Antelo - Espaço e Ferida - Bataille

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  • 7/25/2019 Antelo - Espao e Ferida - Bataille

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    Apresentao

    espao e a ferida

    RalAntelo

    No ensaio que dedica obra de Georges Bataille, em 1963,

    tIlhc l Foucault admite que a filosofia no possui objetos novos

    1

    ,1\

    que estamos, plenamente, na idade do comentrio. Benjamin

    II.rpontara a mesma ideia, quando disse que no comentrio que

    princpio filosfico se cala e adquire, finalmente, forma, mesmo

    1 l ,

    decerto, de maneira informe. O filsofo italiano Franco Rena

    ( 1944-), consciente dessa tradio, mesmo por evoc-Ia em suas

    A/lcro lo gie . T er ri to ri d i c on fi ne

    (2007), sabe que o coment rio no

    hcrrnenutica do sentido, antes, pelo contrrio, ele implica uma,::r;-

    I

    crta experincia de

    extimidade,

    conceito que Lacan utiliza, em seu

    eminrio sobre a t ica , quando alude, justamente, experincia

    Intima que comunica o sujei to com o real, enquanto ex per in ci a i nterio r.

    Prefigurada pela ideia freudiana de significantes ambivalentes,

    que provocam no leitor cer ta estranhez a inquietante, a impertinncia

    do comentrio pe em cena a mtua excluso entre o real e o sentido,

    da que a tarefa do comentrio consista, de algum modo, em promover

    .1 precria integrao de contextos culturais antagnicos, feitos de

    diferentes tempos ou diferentes culturas, para os quais a escritura

    oferece uma ponte, um conhecimento suplementar, extremamente

    provisrio, porque apenas um

    terr itrio de confim

    e porque, alm do

    mais, o comentrio no tem a presuno de estar habitado por um

    princpio filosfico derradeiro.

    Seo comentrio apenas subalterno, na medida em que depende

    da interpretao e subordinado, de fato,

    filologia, pelo contrrio, ali

    onde essa disciplina v to somente um limite, o comentrio transpe

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    um confim, e onde ela concl 1 o comentrio, porm, inconclui. O

    comentrio nunca

    jitera], mas l~, j que se oferece como

    para-

    deigma,

    isto , como

    frmula,

    mas nunca como Forma. H, nessa

    escritura, uma relativa equivalncia entre significante e significado,

    uma vez que o comentrio (a forma) equivale ao prprio contedo (o

    procedimento) de sua leitura . Nessa relativa indiferena entre a norma e

    sua realizao efetiva, todo comentrio torna-se fico, plano ou projeto;

    em suma,

    comemorao.

    Ou festa, para usar um conceito to caro ao

    Co lle g e d e S o ci ol ogie.

    No comentrio, enfim, a linguagem, ao adquirir

    uma nova tatilidade, toma-se, em consequncia, uma maneira criativa

    de.captar a vida pluridimensonal.

    Em ''A fer ida metafsica (2007), Franco Rella retoma uma

    paixo de juventude, Georges Bataille. Com efeito, aos vinte e oito

    anos, Rella prefaciou a edio italiana de

    A pa rte ma ldita,

    publica da,

    pela primeira vez, em

    1949,

    mas incorporando

    A

    no o d e d esp esa,

    que

    fora antes estampada por Bataille no stimo nmero de

    La critiq ue

    so cial e

    (1933),

    obra que Rella define, talvez maneir a de Blanchot,

    alternativamente, como espao e como,corpo, um espao, um corpo

    material, no qual se inscrevem dialeticamente pulses, ideologias,

    fragmentos de prticas significativas: um corpo infinitamente

    despedaado

    erecomposto, um espao plural, que somente uma prtica

    de leitura 'plural, que tenha renunciado s garantias tranquilzadoras

    dg

    unidade do autor, do sujeito, da ideologia dominante, pode penetrar,

    ~ir'~ ou seja, que diante dessa concepo esgarada no espao,

    mesmo que compacta num corpo, Rella nos diz que no mesmo na

    his tria, como espao da dialti ca , onde podemos encontrar a obra.

    A

    parte.maldita

    precipita, com efeito) a ps-histria, na medida em que

    sQa escritura uma tenso permanente em direo ao excesso, o que

    n o c onfigura uma perda r~_alde vidas humanas ou no humanas, mas;

    ~ma perda representada por.Jassocaes de imagens que 'destroem.a,

    9-rde~ coisas prtcas' Ora, esse dispndio disseminador deixa

    ) : 0 .0

    de ser, a rigor, meramente simblico, porque a escritura, em Bataille,

    r ,l,

    , .. .N .- ,o - }6 . o

    Q .

    1.,.v.,

    .f)

    aponta sem12reem elire o a uma realidade material: ela abre, no interior

    ),' 't, ~

    mesmo do discurso, um espao e uma dilacerao historicamen

    determinados', em que a transgresso mantm uma relao

    COnLQ

    proibido, sem o qual ela seria pura animalidade satisfeita. J, ento, em

    1972, aparece, portanto, em Rella, a ideia da

    jer id a

    metafsica.

    )

    10

    Vl

    < li

    O

    o

    < li

    D

    I.ssa lacerao inte rna provocada pelo dispndio, o erotismo e(

    I r rt

    ura responsvel, em Bataille, por uma forma de negao, que~

    I ,I I

    deixa reduzir s operaes da filosofia clssica, hegelianarc.OU1~

    1.1I111'ulode um processo de

    A_uf Jebung.;Ao

    contrrio, em sintonia

    11

    I)

    -nis Hollier eJacques Derrida,leitores de Bataille, nesses incios

    I1 .1I10S

    1970,

    Rella j afirmava que o dualismo mstico-material

    'I u-orico do no-saber punha em crise tanto a religio quanto seu

    'I

    ,ti

    11l, a cincia. '\,.l inguagem, osigno constituem um mundo entre

    1 11 I

    ontradies, uI lLespao onde est em jogo a contradio, um

    1, 1~1l que a escritura alarga continuamente, para alm da impotncia

    I' ilavras.'

    Mas esse espao era, a rigor, um.vcuo, No era um dado, mas

    111

    I

    deciso. Rella julgava, assim, necessrio encontrar, no nosso

    I'.I~

    II

    natural e cultural, a

    dp ens e,

    a negao, o salto que nos projeta

    1111111uturo, em direo

    pa rte do homem ,

    qual, alis, no escapa,

    111110e ver tambm em Zizek, nem mesmo o estalini smo, como

    u u t.u iva de ultrapassamento da tenso mortal do presente: assim

    ItllIlll

    tambm no escapava j a nosso Autor que essa contradio

    1IIIII,lVaa ~bra de Bataille particularmente

    maldita,

    porque conduzia

    11.11,10burguesa a seu limite, ao jogo mortal que se exprimiria, mais

    \l11,IuLe,no conceito de Real. O objetivo, portanto, no era condenar o

    mundo burgus sua dissoluo, mas antes modfic-lo radicalmente,

    I

    111uno de sua prpria disseminao, aprendendo a lidar com o que

    11,com o acidente, com o sintoma.

    A obra de Bataille um imenso fragmento composto de

    IIIH,\mirade de fragmentos.' Um dos tantos fragmentos de Bata ill e

    I ',Iparece em um livro de Rella de 1984,

    Metamorjos i.

    Immagini

    de i

    /'I '/lsiero,

    quando o Autor pensa a cifra da modernidade, a melancolia,

    \I

    sol negro, o mesmo que, em Kristeva, precipita a passagem a uma

    I

    rtica do Real. Mais recentemente, porm, em 2000, Rella escreveu o

    -nsaio Di fronte al l'indicibile, integrado antologia por ele mesmo

    u-unida,

    Pa tho s: s cr it tu ra dei c or po , d e li a pa s si one, dei dol ore.

    Nele nos

    RELLA, Franco - La parte di Bataille. In: BATAILLE, Georges.

    La part e

    maledetta

    1.1societ di impresa militare-religiosa, il capitalismo, 10 stalinismo. Preceduta da La

    I/( Jo ne i d epense .

    Trad. Francesco Serna. Verona, Bertani, 1972, P: 15.

    Idem - Ai

    conj ini dei co rpo.

    Milano, Feltrinelli, 2000, P:53.

    11

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    C

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    1 I, I

    l . . . ~ ..-~~1

    tL~O~

    12

    oferece uma reflexo ainda mais ponderada da relao de Bataille com

    a arte e define, ento, iLe.scritura_como esse momento de peculiar

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    sem limites. Mais tarde, porm, compreenderamos que, assim como

    a revolta suspende o tempo, aRevoluo repe o tempo nos trilhos da

    ordem, a nova ordem revolucionria, que uma forma impiedosa de

    disseminar o controle como exigncia da nova situao.

    A guerra muda, tal como ordenada pela economia moderna, a

    oikonomia

    como administrao da vida, exige a mais completa ausncia

    de sensibilidade. No carter desmesurado e dilacerante da catstrofe

    sem finalidade que a guerra atual, diz Bataille, svsperas da Segunda

    Guerra Mundial, possvel reconhecer, entretanto, a imensidade

    explosiva do tempo, uma vez que com ela se instaura um tempo ps-

    histrico, que nada mais do que a regresso do homem ao estado de

    natureza. Como j no pode se expandir no tempo, porque ele exauriu-

    se, o homem expande agora o espao, tornado global. No obstante,

    a existncia universal permanece ilimitada e, por isso mesmo, sem

    repouso: ela no reclui nem encerra a vida num invlucro impermevel,

    mas, ao contrrio, abre-a e a relana, incessantemente, na inquietude

    do infinito. o que desenvolvem livros como o j citado Micrologie ou

    Da I/' esilio

    (2004). Ou mesmo seu trabalho como editor da

    H is tria

    14 do erotismo

    (2006) de Bataille. Neles constatamos que a existncia

    universal, eternamente inacabada, acfala, perfaz um mundo semelhante

    .. 2

    r

    51 aJ:l'p-,uerid~que sangra, a uma falta insaturvel, como o olho rasgado,

    o

    de Dali-Bufiuel, como a

    im a ge m a be rta

    de Didi-Huberman, criando

    ~ E ? J simultaneamente, destruindo, ou como dir o prprio Bataille, ao

    0 3

    pensar 0_ comeo da arte em Lascaux, alterando a superfcie disponvel,

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    qual voc por vezes tenha aceitado levar em conta a minha

    prpria sabedoria. Malgrado tudo, isto nos ope: vocfala de

    satisfaQ,...YQ.;:oncede que setenha do que rir, masno que

    seja _w.erio rincp.?da satisfaoa ser risvel.

    6

    nteceLPorm) que ~ autor da carJa de 1952 no

    KQ ;m ,

    sgmo.afi rma

    Agamhen,.roas...Bataille/ e a ele devemos atr ibuir a i deia

    de colocar a soberania do sbio no fim da histria ou de verificar a

    identidade entre satisfao e insatisfao ou, em outras palavras,

    a noo da ausncia de objeto para toda pulso, para qualquer

    movimento na histria. Assim, a restrio de Agamben, no senti~

    que a forma correta de colocar o problema no seria a da

    satisfa(o)

    mas a da soberania) soberan ia essa que a do sb io no fim da hist ria,

    tambm um modo) literalmente, inconsciente, de dar-lhe a priJlazia

    a Bataille, algo a que Agamben no particularmente afeito. Da a

    censura agambeniana a Bataille, como pensador

    jarsesco:

    16

    Umpensamento que queira pensar para alm dohegelianismo

    no pode, efetivamente, encontrar fundamento, cont ra a

    negatividade dialtica e o seudiscurso,na experincia (mstica

    e, se coerente, necessariamente muda) da negatividade sem

    emprego; ela deve, em vez disso, encontrar uma experincia

    da palavra que no suponha mais nenhum fundamento

    negativo. Ns vivemos hoje naquela extrema fmbria da

    metafs ica em que esta retoma - como niilismo - ao prprio

    fundamento negativo (ao prprio

    Ab -gr und,

    prpria no

    fundamentao). Se o abismar-se do fundamento no revela,

    porm, o

    thos,

    a morada habitual do homem, mas limita-

    se a mostra r o abismo de

    Sig,

    a metafsica no superada,

    masreina na sua forma mais absoluta - ainda que esta forma

    (como sugere Kojeve e como confirmam alguns aspectos da

    gnose antiga e daquela de Bataille) seja, eventualmente, a de

    uma

    farsa'

    6

    Ibidern,

    p.

    441-442.

    7

    Devo a Edgardo Castro ter me alertado dessa questo filolgica nada trivial, como

    vemos. Cf. CASTRO, Edgardo. GiO lgio Agamben: uma arqueologia de, Ia potencia.

    Buenos Aires : Jorge Baudino / UNSAM, 2008, p. 145.

    8 AGAMBEN, Giorgio. A lin gua gem e a m o rt e: um seminrio sobre o lugar da

    negatividade, op . cit ., p. 74.

    /\gamben reconhece que tanto Nancy quanto Blanchot,

    I.

    IIOSde Bata il le no tocante ao tema comunidade, questionam-se

    I .1

    possibilidade, ou mesmo sobre a impossibilidade, de uma cabal

    I II ncia comunitria. Ambos, porm, concordam em reconhecer,

    . 1

    I\,I(,lle, a recusa de toda comunidade posit iva, constru da a par tir

    11111

    pressuposto comum e, segundo reitera Agamben, em texto

    .11. li posterior,

    /\ comunidade que est aqui em questo tem, por isso,

    lima estrutura absolutamente singular: ela assume em si a

    Impossibilidade da prpria

    manncia,

    a impossibilidade

    mesma de ser comunitria enquanto sujeito da comunidade.

    1\

    comunidade repousa, nesse sentido, de algum modo,

    \l.\

    imp o ss ib il id ad e d a c om un id ad e

    e a experincia desta

    unpossbilidade funda, ao contrr io, a nica comunidade

    possvel.

    evidente que, sob essa perspectiva, a comunidade

    pode ser to somente comunidade daqueles que no tm

    comunidadei

    Da que , para Agamben , o modelo comuni t rio de Bata il le no

    1 ,1

    de Estado'; uma vez que o filsofo da pantomima trabalharia

    .1 111

    ,1 comunidade dos amantes, a comunidade dos artistas ou,

    III.IISfrequentemente, com a comunidade dos amigos, a de

    Ac ph ale)

    111

    mesmo a do

    Col leg e de Sociologie,

    de sorte que a ~-u~ da

    I

    d

    l

    I r.1,

    pressuposta por

    Acphale,

    no significa somente eliso da

    1 .1