ANTELO, Raúl - Potências da imagem.pdf

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  • RalAntelo

    Potncias da imagem

    SBD-FFLCH-USP

    II~IW~I~

    editora universitria

    Chapec, 2004

  • r-hUNOCHP,PECUHIVERSIDADfCllMUNIT,(RlARl6JOHAlDECHAPEC6

    Av. Senador Attlio Fontana, 591-EFone/Fax (49) 321-8000

    Cx. Postal 747 CEP 89809-000-

    Chapec - SC

    REITOR: Gilberto Luiz AgnolinVICE-REITORA DE PESQUISA, EXTENSOE PS-GRADUAO: Maria Assunta Busato

    VICE-REITOR DE ADMINISTRAO: Gerson Roberto RowerVICE-REITOR DE ENSINO: Odilon Luiz Poli

    DEDALUS - Acervo - FFLCH

    IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII~ IIIIIIII~ IIII/Ir/I/I"II/'III 11111111

    20900000795

    302.222

    A635p

    Antelo, Ral

    Potncias da imagem / Ral Antelo. - -Chapec : Argos, 2004.

    149 p.

    I. Comunicao visual. 2. Imagem.I. Ttulo.

    CDD 302.222

    ISBN: 85-7535-058-7 Catalogao: YaraMenegatti - CRB 14/488

    editora universitria

    Conselho EditorialJosiane Roza de Oliveira (Presidente)

    Ricardo Rezer; Alexandre Maurcio MatielloArlene Renk; Eliane Marta Fistarol

    Flvio Roberto Mello Garcia;

    Hermgenes Saviani FilhoJosLuizZambiasi; juara NairWollf

    Leonardo Secchi;

    Maria dos Anjos Lopes ViellaMaria Luiza de Souza Lajus

    ,Impresso no Brasil, 2004

    Tiragem: 1000

    CoordenadoraMonica Hass

    Assistente EditorialHilario Junior dos Santos

    Assistente AdministrativoNeli F~rrari

    Projeto grfico e capaHilario Junior dos Santos

    RevisoFabiana Cardoso Fidelis e

    Jakeline Mendes

  • Sumrio

    P .c" . " . . 7relaclO - cntIca e Imagem .

    o inconsciente tico do modernismo 13A imagem fotogrfica......................................................................... 17

    Fascismo e imagem 23

    Polticas da amizade e anamorfose do moderno 29Pettoruti: nova forma e no-verdade 31

    Rebelo................................................................................................. 37

    A mensagem espiritual ou as verdades do simulacro , 43Montevidu........................................................................................ 48

    Leituras............................................................................................... 65

    Dobras e redobres............................................................................... 71

    Suplemento de imagens: de Whitman a Jorge Amado,d "M ,," "passan o por acunaIma, e ate mesmo

    Garca Mrquez : 75

  • Amado: tradio e extradio 87

    Deleitao morosa: imagem, identidade e testemunho 125Arte e vida 126

    Identidade e memria 136

    Paradoxos do testemunho 138

    Referncias 143

  • Prefcio

    crtica e imagem

    Em "Inquisies" (1925), seu primeiro livro de ensaios, Jorge

    Luis Borges assinalava que as imagens so uma fantasmagoria -Iaimagen es hechicera - e admitia no ser suficiente afirmar que los

    espejos se asemejan a un agua, como cualquier Huidobro diria. Borges

    entendia no s possvel, mas mesmo necessrio, ir alm desses jogos

    meramente verbais, porque

    Hay que manifestar ese anteojo hecllO forzosa realidad de una mente:

    hay que mostrar un individuo que se introduce en el cristal y que persiste

    en su ilusorio pas (donde hay figuraciones y colores, pero regidos de

    inmovible silencio) y que siente el bochorno de no ser ms que un

    simulacro que obliteran Ias noches y que Ias vislumbres permiten

    (BORGES, 1925).

  • Potncias da imagem

    Um indivduo se introduziu num cristal, tornou-se mquina,

    exigindo que Ias consteIaciones desbarataran su incorruptzble destino y

    renovaran su ardimiento en signos no mirados de Ia contemplacin angua

    de navegantes y pastores. Esse sujeito que, para retomar o ttulo da

    inquisio borgiana, postava-se depois das imagens", era um Ur-

    histrico e podia chamar-se Walter Benjamin. Ele nos ensinou a

    perceber que, na mente de algum acostumado a assistir a imagens

    cinematogrficas, o processo de associaes fica logo interrompido

    pela mudana icnica constante. A idia sugere que, mais do que

    de espao, a imagem precisa de tempo, por requerer um processo

    de associaes incessantes.

    bem verdade que a obra de arte na era da reprodutibilidadetcnica pede o leitor desatento", aquele mesmo procurado com

    afinco por Macedonio Fernandez, porm no menos verdadeiro

    que esse novo leitor seja obrigado, tambm, a realizar certas operaes

    abstratas, certas desleituras, mesmo quando assista a uma imagem

    banal, cotidiana. Junto com a perda do valor de aura por parte da

    obra, o leitor exausto de imagens culturais perde, tambm, toda

    ingenuidade. A idia ter seu correlato nas formas visuais

    contemporneas. No ps-cinema, por exemplo, a questo da durao

    dos planos j no to relevante como o era no cinema de autor.

    Como observa Beatriz Sarlo, a questo j foi decidida de antemo,

    os planos so curtos ou curtssimos, uma vez que, na nova

    linguagem, nos defrontamos com um discurso de alto-impacto,

    baseado na velocidade de substituio das imagens, cujos melhores

    exemplos ainda so os anncios de propaganda e os videoclipes.

    Giorgio Agamben, que define o homem como o animal que

    vai ao cinema, tem analisado as imagens-movimento como o motor

    -8-

  • Prefcio - crtica e imagem

    de uma teoria recursiva da histria, construda a partir das imagens

    dialtcas de Benjamin. Graas a elas, compreendemos que a histria

    se faz por imagens, mas que essas imagens esto, de fato, carregadas

    de histria. Isto , de nonsense, de equvocol Constatamos, assim,

    que a imagem nunca um dado natural. Ela uma construo

    discursiva que obedece a duas condies de possibilidade: a

    repetio e o corte.

    Enquanto ativao de um procedimento de montagem, toda

    imagem um retorno, mas elaj no assinala o retorno do idntico.

    Aquilo que retoma na imagem a possibilidade do passado. Como

    procedimento de suspenso ou corte, a imagem aproxima-se, ento,

    da poesia, e no da prosa, na medida em que at mesmo o poema

    poderia ser reduzido ao simples efeito de enjambement. Retorno e

    corte alimentam, portanto, uma certa indecibilidade ou indiferena,

    uma impossibilidade de discernimento entre julgamento verdadeiro

    e falso, que potencializa, entretanto, o artifcio da falsidade como a

    nica via possvel de acesso estrutura ficconal da verdade.

    N esse sentido, diramos que as imagens produzem um regime

    de significao que apela aos processos da memria psquica e,

    elaborando-se como sintoma, elas sobrevivem e deslocam-se no

    tempo e no espao, exigindo que se alarguem, conseqentemente,

    os modelos da temporalidade histrica e que se acompanhe a sua

    sobrevivncia para alm do espao cultural originrio. Esta hiptese,

    que foi pioneiramente aventada, no campo da histria da arte, por

    Aby Warburg, ',jnos coloca perante uma concepo rememorativa

    da histria, em que as imagens, na sua dimenso de memria ou de

    tempo histrico condensado, criam, no movimento de sobrevivncia

    e de diferimento que lhes caracterstico, determinadas circulaes

    -9-

  • Potncias da imagem

    e intrincaes de tempos, intervalos e falhas, que vo desenhando

    um percurso, um regime de verdade, uma densidade constelacional

    prpria.

    Borges, Warburg e, em sua esteira, Benjamin ou Agamben,

    nos propem, atravs do trabalho das imagens, um modelo cultural

    da histria que tem muito mais a ver com o inconsciente histrico e

    com a sobrevivncia de certas formas expressivas. Trata-se de um

    modelo que toma distncia com relao ao esquema narrativo

    pautado por comeo e recomeo, progresso e declnio, nascimento

    e decadncia, a partir do qual sempre se retirou um mecanismo

    linear para explicar as influncias e os modos de transmisso cultural.

    O prprio Warburg, em sua "Introduo ao Atlas Mnemosyne",

    postulou que a histria de uma disciplina um evolucionismo

    descritivo insuficiente se, ao mesmo tempo que se capta o

    contingente, no se ousa, tambm, descer profundidade da

    tessitura (Verflochtenheit), que liga o esprito humano matria

    estratificada acronologicamente.

    Georges Didi- Huberman, em sua leitura de Warburg, vai mais

    longe ainda. Argumenta que no h histria da arte que possa

    prescindir, para seu prprio relato e para sua construo, de modelos

    estticos. Toda histria cultural um peculiar modo da fico. Vemos,

    ento, que o conceito de sobrevivncia, central na teoria de Warburg,

    embora ensaiado previamente pela antropologia anglo-saxnica, mais

    precisamente por Edward B. Tylor, nos fornece uma sada para o

    impasse do presente. De fato, com a sua noo de survival, Tylor

    tambm vinha tentando uma teoria da linguagem emocional e

    imitativa de que, no Brasil, um de seus adeptos foi Mrio de Andrade.

    "Memria, assombrao, superstio" costumam delatar, no autor

    -10-

  • Prefcio - crtica e imagem

    de Macunama", uma atenta leitura de Tylor e Freud. Mas a

    genealogia do conceito de sobrevivncia nos leva tambm a

    Burckhardt que, nos seus estudos sobre a arte da Renascena, j tinha

    comeado a construir o fundamento terico da sobrevivncia, ao

    mostrar que essa arte impura, tanto nos seus estilos artsticos como

    na temporalidade complexa das suas idas e vindas, entre o presente

    vivo e a antiguidade rememorada. E nos leva, ainda, a Nietzsche,

    cuja polaridade dionisaco/apolneo ganha destaque, em Warburg,

    ao ser transformada em olmpico/demnico. Nietzsche, em ltima

    anlise, fornece a Warburg os instrumentos para pensar uma esttica

    das foras e considerar opathos na sua potncia formadora. Da deriva,

    portanto, o conceito "frmula de pathos" (Patho.ifrmel), que se impor

    na anlise cultural contempornea.

    O valor do pathos , entretanto, dplice. , sem dvida,manifestao de um eterno retorno, de uma inequvoca vontade de

    chance e de potncia mas, ao mesmo tempo, ele uma vontade sem

    semelhana, que nos fornece uma imagem da arte depurada de toda

    fora. A frmula do pathos amarra assim, ambivalentemente, a

    receptividade (ou potncia passiva) e a representatividade (ou

    potncia ativa). Nesse sentido, diramos que, nas leituras que

    seguem, visamos ultrapassar o crculo da subjetividade,

    potencializando, ao mesmo tempo, a receptividade, que mostra de

    que modo as formas do passado podem ainda ser novamente

    equacionadas como "problema".

    O ltimo livro de Jean-Luc Nancy faz eco primeira

    inquisio borgiana. Depois das imagens, preciso ir Au fond des

    images. At o fundo das imagens - diria Rimbaud - para encontrar

    I 'inconnu, o moderno, porque, como argumenta Nancy, a imagem,

    -11-

  • Potncias da imagem

    em ltima anlise, fornece presena ao texto, se entendemos texto

    como um tecido de sentidos. Mas por tirar o sentido da ausncia

    ou da vacncia de sentido, todo presens no passa, a rigor, de absens.

    N a leitura do inconsciente tico do modernismo, a partir de

    fotografias estampadas em uma revista oficial do Estado Novo; na

    anlise das anamorfoses do moderno que, atravs de uma coleo

    que se espetaculariza em exposio para, finalmente, se

    patrimonializar, novamente, em coleo, desvendando, en passant,

    muito intrincadas, embora precisas e, sem dvida, duradouras

    "polticas da amizade"; por ltimo, na relao entre imagem e cultura

    de massa, imagem e poltica, imagem e desaparecimento, que

    atravessa o debate do modernismo tardio, julgamos captar algo da

    energia do moderno que ainda resiste nos textos e nas imagens. O

    inacabamento de uns remete-nos s outras, mas a impotncia delas

    carrega-se de renovadas foras de sentido. So essas as "Potncias

    da imagem" .

    Os textos aqui reunidos foram previamente estampados em

    revistas especializadas - "Letterature d / America", "Punto de vista",

    "Revista de Crtica Cultural" - ou apresentados em colquios

    acadmicos. Agradeo aos colegas que me impulsionaram a escrev-

    Ias. Sou grato a Cludia Rio Doce e a Antonio Carlos Santos pelo

    auxlio em reuni-Ias; a Mario Cmara e Fabola Alves da Silva, pelo

    suporte material; e a Valdir Prigol, pela confiana. Imagens:

    maneiras e matrias da presena.

    Ral Antelo

    dezembro, 2003.

    -12 -

  • o inconscientetico do modernismo

    Quando as publicaes de vanguarda, 'Bifur' ou 'Varit', mostram

    unicamente detalhes, sob ttulos como 'Westminster', 'Lille', 'Anturpia'

    ou 'Boslau', representando, ora um fragmento de balaustrada, ora a

    copa desfolhada de uma rvore cujos galhos se entrecruzam de mltiplas

    maneiras sobre um poste de gs, ora um muro ou um candelabro com

    uma bia de salvao na qual figura o nome da cidade, elas se limitam

    a levar ao extremo motivos descobertos por Atget. Ele buscava as coisas

    perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a

    ressonncia extica, majestosa, romntica, dos nomes de cidade; elas

    sugam a aura da realidade como uma bomba suga a gua de um navioque afunda.

    Walter Benjamin

    Toda imagem uma representao, de carter global e

    abrangente, de uma ordem, de um territrio, de uma identidade,

    enfim, que se constitui, opera e se insere em parmetros

  • Potncias da imagem

    coletivamente aceitos. Essa peculiaridade redefine seu contorno no

    somente no plano cultural, mas, acima de tudo, na esfera do social.

    O imaginrio, conjunto variado e proliferante dessas prticas

    discursivas fornece, assim, uma resposta ativa aos conflitos

    constitutivos de uma cultura. Trata-se de um sistema de valores

    que orienta o sujeito em relao ao grupo com o qual ele se identifica

    ou ainda pauta esse grupo face sociedade como um todo, isto ,

    enquadra-o em relao a suas hierarquias e dominaes e, em ltima

    anlise, coloca a sociedade global frente a seus outros. Essa operao

    descansa, mais do que em vago simbolismo transitrio, na

    articulao, precisa e orientada, de verdade e normatividade,

    capitalizando as energias decorrentes da construo de toda

    representao em direo a um alvo comum, a prtica social.

    Essa peculiaridade das imagens leva-me, em conseqncia, a

    analisar um imaginrio especfico, os valores de hierarquia e

    normatividade, tal como ele se depreende a partir de certas imagens

    emblemticas do Estado Novo. Digamos, para antecipar a hiptese,

    que em algumas imagens desse perodo capta-se, com pungncia,

    o inconsciente tico do prprio modernismo. Meu campo de

    pesquisa , fundamentalmente, constitudo por revistas e, a esse

    respeito, caberia relembrar, para incio de conversa, que a prpria

    histria dos peridicos culturais brasileiros inseparvel da lei e da

    imagem, o que se desdobra em uma srie de paradoxos.

    Essas imagens reificam uma sociedade paralisada ou

    funcionam, pelo contrrio, como uma prensa de energias livres?

    Essas leis profanam a sacralidade imperial ou somente nos anunciam

    a existncia de foras originrias adormecidas? Seja como for, elas

    problematizam a representao, tanto na lei quanto na imagem, que

    j no se confunde com a simples ao, mas alimenta-se da paixo.

    -14 -

  • o inconsciente tico do modernismo

    Marco fundacional dos estudos historiogrficos em meados

    do sculo XIX, a "Revista do Instituto Histrico e Geogrfico

    Brasileiro", por exemplo, assinala o conceito patrimonial da

    modernizao aristocrtica dos Bragana, sua paixo pelos acervos.

    Com elao Imprio comea coleesculturais. Observa Max Fleiuss,

    secretrio perptuo do Instituto e diretor de ''A Semana", revista

    porta-voz da formao intelectual que fundaria, em 1897, a

    Academia Brasileira de Letras, que

    [... ] so inapreciveis as doaes de patrimnio intelectual que o

    Imperador fez ao Instituto. Bibliotecas, arquivos de manuscritos e

    mapotecas completas. Basta dizer que o ncleo principal de sua

    vastssima coleo de livros, cartas, mapas geogrficos e autgrafos

    raros - o que o Instituto, desde h muitos anos zelosamente acumula-

    pertenceu biblioteca do Imperador. a coleo magnfica de Martius,composta de 600 obras, em vrios idiomas, referentes todas elas ao

    Novo Continente. So valiosos volumes em edio princeps, e

    maravilhas rarssimas, como por exemplo o mapa da 'Razo de Estado

    do Brasil', todos eles doados ao Instituto, em vida ou depois de seu

    falecimento, como a melhor de suas riquezas, pelo insigne monarca

    (FLEUISS, 1938, p. 22, traduo minha).

    A esse acervo deveramos agregar a fotografia, de que Dom

    Pedro, alm do mais, foi interessado cultor. Por outro lado, convm

    destacar que esse um momento de esplendor da imagem e ela, em

    boa parte, ajuda a construo do imaginrio nacional. Peridicos

    como "O Ostensor Brasileiro", em que colaboraram Alberdi e

    Mrmol, ou "Jornal das Senhoras", de Joana Manso, sem esquecer

    "Guanabara", "Revista Popular" ou "Revista Ilustrada", acolheram

    os trabalhos de ngelo Agostini, Alfred Martinet, Augusto Off ou

    -15 -

  • Potncias da imagem

    Henrique Fleuiss, pai de Max. Como exemplarmente resume

    Alexandre Eulalio, a trajetria da imagem inseparvel da

    modernidade Imperial.

    Em 1842 eram pela primeira vez mostradas fotos na Exposio Geral; elas

    continuaro presentes, recebendo distines nesses certames, tanto na sua

    forma propriamente mecnica, quanto realadas sob a espcie das foto-

    pinturas - processo que, em 1866, Victor Meirelles compreensivelmente

    desaprovava por lhe parecer fonte de retrocesso 'da verdadeira arte'. As

    diversas variantes da foto-pintura, praticada pelo menos desde 185O e tantos,

    por um Joaquim lnsley Pacheco (ele mesmo artista do pincel) e por um

    Augusto Stahl (associado, no Recife, ao pintor Steffen, no Rio de Janeiro a

    Wahnschaffe), aderem ainda artistas visuais de certo prestgio, como Louis-

    Auguste Moreau, Miguel Caiiizares e Ernst Papf; este ltimo chegou

    mesmo a abrir durante algum tempo atelier especializado. O trabalho de

    encarnar o 'fantasma' fixado na placa 'que podia ser recoberto a leo, a

    guache e mesmo a pastel' segundo sempre Victor Meirelles, 'se algum

    merecimento pode ter certamente devido ao pintor e no ao fotgrafo'. A

    firma Carneiro & Gaspar contava com o grafismo elegante de Courtois; j

    Alberto Henschel 'avivava' pessoalmente as suas reprodues; Jos Ferreira

    Guimares especializara-se, por seu lado, em 'retratos vitrificados, fixados

    a fogo como as pinturas de Sevres e Limoges'. Uma referncia apenas

    fuso foto-litografia: um gnero que encontra alguns dos mais altos

    momentos da nossa iconografia oitocentista nas vistas brasileiras fixadas

    pelas objetiva de Victor Frond e litografiadas pelos melhores mestres do

    gnero da Paris de N apoleo lIl. Precedem -nas de um decnio o panorama

    da capital do que os lpis litogrficos de Benoit e Cicri deram relevo todo

    especial (EULALlO, 1992, p. 156).

    Herdeira, portanto, dessa tradio, a Repblica no s no

    interrompe a atitude colecionadora de imagens, mas reorienta-a. A

    "Revista Americana", rgo oficioso do Itamaraty, organiza, com

    16

  • o inconsciente tico do modernismo

    efeito, um tipo peculiar de coleo: as nacionalidades americanas,

    unidas, em nome de uma poltica de hegemonia regional, pelo pan-americanismo do baro do Rio Branco.

    No nem um pouco surpreendente, ento, que, mais tarde,

    na era Vargas, vrios peridicos culturais ainda se pautem por

    programas nacionalistas e modernistas, em perspectiva de fuso,

    ou de amlgama, do supra-regional, mas por isso mesmo lgico

    que quase todos eles permaneam atentos pulso escpica.

    "Atlntico" e "Travei in Brazil", publicaes do Departamento de

    Imprensa e Propaganda, ilustram aspectos pouco estudados do

    modernismo brasileiro. Ambas catalisam colees geopolticas

    especficas. A primeira revista, alinhando-se com os interesses

    estratgicos no Atlntico de Salazar U que era publicao bi-

    nacional, sustentada tambm pela Secretaria Nacional de

    Propaganda de Portugal). A segunda, entretanto, identificando-se

    grosso modo com a dominante norte-americana para a regio. Mas,

    alm destas manifestaescoincidentes, as duas publicaes ilustram

    modos divergentes de entender o moderno, tramas especficas de

    espao e tempo em que o prximo, por mais colado que estiver,

    aparece irremediavelmente distante de ns e isto graas s imagens.

    A imagem fotogrfica

    Ora, em uma colaborao para o "Jornal de Letras", CarlosDrummond de Andrade teoriza sintomaticamente sobre essa

    virtualidade da fotografia, recordando que,

    -17 -

  • Potncias da imagem

    [ ... J segundo Paul Valry, deviam os filsofos meditar no nmero

    prodigioso de estrelas, radiaes e energias csmicas que s se tornaram

    conhecidas atravs da fotografia; energias, radiaes e estrelas que, por

    assim dizer, ficamos devendo placa sensvel do fotgrafo. Mas essa

    placa no nos desvenda somente os mundos longnquos e as vibraes

    imponderveis da matria. Os nossos prprios mundos individuais, o

    mundo interior que se defende por trs das aparncias catalogadas do

    mundo de todos os dias - o fotgrafo consegue, muitas vezes, capt-lo

    em sua pureza singular, quando nem o psiclogo nem o pedagogo nem

    o ficcionista dele retiram mais que um esboo confuso.!

    Vale a pena, portanto, observar mais em detalhe esta potica da

    imagem, nas duas publicaes do modernismo tardio que acabamos decitar.

    Dirigida por um ex-vanguardista, Antonio Ferro2, a revista

    '~tlntico", furtivamente visual, opta pela exibio de um patrimnio

    plstico tradicional, admitindo, no mximo, a ilustrao convencional,

    tipogrfica ou em desenhos, de artistas como Santa Rosa, Tarsila ou

    Nomia. "TraveI in Brazil", no entanto, escrita em ingls, com textos

    especficos de modernistas como Mrio de Andrade, Manuel Bandeira,

    Ceclia Meireles ou Srgio Buarque de Hollanda, assinala, por sua vez,

    um aspecto mais instigante da modernidade perifrica: seu inconscientetico.

    Caberia reivindicar este conceito no apenas como um ingrediente

    marginal ou deslocado do moderno, mas, at certo ponto, como

    caracterstico de um ponto de vista menor, digamos assim, "latino-

    1. M.P. (pseud. Carlos Drummond de Andrade). Retratos do artista quando menino. "Jornal de

    Letras", Rio de Janeiro, novo1949. o nico texto de Drummond com essa acrografia.2. Prefaciado por Gmez de ia Serna e Eugenio d'Ors, Antonio Ferro foi bigrafo de Oliveira Salazar.

    18

  • o inconsciente tico do modernismo

    americano". Efetivamente, Marcel Duchamp quem comea a se

    interessar pela imagem como elemento analtico da prtica cultural,

    atravs de suas estereoscopias, praticadas pela primeira vez em Buenos

    Aires, no final da primeira guerra. Mas , de fato, Walter Benjamin,

    em 1931, quem estipula teoricamente que, atravs da fotografia,

    descobrimos a existncia de um inconsciente tico, assim como nos

    deparamos com o inconsciente por meio da psicanlise. Primeiro em

    Walter Benjamin, logo em Drummond de Andrade, reaparece, pois, o

    conceito de Valryde que, sempre iminente, a fotografia frustra o encontro

    e se revela como pura distncia.

    Poderamos dizer, em poucas palavras, que no predomnio

    concedido imagem em detrimento do texto, "TraveI in Brazil" revela

    o enigma do modernismo. Suas imagens, obtidas por J ean Manzon,

    Eric Hesse, Jorge de Castro, Vieira, Kahan e outros, so elucidativas

    tanto das fantasias visuais, hiperestticas, do Estado Novo como da

    sutil fuso anestsica promovida pelo canto orfenico de Villa-Lobos,

    calorosamente defendido por Mrio de Andrade em suas pginas. Esto

    a o jangadeiro de Orson Welles e o tropeiro de Glauber Rocha, para,

    em suma, constatarmos, na rasura que supe uma revista, em primeiro

    lugar, editada pela censura, e no menos importante, em ingls, a relao

    especular do modernismo com seu Outro.

    Admitindo a hiptese de que a imagem espectro e, como tal,

    no apenas fantasma, mas srie ou leque, uma reportagem,

    aparentemente secundria, assinada com pseudnimo, chama

    subitamente nossa ateno. "Through the Rio streets", tal a matria,

    organiza-se a partir das poderosas imagens de J ean Manzon, ilustrando

    um texto evocativo das profisses ambulantes que a cidade v

    desaparecer. Toda imagem vem acompanhada de uma epgrafe. Ver e

    -19 -

  • Potncias da imagem

    ler. Como assinala Bourdieu, uma foto no nada sem essa epgrafe

    que nos diz o que deve ser lido - legendum - ou seja, algo que, com

    frequncia, s uma lenda que nos faz ver qualquer coisa. Mas neste

    nomear, fazer ver, criar ou levar a existir, as epgrafes particularizam,

    precisamente, uma caracterstica da fotografia, sua distncia mdia entre

    o infinito e o sujeito, seu trao irredutvel, o a-a-t que lhe atribua

    RolandBarthes(BARTHES, 1997,p.1l63;ZAPATA, 1997,p.1O-14).

    Todas as imagens da matria em questo sublinham ou dobram

    o que a imagem impe, um irrevogvel passado colonial e migratrio.

    "An italian fruit vendor", "The itinerant Portuguese grinder", "The

    Portuguese fresh-eggman", "The Portuguese ambulant seller of

    brooms and feather-dusters", todas apontam um mundo de interesses.

    Interessere, que est entre dois mundos, que afirma e nega, que atrai,

    enfim. So o complemento de outras imagens, as de vendedores de

    frutas pintadas por Tarsila do Amaral ou ainda aquelas outras, filmadas

    por Humberto Mauro na mesma poca, as de profisses rurais

    condenadas, cuja distncia dramatizam os cantos de trabalho. Nestas

    que nos ocupam, no entanto, uma identidade europia, manual e

    artesanal, arquivada com o mesmo gesto com que outra nova, nacional

    e industrial, a substitui. Mas esta mudana no menos problemtica,

    j que o novo, to novo, diga-se de passagem, como o Estado que o

    promove, o Estado Novo, um regime autoritrio, de represso interna,

    alinhado aos Estados Unidos, sua proteo externa, para uma drstica

    industrializao do pas.

    As fotos, portanto, suspensas em meio metamorfose, mais do

    que o "eis aqui" mtico do novo, exibem a problemtica imagem do

    "isto foi", ou seja, a distncia de uma modernidade esquiva que se impe

    como proto-histria de nossa reconstruo contempornea. Essas

    -20 -

  • o inconsciente tico do modernismo

    imagens de Manzon elegem como objeto artstico o mundo do trabalho,

    mas expurgando dele todo vestgio de violncia ou explorao. O novo

    desse Estado de compromisso, quando no de exceo, insinua a lenta

    substituio do brao pela mquina e impe a arbitragem do Estado

    nos conflitos suscitados pelos interesses discordantes entre cidadania e

    modernizao. Essas fotos dramatizam a existncia de duas faces do

    cultural que, por sua vez, engendram formas histricas de organizao

    social. No apontam um movimento teleolgico progressivo, "novo",

    de superao do passado pelo presente, mas a reabertura indefinida e

    infinita de um conflito entre o princpio de utilidade e o princpio de

    perda. O Brasil est, ento, definindo, o que fazer com seus

    investimentos, j que o excedente econmico, que no poder mais ser

    desperdiado periodicamente em festas e transgresses coletivas, deve

    da por diante ser reapropriado e utilizado pelos setores dominantes na

    criao ou consolidao de empresas militares e religiosas: a guerra, a

    arte nova, a festa disciplinada, o turismo, enfim, de "TraveI in Brazil".

    N esta linha de anlise, inscrevem-se textos como "Holly week in

    Ouro Preto", de Ceclia Meirelles (n. 4, 1942), "Carnaval in Rio", da

    mesma Ceclia, publicado em um nmero (n. 2, 1941) cuja capa traz

    Carmen Miranda em fotomontagem tropicalista, provavelmente de

    Sanso Castello Branco, e mesmo "Ouro Preto and the old Vila Rica",

    de Manuel Bandeira (n. 4,1941).

    Tradicionalmente identificadas com a ordem profana, razo e

    moral passam a ser, em certa medida, divinizadas por estas imagens,

    enquanto o divino, decado, agora racionalizado como uma arte a

    servio da guerra contempornea, guerra entre as naes, em funo

    da diviso poltica. H aqui uma evidente opo entre dois modelos

    divergentes do moderno, o de Marx e o de Nietzsche. Marx, como

    -21 -

  • Potncias da imagem

    sabemos, prope a secularizao radical do social para a abolio da

    propriedade privada e o conseqente desaparecimento de fronteiras

    polticas internacionais. Nietzsche, por sua vez, acredita que o homem

    deve liberar-se da tutela racional e do temor ao limite temporal para

    afirmar a vida como aposta criativa, ldica e elusiva, mas, ao mesmo

    tempo, gozosa dolorosa, o que, em ltima anlise, configura a

    emergncia de uma subjetividade soberana.

    Niet'lsche, em geral, foi lido como defensor de uma soberania

    meramente objetiva e esta ser a divergncia que a tradio de Bataille,Blanchot e Foucault recriminar ao saber consolidado: confundir

    soberania e poder, buscar a autopreservao ao preo de controlar o

    futuro e dominar os demais. essa, precisamente, a perspectiva queAlmir de Andrade, um dos diretores do Departamento de Imprensa e

    Propaganda, deixa claro quando afirma que

    [...] no reconhece Nietzsche qualquer idia moral que pretenda definir o

    bem em si ou o mal em si: bem e mal so conceitos relativos, que se

    modelam sobre os objetivos da vontade-de-poder do homem superior. Os

    fins justificam todos os meios, desde que se tenha em vista desenvolver na

    personalidade humana avontade-de-poder, que traz em si os bens supremos

    e essenciais da vida, que gera tudo o que grande, nobre e duradouro sobre

    a terra. A filosofia de Nietzsche conduz, assim, a uma 'transmutao de

    todos os valores', com o fito de alcanar o sobrehumano, isto , a

    personalidade que transcende, que se satura dessa potente e grandiosa

    vontade-de-viver ou vontade-de-poder, smbolo da dominao do homem

    sobre si mesmo e sobre o mundo exterio~ (ANDRADE, 1949).

    3. Prefcio de Agrippino Grieco. Com aparente objetividade, Almir de Andrade observa neste

    prefcio posterior guerra que "a doutrina de Nietzsche foi a grande inspiradora do Fhrerprinzip

    do pensamento nacional-socialista alemo e de toda a filosofia poltica do Nazismo e do Fascismo."

    -22 -

  • o inconsciente tico do modernismo

    Fascismo e imagem

    Esta alternativa super-herica de Nietzsche reabre, assim, em

    pleno estadonovismo, a discusso sobre os limites entre natureza e

    cultura, que o darwinismo social, com sua impugnao do mito

    teleolgico e do dogmatismo bblico, havia capitalizado para si como

    religio da cincia. Tornam a ser uvidas, em conseqncia, as

    fantasias viris do empirismo, que impregnam inclusive seus prprios

    crticos. Walter Benjamin, talvez o mais ilustre deles, ao concluir

    seu clebre ensaio sobre "A obra de arte na poca de sua

    reprodutividade tcnica", estabelece uma correlao entre a

    crescente proletarizao do homem moderno e o alinhamento,

    tambm crescente, da sociedade que ele explica dizendo que o

    fascismo trata de organizar as massas sem tocar nas condies da

    propriedade que essas mesmas massas queriam destruir. Assim, o

    fascismo buscaria, de fato, com seu vitalismo, conservar as condies

    culturais prvias de existncia. A conseqncia prtica, em seu juzo,

    como sabemos, o ecletismo beligerante da vida poltica. E

    acrescenta: " violao das massas, que o fascismo impe pela fora

    no culto ao caudilho, corresponde a violao de todo um mecanismo

    posto a servio da falsificao de valores culturais" (BENJAMIN,

    1973, p. 56, traduo minha).

    Ora, J ess Aguirre, o duque de Alba, em sua verso do ensaio

    ao espanhol, traduz corretamente o conceito de Vergewaltigung der

    Massen, violao ou, para enfatizar o sentido tambm presente em

    alemo, estupro. Deve-se observar, entretanto, que o conceito

    desdobra-se em outro, Vergewaltigung einer Apparatur, duplicando,

    assim, mesmo os sujeitos femininos, die Masse ou Apparatur (e

    -23 -

  • Potncias da imagem

    sintomaticamente no Apparat masculino) com o que o estupro das

    massas e das cmaras no apenas feminiza suas vtimas, mas tambm

    antropomorfiza-as, no sentido carregadamente genrico da expresso,

    vinculando-as ao mesmo fascismo que, linhas adiante, manifesta-se

    sintomaticamente, em prosopopia:ftat ars - pereat mundus4

    O fascismo condena, assim, a physis para exaltar o fsico como

    Kultwerten, ou seja, fisioculturismo. Essa sua arte. As fotos de Jorge

    de CastroS, discpulo de Portinari, que ilustram o trabalho da Escola

    de Educao Fsica6 juntam, precisamente, estetizao e mercan-

    tilizao. Partem do esforo comunitrio e blico ("A. well developed

    tug-of-war team" a epgrafe de uma delas; "Like a bronze statue",

    a de outra) e prometem um para alm do humano, embora consigam

    apenas trazer mais para c as promessas da indstria, at alcanar um

    fetiche de poder. A superposio de seis braos, em um desses

    exerccios, mostra-nos "a physical jerks stunt that looks like an ancient

    4. Com o que Benjamin, em prespectiva nietzscheana, transvalorizaria os valores do rnscismo; ou

    seja, criticaria a violncia, mas participaria, em ltima instncia, da retrica da virilidade.

    (5PACKMAN, 1996).

    5. Jorge de Castro comps tambm as letras de muitas marchas de Carnaval com Wilson Batista,destacando-se "Man Garrincha" ou "Rei Pel" e, em 1956, "Todo vedete", sobre o baile de

    travestis no teatro Joo Caetano, que teve problemas com a censura. Cf ''As fotografias de Jorge deCastro", Dom Casmurro, 21 out. 1939.

    6. Em "The National School of Physical Education of Brazil" ("Travei in Brazil", vol. 2, n. 4,

    1942), J. Moreira de Souza estipula que "in the general plane adopted by the state to concretize,

    on solid bases, the aspiration of the create an institution, through which it would by possible to

    improve their physical health and morale, as a foundation for the working out of national organic

    reconstitution, from which should emerge the complete political programme of government which

    was pledged to give to it's people a happy life, and to the N ation, an ample and solid sovereignty.

    When President Vargas, on the instal1ationof the N ew State, proclaimed the inauguration of an era

    of economic emancipation, as an indispensable base of political independence and moral autonomy,

    he diligently sought for methods to bring about this ideal, and amongst other creations of this lucid

    and pratical mind, the National 5chool ofPhysical Education and Sports was evolved".

    -24 -

  • o inconsciente tico do modernismo

    hindu God", isto , O dolo funciona como um simulacro de deus,

    assim como o homem um simulacro do dolo. Mrio de Andrade

    achara, nessas fotos, o "dom de apanhar a poesia do real". Talvez

    fosse o caso de interpretar o real como o Reallacaniano, o que no

    cessa de no poder ser representado.

    Mas este mesmo gesto, no qual podemos adivinhar uma violao

    das massas na estetizao da fora, admite seu complemento, a

    antropomorfizao do fantasma, ou seja, a visualizao de um desejo

    homoertico - as malhas cavadas dos atletas, as ndegas para o ar, as

    dobras da roupa ou as poses, mais tarde banalizadas por qualquer

    carto postal de So Francisco - o que nos persuade de que a nica

    semntica da imagem fotogrfica sua pragmtica, seu modo, sua

    prtica. Este seu valor mais concreto e contundente. O cone esttico

    absorve, assim, tanto as funes fundacionais do logos como a physis

    dos filsofos, para exibir, portanto, a conjuno (carnal) de iconofilia

    e inconsciente.

    Tais contradies tm seu correlato no plano tico e juntam-se

    s idias de uma moral invertida nos quinta-coluna, defendida por

    Sartre no terceiro volume de "Situations". O colaborador, nesta

    perspectiva,

    [...] em vez de julgar os fatos luz do direto, fundou o direito sobre os

    fatos. Sua metafsica implcita identifica o ser com o dever ser. Tudo que

    , bom; o que bom o que . Sobre tais princpios construiu

    apressadamente uma tica da virilidade. Tomando a mxima de Descartes

    - 'o homem h de vencer a si mesmo antes que ao mundo' - pensou que

    a submisso aos fatos uma escola de valor e de dureza viril. Para ele, o

    que no parte de uma apreciao objetiva da situao no mais que uma

    fantasia de mulher e um monte de palavras vazias. Explicou a resistncia

    -25 -

  • Potncias da imagem

    como uma adeso anacrnica a costumes e a uma ideologia extinta e no

    como afirmao de um valor. No entanto, sempre ocultou a si mesmo a

    contradio profunda encerrada no fato de que ele tambm escolheu os

    acontecimentos que constituem seu ponto de partida (SARTRE, 1965,

    p. 38, traduo minha).

    E esse ponto de partida implica sonhar para alm da

    sensibilidade, um "tempo de camisolinha", como diria Mrio de

    Andrade, onde fosse possvel localizar uma vida autntica, hoje ausente.

    Esta parte separada, destacada e at mesmo maldita da vida possvel,

    que, na realidade, confunde-se com todo o futuro, emerge, assim, do

    corao mesmo de uma imagem, no apenas como sua abstrao,

    mas como supersensao, algo j realizado de antemo. Sua durao

    carrega-se ento com a opacidade da morte e seu outro surge com a

    fora de uma iluminao. Toda existncia fica, portanto, separada de

    sua essncia. Toda a sensibilidade resulta amarga. Toda conscincia

    de si, revelando ao homem sua impotncia, impe, por seu lado, seu

    prprio desprezo. Todo homem , de algum modo, aleijado e no h

    poltica higienista capaz de redimi-lo ou reabilit-lo.

    Como na teoria do leitor desatento de Macedonio Fernndez,

    o inconsciente tico remete a um infinito dessublimizado, proveniente

    de uma experincia cotidiana vista e vivida, embora no

    deliberadamente contemplada que nos conduz, como diz Italo

    Moriconi, ao no tematizado pelo olhar, mesmo quando integra

    satisfatoriamente as percepes mais convencionais do indivduo.

    Como mescla de choque e apatia, de intensidades corporais e

    sonambulismo de massas em viglia pelo novo, o inconsciente tico

    articula tcnica e vivncia, nos levando a uma percepo sinestsica e

    a uma poltica da imagem que procedem do visual ao ttil:

    -26 -

  • o inconsciente tico do modernismo

    Ao contrrio de uma pedagogia conservadora, o tempo distrado, tempo

    entre um momento e outro de intensificada focalizao pelo olhar (ateno

    intensa, base da reflexo) no encarado por Benjamin como homogneo

    e vazio. Nele ocorre a recepo comandada pela dominante ttil. Nele

    ocorre tambm o descentramento do sujeto individual, pois a recepo

    coletiva pressupe um revezamento na posse da palavra. Para Benjamin,

    a recepo ttil especialmente significativa nas conjunturas de

    transformao histrica. no domnio da recepo ttil que se formamos hbitos. E na decomposio analtica do habitualizado pelo cotidiano

    que se formam novos modos de vivenciar e perceber determinados pelo

    desenvolvimento tcnico. Se a pedagogia iluminista atua de cima para

    baixo, disciplinando desejos (ou seja, habitualizando) a partir de idias e

    de estruturas formais, Benjamin aponta para toda uma nova realidade,

    ainda mais vigente hoje que em seu tempo, em que os ideais a construir

    devem partir do reconhecimento da instabilidade emocional coletiva

    (MORICONI, 1996, p. 144-5).

    Primeiro impulso de uma existncia saudvel, a pulso, faltando

    em seu verdadeiro objeto, prolifera em virtualidade, mas agora em

    uma variante sufocada, abortada, e naquilo que poderia ser o ritmo

    de participao na vida, transforma-se, pelo contrrio, em signo do

    proibido. curioso pensar, a partir destas imagens, na biopoltica doEstado Novo, mais ainda levando em conta que a videopoltica

    contempornea, de um lado, orgulha-se de sepultar a era Vargas

    enquanto, de outro, revoga uma lei do aborto, em casos de estupro,

    aprovada por esta mesma ditadura, violenta por definio. No Brasil,

    por paradoxal que possa parecer, as ditaduras tm sido modernizadoras

    tanto como a modernizao, ditatorial. Tamanha indefinio de limites

    prova que as relaes entre identidade e sexualidade, arte e tcnica,

    exigem, para sua correta avaliao, uma potica especfica, nada alheia,

    por sinal, s estratgias requeridas pela leitura de uma revista literria.

    27 -

  • Potncias da imagem

    Analisar um peridico cultural mimetiza sua produo mesma:

    obriga-nos a selecionar e a omitir, produzindo um texto, uma leitura,

    que colagem espacial ou montagem temporal de fragmentos,

    enxertados em relaes provisrias ou aleatrias que, no entanto,

    reafirmam o motor mesmo do moderno: a experincia do descontnuo

    (BENNETT, 1989, p. 480).

    Alfonso Reyes percebeu esse fato quando, ao traar uma teoria

    da antologia, observou que "las antologas marcan hitos de las grandes

    controversias crticas, sea que las provoquen o que aparezcan como

    su consecuencia. En rigor - acrescenta - las revistas literarias de

    escuela y grupo se reducen a igual argumento y cobran carcter de

    antologas cruciales" (REYES, 1942, p. 136). , enfim, por esse carterantolgico e descontnuo, entendido como ndice efetivo de formaes

    proto-histricas, que o sentido se rearma, sem resto, para bem ou

    para mal, como um enigma que nos indaga e nos exige, em todos os

    sentidos que a frase possa ter, que a poltica deve ser revista na medida

    em que a revista, tal como a experincia comunitria, se nos apresenta,

    para retomar a categoria de Jean-Luc Nancy, desoeuvre, inoperante

    e improdutiva, o reverso da oeuvre benjaminiana, o anverso do texte

    barthesiano. No h nela nem obra a ser produzida, nem mesmo

    comunicao extraviada no tempo. H to-somente um espao e, em

    conseqncia disto, o espaamento de uma experincia do exterior

    que, a contrapelo de toda nostalgia, ilumina-se com a conscincia de

    sua prpria separao.

    -28 -

  • Polticas da amizade eanamorfose do moderno

    N ous hsiterions toutefois au bord d'une fiction. Le monde serait

    suspendu une sorte d'hypothese lmentaire et sans bord, une

    conditionnalit gnrale gagnerait toutes les certitudes. I..:espace et le

    temps virtuels du "peut-tre" seraient en train d'aspirer Ia force de nos

    dsirs, Ia chair de nos vnements, le plus vivant de notre vie. Non, ils

    ne seraient pas mme en train de le faire, car Ia prsence mme d'un tel

    processus serait rassurante et encore trop effectivej non, ils seraient

    tout pres d'y parvenir et cette imminence suffirait leur victoire. Elle

    suffirait non s'y opposer, cette force et cette vie, ni les contredire,

    ni mme leur nuire, mais pire encore, les rendre possibles, les

    rendant ainsi seulement virtuels, d'une virtualit qui ne les quitterait

    plus jamais, mme apres leur effectuation, les rendant donc impossibles

    par l mme, comme seulement possibles, jusque dans leur prsume

    ralit. La modalit du possible, l'insatiable peut-tre dtruirait tout,

    impIacabIement, par une sorte d'auto-immunit dont ne serait exempte

    aucune rgion de l'tre, de Ia phsis ou de l'histoire. AIors naus

    imaginerions un temps, ce temps-ci, nous n'en aurions pas d'autre en

  • Potncias da imagem

    tout cas, mais nous hsiterions dire "ce temps-ci", doutant de sa

    prsence, ici maintenant, et de sa singularit indivisible. N ous voudrions

    nous rapproprier, ici maintenat, jusqu' cette hsitation, jusqu'au

    suspens virtualisant de cette poque, pour le crever, pour l'ouvrir d'un

    coup sur un temps qui serait le ntre, et seulement le ntre: le

    contemporain, si quelque chose de tel se prsentait jamais.

    Jacques Derrida

    Como sabemos, a inscrio de uma marca em uma cena proto-

    histrica, digamos, o moderno ou o outro, reprime, de algum modo,

    um significado diferente do mesmo signo, por exemplo, o nosso, o

    prprio que, ainda que invisvel no momento, permanece assim em

    estado de suspenso estratgica, em outro lugar, sorte de antecmara

    ou bambolina da cena textual e, mais do que isso, transforma-se na

    conscincia ps-histrica do mesmo acontecimento. H ali uma

    anfibologia cultural que se rene com o carter estriado que

    apresenta a problemtica do moderno e do perifrico, conceitos que,

    sendo constitudos de diferenas e, mais ainda, de diferenas de

    diferenas, definem-se como o absolutamente heterogneo, o devir,

    a deriva, constantemente compondo-se com as foras que tratamde anul-Ios.

    Poderamos recorrer, para ilustrar esse complexo processo de

    compossibilidades do moderno, ao peculiar curso de uma coleo,

    a mostra de vinte pintores brasileiros que, em 1945, cruza a cena

    cultural de trs pases, os quais, depois da guerra comum (a do

    Paraguai), encontraram na arte moderna a soluo integradora de

    suas energias fundacionais. Mas, ao mesmo tempo, essa emergncia

    do moderno, em plena poca da guerra (entre politizao da arte

    ou estetizao da violncia, quer dizer, entre vanguarda e kitsch)

    -30 -

  • Polticas da amizade e anamorfose do moderno

    prefigura outra guerra, a contempornea, de dissoluo dos Estados

    ou, em outras palavras, de consolidao de mercados

    videofinanceiros. H uma imagem do pblico mas sobretudo uma

    poltica das imagens que magnetiza a cena urbana e popular na

    Argentina, Brasil e Uruguai nesse momento inapreensvel. A

    disseminao dessas marcas e seu refgio no museu explicam boa

    parte dos avatares de nossa modernidade. Vamos, portanto,

    reconstruo dos fatos.

    Pettorut: nova forma e no-verdade

    Em 1924, ao voltar impensadamente ao pas natal, rompendo

    assim sua carreira artstica europia, Emlio Pettoruti (1892-1972)

    transforma-se no paladino da nova plstica argentina, amparado

    por seus corifeus martinfierristas: Xul Solar, Alberto Prebisch,

    Ricardo Giraldes, Ernesto Palacio. No tardaria a chegar, junto

    com a exibio de suas pinturas, a divulgao de suas idias, nem

    sempre to identificadas, como se pode acreditar, com o programa

    futurista, j que, afinal de contas, Pettoruti um pintor vinculado

    Famgla Artstica milanesa, saudado por Carr, Marinetti ou

    Bragagliaj nas pginas de "r..:lmpero" ou "Giovinezza", como "um

    dos nossos". Se parece atrevido sugerir um vnculo orgnico com

    os princpios hierrquicos da ordem italiana, nem sequer ocorreria

    aos seus admiradores agreg-Io inequivocamente ao futurism07. Em

    7. Apesar dos elogios de Marinetti, na conferncia da Sorbonne, no sentido de ser o primeiro pintor

    do futurismo, ou no artigo para "El Diario", em sua visita a Buenos Aires em 1926, seu principal

    -31 -

  • Potncias da imagem

    compensao, impossvel recusar sua vocao para o debate

    vanguardista nesse seu "renascimento" no Prata. Em 1926, ao expor

    na principal galeria de Buenos Aires, "Amigos del Arte" (1924-

    1943) - mais um avatar das "polticas da amizade", dessa vez, sob o

    comando de Beb Sansisena de Elizalde, promotora de exposies

    de Siqueiros ou Figari, bem como de cursos ou conferncias de

    Fondane, Garcia Lorca, Ortega y Gasset, Bragaglia, Marinetti ou

    Le Corbusier - nesse momento, ento, Pettoruti explicita sua

    posio frente a uma poltica do olhar (a cpia da realidade, a cpia

    da Europa), tpico recorrente, desde o criacionismo de Huidobro,no debate cultural dos anos trinta:

    Desde o Renascimento at o impressionismo passa-se um grande

    perodo de tempo na arte em que nada de fundamental varia, desde que

    tudo gira sobre um mesmo apoio angular: a reproduo da Natureza,

    mais ou menos idealizada, mas sempre a Natureza, quer dizer, o j

    existente. No se cria nada. [ ...] O impressionismo deu o primeiro

    golpe de picareta a esse realismo impuro ensaiando, por meios tcnicos,

    uma transmutao dos valores, que so dissociados, alterados e

    ordenados novamente de maneira distinta, a fim de produzir 'uma

    impresso' da realidade, e no a simples viso da realidade mesma.

    [ ...] Isto era algo, porm ainda muito pouco, porque a Natureza, os

    objetos variavam mas continuavam sendo a razo de ser do quadro. E

    defensor, Xul Solar; argumenta que "no pretende Pettoruti impor-nos uma moda dada, convencendo-

    nos de qualquer coisa com a pujana de seu talento. Sua arte est dentro de todo o sculo espiritual

    presente. Desta poca em que a arte mais individual e arbitrria do que nunca, no podemos dizer

    que seja anrquica. Existe, apesar de tanta confuso, uma tendncia bem definida para a simplicidade

    dos meios expressivos, a arquitetura clara e slida, at a pura plstica que conserva e acentua a

    significao abstrata de linhas, massas, cor, tudo dentro de uma liberdade de compreenso e composio.

    Estas amplas perspectivas novas, este srio esforo de Pettoruti - dissidente por fim - nos ocasionam

    um alvio e uma liberao. A valentia desse pintor exemplificar" (PETTORUTI, 1924).

    32

  • Polticas da amizade e anamorfose do moderno

    trata-se de que a pintura no siga as leis externas, alheias sua essncia,

    no prossiga tiranizada pelo 'motivo', mas que, pelo contrrio, torne-se

    independente e desvincule-se completamente do mundo exterior, para

    no seguir seno suas prprias leis, impostas por necessidades de ordem

    exclusivamente plstica: a cor e a linha.8

    o exemplo da msica, ao qual recorre Pettoruti, j tinha sidoexplorado anos antes por Mrio de Andrade, em "Reao contra

    Wagner" e mesmo em "A Escrava que no Isaura" (1925),

    provavelmente lida por Pettoruti. No nos esqueamos que, alm

    da correspondncia e dos recortes, o pintor lhe oferece uma aquarela

    com tema de palhaos, de 1917, portadora de inequvoca dedicatria,

    "A Mario de Andrade, carino". Diz ento Pettoruti:

    A msica emancipando-se dos motivos pitorescos ou descritivos, e at

    da interpretao e do reflexo de paixes e estados de nimo, foi-se

    elevando at chegar na sinfonia, a com justia chamada 'msica pura',

    porque desvinculou-se dos fins representativos que a escravizavam e

    encaminha-se apenas para produzir beleza 'em si', e s utiliza e obedece

    suas prprias leis: as do som e da harmonia. [ ...] Como ela e como a

    arquitetura, que tambm se rege unicamente por suas leis ntimas e no

    se prope representao alguma, deve chegar a pintura a esse estado de

    'pureza' em que se emancipe do objeto para produzir somente obras

    carentes de significao anedtica, puramente plstica. [ ...] A isso

    vamos. Entretanto, observe voc que a nova pintura a nica que

    realmente cria, isto , produz beleza por meio de elementos que o

    artista busca e apreende em seu prprio esprito.9

    8. Declaraes colhidas por Conrado Eggers-Lacour em "Pettoruti, primer pintor 'izquierdista'

    argentino". "El Pas", Crdoba, 7 ago. 1926, (grifo meu).

    9. Mrio de Andrade disse em relao msica que "sendo a mais vaga e a menos intelectual de

    todas as artes fatalmente teria uma evoluo mais lenta. Os homens pouco livres ainda em relao

    -33 -

  • Potncias da imagem

    Copiar a natureza equivale, sem dvida, a copiar a Europa, o

    tema que mais tarde desenvolver Martnez Estrada em

    "Radiografa de Ia pampa". Mas no s nos artigos que escreve nos

    anos 30 para a revista "Comps", como tambm em suas idias de

    recm-chegado, Pettoruti no esconde que o importante tornar-

    se independente da subservincia e, para isto, a tcnica pode seruma aliada:

    De modo que, em sntese, temos desde o Renascimento at o

    impressionismo, cpia ou, quando muito, interpretao: dali at as

    novas tendncias, transposio, translao; e daqui at quem sabe

    quando, criao [...]. A nova pintura responde sensibilidade da poca

    atual, em seu ara de velocidade, de sntese e de criao. tambmtecnicamente seu produto, desde que a grande multiplicao das cores,

    operada pela cincia, deu uma riqueza enorme palheta do pintor

    contemporneo e, com isso, uma grande liberdade a seu esprito.

    Poder-se-ia pensar a preponderncia estruturante da cor como

    manifestao especfica dessa mesma imaterialidade da arte moderna.

    a linha evolutiva que Thierry de Duve verifica em Duchamp ouque podemos traar em Benjamin, desde seus aforismos adolescentes,

    que descrem de uma teoria harmnica da cor (salvo na passagem da

    linha ao volume, o que implica tambm o olhar histrico), at suas

    natureza tinham compreendido as artes praticamente como IMITAO. A msica no imitava

    de modo fcilmente compreensivel a natureza. D'a apezar do prazer todo sensual que distilava, da

    preferencia em que era tida, de seu lugar preponderante e indispensavel nas funes de magia e

    religio, o estar sempre esclarecida, tornada inteligivel pela palavra. [...] Libertada da palavra, em

    parte pelo aparecimento da notao medida, em parte pelo desenvolvimento dos instrumentos

    solistas, conseguiu enfun tornar-se MSICA PURA, ARTE, nada mais." (ANDRADE, 1925).

    -34 -

  • Polticas da amizade e anamorfose do moderno

    consideraes sobre a teoria da cor de Goethe, que o conduzem a

    dissociar conhecimento e verdade, postulando que no existe

    conhecimento verdadeiro, assim como nunca h verdade j conhecida.

    A arte e a crtica surgiriam, assim, como fragmentos do saber para

    uma hiptese de verdade, e isto, inequivocamente, mantm contato

    com uma teoria da histria e uma teoria da identidade, em que sempre

    a totalidade aparece elusiva. A recepo expressionista de Pettoruti,

    como o ilustra Sem Roem em 1923, soube destacar justamente esse

    esforo pelo mais audaz da arte pura, ainda que se tratando de simples

    prismas em af construtivo: conceder plasticidade ao dinamismo das

    linhas, no concluir, no totalizar. Essa idia de um objeto in progress

    aplicava-se no s ao objeto artstico imanente mas, em consequncia,

    relao entre arte e sociedade. Assim, em outro artigo da poca,

    sobre "N eoclassicismo e nacionalismo", Pettoruti destaca uma linha

    argumentativa de reinveno da tradio, conciliando vanguarda e

    nacionalismo, em posio tambm compartilhada com Mrio deAndrade:

    Somente das novas tendncias de onde ns - como todos os demais

    pases novos, sem tradio plstica - devemos forosamente dar a

    partida. [ ...] As novas tendncias so as nicas que se ajustam na

    tradio, se por tradio entende-se o esprito e no a forma: o resto

    uma cpia fria, uma receita de tudo o realizado em outras pocas, por

    outras civilizaes: 'Em outra vida'. [...J As novas artes so as nicas

    que nos deram 'algo vivo', delas sair, sem dvida alguma, a arte que

    preencher todas as nossas necessidades. [ ... J As manifestaes

    artsticas foram sempre 'um momento dado', 'uma idia', e houve tantas

    idias quantas foram para os povos as maneiras de compreender o

    amor, a religio, a moral. [...J As novas tendncias, alm da tradio

    ocidental, assimilaram as orientais, as brbaras, as negras, etc., isto o

    -35 -

  • Potncias da imagem

    que as far mais universais. [ ...] Efeito de supercultura, tradies estas

    ltimas que muitas pocas ignoraram e que, por isso, a arte se reduzia

    quase que exclusivamente a certas cidades. [ ...] Quem disse cubismo,

    futurismo, expressionismo, o que poderia resumir-se em arte moderna,

    disse arte nossa, quer dizer, intimidade, espiritualidade, cor, aspirao

    at o infInito expresso com todos os meios que possuem as artes.

    ]\lIas nada disso faz-se sem museu: "Todos os grandes

    inovadores estudaram nos museus. Negar o passado negar-nos a

    ns mesmos". Portanto, assim como Portinari pedia uma ao mais

    contundente de interveno do Estado na esfera pblica 10 , Pettoruti

    vai desenvolver, frente do Museu Provincial de Bellas Artes - o

    qual ele dirige entre 1930 e 1947 -, uma ao de abertura a essas

    novas tradies, com o objetivo de dilatar o conceito de univer-

    salismo. Uma delas a exposio "Vinte artistas brasileiros",

    inaugurada em agosto de 1945 na Pasaje Dardo Rocha de La Plata.

    Alm de muita obra em papel, ela traz um nmero expressivo de

    telas ("Cidadezinha" de Tarsila, "Meninos de Brodowski" e

    "Mulher chorando", de Portinari) as quais, junto a outras de Burle

    Marx, Clvis Graciano, Jos Pancetti, Helena Pereira da Silva ou

    Santa Rosa, seriam mais tarde incorporadas a seu patrimnio peloMuseu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires.

    10. Nas pginas de uma revista fscista brasileira, Portinari invoca as palavras de Stalin para

    ilustrar que um artista como Dostoievski foi mais valioso para a revoluo do qu~ o prprio Lenin,

    com o que pretende demonstrar a necessidade da arte nos novos imaginrios, populares e modernos.

    A poltica de aquisio de obras para os museus apia-se assim em dois exemplos, digamos,

    surpreendentes, Mussolini e a Argentina. Ambos compram arte moderna para suas colees

    pblicas. Um movimento de renovao nas Belas Artes. "Hierarquia", n. 5, Rio de Janeiro, mar/

    abro 1932, p. 188-9. nessa linha que Pettoruti escreve sobre os "Fines y organizacin de lossalones de arte", em "Sur" (set. 1935),

    -36 -

  • Polticas da amizade e anamonose do moderno

    Rebelo

    No eram poucos os contatos de Pettoruti com o Brasil. Tinha

    exposto no Rio de Janeiro, em abril de 1929, poucos meses antes

    que Tarsila do Amaral, a quem conheceu junto a seu marido, Oswald

    de Andrade, e a outro casal, no menos irreverente, Eugnia e Alvaro

    Moreyra. De Goeldi, Joo Ribeiro e Ronald de Carvalho, pintores,

    crticos, escritores!!, conservou boas impresses. Confia, pois, a

    organizao da exposio de 1945 a um escritor que fez suas

    primeiras armas na "Revista de Antropofagia", Marques Rebelol2

    Entendia Pettoruti que, com esta mostra, era

    11. Algumas destas opinies esto recolhidas em suas memrias, "U n pintor ante el espejo" (Buenos

    Aires, Hachette, 1968); outras, em compensao, encontram-se disseminadas na imprensa peridica

    brasileira. o caso da anotao pioneira de um dos colaboradores de "Martn Fierro", seu ilustrador,o artista plstico Francisco Palomar (Fapa), que, instalado no Rio, divulga a obra de Pettoruti na

    mesma revista que, pouco depois, se interessar pela obra de Le Corbusier (cf. PETTORUTI,

    1928). Mas, provavelmente a partir da exposio de 45, retoma o interesse brasileiro por Pettoruti

    como o demonstram os artigos de Oswaldo Alves (1945).

    12. Contrariando sua tendncia por ntidos contornos realistas, o debut de Rebelo entre os

    antropfgos se d com um poema chamado "Matinal" ("Revista de Antropofagia", ano 1, n. 2,

    So Paulo, jun. 1928):

    Eu abri a janela

    e respirei fundamente a frialdade

    da manh

    Sob risadas de sinos,a cidade bnncava de esconder

    dentro da nvoa.

    Junto indefinio penumbrista da neblina, envolvendo o clima j abstrado de "a cidade" e no

    do Rio de Janeiro ou outra qualquer, a energia de praticar uma inaugurao e instalar uma

    moldura na nova sensibilidade impe o talho da iluminao, isolada visualmente no meio do

    -37 -

  • Potncias da imagem

    [...] propsito da Direo contribuir para fazer efetivo o conhecimento

    das inquietudes artsticas do Norte, Centro e Sul de nosso Continente

    e a esta louvvel iniciativa vai o nosso apoio, por entender que ela

    encarna uma necessidade de ndole cultural muito sentida, como a de

    procurarmos uma confrontao real, de esprito a esprito, com os

    artistas plsticos da Amrica. [...] Correspondeu ao Brasil inaugurar

    este promissrio ciclo de exposies de conjunto que h de dar-nos um

    panorama total da arte americana contempornea. Com efeito, a que

    hoje apresenta nosso Museu permitir apreciar globalmente o

    movimento plstico de nossos irmos brasileiros. Est integrada por

    vinte artistas, quase em sua totalidade jovens nascidos no que vai do

    sculo e admiravelmente inspirados. Eles representam o mais vivo,

    novo, audaz e esperanoso da arte do Brasil. [ ...] De forma isolada

    eram-nos conhecidos alguns pintores por terem mostrado suas telas

    em exposies individuais ou em uma ou outra exposio coletiva,

    porm nunca se nos deu a oportunidade de apreciar uma exposio em

    conjunto orgnico e harmnico como a que hoje se oferece ao pblico.

    Com isso, Pettoruti perseguia integrao supra-regional, bem

    como efetiva formao de acervo, e at poderamos supor, com

    Kermode, que essa reavaliao do implcito (tradies nacionais

    dissociadas) busca, em ltima anlise, no s abolir o passado, mas

    oferecer vises sinpticas e integradoras, capazes de elaborar pr-

    histrias do futurol3. Mas claro que nem os dezessete quadros

    poema como o hiato fundador "da manh". Boa parte do debate sobre o materialismo dramtico da

    modernidade estende-se entre esses dois polos, o decadente (o nevoeiro) e o incipiente (a manh).

    Basta recordar o fragmento inicial de Ecce Romo nietzscheano com sua tenso entre foras ativase reativas.

    13. Em "Modernism, Postmodernsm, and Explanation", Frank Kermode argumenta que "it is

    surely in this sense - the revaluation of the illexplicit, the rejectioll by one means or allother, of the

    cause-haullted past - that we understand the foulldation of the modern, though we have to add that

    here, as elsewhere, programs to abolish the past are usually accompanied by llewly created views

    -38 -

  • Polticas da amizade e anamorfose do moderno

    incorporados ao Museu, nem muito menos a exposio mesma,

    deixam de suscitar leituras dissidentes. A mais cida talvez seja a

    que aparece em "Latitud", revista liberal-comunista de Buenos Aires,

    em uma nota de Antonio Berni (1905-1981), assinada somente com

    suas iniciais, A. B., na qual o pintor rosarino lamenta ausncias e

    insinua o fantasma de toda vanguarda, sua institucionalizao oficial:

    Separando-nos, momentaneamente, dos valores indiscutveis das obras

    expostas, ainda que faltando nomes, entre eles o do grande Segall, no

    compreendemos como se faz participar aos artistas brasileiros em uma

    ao oposta e contrria atitude que atualmente tomou o mais destacado

    da intelectualidade democrtica argentina, atitude que coincide em

    um todo com as resolues do Primeiro Congresso de Escritores

    Brasileiros de So Paulo. Os artistas brasileiros aparecem aqui

    rompendo a necessria unidade que deve ter o movimento democrtico

    intelectual latino-americano. No duvidamos que Portinari, Tarsila,

    Cavalcanti e todos os demais artistas brasileiros ignoram a que fins

    divisionistas fazem servir seus nomes com a exposio de La Plata. Faz

    pouco mais de um ms um grupo de intelectuais argentinos negou-se a

    dar conferncias no Museu Provincial de Belas Artes de La Plata em

    solidariedade com o movimento em favor da normalidade democrtica

    do pas. Com esta exposio faz-se suspeitar, aos desavisados, que osartistas democrticos brasileiros no tm interesse na solidariedade

    com os artistas democrticos argentinos, coisa que no podem imaginar

    nem remotamente aqueles que conheam algo dos altos valors pessoais

    e artsticos dos pintores cujas obras esto expostas oficialmente pelas

    autoridades da provncia de Buenos Aires.H

    of it - less continuous ones perhaps, more scattered, more open to synoptic viewing, yet offered as

    valid pasts ali the same" (BARKAN; BUSH, 1985, p. 370).

    14. A. B. (pseud. Antonio Berni). "Veinte artistas brasileos". Latitud, Buenos Aires, set. 1945.

    Encontrando-se em 1'vlendoza,Rebelo responde a Berni atrav de uma carta aberta publicada por

    "La Palabla" (24 set. 19+5), "Esclarecin~ento sobre um comentrio de 'Vinte artistas brasileiros"';

    39

  • Potncias da imagem

    Para alm das restries individuais, estas questes esto

    afetadas pelos critrios de periodizao do moderno. Com efeito,

    no catlogo da exibio portenha de Vinte artistas brasileiros"

    "A exposio 'Vinte artistas brasileiros' no particular; veio sob os auspcios do Ministrio da

    Educao e do Servio de Cooperao Intelectual do Ministrio de Relaes Exteriores do Brasil,

    obedecendo, portanto, a disposies constantes de tratados culturais entre a Argentina e o Brasil.

    Responde ao convite formulado em julho de 194+pela Direo Geral de Bellas Artes da Provncia

    de Buenos Aires, o primeiro convite que se fuzia aos artistas modernos brasileiros para expor na

    Argentina, no Museu de Bellas Artes de La Plata, cujo diretor, senhor Emilio Pettoruti, incluiu

    entre os atos oficiais do ano de 1945, o incio de uma srie de exposies de artistas do continente,

    com o democrtico propsito de 'aproximar por todos os meios os espritos dos homens representativos

    dos povos, e nada melhor do que um intercmbio de obras de arte para servir-nos em nosso

    objetivo'. No esta exposio um panorama completo da arte moderna brasileira, mas um

    conjunto, como seu ttulo o indica, de vinte valores destacados. Diversos obstculos - por desgraa

    sempre se apresentam em iniciativas desta natureza - impediram ao organizador trazer outros

    valores destacados; por exemplo: Ccero Dias, que se encontrava em algum lugar da Frana em

    guerra; Carlos Scliar, soldado das foras expedicionrias, que lutavam na Itlia; e quanto ao senhor

    Segall, de futo o visitei em So Paulo, quatro meses antes do ltimo prazo para a sada da exposio

    e, oportunamente, poder ser conhecida a cpia fotosttica da carta do pintor, na qual, com sua

    habitual ateno, me informa e lamenta que razes tcnicas impossibilitem sua participao. No

    entanto, esses e outros valiosos artistas no foram esquecidos no livro que, sobre a pintura moderna

    do Brasil, ser lanado em breve pela 'Editorial Poseidn' desta Capital, com um estudo do

    conceituado crtico e professor, Dr. Jorge Romero Brest. Os valores apresentados so vivos e

    combativos. Todos se sentem orgulhosos em terem suas obras expostas a seus colegas argentinos,

    uruguaios e chilenos, conhecendo a necessidade dessa aproximao urgente, artstica, antes de

    tudo, pois ningum ignora que os artistas latino-americanos se desconhecem quase por completo.

    E para este preliminar conhecimento que se pode organizar um efetivo e lgico entendimento,

    baseado no justo valor artstico, poltico e moral de. cada um. Referente s convices ntimas do

    subscrito - sem as quais no lhe haveriam entregue as obras os artistas mais absolutamente

    vanguardistas de seu pas em todos os sentidos - so por demais conhecidas atravs da mensagem

    conferida pela Associao Brasileira de Escritores para a Sociedade Argentina de Escritores e lido

    em reunio especial de amistosa confraternizao, mensagem que foi comentada na imprensa

    portenha. Finalmente, em relao aos citados Princpios proclamados pelo Congresso de Escritores

    Brasileiros, em So Paulo, princpios que a revista 'Latitud' reproduz em forma destacada cinco

    meses depois de sua publicao nos jornais brasileiros, cabe dizer que o subscrito foi eleito

    delegado do Distrito Federal a esse Congresso. N ele foi, alm disso, eleito secretrio da importante

    Comisso de Direitos do Autor e assinou os Princpios Polticos do Congresso em um dos momentos

    mais dificeis da vida pblica brasileira, quando exercia, como ainda exerce, um cargo de comisso

    no Ministrio da Educao, o qual depende diretamente da Presidncia da Repblica."

    -40 -

  • Polticas da amizade e anamorfose do moderno

    (Museu Nacional de Belas Artes, Palais de Glace, 25 de agosto de

    1945), Marques Rebelo escande o modernismo brasileiro em dois

    momentos, 1922 e 1930, quer dizer, em duas aes, o mostrar e o

    resgatar, a Semana de Arte Moderna em So Paulo e o retorno dePortinari ao Brasil:

    o ambiente artstico brasileiro era difcil, e ser artista no Brasil erauma forma de herosmo, pois faltavam todos os elementos

    indispensveis formao do conhecimento e do bom gosto. [ ...] No

    tnhamos seno deplorveis imitaes de escolas de belas-artes e de

    museus; no tnhamos galerias de exposies nem colees particulares

    que estimulassem pelo contato e divulgao das obras, o interesse pelas

    artes. E como tampouco possuamos publicaes especializadas, nos

    faltava orientao crtica. [ ...] Em tal ambiente, o esforo teve que ser

    sempre individual, o que deu lugar a um auto-didatismo coletivo, fonte

    da ignorncia de problemas fundamentais das artes e de seu contedo

    esttico. [ ...] A arte moderna, que surgiu no Brasil em 1922, pelo

    esforo de escritores, trouxe um novo ambiente para as artes, traando-

    lhes tambm um caminho seguro. [ ...] Reuniu o movimento uma

    minoria interessada e sensvel em torno de problemas plsticos comuns

    e ligada ao sentido geral da arte. Estes escritores, msicos, arquitetos,

    e artistas se aproximaram. Aportou assim o modernismo, pela primeira

    vez na histria da arte do Brasil, numa grande inquietude, a percepo

    da necessidade de pesquisas e uma ligao mais ntima entre o artista e

    o povo, o que equivale a dizer que foram os modernistas que

    descobriram, artisticamente, sua terra. [ ...] A volta de Portinari da

    Europa, em 1930, o acontecimento que determina um impulso jamais

    experimentado pela arte brasileira. Exercendo de imediato uma enorme

    influncia nos jovens, combatido violentamente pelo academicismo e

    pela ignorncia indgena, vence as dificuldades em exposies

    sucessivas, afronta a mediocridade e o conservadorismo, respondendo

    com o trabalho a todas as manifestaes gratuitas da opinio. [ ...]

    Portinari exemplifica a dignidade do trabalho artstico. Funda na

    -4] -

  • Potncias da imagem

    Universidade do Distrito Federal uma oficina maneua do

    'Quatrocentos', e, seis meses mais tarde, apresenta ao Brasil um

    numeroso grupo de jovens pintores formados dentro dos mais slidos

    princpios.

    Em resposta implcita s restries de Berni, Rebelo opta pela

    verso paranica, tipicamente vanguardista.

    Apesar de tal xito, no calaram as vozes contrrias. O momento

    mundial era o do nazismo. Tambm no Brasil repercutiu o grito de

    'Arte degenerada'. Todos os artistas modernos foram condenados. A

    escola de Portinari foi fechada. Os Estados Unidos o receberam em

    uma consagrao continental. Como consequncia do estado de coisas,

    as novas vocaes foram sufocadas. E os artistas j feitos, se refugiaram

    no mundo das formas abstratas. [ ...J Felizmente um novo vento soprou

    sobre a face do mundo. E voltaram os artistas brasileiros ao encontro

    das fontes de uma verdade plstica, que ao que aspiram todos os

    artistas do mundo. [ ...J A exposio que agora apresentamos ao Povo

    Argentino (sic), uma seleo representativa das tendncias da arte no

    Brasil. Seu conjunto revela as preocupaes dominantes do campo

    plstico, fruto de um esforo cujo mrito tratar de alcanar as grandes

    formas da arte universal. O que pode ter de incompleta esta mostra

    resultante da dificuldade de comunicao em que vive o artista

    brasileiro; nela, no entanto, deve sentir-se a mensagem espiritual que

    quer ligar aos artistas argentinos e brasileiros15 (REBELO, 1945).

    Como argumenta Derrida em nossa epgrafe de "Polticas da

    amizade", o espao e o tempo virtuais do possvel aspiram presena

    15. Algumas das peas foram cedidas por colecionadores brasileiros, entre eles o escritor Francisco

    Incio Peixoto, do grupo de Cataguases, o crtico Queiroz Lima, editor da revista "Esprito Novo"

    do Rio, a atriz Tania Carrero e o prprio Candido Portinari.

    -42 -

  • Polticas da amizade e anamorfose do moderno

    e fora do desejo, "a mensagem espiritual", porm a mesma presena

    desse processo basta, no para impugn-Io) seno para torn-Io

    possvel, fazendo-o virtual, de uma virtualidade to absoluta que se

    converte, por isso mesmo, em impossvel, ainda em sua presumvel

    realidade. assim que podemos reunir Rebelo e Berni em umapeculiar e cifrada poltica da amizade que os transcende a ambos.

    A mensagem espiritual ou as verdades do simulacro

    A estrela sobe e o romancista desce.

    Oswald de Andrade

    Em 1939 Rebelo publica um romance, "A estrela sobe", a

    histria de uma moa, Leniza Mier, cantora de rdio, predestinada

    desde a infncia a uma vida de infortnios e sacrifcios para manter

    a casa. Recusa a proposta de casamento de Asterio e, atrada pela

    vida que lhe mostram as revistas de espetculos, "Jornal das

    Modinhas", "lbum do Seresteiro", "Lira do Povo", consegue,

    finalmente, ser "artista de rdio", na Metrpolis, claro que passando

    antes pela garonniere de Mrio Alves, um dcimo andar no

    Flamengo "montado com um luxo notoriamente rastaqera", e

    sendo a protege de Dulce, uma cantora com experincia. Abatida

    pela falta de contrato, a farsa dos empresrios das pequenas emissoras

    suburbanas e o abandono de sua me, Leniza precipita-se em solido

    e anonimato de extraviada. Desaparece. A no ser para o narrador,

    que no a abandona: perde-a. No desenlace dessa fico de lgrimas,

    pergunta-se: "Que ser dela, no inevitvel balano da vida, se no

    -43 -

  • Potncias da imagem

    descer do cu uma luz que ilumine o outro lado das suas vidas?"

    Quem responde pergunta do narrado r no nenhum leitor

    brasileiro mas o pintor Antonio Berni, que multiplica as vidas

    possveis de Leniza Mier, em seu quadro de 1945, "Orquestra

    tpica". direita da cena, meio marginal, quase caindo do cenrio,

    em traje amarelo, que se recorta sobressaindo em meio estudada

    correo da orquestra de tango, a cantora, a estrela que sobe. Mas

    esta possvel anamorfose, que rene na fico as criaturas que se

    opem na vida pblica, abisma-se, insacivel, na fronteira

    aparentemente intransponvel da histria. Ela mesma cede, perante

    os poderes da fico, e materializa uma nova estrela ascendente,

    que faz da mensagem espiritual a razo de sua vida:

    Minha vocao artstica me fez conhecer outras paisagens: deixei de

    ver as injustias vulgares de todos os dias e comecei a vislumbrar

    primeiro e a conhecer depois as grandes injustias; e no s as vi na

    fico que representava como tambm na realidade de minha nova

    vida. [ ...J Queria no ver, no me dar conta, no olhar a desgraa, o

    infortnio, a misria; porm quanto mais eu queria esquecer-me, mais

    era rodeada de injustia (PERON, 1951, p. 22).

    Mas se Rebelo impe o filtro dos sentimentos onde Berni

    julga colocar o corte das sensaes, o Estado no hesitar em

    magnificar a pica da mensagem at reduzi-Ia a nada.

    [ ... J o mandatrio, com graves problemas por resolver, precisava de

    uma pessoa de toda sua confiana que soubesse e apreciasse devidamente

    o que so a dor e a necessidade; que chegasse com abnegao at as

    srdidas moradias do subrbio para escutar queixas] resolver

    necessidades, diminuir angstias, colocar esperanas nos coraes

    -44 -

  • Polticas da amizade e anamorfose do moderno

    hirtos, trabalhar por uma vida melhor para a classe humilde. Quem

    poderia reunir qualidades de compaixo, generosidade, dedicao

    infatigvel, amor pelo desvalido e serenidade espiritual para preencher

    este vazio? S havia uma pessoa, uma s (DIEZ GOMES, 1945).

    Leniza Mier, a cantora de amarelo, e Eva Pern: vrios fios,

    a mesma trama. Do lado de Berni, um processo social e nele a

    emergncia de novas formas simblicas que so, alternativamente,

    foras ativas e reativas; uma personagem, sob todas as luzes, dplice,

    marginal e central, relativamente autnoma mas representativa de

    valores que excedem sua individualidade; uma avaliao,por ltimo,

    ilustrada, racional, desse processo histrico. Do lado de Leniza ou

    Eva, situaes especficas em que o social impe-se a partir do

    domstico e se exerce atravs de uma fatalidade inexorvel, deixando

    o indivduo inerte e isolado frente ao antagonismo do mal. No h

    drama, mas tragicidade; no h agonia, mas sofrimento, desiluso

    ou frustrao; no h pedagogia mas espetculo.

    tempo de dar a esta cantora de amarelo mais um de seusnomes: Martnez Estrada. O presidente da Sociedade Argentina

    de Escritores, aproveitando a estadia de Rebelo em Buenos Aires,

    recebe-o na SADE para homenage-Io e, atravs dele, exaltar, o

    debate intelectual provocado pelo congresso paulista desse ano.

    Conforme anota "La Prensa" (10 de maio de 1945), "esse gesto dos

    escritores brasileiros constitua o incio de uma poltica de

    solidariedade americana na qual os escritores, por cima de seus

    interesses particulares, procuravam defender os princpios de

    liberdade e de compreenso mtuas, sem os quais no possvel

    nenhuma cultura". Rebelo, segundo o cronista de "La N acin",

    45-

  • Potncias da imagem

    no deixou, no entanto, de assinalar os obstculos enfrentados "antes

    de organizar-se em defesa de seus interesses gremiais e de liberdade

    de expresso, e como o congresso nacional celebrado h alguns

    meses em So Paulo assinalou um acontecimento auspicioso, no

    s nos anais da literatura do Brasil, como tambm no

    desenvolvimento civil de sua ptria."

    Como interpretar o convite de Martnez Estrada a um escritor

    como Marques Rebelo que, por sua adeso democratizao

    simblica sem radicalismo ideolgico, poderamos qualificar de

    "peronista" r Mais alm de seus temas da decadncia e predies,

    que se renem em comuns interesses nietzscheanos, reinterpretados '

    por Ortega y Gasset, Waldo Frank, Keyserling, Simmel, Freud e

    Spengler16, vai-se desenhando por esses anos uma condio

    excntrica, autenticamente vanguardista, que sai do campo do

    artstico para regressar ao abertamente cultural e poltico. David

    Viias, testemunha deste processo, avalia-o corretamente. Martnez

    Estrada o Lugones dos anos 50. Mas no o tanto pelo

    barroquismo ou pela palavra excntrica, nem mesmo pela decorao

    wagneriana, a partir da qual dirige, como um dos "raros", como

    diria Dario, a pantomima csmica de um espao espectral. Martnez

    Estrada, margem, como a cantora de amarelo, passa a ser a vedete

    de um espetculo condenado pelo arco ideolgico amplssimo:

    16. A filosofia de Nietzsche no tem maior cotizao no mercado dos valores da filosofia acadmica

    e doutoral pela mesma razo que o pathos musical da vida, inspirado por Dionsio, perdeu sentido

    e poder em nossas almas e em nossas construes ciclpicas de um saber de alvenaria (MARTNEZ

    ESTRADA, 1950, p. 192-4).

    -46 -

  • Polticas da amizade e anamorfose do moderno

    Hernndez Arregui em seu "Imperialismo e cultura" e Arturo Jauretche

    em "Os profetas do dio" o atacaram; um com pretenses tericas,

    Jauretche em um estilo mais insolente e agressivo. Dessa maneira se

    corrobora que Martnez Estrada estava no centro da dramtica cultural

    desse momento e tudo se definia por seu pr ou seu contra. Porm, mais

    que insultos ou exaltaes, essas sries desenhavam um espectro de

    autodefinies: se o liberalismo cauteloso e de centro de Csar Fernndez

    Moreno ou o impregnado de incrustaes historicistas de Jos Luis

    Romero o reconheciam, o esquerdismo militante de Pedro Orgambide

    o recuperava de uma maneira tal que o condicionou a obstinar-se em seu

    resgate em vrios trabalhos posteriores. Enquanto as lealdades e o

    discipulado quase imperturbvel corria por conta de Murena - seu

    mximo propagador -, de Rudolfo Kush, de Francisco Solero e de Julio

    Mafud. [ ...] So os anos, disse, que vo de 1955 a 1960; o que no itinerrio

    de Martnez Estrada implica o deslizamento desde as perspectivas

    simblicas de Victoria Ocampo at as de Barletta; mas sobretudo, o

    deslocamento desde o eixo representado por Pern em direo ao de

    Fidel Castro. Poderia-se dizer, por conseguinte, que Martnez Estrada

    passou-se da Argentina para a Amrica Latina, mas tambm 'de Florida

    para Boedo' em funo dos dois apoios de uma nomenclatura tradicional.

    Sobretudo se recordo aqui no mais a polmica isolada com Borges

    (onde o autor de Aleph, por seu lado, acusava Martnez Estrada de fazer

    'o elogio indireto a Pern'), mas a denncia de Martnez Estrada, logo

    que houve a tentativa de invaso norte-americana Baia de Cochinos, na

    qual declarava-se explicitamente contra o grupo representado por Borges,

    Mallea, Bioy Casares e Mujica Linez que tinham aplaudido a poltica

    seguida por Kennedy.

    Por isso, recorrendo, mais uma vez ao raciocnio de Vifas,

    caberia perguntar-se

    [...] se Martnez Estrada, que de sua maneira buscou sempre a verdade

    e vrias vezes teve que optar pela incerteza, realmente no esteve fra de

    -47-

  • Potncias da imagem

    lugar. Ou, melhor ainda: se o intelectual que desde a ponta extrema do

    inconformismo desloca-se cada vez mais para a esquerda (entendida

    esta nomenclatura como o lugar da crtica permanente que no admite

    que a cultura seja um resultado da represso porm da utopia), no

    est, no concreto e quotidi~no, sempre fora de lugar?l? (VINAS, 1991,

    p. 412-423).

    Montevidu

    Mas voltemos exposio. Depois de La Plata, depois de

    Buenos Aires e depois de fazer peregrinao em dezessete museus

    pelas provncias, sempre acompanhada pelo inseparvel Marques

    Rebelo, "Vinte artistas brasileiros" chega a Montevidu. amparada pelo prestgio de seu mentor, Pettoruti, a quem Torres

    Garcia, pouco antes, dedicara palavras definitivas que vale a pena

    resgatar por assinalarem uma linha de fora j insinuada antes: a

    construo de um espao simblico e a importncia da cor como

    mecanismo utilizado para alcan-Io. E, acima de tudo, apontam a

    mesma alegoria j examinada: "a estrela sobe".

    17. Desse esforo interpretativo supranacional derivam as "Diferencias y semejanzas entre 10s

    pases de Amrica Latina" (Caracas: Ayacucho, 1990) e, ainda, a '~nlisis funcional de Ia

    cultura" (Mxico: Digenes, 1971).

    -48 -

  • Emlio Pettoruti - Livro em hranco

    (1946-1947)

    Antonio Berni - Orquestra tpica(Museu Nacional de Belas Artes - Buenos Aires)

  • Cndido Portinari - Mulher

    chorando (Museu Nacional deBelas Artes - Buenos Aires)

    Iber Camargo - Negra sentada(Museu de Belas Artes - La Plata)

  • Santa Rosa - Ponta seca

    (Museu Nacional de BelasArtes - La Plata)

    Alcides Rocha Miranda -

    Auto-retrato (1940)

  • (l .' o~ p :/"7 ~ .,~~ ~ ....

    Percy L ..au - R den eira (Museu de B 1e as Artes L- a Plata)

    Jos Alv

    (Museu Na' es Pedrosa - E hclOnal de BIs ooe as Artes - La Plata)

  • Carlos Leo - Mulheres (Museu de Belas Artes - La Plata)

    Clvis Graciano - Desenho (1944)

  • Burle Marx - Mulheres

    (Museu Nacional de Belas Artes - Buenos Aires)

    Ruben Cossa - Flores (1942)(Museu de Arte de Santa Catarina - Florianpolis)

  • Di Cavalcanti - Po Nosso

    Di Cavalcanti - Carnaval

  • Alberto da Veiga Guignard - Uma famlia na praa(Museu de Belas Artes - Montevidu)

    Alberto da Veiga Guignard - Paquet(Museu de Belas Artes - La Plata)