvel uma relao de homonmia entre eles. Crescas a discordar de Maimni-des afirma que a existncia predicada a Deus e aos seres do mesmo modo, pois existir ser fora do intelecto tanto para o ser necessrio quanto para os seres con-tingentes. Em lugar da homonmia h uma relao de anfibologia entre eles, o que se predica da existncia dito em primeiro lugar sobre Deus e secundariamente sobre os seres, h diferencia de grau, mas, ao mesmo tempo em que afirmada a unidade da existncia. Segundo a interpretao de Chau, Espinosa concorda com Crescas em relao unidade da existncia, mas rompe com ele, com Maimnides e virtualmente com a filosofia judaica medieval ao afirmar a atravs da ideia de causa sui conhecer a quididade divina. A radicalizao da ideia de imanncia no est baseada na atribuio de extenso Deus nem na identificao entre Deus e a substncia, mas na afirmao de ter desvendado sua essncia. Aqui est o hidush, a novidade, que Espinosa aporta ao debate travado na tradio filosfica judaica medieval e renascentista.

    A transcendncia radical de Maimnides afirma a impossibilidade de conhe-cer a quididade divina e a completa distino entre a existncia de Deus e do mun-24 CHAU, Marilena de S. A Nervura do Real. So Paulo, Companhia das Letras, 1999. pp. 748 - 755

  • 20 Alexandre Leone

    do. Crescas concorda com Maimnides sobre a quididade divina ser inacessvel, mantendo nesse aspecto uma noo de transcendncia, que no baseada na dife-rena de substancias, mas na ultrapassagem do infinito em relao ao finito, como ficar mais claro em sua discusso sobre os atributos divinos logo a seguir em OH 1,3,3. No entanto, por afirmar que a existncia predicada a Deus e aos seres da mesma forma apenas com uma diferena de grau, num caso mais excelso e infinito e no outro secundrio e finito, nesse sentido ele afirma a imanncia concluindo que Deus a forma de toda a realidade e que sua presena preenche toda a realidade infinita. Espinosa afirma conhecer a quididade e que a existncia uma, radicali-zando a imanncia ao ponto de abolir toda transcendncia. Assim ele rompe, mas ao mesmo tempo participa do debate que constituiu tradio filosfica judaica que o precedeu enquanto transmisso sapiencial.

    RefernciasAVICENA, Al-Najat sobre a Metafsica II editado em McGINIIS, J e REISMAN, D. Classical Arabic Philosophy: Na Anthology of Sources, Indianapolis e Cambridge, Hackett publishing Company, 2007.

    CHAU, Marilena de S. A Nervura do Real. So Paulo, Companhia

    CRESCAS, H. Or Ha-Shem (Shlomo Fisher editor), Sefrei Ramot, Jerusalm, 1990 Primeiro Discurso, Terceira Seo, Captulos 1 a 4

    ESPONOSA, B Carta sobre o Infinito, So Paulo, Abril Cultural, Coleo os Pensadores 1979.

    HARVEY, Warren Zeev. Physics and Methaphysics in Hasdai Crescas, Amsterdan, J.C. Gieben Publisher, 1998 (Coleco Amsterdan Studies in Jewish Thought), pp. 85 -86

    MAIMNIDES. Guia dos Perplexos, Responsa Project Version 11. Bar Ilan University. TES. New York. 2004. SCHOLEM, Gershon. Grandes Correntes da Mstica Judaica. So Paulo: Perspectiva, 1972. (Col. Estudos, 12).

    STRAUSS, Leo. Spinozas Critique of Religion, Chicago e Londres, The University of Chicago Press, 1930, pp. 154

    WAXMAN, Meyer Baruch Spinozas Relation to Jewish Philosophycal Tought and to Judaism, The Jewish Quartely Rewew, New Series, Vol 19, No 4 (abril, 1929). University of Pennsyl-vania Press. http://www.jstor.org/stable/1451532

    WOLFSON, H. A. The Philosophy of Kalam, Londres e Cambridge, Harvard University Press, 1976.

    WOLFSON, H. A. The Philosophy of Spinoza: unfolding the latent processes of his reasoning. Cambridge e Londres, Harvard University Press. 1990.

  • 21Da relao inversamente proporcional entre liberdade natural e liberdade civil

    Da relao inversamente proporcional entre liberdade natural e liberdade civil: consideraes a partir de Rousseau Ananda Mila Kohn

    ResumoExpe-se aqui alguns elementos da teoria rousseauniana com o intuito de verificar em que medida essa teoria, por vezes obscurecida por leituras po-larizadas, ainda encontra respaldo para pensarmos a condio humana dire-tamente relacionada aos chamados princpios do direito poltico. Trataremos num primeiro momento de alguns eixos tericos internos ao pensamento po-ltico de Rousseau, sob o pano de fundo do republicanismo, para ento alocar estes termos no quadro de uma efetivao humana. Nesse nterim, abre-se um dos paradoxos de maior alcance de sua teoria, visto que, inicialmente, a liberdade em sentido amplo se dar por coerncia com a natureza humana tambm chamaremos esse sentido da liberdade de independncia. E por ser o homem originariamente livre que se requer, tambm em sociedade, a salvaguarda dessa mesma liberdade ou, mais precisamente, da proporciona-lidade das prerrogativas que o ser livre lhe confere, uma vez que no h justificao per se para o contrrio. Entretanto, como resolver que o segundo tipo de liberdade, grosso modo, anule o primeiro, justamente o que lhe ins-pira? Num segundo momento, analisaremos ento o tema da liberdade civil rousseauniana, como o que possibilita a consolidao, na sociabilidade, das caractersticas constitutivas do homem isso, no entanto, sem abrir mo de que haja uma mudana de condio entre estado de natureza e estado civil. Portanto, por meio da obedincia s leis autoimpostas, racional e conven-cionalmente, que constituda a humanidade, porque sem a determinao positiva dos direitos e obrigaes recamos em liberdade natural. A importn-cia desta observao se d na medida em que, nesse caso, sociedade ter por consequncia o inverso do que ocorreria em estado natural, isto , tem-se como resultado, unicamente, a dependncia pessoal. Palavras-chave: estado civil; esfera pblica; esfera privada; independncia; liberdade civil.

    * Mestre em Filosofia / [email protected]

  • 22 Ananda Mila Kohn

    Consideraes iniciais

    Ao perguntarmos pela relao entre liberdade natural, ou independncia, e liberdade civil, ao mesmo tempo tocamos em alguns pontos de obscuridade consoante essas ideias no pensamento de Rousseau. Muito se afirma sobre seu entusiasmo com respeito ideia de natureza, e at a uma espcie de roman-tismo em seus elogios ao corao humano, bondade natural e liberdade fora/anterior civilizao. Porm pouco debrua-se sobre o sentido especfico destas noes, como se houvesse um sentido esttico e Rousseau tivesse operado estas noes meramente para pintar um belo quadro alheio civilizao, a qual toma, deste modo, tonalidades absolutamente acinzentadas e tenebrosas. O certo que que o filsofo olhava com bastante suspeita e desdm sociedade que lhe rodea-va, e nesse sentido o Discurso sobre as cincias e as artes expressa com clareza tal desconforto e, mais do que isso, a denncia de cunho histrico que da oriunda. No entanto, a crtica social no constitui seu nico empreendimento e esta crtica no se encerra em si mesma, mas constitui uma pea de sua filosofia, e no a filosofia mesma, o que lhe reduziria.

    Por isso procurou estabelecer uma forma a tornar possvel conceber as re-laes sociais sem incorrer na mera reproduo de preconceitos vigentes, isto o que expressa fundamentalmente o Emlio obra em que Rousseau delineou os modos nos quais a educao consistiria, por excelncia, em propiciar ao aluno ca-pacidades razoveis de expressar juzos autonomamente. Isto , voltou-se para o estabelecimento de um meio para que o intelecto humano no recaia na mera re-produo de ideias correntes e vazias de sentido, ideias oriundas meramente do contexto ao qual o indivduo est inserido. A simples reproduo de preconceitos redundaria ao aluno, e futuro homem, uma incapacidade de analisar, de forma jus-ta e igual, esse contexto.

    Diante deste panorama, vejamos como Rousseau pretendeu preservar e des-tacar o carter de autonomia do indivduo. Isso nos causa, ao mesmo tempo, certo embarao filosfico, se alocarmos estes termos na esfera pblica, porque intui-tivo conceber que as relaes sociais, e a consequente srie de obrigaes a que o indivduo se encontra subordinado, minem a liberdade individual1. Procuraremos, neste texto, demonstrar a sada rousseauniana que confere fora ao mbito pbli-co sistematicamente preservando o mbito privado e, mais do que isso, como este ltimo s respeitado na medida em que h uma estrutura pblica bem consolida-da. De modo que uma e outra esfera no devam ser entendidas como anuladoras entre si, mas, ao contrrio: quando a esfera pblica slida, quer dizer que a esfera privada tambm o . E uma vez isto no verificado, significa que o pblico no est bem estruturado; do mesmo modo, analisando a esfera privada, se esta se mostra preservada, temos um sinal da consistncia da esfera pblica. Para que isto no incida num mero jogo de palavras, faamos a reviso dos conceitos e do problema. 1 Insere-se a o debate entre liberalismo e republicanismo, ou entre liberdade negativa e liberdade positiva.

  • 23Da relao inversamente proporcional entre liberdade natural e liberdade civil

    Liberdade natural e liberdade civil: o paradoxoOs conceitos de liberdade natural e liberdade civil, para Rousseau, so, sob

    um aspecto, familiares entre si e, sob outro prisma, estranhos mutuamente. Em primeira instncia, Rousseau expe a necessidade da liberdade civil em razo da liberdade natural, para ulteriormente o que no caracteriza uma mudana de sua perspectiva, mas antes uma expanso da primeira ideia negar a possibilidade da liberdade natural no contexto civil e, assim, concomitante liberdade civil. Em suma, seu raciocnio opera deste modo: a liberdade natural faz supor (ou exige) a liberdade civil, mas uma vez que esta se consolida, no se pode mais incidir naque-la, sob pena de sua anulao.

    O papel da liberdade civil vem a ser, portanto, resguardar proporcional-mente o que a liberdade natural propicia ao homem; podemos pensar que a liber-dade civil estabelece, grosso modo, uma imitao da liberdade natural. E isso des-taca seu carter de artificialidade. Isto , ao compreendermos como uma imitao, vemos que no possvel o acesso ao original, e que a cpia ir requerer meandros que no eram necessrios no original. A importncia dessa anlise reside em per-ceber a impossibilidade de um acesso imediato s qualidades humanas e de uma espontaneidade dos homens, no contexto social, para cometerem aes justas, en-quanto que o homem por natureza teria em suas aes esse carter imediato, es-pontneo, direto. *

    No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os ho-mens, Rousseau tratou de porque a desigualdade no contm justificao natural e, portanto, como o homem essencialmente livre. No retomaremos toda esta ideia a fim de no se perder o foco, dando isso como suposto aqui e ressaltando o carter negativo dessas caracterizaes. Ou seja, Rousseau demonstrou a liberdade como caracterstica constitutiva do humano atravs da operao intelectual pela qual se verifica no haver qualquer respaldo dado de antemo para o subjugo entre os homens. Do que incorre que toda relao hierrquica, ou de subordinao, caracte-riza-se como arbitrria ou, ento, dever ser justificada. E isso nos leva, em ltima instncia, esfera argumentativa: para que eu me outorgue senhor de outrem devo demonstrar um porqu o que supe a esfera pblica , porque no basta apontar para quaisquer elementos de justificao intrnsecos2.

    O ponto de partida da anlise de Rousseau sobre a liberdade civil a ideia de que, em sociedade, no possvel aos indivduos uma existncia atomizada, a qual, por seu turno, caracterstica do hipottico estado de natureza. Esta negao de base especificamente o que levar s exigncias decorrentes da condio humana em estado civil. Expliquemos. No o caso de que os traos da natureza humana na

    2 Rousseau (captulos III e IV, Livro I do Contrato Social ) volta-se, nesse aspecto, contra o direito do mais forte, contra o ptrio poder e contra o direito de escravido.

  • 24 Ananda Mila Kohn

    sociedade sejam abolidos. No entanto, tambm no o caso de que os indivduos possam como que ficar acessando, a seu bel prazer, aquelas caractersticas natu-rais (como a liberdade, a piedade, o amor-de-si). O estado de sociedade , de modo amplo, o estado em que o homem encontra a todo tempo obstculos sua realiza-o3. Porque, distintamente de um estado natural, em que h poucas relaes entre os homens, os indivduos comparam-se. E assim, a existncia de cada um sempre depende de outrem; o significado de si se d por meio da relao com o contexto.

    As diferenas entre liberdade natural e liberdade civil se do, principalmen-te, pelos respectivos contextos em que se inserem, e nos quais podem ser ento pensadas. A primeira diz respeito a algo inerente ao indivduo, e sendo assim, vale ressaltar que no se anula pelo estado civil. Entretanto, Rousseau considera sua inacessibilidade nesse estado, e este o ponto que precisamente diferencia as duas espcies de liberdade. A segunda diz respeito quilo que deve ser elaborado pelos homens, no se encontra neles inscrita, portanto.

    Disso depreendemos dois traos tericos do conceito de liberdade rousse-auniano: primeiro, a liberdade constitutiva do homem o que se d via negao de um status anterior que seja contrrio liberdade, como mencionado. E isso sig-nifica, ao mesmo tempo, que h uma demanda antropolgica pela mantena da condio de liberdade, em outras palavras, para Rousseau, negar a liberdade ao hu-mano o mesmo que negar sua humanidade4: Renunciar liberdade renunciar qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e at aos prprios deveres. No h nenhuma reparao possvel para quem renuncia a tudo. Tal renncia incompatvel com a natureza do homem, e subtrair toda liberdade a sua vontade subtrair toda moralidade a suas aes (ROUSSEAU, 2006b, 15).

    Segundo, e por outro lado, h um impedimento prtico para o acesso direto a esta mesma liberdade pois s podemos falar de um contexto de sociedade e isso nos vem como se Rousseau estivesse delegando uma tarefa ao homem e s sociedades e, ao mesmo tempo, inicialmente j colocasse o obstculo sua realiza-o. Contudo, este mesmo impedimento que requer a instaurao de um outro tipo de liberdade, a saber, a liberdade civil este o aspecto que se quer evidenciar no presente texto. Por isso no se trata de simplesmente instaurar a liberdade na-tural na esfera social, isto no possvel, mas h ento outras caractersticas a em jogo e uma nova condio a ser considerada.

    intil querer confundir a independncia e a liberdade. Essas duas coisas so to diferentes que at mesmo se excluem mutuamente. Quando cada um faz o que bem quer, faz-se frequentemente o que desagrada aos outros e isso no se chama Estado livre. A liberdade consiste menos em fazer sua vontade do que em no ser submetido vontade de outrem; ela consiste ainda em no submeter a vontade de outro nossa. Qualquer um que seja senhor no pode ser livre e reinar obedecer (ROUSSEAU, 2006a, 371).3 O que se traduz tambm nos problemas concernentes comunicao, esboados no Ensaio sobre a

    origem das lnguas de Rousseau.4 Ideia incorporada por Kant.

  • 25Da relao inversamente proporcional entre liberdade natural e liberdade civil

    *Ento o no olhar para esta nova condio e para as exigncias dela decor-

    rentes to danoso quanto negar a liberdade humana como trao constitutivo, e produz o mesmo efeito. Este o problema tanto da anarquia como do despotismo, pois ambos se do pela sobreposio das liberdades individuais esfera pblica. Nega-se a necessidade da obedincia lei, e instaura-se a obedincia a um ou a muitos indivduos. A reside o ponto culminante ao negligenciar a existncia de uma condio especial no estado de sociedade a exigncia de reciprocidade e garantias objetivas , e recai-se nos modos de operao do estado de natureza, de forma ento descontextualizada. Tal a necessidade de ressaltar as incumbncias especficas do estado civil e, portanto, a necessidade de instaurar um tipo de liber-dade que no se d mais apenas na esfera individual, mas que precisa gerar-se na vontade geral5 e direcionar-se ao bem comum.

    Rousseau quis apontar para a ausncia de um carter de imediatidade na realizao humana, de suas caractersticas intrnsecas e de suas faculdades, que o contexto social impe. Se apenas contando com sua natureza o homem seria capaz de ser justo6 e no subjugar os que lhe rodeiam, o mesmo no ocorre uma vez que o outro lhe afeta, ou uma vez que as relaes so intensificadas7. Isso significa que o homem no mais inteiro em si mesmo8, e que sua existncia passa a depender de outrem. O que ativado inicialmente pela perfectibilidade9. 5 Enquanto obedincia a si mesmo e, ao mesmo tempo, a todos. O poder avindo da vontade geral no o atribudo a um indivduo ou a um grupo particular (generalidade do princpio), o qual tenha poder sobre o conjunto de cidados; igualmente, no pode recair sobre um indivduo ou grupo particular (generalidade do objeto). O que significa que no pode haver considerao diferenciada para um ou outro homem, mas deve-se destacar o carter de generalidade, afim de no incorrer em desigualdade, tampouco dar-se privilgios; os homens so concebidos, ento, como cidados e no como indivduos particulares. Portanto, a vontade geral diz respeito no soma das vontades individuais, mas unio de vontades no que nelas tende para o interesse e benefcio comum. 6 O incio do captulo 6, livro II do Contrato (da lei) aborda esta questo. O estado de sociedade exige reciprocidade; ainda que possa haver uma justia anterior aos homens, instaurada em sua razo, contar apenas com esta comprometeria a facticidade do cumprimento desta justia. O que ocorreria sem maiores percalos em um estado de natureza no pode ser esperado uma vez que os homens estejam em relaes sociais: Se considerarmos humanamente as coisas, desprovidas de sano natu-ral, as leis da justia so vs entre os homens. Produzem somente o bem do malvado e o mal do justo, quando este as observa para com todos sem que ningum as observe para com ele. Por conseguinte, tornam-se necessrias convenes e leis para unir os direitos aos deveres e conduzir a justia ao seu fim (ROUSSEAU, 2006b, 45-6).7 Observe-se a distino entre natureza e estado de natureza: o estado de natureza um artifcio me-todolgico, atravs do qual se isola o objeto de pesquisa, o homem, para evidenciar o conceito mesmo que o de natureza humana. Por isso, quando nos referimos natureza, de modo geral a supomos alocada no estado de natureza, uma vez que isso permite o melhor entendimento do conceito que interessa; o conceito de natureza. E, por isso, supomos o homem com poucas relaes.8 O homem natural rousseauniano caracterizado por uma existncia absoluta, isto , no necessita de outrem para se realizar, um inteiro em si mesmo, ao passo que o homem no contexto civil, o ser que se compara aos outros e busca super-los, ou subjugado por outrem, tem sua existncia perme-ada pelas relaes de dependncia, caracterizando-se como um ser relativo e cindido.9 A disposio pela busca do prprio aperfeioamento, permeada pela ideia de futuro, a qual pos-sibilita ao homem a sada de seu estado originrio. Disposio esta que denota o carter dbio do desenvolvimento humano, pois, ao vivenciar a ideia de progresso, o homem tambm abre, segundo Rousseau, a possibilidade do completo afastamento de sua constituio originria, podendo tornar--se, inclusive, o tirano de si mesmo.

  • 26 Ananda Mila Kohn

    Ento aqueles sentimentos naturais devem inspirar-lhe sem que, contudo, sejam tidos por suficientes. Abre-se, assim, a esfera da racionalidade; a racionalida-de exigida10 juntamente sociabilidade, porque o homem no mais espontane-amente bom e justo, e para ser-lhe precisa, mediante artifcios, restaurar o que sua natureza lhe traria imediatamente. Por isso, no Emlio, define o homem originrio como uma unidade numrica, enquanto o homem civil se constitui como uma unidade fracionria, cujo valor reside, portanto, na relao com o todo (ROUSSE-AU, 2004, 11). Outrossim, trata-se de uma diferenciao quanto sua suficincia; o homem considerado sob as relaes sociais no se basta.

    Pelas razes expostas, ser a lei a imprimir, objetivar, as condies para que a associao civil seja efetiva, coibindo a dependncia entre os cidados, por seu carter de despersonificao isto , obedece-se a lei para no obedecer a algum. Em contrapartida, intensificada a dependncia da pessoa em relao sociedade em geral, e por esse modo so assegurados e protegidos os direitos civis. Pretende--se assim demonstrar o erro na compreenso da teoria contida, principalmente, no Contrato Social como um conclave ao resgate de qualidades naturais humanas que devam ser introjetadas na esfera social; isso feito, emerge a dimenso de au-tonomia contida nessa teoria poltica, nessa medida se justifica e demonstrada a relevncia da teoria, a qual do contrrio mostrar-se-ia improfcua.

    Consideraes finais elucidativo destacar que a ideia de liberdade natural, ou independncia,

    em Rousseau o elemento de crtica s formas instauradas de subjugo historica-mente, outrossim, tal conceito figura-se como elemento de exigncia para que um tipo de sociedade e uma forma de governo s possam ser consideradas legtimas na medida em que mantenham e proporcionem liberdade a seus cidados, apon-tando como injustificadas e arbitrrias todas as formas que neguem tal preceito. Ademais, somente deste modo que uma associao civil poder se manter, ou seja, alm de se tratar de uma questo de mantena da condio humana, conce-ber que prerrogativas sociais devam ser oriundas da vontade geral, e no de uma vontade particular, seja de um indivduo, ou seja de um grupo de indivduos, a prpria condio para que essa associao subsista. H um valor duplo, portanto. Razo pela qual mesmo se chegssemos concluso de que a liberdade no cons-titutiva do humano, ou que, por quaisquer motivos, ela deve ser suplantada, ainda assim uma forma de governo baseada no subjugo de seus cidados mostrar-se--ia incua, pois a sobreposio de vontades individuais minaria a reciprocidade e

    10 H aqui uma estreita relao com o pensamento de Kant, na medida em que, embora considerando sua ideia de natureza humana comparada a de Rousseau existe substancial diferena, mas consoante exigncia racional para a moralidade, e autoimposio de leis, esses autores se aproximam signi-ficativamente, tendo sido Rousseau, nesse sentido, uma grande inspirao para Kant. A despeito de este ter dado prevalncia moral para tal realizao, enquanto Rousseau destacou a poltica para o cumprimento deste papel.

  • 27Da relao inversamente proporcional entre liberdade natural e liberdade civil

    obliteraria as garantias necessrias para a efetividade do cumprimento de normas sociais e, em ltima instncia, eliminaria a esfera do direito. Portanto, a liberdade e a mantena do Estado s podem ser concebidas mutuamente.

    Ao conceito de liberdade civil foi dada maior proeminncia ao longo deste texto por se considerar que, como destacado, o papel da noo de liberdade natu-ral reside na crtica e na exigncia de uma manuteno da liberdade, no entanto, a liberdade natural insuficiente para dar conta das demandas relativas ao contexto social, devido nova condio em que dificilmente os homens podem contar com a permanncia de suas vontades e com aquela expectativa de que cometam somente aes justas. Embora exija, a liberdade natural no capaz de ela mesma cumprir necessidades sociais. Isso nos leva ao ponto de que no se trata de tema do indiv-duo tal cumprimento, mas diz respeito ao mbito das convenes e, portanto da esfera pblica. Todavia, esta a condio para que se preserve o espao individual e, ainda, uma vez que no haja esse espao, no ser possvel uma esfera pblica forte.

    RefernciasROUSSEAU, J.J. (2006a). Cartas Escritas da Montanha. So Paulo: EDUC: UNESP.

    ____. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens: precedido de Discurso sobre as cincias e as artes (2005). So Paulo: Martins Fontes.

    ____. Emlio ou da Educao (2004). 4 ed. So Paulo: Martins Fontes.

    ____. Ensaio sobre a origem das lnguas (2003). Campinas: UNICAMP.

    ____. O Contrato Social, Princpios do Direito Poltico (2006b). So Paulo: Martins Fontes.

  • 29Gnese e Lgica do Poder Poltico em Maquiavel e Espinosa

    * Ps-Doutorando USP e professor da Facamp.

    Gnese e Lgica do Poder Poltico em Maquiavel e Espinosa

    Andr Menezes Rocha*

    GT-Pensamento do Sculo XVII

    ResumoTrata-se de interrogar a gnese da poltica moderna a partir de conceitos fun-damentais de Maquiavel e Espinosa. A partir da noo de imperium, investi-garemos de que maneira pensam o poder poltico em sua diferena face ao poder desptico e face ao terror que anula a poltica. Buscaremos mostrar que tm em comum pensar a gnese e a lgica do poder poltico a partir da diviso social. Recusando a imagem da transcendncia do poder, procuram pensar de que maneira as relaes de poder poltico se constituem na e pela diviso social. Procuraremos, por fim, tratar das diferenas entre as polticas de Maquiavel e Espinosa, enfrentando uma difcil questo: em que medida a ontologia do necessrio no submete a poltica a um saber prvio que a co-mandaria e de fora? Em que medida no repe o mesmo procedimento das teorias polticas antigas e medievais, apenas substituindo a ideia da natureza na fsica de Aristteles ou a ideia da vontade divina na teologia de Toms de Aquino por uma metafsica de vis cartesiano? E para enfrentar estas ques-tes, investigaremos a questo da imanncia, na ontologia do necessrio, a partir da poltica de Espinosa.Palavras-Chave: repblica, liberdade negativa, liberdade positiva, ao po-ltica.

    IntroduoEspinosa abre o captulo XX com a reposio de uma tese que tinha sido de-monstrada no captulo XVII. Por reduo ao absurdo, ele demonstra a im-possibilidade de se engendrar um poder poltico fundado na alienao total do direito natural, como teorizavam, a partir da teoria do pacto social, todos os tericos do absolutismo, de Suarez a Hobbes.

  • 30 Andr Menezes Rocha

    A alienao total seria a prpria morte, pois o direito natural a potncia de existir que define a vida de cada um e ningum pode transferir a outro seno par-celas desta potncia. Dessa reduo ao absurdo conclui-se positivamente que cada indivduo sempre guarda seu prprio direito natural e que, embora transferindo parcelas relativas maiores ou menores para outros, nunca pode se encontrar per-ptua e totalmente [absolute] sob o poder de um outro [alterius juris], de maneira a no poder jamais reivindicar a liberdade que a Natureza lhe concede.

    Como notamos no incio do captulo XVII, no pode ocorrer que o nimo esteja totalmente sob o poder de outro [alterius juris]; pois ningum pode transferir e nem ser coagido a transferir para outro [transfere in alium] o seu direito natural [jus suum naturale], ou seja, sua faculdade de raciocinar livre-mente e de julgar quaisquer coisas.1 E, no entanto, isto no significa que homens astutos no comando de Repbli-cas corrompidas no tenham utilizado o poder do Estado para forar os indivduos a uma alienao cada vez maior de seus direitos naturais, ou que governantes no tenham posto em prtica estratagemas de dominao para destruir toda a resis-tncia alienao, e que no tenham penetrado com seus tentculos no imaginrio, nas paixes e na liberdade de pensamento dos indivduos. Os estratagemas da arte da dominao, continua Espinosa, puderam vergar nimos e forar indivduos a alienar-se de maneira a viver apenas para servir a seus senhores, mas jamais fo-ram capazes de anular os burburinhos sob o silncio imposto, os dios mudos, a fermentao das indignaes e outras paixes que nascem naturalmente do direito natural individual como desejo de liberdade e repulsa servido. A mquina de Estado do poder total pode penetrar no social e com seus ten-tculos chegar s paixes e ao imaginrio, mas no pode evitar que seus estrata-gemas semeiem a contrapelo os rumores e as sementes dos levantes violentos, das tentativas de golpe e das guerras civis, pois a liberdade o fundamento natural da vida poltica e todo indivduo que sofre coao determinado a resistir o quanto puder contra a alienao e a violao de sua liberdade. O poder de Estado que tolhe as liberdades polticas e fora os indivduos a uma alienao nunca pode ser total, j que esbarra na inalienabilidade da liberdade natural, ou seja, na resistncia opresso que a forma negativa necessria assu-mida pela liberdade que a Natureza concede a cada um2. Sentindo crescer a influ-

    ncia das imagens e paixes de repdio ao poderio dos homens no comando do Es-tado, os astutos arquitetos das monarquias sempre buscaram conceber novas artes que pudessem neutralizar todas as iniciativas sociais de mudana e revoluo, mas 1 Spinoza, Baruch. Tractatus Theologico-Politicus. Texte tabli par Fokke Akkerman, traduction et notes par Jacqueline Lagre et Pierre-Franois Moreau. Paris, PUF, 1999. XX, 1. Pgina 632 (5-9).2 Veremos que as liberdades naturais, embora possam se realizar de forma negativa na reao opresso, se realizam de outra maneira no imperium democrtico sob o poder de Estado que concede a liberdade poltica a todos.

  • 31Gnese e Lgica do Poder Poltico em Maquiavel e Espinosa

    tal expediente inconcebvel no imperium democrtico3 em que todos ou a maior parte da populao governam colegialmente e respeitam as leis que instituem cole-tivamente para si mesmos e que vigoram sancionadas pela Repblica livre. Se o poder do Estado sempre tem como limite o direito natural da sociedade e nunca pode ser total, as liberdades polticas dos indivduos, por sua vez, tambm nunca podero ser totais, pois elas sempre tero como limite o poder das instituies que conferem liberdade o estatuto de direito civil. Sem o poder destas instituies, com efeito, a liberdade no garantida por lei. O limite das liberdades naturais dos indivduos medido, sobretudo, por sua relao com a liberdade da Repblica. Na verdade, no podemos negar que o poder [majestas] pode ser lesado tanto por aes como por palavras e que, se concedermos que impossvel

    retirar a liberdade inteiramente dos sditos, tambm precisamos consentir que nocivo lhes conced-la totalmente; e assim cabe interrogar [inquirere] at onde esta liberdade pode e deve ser concedida a cada indivduo [uniucui-que], salvaguardando a paz da Repblica e o direito dos poderes soberanos [summarum potestatum jure], o que, como lembrei no incio do captulo XVI, constituiu o meu principal intuito aqui neste trabalho.4 Espinosa, assim, inicia o captulo XX repondo os argumentos estabelecidos nos captulos anteriores e, sobretudo, as redues ao absurdo que, no captulo XVII, demonstram como duas teses correntes no tm o respaldo da prtica e

    sempre permanecero meramente tericas: (a) a total alienao do direito natu-ral ou total transferncia da potncia individual para o poder de Estado; (b) um poder total do Estado sobre a sociedade e os indivduos que lhes destrua toda a liberdade e anule toda potncia de resistncia. A partir destas redues ao ab-surdo, Espinosa elabora as teses contrrias que convm com a praxis e podem, portanto, fundamentar uma poltica. O direito natural como potncia individual exige a concesso de liberdades polticas e o poder do Estado s se conserva e evita as guerras civis se concede estas liberdades. A questo passa a ser: quais liberdades polticas o Estado deve conceder aos cidados e em que medida? E a interrogao de Espinosa no se limi-ta, a partir destas premissas, democracia.

    Para formar a Repblica, como vimos, uma condio era necessria, a saber, que o poder de decretar [potestas decretandi] estivesse com todos [omnes], alguns [alquot] ou um s [unum]. Pois, como o livre juzo dos indivduos varivel e cada indivduo julga que ele sozinho sabe de todas as coisas [solus omnia scire], como no possvel que todos sintam o mesmo e digam exata-mente as mesmas coisas, jamais poderiam viver pacificamente se cada um tivesse o direito de agir [jure agendi] segundo apenas os decretos de sua men-te [decreto suae mentis]. Assim, o direito individual de raciocinar e julgar no cessa, mas o direito individual de agir segundo o prprio decreto cessa.5

    3 ... in imperio democratico quod omnes vel magna populi pars collegialiter tenet. Spinoza, Baruch. Idem. XX, 2.Pgina 634 (10-13).4 Spinoza, Baruch. Idem. XX, 5. Pgina 636 (10-17).5 Spinoza, Baruch. Idem. XX, 7 Pgina 636 (29-33) e 640 (1-5).

  • 32 Andr Menezes Rocha

    O poder de decretar [potestas decretandi] um direito pblico, ou seja, um poder da Repblica, ele jamais poder ser confundido com um direito privado, ou seja, com um poder dos indivduos. Seja qual for o estado da Repblica, monrqui-co, aristocrtico ou democrtico, este poder segue como sua propriedade necess-ria e no pode ser abolido sem que seja abolido o prprio Estado. E, no entanto, o poder de decretar as leis e sancion-las incide sobre a praxis, j que, por meio das leis, o Estado determina as prticas dos indivduos, estabelece quais direitos naturais podem ser defendidos como direitos civis e quais direitos naturais ficam proibidos. Ora, no nos deparamos aqui com uma contradio deste captulo XX? Espinosa afirma que na Repblica livre a expanso da liberdade de pensamento uma liberdade poltica individual que no tem limites, ao passo que a liberdade poltica de agir [jus agendi] para transformar as instituies e, sobretudo, as leis civis, deve ter limites institudos pelos decretos da prpria Repblica livre. Esta aparente contradio pe em questo toda a ontologia pressuposta pe-las definies do jusnaturalismo. Como pode a mente individual ser livre para pen-sar, interrogar e contestar todas as instituies sem que o corpo simultaneamente seja livre para transform-las? Como pode a mente ser ativa se o corpo for passivo? Se a ordo et connexio idearum idem est ac ordo et connexio rerum, como pode a li-berdade poltica se realizar como liberdade de pensamento individual e no como liberdade de ao corporal? A liberdade de pensamento, como vimos, se realiza na atividade com as no-es comuns. Cada indivduo que pensa com as noes comuns sabe, com a certeza que lhes imanente, que elas so propriedades comuns das mentes e que, portan-to, tambm elas esto envolvidas nas mentes dos outros indivduos6. Elas esto envolvidas nas mentes mesmo dos que interpretam sua praxis por submisso s normas do imaginrio poltico institudo. Mas elas se explicam ativamente apenas nas mentes dos indivduos que raciocinam livremente e interpretam a sua praxis, apesar do imaginrio institudo, de acordo com as leis necessrias da Natureza. Com outras palavras, os indivduos que pensam com as noes comuns rea-lizam o seu desejo de liberdade agindo segundo as leis necessrias da Natureza e a expanso7 [extendere] da sua potncia livre individual, como se faz pela atividade 6 Quanto comunicao racional, ela exige que os humanos se conheam como indivduos diferen-tes que tm, entretanto muito em comum. Sob a conduta da razo, os homens aprendem que seus semelhantes so irredutivelmente singulares, porque cada um possui o que Espinosa chama de in-genium prprio e, no entanto, que h entre eles mais convenientiae do que com outras coisas. Bali-bar, Etienne. Individualite et transindividualite chez Spinoza. In: Architectures de la raison. Mlanges offerts Alexandre Matheron, textes runis par P.-F. Moreau, ENS Editions, Fontenay-aux-Roses, 1996. Pgina 40.7 A expanso [extendere] da potncia individual da liberdade de pensamento ao dos desejos com as noes comuns e no se confunde com a dominao que antes expanso da glria pela ambio. Convm diferenciar a ideia da potncia livre do pensamento, tal como concebida por Espinosa, da imagem do pensamento propagada por Nietzsche atravs da metfora da digesto. Pois a metfora evoca e suscita antes movimentos de cooptao semelhantes ambio teolgica, j que a expanso ocorre por dominao de potncias alheias, isto , por alienao. Verificar a crtica da transposio da metfora digestiva de Nietzsche para interpretar Espinosa no texto j citado. Jaquet, Chantal. Les

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    com as noes comuns, no entravada e sim favorecida pelo estender-se da po-tncia de pensar dos outros cidados. Contudo, no caso dos desejos determinados por paixes, os homens se tornam contrrios uns aos outros e a expanso da po-tncia de uns se faz custa da dominao e alienao da potncia de outros8. Ora, se o desejo de expandir a sua liberdade conduz o homem livre generosidade cujo sentido fortalecer nos outros os seus desejos de atividade livre com as noes comuns, ele sempre corre o risco de receber em troca no a amizade, mas os ten-tculos da ambio alheia. Os homens livres esto determinados a unir foras com os outros para a ao conjunta pelas noes comuns, mas como a maioria dos indivduos se deixa ar-rastar pelas ambies, os homens livres correm o risco das paixes violentas que, como a inveja, o dio teolgico e toda tristeza provinda de outros homens cujo imaginrio dominado pelas supersties, lhe diminuem a potncia de pensar. E, no entanto, embora podendo selecionar as aes para afastar os maus e favorecer os bons encontros, os homens livres, como sua liberdade segue de leis necess-rias da Natureza, para conservar sua liberdade seguem necessariamente as leis necessrias de produo da generosidade, isto , se esforam o quanto podem para que os outros indivduos tambm realizem a liberdade que a Natureza concede a cada indivduo e vivam, como cidados, unindo foras na produo de obras pela ao conjunta e cnscia pelas noes comuns. E se no encontram nos desejos dos outros concidados a expanso livre pelas noes comuns, mas paixes que lhes determinam aos jogos de manipulao e dominao, ainda sim tm com todos ao menos algumas propriedades comuns, quais sejam, as instituies produzidas so-cialmente e, em especial, o Estado e as leis civis9. Cada uma e todas as instituies so o imperium da sociedade, isto , o poder de cada instituio proporcional parcela da potncia coletiva que se transferetrois erreurs de Bacon et de Descartes selon Spinoza. In: Revue de lEnseignement philosophique, n 6, Juillet-Aot 1997. Actes du Colloque du 22 mars 1997, organis sous la direction de C. Jaquet. Com efeito, como descreve Espinosa no prefcio, a ambio teolgica caracteriza-se precisamente pela frentica busca de ascenso nos graus de perfeio ou cargos de poder da hierarquia eclesistica, nas prticas corporativas de bajulao dos superiores e opresso dos inferiores e na construo de um imaginrio que sacraliza deste desejo assaz mundano do vulgo. 8 O estender-se da potncia na liberdade natural segundo as leis necessrias da Natureza para Espi-nosa tambm no pode ser confundido com o processo expansivo do capitalista ou das empresas que submetem a seu interesse as foras de trabalho alheias, isto , que atravs do processo D-M-D` compram as foras de trabalho, submetem-nas a um processo de produo que lhes estranho e lhes arrancam dinheiro sob a forma de trabalho alienado no pago, isto , mais-valia. Seja na forma de ex-panso do pensamento digestivo de Nietzsche, seja na expanso do poder econmico do capitalista, em ambos os casos a expanso paixo que se faz custa da alienao dos outros e no a expanso pelas noes comuns de Espinosa.9 A prpria natureza da Cidade que lhe determina a visar o quanto puder o estado de razo, a se esforar por se conformar razo e ao conjunto de suas leis. E a cidade convir tanto mais razo quanto menos produzir paixes tristes nos cidados (medo ou esperana), se apoiando, sobretudo, nas afeces alegres. Deleuze, Gilles. Spinoza et le problme de lexpression. Les Editions de Minuit, Paris: 1968. Pgina 245.

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    para a instituio e no importa que os desejos dos indivduos sejam movidos por paixes ou aes a esta transferncia. Para pensar em conservar ou em transfor-mar uma instituio, o importante apreender o seu poder em proporo potn-cia social que lhe produz. Se um indivduo livre conhece, pelas noes comuns, que uma lei civil10 ou outra instituio injusta ou nociva para a liberdade poltica da Cidade e dos cida-dos, esta expanso de seu conhecimento no lhe confere poder de abolir a insti-tuio, transform-la ou substitu-la por outra. Exemplo: se algum mostrar que uma lei repugna s razo e julgar que ela deva ser abolida e conjuntamente com isso submeter sua opinio [senten-tiam] ao juzo do poder soberano [summae potestatis], a que compete unica-mente fundar ou abolir leis [leges condere et abrogare], e enquanto isso nada faz [agit] de contrrio s prescries daquela mesma lei, merecer da Rep-blica o mrito de cidado excelente [optimus civis]; mas se ao contrrio faz aquilo para acusar os magistrados de iniquidade e para torn-los odioso aos vulgares ou se tenta por sedies abolir aquela lei e derrubar os magistrados, ser considerado um perturbador e um rebelde.11 Mesmo o indivduo que na liberdade age segundo as leis necessrias da ge-nerosidade, se a razo lhe mover a pensar em novas instituies que poderiam promover a expanso da atividade com as noes comuns de muitos outros indi-vduos, poder produzir os afetos ativos e expandir a sua potncia de pensar, mas este aumento da liberdade individual e a potncia de uma mente humana, por

    maior que seja, jamais ser suficiente para se tornar sozinha uma potncia mais forte e contrria aos poderes institudos pelo imperium, porquanto a fora destes poderes decorre da transferncia [transferentia] da potncia coletiva da sociedade que os institui e conserva.10 Para Maquiavel tambm o desejo que explica a gnese das instituies e, em especial, das leis particulares que s tm o poder de garantir a liberdade poltica se nascem, segundo a interpretao de Lefort, do desejo negativo de no-opresso. A lei que nasce deste desejo negativo assim uma in-stituio negativa cujo poder consiste precisamente em bloquear a expanso agressiva do desejo de dominar dos indivduos grandes. No caso de Espinosa, esta forma negativa do desejo de liberdade pensada, como vimos, como resistncia natural alienao, mas ela no a nica forma que o desejo de liberdade pode assumir. Uma vez distinguido da ambio dos grandes que se realiza antes como licenciosidade, o desejo de liberdade dos indivduos do povo pode tambm se realizar como liber-dade tica propriamente dita, ao transformadora de afirmao das propriedades comuns entre os corpos e as mentes. A lei no pode ser pensada como um simples signo de medida, nem relacionada ao de uma instncia racional, que viria colocar um freio nos apetites do homem, nem concebida como o efeito de uma regulao natural destes apetites, imposta pela necessidade da conservao do grupo. Ela nasce da desmesura do desejo de liberdade, o qual est ligado sem dvida ao apetite dos oprimidos que buscam uma via para desembocar sua ambio mas no se reduz a isso, pois a rigor este desejo no tem objeto, ele negatividade pura, recusa da opresso. Lefort, Claude. Le travail de louvre Maquiavel. Editions Gallimard. Paris, 1986. Pgina 477. Para Espinosa, como j vimos, a lei no nasce da razo, ela nasce dos desejos pelos quais os homens, determinados por suas paixes, trans-ferem sua potncia para as instituies e a medida do poder de uma instituio no seno relativa s potncias sociais que se transferem para ela. Em outras palavras, o mesmo desejo de liberdade pode instituir leis e instituies livres tanto sob uma forma negativa como sob uma forma afirmativa.11 Spinoza, Baruch. Idem. XX, 7. Pgina 638 (11-18).

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    A liberdade de pensamento, no entanto, no tem limites, ela pode se expandir at descobrir os meios prticos necessrios para favorecer a ao coletiva transfor-madora das instituies. Mas para levar adiante esta liberdade na interrogao de cada contexto, os homens livres no podem seno agir de acordo as leis civi