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  7 Revista UFG / Dezembro 2013 / Ano XIII nº 14 BALÉ GLOB AL. NO CONFIM BRASIL-EUROPA 1 O universal é o que determina seus próprios pontos como sujeitos-pensamento, ao mesmo tempo que ele é a re-coleção virtual destes pontos. Portanto, a dialética central do universal é a do local, como sujeito, e do global, como procedimento innito. Esta dialética é o pensamento mesmo. Alain Badiou. O ito teses sobre o universal 2 Humanismo, etnocentrismo Quais são os valores que podemos chamar de europeus? Via de regra, franco-alemão. Às vezes, inclui-se também o direito romano e o liberalismo britânico, de sorte que, quando invocamos valores europeus, pensamos, nor- malmente, em direitos humanos, democracia, tolerância em relação ao diverso e abertura a outras culturas. Mas, a rigor, trata-se, sem dúvida, de reivindicações por culturas não europeias. Ou por outra, enfatiza-se o caráter europeu de ta is postulados justamente quando a própria ideia de Europa sofre constantes e nem sempre desejáveis mutações. Já em plena crise do capitalismo, em 1930, o Essai sur la France com o 2 BADIOU, Alain. “Oito Teses sobre o Univer sal” in Revista Ethica. Cadernos acadêmicos. Trad. Norman Madarasz. vol. 15, n. 2, 2008, p. 41-50. 1 Raul Antelo (1950) é professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina.

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  • 7Revista UFG / Dezembro 2013 / Ano XIII n 14

    BAL GLOBAL. NO CONFIMBRASIL-EUROPA5DXO$QWHOR1

    O universal o que determina seus prprios pontos como sujeitos-pensamento,

    ao mesmo tempo que ele a re-coleo virtual destes pontos. Portanto,

    a dialtica central do universal a do local, como sujeito, e do global, como

    procedimento in% nito. Esta dialtica o pensamento mesmo.

    Alain Badiou. Oito teses sobre o universal2

    Humanismo, etnocentrismoQuais so os valores que podemos chamar de europeus? Via de regra,

    DUPDVHTXHHOHVFRLQFLGHPFRPDWUDGLomRMXGDLFRFULVWmHRHVFODUHFLPHQWRfranco-alemo. s vezes, inclui-se tambm o direito romano e o liberalismo britnico, de sorte que, quando invocamos valores europeus, pensamos, nor-malmente, em direitos humanos, democracia, tolerncia em relao ao diverso e abertura a outras culturas. Mas, a rigor, trata-se, sem dvida, de reivindicaes XQLYHUVDOLVWDVTXH HPERUD VH DUPHPFRPRHXURSHLDV QmR VmRGHVDFDWDGDVpor culturas no europeias. Ou por outra, enfatiza-se o carter europeu de tais postulados justamente quando a prpria ideia de Europa sofre constantes e nem sempre desejveis mutaes. J em plena crise do capitalismo, em 1930, o URPDQLVWDDOHPmR(UQVW5REHUW&XUWLXVMXVWLFDYDVHXEssai sur la France com o

    2 BADIOU, Alain. Oito Teses sobre o Universal in Revista Ethica. Cadernos acadmicos. Trad. Norman Madarasz. vol. 15, n. 2, 2008, p. 41-50.

    1 Raul Antelo (1950) professor titular de literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina.

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    argumento de tentar a reconstruo do patrimnio comum, a Europa, e assim evitar que nossa civilizao afunde. Pouco depois, em 1932, quando redigia um volume HPKRPHQDJHPD$E\:DUEXUJLiteratura Europeia e Idade Mdia Latina(Europische Literatur und lateinisches Mittelalter,1948), o prprio Curtius compreendia que, para salvar a Europa, era necessrio antes salvar a prpria dimenso euro-atlntica do PpWRGRZDUEXUJXLDQR&RPHIHLWRHPGHPDLRGH$E\:DUEXUJDVVLVWLDDuma dana kachina, a dana da serpente, em Oraibi, o mais antigo e remoto vilarejo KRSLHP7XED&LW\QR$UL]RQD$H[SHULrQFLDHYRFRXOKHLPHGLDWDPHQWHXPDIUDVHda segunda parte do Fausto de Goethe, Es ist ein altes Buch zu blttern; von Harz bis Hellas alles Vettern, em outras palavras, tratava-se de uma histria antiga, a de que, de Harz Hlade, somos todos primos-irmos. No duvidou, portanto em adaptar HVVDPHVPDIUDVHFRPR eDOLomRGHXPDQWLJROLYURRSDUHQWHVFRHQWUH$WHQDVH2UDLEL(VLVWHLQDOWHV%XFK]XEOlWWHUQ$WKHQ2UDLELDOOHV9HWWHUQTXDQGRanos depois, estampou a epgrafe a seu estudo sobre Imagens da regio dos ndios 3XHEORGD$PpULFDGR1RUWH OLGR LQLFLDOPHQWHFRPRFRQIHUrQFLDQR6DQDWyULRKreuzlingen, em 1923, para demonstrar sua prpria lucidez, e assim reconquistar a liberdade, e mais tarde estampado, durante a guerra, em 1939, no Journal of the War-burg InstituteHP/RQGUHVFRPRWtWXOR $OHFWXUHRQ6HUSHQW5LWXDOXPFOiVVLFRTXHYLULDUHFRQJXUDURVHVWXGRVGHDUWHPHPyULDHSROtWLFD

    :DUEXUJSHQVDYDHVVDUHODomRFRPRDOJRGHVFRQWtQXRIUXWRGHFRQVWDQWHPRQ-tagem e remontagem entre tempos dissmeis, uma vez que a ciso entre arte e ORVRDSRUH[HPSORPDQLIHVWDULDDLPSRVVLELOLGDGHGHDFXOWXUDHXURSHLDGRPLQDUo prprio objeto de conhecimento. Essa esquizofrenia do homem ocidental, como a GHQRPLQDYDRSUySULR:DUEXUJFRQVLVWLDQXPDFLVmRHQWUHXPH[WUHPRGHr[WDVHinconsciente e um extremo racional e deliberado, em que nenhum dos dois consegue, de fato, dominar integralmente o outro. O pensamento no elabora sua linguagem e, da mesma forma, a arte no pensa sua prpria potncia. Para diz-lo com as palavras GHXPGLVFtSXORGH:DUEXUJ*LRUJLR$JDPEHQ

    Aby Warburg inaugura aquelas pesquisas que somente a miopia de uma histria da arte psicologizante pde de#nir como cincia da imagem, j que, na verdade, tinham no seu centro o gesto como cristal de memria histrica, o seu enrijecer-se num destino e a tentativa incansvel dos artistas e dos #lsofos (para Warburg, no limite da loucura) para libert-lo disso, atravs de uma polarizao dinmica. Como essas pesquisas atuavam no domnio da imagem, acreditou-se que a imagem fosse

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    tambm o seu objeto. Pelo contrrio, Warburg transformou a imagem (que ainda para Jung fornecer o modelo da esfera metahistrica dos arqutipos) num elemen-to decididamente histrico e dinmico. Nesse sentido, o atlas Mnemosyne, que ele deixou incompleto, com suas cerca de mil fotogra%as, no um imvel repertrio de imagens, mas uma representao em movimento virtual dos gestos da humanidade ocidental, da Grcia clssica ao fascismo (isto , algo que mais prximo a De Jorio3 do que a Panofsky); no interior de cada seo, cada uma das imagens considerada mais como fotogramas de um %lme do que como realidades autnomas.4

    :DUEXUJWHULDGHWHFWDGRFRPHVVHVVHXVHVWXGRVHXURDWOkQWLFRVGDLPDJHPTXHa poltica a esfera dos puros meios, ou seja, da mais absoluta, esquiva e integral gestualidade humana, em uma palavra, da tica e no s da esttica. Essa deciso implicava no moralizar a respeito do objeto em estudo. Vale aqui um exemplo. $GRUQRFRPRVHUHFRUGDUiFRQGHQDYDDDVWURORJLDSRUVHUXPDPHUDVXSHUVWLomRDH[SUHVVmRQHJDWLYDGDRUJDQL]DomRGRWUDEDOKRHPDLVHVSHFLFDPHQWHGDFRP-partimentalizao da cincia.5:DUEXUJSHORFRQWUiULRHPVXDDQiOLVHGRVGHXVHVolmpicos como demnios astrais, feita a partir dos afrescos no Palazzo Schifanoia de Ferrara, inspirados na astrologia clssica, j previra, porm, que Botticelli recebeu da tradio um conjunto de elementos temticos, dentre eles, os astrolgicos, que ele mesmo ps a servio de uma criao fortemente pessoal, cujo estilo dependia de uma renovao sui generis dessa mesma tradio, em particular, da escultura antiga, que lhe desvendara que os deuses gregos danavam a sua ciranda, a modo de Plato nas esferas mais elevadas, hiptese que o levava a reivindicar uma ampliao das

    3 Andrea de Jorio (1769-1851), arquelogo e etngrafo italiano, autor de La mimica degli antichi investigata nel gestire napoletano (1832).

    4 Aby Warburg avvia quelle indagini che solo la miopia di una storia dellarte psicologizzante ha potuto de%nire come scienza dellimmagine, mentre avevano in verit al loro centro il gesto come cristallo di memoria storica, il suo irrigidirsi in un destino e lo strenuo tentativo degli artisti e dei %loso% (per Warburg al limite della follia) per affrancarlo da esso attra-verso una polarizzazione dinamica. Poich queste ricerche si attuavano nel medio delle immagini, si creduto che limmagine fosse anche il loro oggetto. Warburg ha, invece, trasformato limmagine (che ancora per Jung fornir il modello della sfera metastorica degli archetipi) in un elemento decisamente storico e dinamico. In questo senso, latlante Mnemosyne, che egli ha lasciato incompiuto, con le sue circa mille fotogra%e, non un immobile repertorio di immagini, ma una rappresentazione in movimento virtuale dei gesti dellumanit occidentale, dalla Grecia classica al fascismo (cio qualcosa che pi vicino a De Jorio che a Panofsky); allinterno di ogni sezione, le singole immagini vanno considerate piuttosto come fotogrammi di un %lm che come realt autonome. AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza !ne: Note sulla politica. Turim: Bollati Boringhieri, 1996, p. 49-50

    5 ADORNO, Theodor W. As estrelas descem Terra a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstio secundria. Trad. Pedro Rocha de Oliveira. So Paulo: Editora da Unesp, 2008.

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    fronteiras metodolgicas da histria da arte.

    At hoje, categorias de desenvolvimento insu"cientes tm impedido a histria da arte de disponibilizar seu material para uma psicologia histrica da expresso humana ainda inexistente. Com uma postura exa-geradamente materialista ou mstica, nossa jovem disciplina obstrui uma viso geral da histria mundial. Tateante, tenta encontrar entre os esquematismos da histria poltica e as doutrinas do gnio a sua prpria teoria da evoluo. Com minha tentativa de interpre-tao dos afrescos no Palazzo Schiafanoia espero ter demonstrado que s podemos iluminar os grandes processos evolutivos se nos esforarmos para escla-recer detalhadamente um ponto obscuro concreto, e isso, por sua vez, s possvel a partir de uma anlise iconolgica que no se deixa intimidar pelo controle policial das nossas fronteiras e insiste em contemplar a Antiguidade, a Idade Mdia e a Modernidade como pocas inter-relacionadas, investigando as obras de arte autnomas e aplicadas como documentos expressivos igualmente relevantes (...). O grande estilo novo, que nos foi legado pelo gnio artstico da Itlia, estava arraigado na vontade social de libertar a humanidade grega da prtica medieval e latino-oriental. Com essa vontade para a restituio da Antiguidade, o bom europeu deu incio sua luta pela iluminao naquela era de migraes iconogr"cas internacionais, que hoje talvez com um misticismo exagerado chamamos de poca do Renascimento.6

    Criava assim uma cincia sem nome e um saber sem

    6 WARBURG, Aby. A arte italiana e a astrologia internacional no Palazzo Schifa-noia, em Ferrara. A renovao da Antiguidade pag: contribuies cient"co-culturais para a histria do Renascimento europeu. Trad. Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 475-476.

    WHUULWyULRHVSHFtFRVLWXDGRVMXVWDPHQWHQRVH[WUHPRVGD(XURSDHQWUH$WHQDVH2UDLEL3RULVVRFDEHULDDTXLrelembrar que, trs anos antes da experincia hopi de :DUEXUJ7ULVWmRGH$OHQFDU$UDULSH-UGHV-crevia algo semelhante em termos de obnubilao:

    Consiste este fenmeno na transformao por que passavam os colonos atravessando o oceano Atlntico, e na sua posterior adaptao ao meio fsico e ao ambiente primitivo. Basta percorrer as pginas dos cronistas para re-conhecer esta verdade. Portugueses, franceses, espanhis, apenas saltavam no Brasil e internavam-se, perdendo de vista as suas pinaas e caravelas, esqueciam as origens respectivas. Dominados pela rudez do meio, entontecidos pela natureza tropical, abraados com a terra, todos eles se transformavam quase em selvagens; e se um ncleo forte de colonos, renovado por contnuas viagens, no os sustinha na luta, raro era que no acabassem pintan-do o corpo de genipapo e urucum e adotando idias, costumes a at as brutalidades dos indgenas.

    Esse fato, abonado tambm por Hans Staden, Soares 0RUHQR 3DL 3LQD$QKDQJXHUD H R SUySULR$QFKLHWDatestava que o tal procedimento, se no por imposio GRPHLRDRPHQRVSRUDUWHUHQDGD WRUQDUDVHXPDlinguagem local, prpria (uma enunciao local do sujeito, HXPHQXQFLDGRJOREDOHQTXDQWRSURFHGLPHQWRLQQLWRGLULD%DGLRXDSDUWLUGRTXDO$UDULSHFRQFOXtDTXHDmisso do taumaturgo brasileiro, como o chamavam, QDVRUHVWDVGR6XOQmRVHSRGHH[SOLFDUVHQmRSHODVfeitiarias, aceitas ou habilmente copiadas, dos piagas, e com que ele catequizou os seus caboclos.72UD:DOWHUBenjamin, em suas notas para o estudo sobre Paris, capital do sculo XIX europeu, tambm associou a obnubilao

    7 ARARIPE, Jr, T. A. Gregrio de Matos. 2 ed., Paris: Garnier, 1910, p. 37-8.

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    com o eterno retorno e a emergncia do arcaico. O mundo da modernidade, nos alerta, mais de uma vez, um mundo de rigorosa descontinuidade em que o novo j no o antigo que perdura, nem um fragmento do passado que retorna. Trata-se, pelo contrrio, de uma experincia intermitente que ofusca o olhar, uma vez que a intermitncia faz com que o olhar que deitamos em relao ao espao descubra XPDQRYDFRQVWHODomR(HVVDLQWHUPLWrQFLDpDPHGLGDGRULWPRFLQHPDWRJUiFRpor ele mesmo associada ao problema da origem na arte barroca,8 uma arte alis GHH[SDQVmRXOWUDPDULQDHPTXH%HQMDPLQGHWHFWDHQPXPDHQHUJLDHPTXHRpassado uma sombra; uma nvoa que anuncia o futuro e um presente que no passa de uma fasca e que apenas ilumina o instante evasivo.

    $PDUUDPVH DVVLP IRUWHPHQWH XP UHJLPH GH YLVLELOLGDGH H XPD OLQJXDJHPartstica; uma instncia subjetiva e uma ordem jurdica. No por acaso, Oswald de $QGUDGHSURFODPDUDSRXFRDQWHVHPHQmRVHPFHUWDDUURJkQFLDDUULYLVWDTXHsem ns a Europa no teria sequer a sua pobre declarao dos direitos do homem. Mesmo assim, Oswald no podia esconder a relativa pobreza dos assim chamados direitos humanos, contidos na Declarao de 1789, uma vez que eles so apenas direitos negativos ou garantias do indivduo, diante do novo Estado-Nao ps--revolucionrio. Outro tanto caberia pensar em relao aos trabalhos brasileiros de Lvi-Strauss, que serviriam de suporte, entre outros, para a teoria do inconsciente lacaniano, avessa fenomenologia, tal como expressa na famosa palestra sobre o estgio do espelho (1936), para mais tarde serem ainda desconstrudos na prtica de um antroplogo como Eduardo Viveiros de Castro ou mesmo na dos tericos FRQWHPSRUkQHRV$ODLQ%DGLRX4XHQWLQ0HLOODVVRX[TXHSHQVDPRYDORUGRYLYHQWHDSyVDQLWXGHGRKXPDQR6HMDFRPRIRUQRPGDYLGDRPHVPR2VZDOGWHQWDULDrepensar a profunda relao que existe entre direitos humanos, cultura, economia HFomR(PXPWH[WRFRQVHUYDGRQRVDUTXLYRVGD8QLFDPSHUHGLJLGRDOiSLVHP1950, o antropfago observa:

    Um homem de pendores pedaggicos, formado na leitura dos livros que perfumam a primeira Idade Mdia, sai de casa, ao claro sol de um dia til, para endireitar o mundo. E em vez da justeza e da justia, encontra, j instalados nas cidades e pelos caminhos, o lucro, o mercado, a inverdade e a subjugao impune do dbil pelo forte.

    Houve quem dissesse que a cidade criou uma humanidade especial. essa humani-

    8 BENJAMIN, Walter. Paris, capitale du XIX e. sicle. Trad. J. Lacoste. 2 ed. Paris: Les ditions du Cerf, 1993, p. 840.

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    dade especial amparada nas diferenas da economia e do haver que o cavaleiro tardio vai encontrar. Em meio das instituies do patriarcado, o que perdura da dramtica desiluso do velho e anulado lutador ainda o ideal lrico dos trovadores do matriarcado aquela Dulcinia radiosa que presidiu a todo um perodo humano de cinco sculos.

    Como se v, desde os (ns da Alta Idade Mdia duas atitudes se acentuam no correr da vida europia. Uma ainda expressa em sentena contra a acumulao, j no sculo XIII, pela ingenuidade de Santo Toms de Aquino. O dinheiro s existe para ser gasto (Usus pecuniae ipsius) quer dizer : para no ser capitalizado. A outra, pouco depois dessa poca, na mesma bela terra de Itlia, ditada pelo -orentino Alberti, que deixou dos melhores e mais completos documentos sobre o (m da Idade Mdia e o comeo do capitalismo burgus. (...) Fora-se portanto aquela boa ambio, comum aos povos naturais, que, entre outros, os germanos fronteirios do Imprio Romano exprimiam em ter adornos, baixelas e jias em metais e pedras preciosas. Agora j o puro som do capitalismo com o claro fenmeno que se expressa na alta conscincia desse grande -orentino Alberti, posto em relevo pelo estudo clssico de Werner Sombart, sobre o burgus. J o amoedamento que preocupa os espritos e a usura que dele se usufrui, bem longe dos tempos em que se acumulavam tesouros, tendo em vista o metal como metal e no as suas mir(cas possibilidades de transformao em moeda. quando o humanista Erasmo grita que todos obedecem ao dinheiro (Pecuniae obediunt omnia). O egosmo j se exprime neste curioso adgio: Quem no encontra dinheiro na prpria bolsa, muito menos o encontrar na bolsa alheia.9

    2VGRLVSULQFtSLRVGHHFRQRPLPHVHVmRSRUWDQWRRGH6DQWR7RPiVGH$TXLQRo dinheiro s existe para ser gasto ou Usus pecuniae ipsius, e o de Erasmo, que curiosamente d nome s bolsas de estudo europeias, de que todos obedecem ao dinheiro, pecuniae obediunt omnia. sintomtico, porm, que Oswald j detecte HVVHFRQLWRHQWUHGRLVPRGRVGHSHQVDUFomRHSROtWLFDMXVWLoDHHFRQRPLDQDGDmenos do que no Quixote, romance marcado por essa personagem, fantasia, ou mera imaginao, que abandona o lar para endireitar a vida, mas, em vez da justia, encontra, instalados no mundo, o lucro, o mercado, a inverdade e a subjugao

    9 ANDRADE, Oswald. O antropfago in BOAVENTURA, Maria Eugnia (org.). Esttica e poltica. So Paulo: Globo, 1992, p. 267-268.

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    LPSXQHGRGpELOSHORIRUWH/HQGRjpSRFDXPIUDJPHQWRGH0DU[HPTXHVHDUPDque todos os sentidos fsicos e intelectuais foram, pela via da alienao, substitudos pela ideia da propriedade, Oswald anota margem que o haver condiciona o pensar.10 6LPXOWDQHDPHQWHSRUpPXPOLEHUDODQDUTXLVWDIUDQFrVFRPR3DXO9DOpU\HVWXSHIDWRGLDQWHGDH[SHULrQFLDGHGXDVJXHUUDVVHJXLGDVDFRQDJUDUHPRFRQWLQHQWHTXDVHVXVSLUDQGRDOLYLDGRGLUi /kJHGXPRQGHQLFRPPHQFH11

    Lge du monde (est) nie Essa ideia de que OkJHGXPRQGHHVWQLH, e de que, como previra pouco depois

    $OH[DQGHU.RMqYHDJOREDOL]DomRpDULJRUSyVKLVWyULFDWHPSURYRFDGRXPDVpULHGHposies divergentes a respeito do que deveramos entender como multiculturalismo. Um professor italiano de Stanford, Franco Moretti; uma autora francesa, continua-dora das teses de Pierre Bourdieu, Pascale Casanova; e mesmo um comparatista de +DUYDUGFRPR'DYLG'DPURVFKGHQHPDFXOWXUDPXOWLFXOWXUDOGRPRQGHQL como world literature. Todavia um dos mais notveis referentes do marxismo acadmico norte-americano, Fredric Jameson, inclina-se, porm, por uma noo mais ampla de global literatureHDLQGDTXHWHQKDSURSRVWRDSUREOHPiWLFDFDWHJRULDXQLFDGRUDde alegorias nacionaisSDUDWRGDVDVFo}HVGR7HUFHLUR0XQGRFKHJRXPHVPRDDUPDUHPUHODomRjREUDLQRYDGRUDGHXPFLQHDVWDFRPR$QGUHL6RNKXURY12 que ele ilustraria um modernismo tardio, que no seria seno um simples equivalente no-sincrnico da literatura do imediato aps-guerra, com a ressalva, porm, de operar, em Sokhurov e em outros artistas como Manoel de Oliveira, uma profunda dessacralizao ou profanao do valor de culto do alto modernismo, ideia parado-xal que, na verdade, derruba a noo anterior de equivalncia. Outro comparatista GH0LQQHVRWDRSyVJUDPVFLDQR7LPRWK\%UHQQDQWHPDERUGDGRDSUREOHPiWLFDem termos de um cosmopolitanism13 que guardaria uma certa relao com as posi-o}HVGRVVXEDOWHUQLVWDVDWLYRVQRV(VWDGRV8QLGRVGHQWUHHOHV:DOWHU0LJQRORGH

    10 DENIS, Henri. Humanisme et matrialisme dans la pense de Karl Marx. La pense, Paris, n. 14, Paris, set-out 1947, p. 52.

    11 VALRY, Paul. Regards sur le monde actuel in Oeuvres. Ed. Jean Hytier. Paris: Gallimard, 1960, vol. II, p. 923.

    12 Cf. JAMESON, Fredric. History and Elegy in Sokhurov, Critical Inquiry, n. 33, outono 2006, p. 1-12; IDEM. New Literary History after the End of the New. New Literary History, vol. 39, n. 3, vero 2008, p. 375-387.

    13 Cf. BRENNAN, Timothy. At Home in the World: Cosmopolitanism Now.Cambridge: Harvard University Press, 1997; IDEM. Cosmopolitismo e internacionalismo, New Left Review, n. 7, 2001; IDEM. Running and Dodging: The Rhetoric of Doubleness in Contemporary Theory. New Literary History, vol. 41, n. 2, primavera 2010, p. 277-299.

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    Duke.14 Mas h sinais tambm de um transnacionalismo literrio ou cosmopolitismo do pobreHQWUHRVSUDWLFDQWHVGHDOJXPWLSRGHGHVFRQVWUXomRFRPR*D\DWUL6SLYDN15 Hillis Miller16 ou Silviano Santiago.17 No caso do crtico brasileiro, a cena cindida do contemporneo levaria a discriminar, a seu ver, duas polticas com relao ao tempo, a memria involuntria de Proust e o anacronismo deliberado de Borges. Caberia ainda mencionar, neste rpido levantamento das posies reconhecveis quanto ao multiculturalismo contemporneo, a tese de uma literatura diasprica, mais prxima da tradio letrada, em autores como Edward Said ou Homi Bhabha, e outra mais DEHUWD D OLWHUDWXUDVPHQRUHV HP FUtWLFRV FRPR 6WXDUW+DOO RX -RVHQD /XGPHU(PkPELWRHVSHFLFDPHQWHHXURSHXeWLHQQH%DOLEDUDUJXPHQWDHPNous, citoyens dEurope? (2001), que o ingls, considerado como world language, no poderia ser a linguagem da Europa e, em compensao, prope, para essa inter-nao continental, um sistema, em transformao constante, de usos hbridos (usages croiss), que no HVWiPXLWRORQJHGDTXLORTXHDFRPSDUDWLVWDDPHULFDQD(PLO\$SWHUSRUVXDYH]GHQRPLQDXPDQRYDOLWHUDWXUDFRPSDUDGDGHQLGDDSDUWLUGHXPFRQFHLWRplane-trio de crtica, focado, basicamente, em direo translatio disseminada, para a qual, alis, no poucos so os antecedentes latino-americanos que poderamos resumir no conceito de crioulizao ou autofantasmagorizao enunciativa, atravs do qual desconstri-se, nos fatos, o universalismo formal-ideal do eurocentrismo historicista.18

    Todas estas hipteses, conquanto diversas entre si, marcam, porm, de algum modo, DLGHLDFRPSDUWLOKDGDGDLPSRVVLELOLGDGHGHXPWHPSRGLIHUHQFLDO$PXQGLDOL]DomR

    14 Cf. MIGNOLO, Walter. Herencias coloniales y teoras postcoloniales in GONZALEZ, Beatriz (ed.). Cultura y Tercer Mundo. 1. Cambios en el saber acadmico. Caracas: Nueva Sociedad, 1996; IDEM. Gopolitique de la connaissance, colo-nialit du pouvoir et diffrence coloniale. Multitudes, Paris, set. 2001, p. 56-71; IDEM. Posoccidentalismo: las epistemologas fronterizas y el dilema de los estudios (latinoamericanos) de rea in SANCHEZ PRADO, Ignacio. Amrica latina; giro ptico. Puebla: Universidad de las Amricas, 2006, p.191-217.

    15 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. An Aesthetic Education in the Era of Globalization. Cambridge: Harvard, 2012; IDEM e DAMROSCH, David. Comparative Literature/World Literature: A Discussion with Gayatri Chakravorty Spivak and David Damrosch. Comparative Literature Studies, vol. 48, n. 4, 2011, p. 455-485.

    16 MILLER, J. Hillis. How To (Un)Globe the Earth in Four Easy Lessons. SubStance, vol. 41, n. 1, Issue 127, p. 15-29.

    17 SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano in Uma literatura nos trpicos. So Paulo, Perspectiva, 1978, p. 11-28; IDEM. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005; IDEM. Ora (Direis) Puxar Conversa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.

    18 APTER, Emily. The translation zone. A new comparative literature. Princeton: Princeton University Press, 2006, p.10-11; IDEM. Untranslatables: A World System. New Literary History, vol. 39, n. 3, vero 2008, p. 581-598. Um exemplo disso: HANSSEN, Jens. Kafka and Arabs. Critical Inquiry, vol. 39, n. 1, outono 2012, p. 167-197.

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    como se sabe, homogeneiza tempo e espao e, muitas vezes, em sua crtica, redun-damos no problema de pensar um tempo, simultneamente, marginal e subalterno, mas tambm distante e no-integrado. Portanto, gostaria de enfatizar a problemtica do anacronismo como um peculiar campo de tenses temporais, onde, em ltima instncia, se conformam as novas identidades e valores da cena contempornea. Como sabemos, o problema do anacronismo , em grande parte, suscitado, na cultura ps-autonmica, pelo imperativo da imagem.19 No podemos desconhecer, nesse sentido, os trabalhos seminais de Georges Didi-Huberman,20 quem tem analisado, em suas ltimas obras, uma presena fantasmtica, apolneo-dionisaca, justamente DSDUWLUGRVSLRQHLURVSURMHWRVKLVWyULFRDUWtVWLFRVGH$E\:DUEXUJ1HVVHVHQWLGRa frmula expressiva ou Pathosformel,como frmula atemporal de representao de experincias genricas da humanidade, um conceito extremamente relevante, que se alimenta tanto das contribuies da psicanlise, quanto do mtodo histrico de Benjamin. Um dos mais eruditos especialistas latino-americanos nessa questo, Jos (PLOLR%XUXF~DGHQHWDLVIyUPXODVFRPRXPFRQJORPHUDGRGHIRUPDVUHSUHVHQ-WDWLYDVHVLJQLFDQWHVKLVWRULFDPHQWHGHWHUPLQDGRQRPRPHQWRGHVXDSULPHLUDsntese, que refora a compreenso do sentido do representado mediante a induo de um campo afetivo, no qual se desenvolvem as emoes precisas e bipolares que uma cultura enfatiza como experincia bsica da vida social. Cada Pathosformel se transmitiria, portanto, ao longo do tempo pelas geraes que, progressivamente, constroem um horizonte de civilizao, atravessando etapas de latncia, de recupe-rao, de apropriaes entusiastas e metamorfoses. Em suma, ela uma caracterstica fundamental de todo processo civilizatrio historicamente singular.

    $SDUWLUHVSHFLFDPHQWHGHXPGRVWUDEDOKRVGH:DUEXUJDPathosformel da Ninfa, que mostrou a pungncia dessa frmula como ncleo da experincia humana que GHQHRFDPSRHXURDWOkQWLFRGDVFXOWXUDVGH2FFLGHQWHQDORQJDGXUDomR%XUXF~DGHVWDFDVXDHPHUJrQFLDHPXPDREUDUHFHQWHGH5REHUWR&DODVVR21 que corrobora, DOLiVDVFRQFOXV}HVGH:DUEXUJPDVDHODSRGHUtDPRVDFUHVFHQWDULJXDOPHQWHDGH

    19 ATTRIDGE, Derek. Context, Idioculture, Invention. New Literary History, vol. 42, n. 4, outono 2011, p. 681-699.

    20 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. So Paulo: 34 Letras, 2000; IDEM. Devant limage.Paris: Minuit; IDEM. Ante el tiempo. Historia del arte y anacronismo de las imgenes. Trad. O. Oviedo Funes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2005; IDEM. Limage survivante. Histoire de lart et temps des fantomes seIon Aby Warburg. Pars: Minuit, 2002; IDEM e NOUDELMANN, F. Image, matire: immanence. Rue Descartes, n. 38, Paris, dez 2002, p. 86-99.

    21 Cf. CALASSO, Roberto. La follia che viene dalle Ninfe, Milo: Adelphi, 2005.

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    *LRUJLR$JDPEHQTXHPDSDUWLUGHXPYtGHRGH%LOO9LRODUHFXSHUDWDPEpPDTXHV-WmRGDLPDJHPWDOFRPRGHVHQYROYLGDSRU:DUEXUJPDVFUX]DQGRDSRUpPFRPDVFRQWULEXLo}HVGH*X\'HERUGVREUHDPXQGLDOL]DomRHQWHQGLGDFRPRVRFLHGDGHGRespetculo.22 Quanto ao prprio Buruca, ele no desconhece os usos, digamos assim, an-histricosRXPHVPRDFU{QLFRVGDWHRULDGH:DUEXUJIHLWRVSRUVHXVGLVFtSXORVGDHVFRODLQJOHVDFRPR)ULW]6D[ORX(UZLQ3DQRIVN\23 Mas, a seu ver, a questo que se FRORFDpHVVDFLVmRIXQGDPHQWDOHQWUHGRLVWHPSRVRXGRLVULWPRV$HVVHUHVSHLWRcabe lembrar a anlise do antroplogo Boaventura de Sousa Santos, para quem o %UDVLOFRQWHPSRUkQHRWHQWDFRQLWLYDPHQWHLQWHJUDUWUrVWHPSRUDOLGDGHV

    A primeira a narrativa da excluso social (um dos pases mais desiguais do mundo), das oligarquias latifundirias, do caciquismo violento, de elites polticas restritas e racistas, uma narrativa que remonta colnia e se tem reproduzido sobre formas sempre mutantes at hoje. A segunda narrativa a da reivindicao da democracia participativa que remonta aos ltimos 25 anos e teve os seus pontos mais altos no processo constituinte que conduziu Constituio de 1988, nos oramentos participativos sobre polticas urbanas em centenas de municpios, no impeachment

    22 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Ninfe. Turim: Bollati Boringhieri, 2007. J em um ensaio de 1975, Aby Warburg e la scienza senza nome (hoje includo em La potenza del pensiero: saggi e conferenze. Vicenza: Neri Pozza, 2005),

    Agamben raciocinava que o bom deus que, segundo seu clebre ditado, se esconde nos detalhes, no era para Warburg um deus tutelar da histria da arte, mas o demnio obscuro de uma cincia inominada da qual comeamos, s hoje, a entrever os traos. Em todo caso, como relembra o prprio Agamben, Warburg era consciente de que a cultura europeia to somente o resultado de tendncias con/ituosas, esquizofrnicas mesmo, um processo no qual, no que concerne a essas tentativas astrolgicas de orientao, ns no devemos procurar nem amigos nem inimigos, mas a rigor, sintomas de um movimento de oscilao pendular e bipolar constante, que vai da prtica mgico-religiosa contemplao matemtica, e vice-versa.

    23 Porque as que acabamos de chamar formas representativas e signi;cantes, vetores de uma constelao emocional, so as intermedirias necessrias em todo processo de passagem ou transferncia entre as esferas do racional-tecnolgico e o mgico que, segundo a teoria histrica da cultura de Aby Warburg (replicada neste sentido pela teoria antropolgica geral de Bronislaw Malinowski), o prottipo de qualquer prtica de permanncia ou de mudana cultural. Pode-se dizer que a histria de uma civilizao, segundo Warburg, poderia se descrever quase exclusivamente nos termos dos con/itos, conciliaes, coexistncias e combates entre a ratio da iluminao cient;ca, associada ao domnio tcnico da natureza, e a compreenso analgica que nos conduz a acreditar em uma unidade mgica e consoladora do mundo, muito alm do princpio de no contradio. As Pathosformeln, levadas plenitude de sua intensidade signi;cante e emocional no plano da esttica, seriam ento os elos que, mesmo nos momentos de luta mais encarniada entre os homens tecnolgicos e os homens mgicos (...) ou ento nos momentos de derrubada dos sistemas racionais que provocam as grandes crises da economia e da sociedade, salvam e fazem possvel a comunicao mnima entre o logos e as analogias emocionais, a relao que preserva a unidade e a continuidade da vida humana ou da cultura. BURUCUA, Jos Emilio. Historia y ambivalencia. Ensayos sobre arte. Buenos Aires: Biblos, 2006, p. 12-3.

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    do presidente Collor de Mello em 1992, na criao de conselhos de cidados nas principais reas de pol-ticas pblicas especialmente na sade e educao aos diferentes nveis da ao estatal (municipal, estadual e federal). A terceira narrativa tem apenas dez anos de idade e diz respeito s vastas polticas de incluso social adotadas pelo presidente Lula da Silva a partir de 2003 e que levaram a uma signi'cativa reduo da pobreza, criao de uma classe mdia com elevado pendor consumista, ao reconhecimento da discriminao racial contra a populao afrodescendente e indgena e s polticas de ao a'rmativa e ampliao do reconhe-cimento de territrios quilombolas e indgenas.

    O que aconteceu desde que a presidente Dilma assumiu funes foi a desacelerao ou mesmo es-tancamento das duas ltimas narrativas. E como em poltica no h vazio, o espao que elas foram deixando de baldio foi sendo aproveitado pela primeira e mais antiga narrativa que ganhou novo vigor sob as novas roupagens do desenvolvimento capitalista a todo o custo, e as novas (e velhas) formas de corrupo. As formas de democracia participativa foram cooptadas, neutralizadas no domnio das grandes infraestruturas e megaprojetos e deixaram de motivar as geraes mais novas, rfs de vida familiar e comunitria in-tegradora, deslumbradas pelo novo consumismo ou obcecadas pelo desejo dele. As polticas de incluso social esgotaram-se e deixaram de corresponder s expectativas de quem se sentia merecedor de mais e melhor. A qualidade de vida urbana piorou em nome dos eventos de prestgio internacional que absorveram os investimentos que deviam melhorar transportes, educao e servios pblicos em geral. O racismo mostrou a sua persistncia no tecido social e nas foras

    policiais. Aumentou o assassinato de lderes indgenas e camponeses, demonizados pelo poder poltico como obstculos ao desenvolvimento apenas por lutarem pelas suas terras e modos de vida, contra o agroneg-cio e os megaprojetos de minerao e hidreltricos.24

    $SDUWLUGHVVHGLDJQyVWLFR6RXVD6DQWRVFRQFOXLTXHpara o processo de transformao ser consistente, necessrio que as duas mais recentes temporalidades (a da democracia participativa e a da incluso social intercultural) deixem de ser um tpico retrico e reto-mem o dinamismo que j tiveram. Caso contrrio, a temporalidade de base que escrever a histria do Brasil contemporneo, apagando a diferena cultural e crimina-lizando aqueles para os quais progresso sem dignidade simples retrocesso simblico.

    Lge du monde ni: elle commence

    enn! De fato, a questo do anacronismo ilumina o esta-

    tuto do presente, desse lento presente do qual fala Hans Ulrich Gumbrecht.25 Trata-se, com efeito, de um tempo cindido em, ao menos, duas velocidades: um regime (territorial), que gera efeitos de sobreimpresso e ambivalncia (extraterritorial) e, portanto, produz mudanas no s na ideia de histria, mas tambm na prpria conscincia histrica. Mas o fenmeno assinala tambm a emergncia de uma nova conscincia tem-poral, onde o anterior (de qualquer poca) est j de certa forma presente e opera, no aqui e agora, com a pungncia do atual. Nesse presente complexo, convivem

    24 SANTOS, Boaventura de Sousa. O preo do progresso. Carta maior, So Paulo, 19 jun. 2013.

    25 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Lento presente: sintomatologa del nuevo tiempo histrico. Madri: Escolar y Mayo, 2010.

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    tanto o apagamento quanto a rgida discriminao de fronteiras, i.e. sua abolio PDVWDPEpPSDUDGR[DOPHQWHVHXUHIRUoR/XGPHUGHQHHVVHSUHVHQWHFRPRXPregime local de carter global, sem exterior a si prprio, o que parece dominar o imaginrio pblico atual, j que no s produz presena, mas, simultaneamente, permite tambm pensar a diferena.26

    0DVYROWHPRVHQWmRDRGLDJQyVWLFRGH9DOpU\ /kJHGXPRQGHQLFRPPHQFHEle diz que algo termina, mas diz tambm que algo comea. Vamos pensar no que comea. Um dos tericos que mais tem colaborado no sentido de desontologizar a verdade da autonomia letrada, atravs da urgncia da imagem, o que implica um aprofundamento do conceito de direitos humanos, porque inclui memria e justia nesse rol, o j citado Georges Didi-Huberman. Em sua exposio Atlas. Como car-regar o mundo nas costas?, ele resgata o conceito de imaginao (fantasia), elaborado SRU*R\D HQTXDQWR D (VSDQKD VRIULD DV LQYDV}HV QDSROH{QLFDV e D SDUWLU GHVWHFRQFHLWRHODERUDGRQDDGYHUVLGDGHPDLVDEVROXWDSRUWDQWRTXH*R\DFRQVWUyLVXDteoria da arte.

    A imaginao seria de algum modo o pharmakon de Goya: ela efetivamente essa linguagem universal que serve para tudo, para o pior e para o melhor, para o pior dos monstra tanto quanto para o melhor dos astra. A imaginao abandonada por si s, isso o pior : produz [ento] monstros impossveis, e deixa proliferar as extravagncias e desacertos de uma sociedade civil nas mos da ignorncia ou do interesse. O que fazer para acometer sua crtica? Censur-la precisamente o que trata de fazer a Inquisio: resulta injusto e inoperante um obscurantismo contra o outro. De todas as formas, antropologicamente falando, ningum poderia suprimir as imagens ou a imaginao, a qual conforma completamente o homem. Consequentemente, ser necessrio ocupar to perigoso terreno e convocar a ima-ginao com a razo, sua falsa inimiga. Em suma, no se revoga a imaginao: temos que carreg-la como Atlas carrega o cu para se transformar em seu especialista por antonomsia e recarreg-la a uma mesa de trabalho ou uma lmina de gravura. Tarefa que se realiza a partir de uma opo razoada, uma combinao que designa j o artifcio (gurativo mais importante como uma montagem de coisas diversas e confusas que, engenhosamente dispostas, permitem que uma imagem pintada ou gravada alcance o universal. Os monstros de Goya nada tm, em absoluto, do

    26 LUDMER, Jose(na. Aqui Amrica Latina. Una especulacin. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010.

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    desabafo pessoal, sentimental ou frvolo que sugeriria uma m leitura da palavra fantasia: so obra de um artista que entendia seu trabalho como uma antropologia do ponto de vista da imagem, ou seja, uma re$exo que toma seu mtodo do seu objeto, a imaginao pensada como ferramenta idnea, tecnicamente elaborada, (loso(camente construda de um autntico conhecimento crtico do corpo e do esprito humanos. Esta , ento, a arte pensada por Goya como uma verdadeira crtica (los(ca do mundo e, de modo particular, dessa sociedade civil qual se refere no Dirio de Madri. Para assumir tamanho desa(o, ser conveniente atuar dialeticamente em duas frentes ao mesmo tempo: por sua atividade crtica, o artis-ta deve fazer justos enquadramentos da realidade que observa e, por tanto, dessa verdade da que deseja dar testemunho; por sua atividade esttica, toma a liberdade, a fantasia, de fazer montagens entre as coisas mais dspares.27

    $SRVLomRYDOHFRPRXPDFHUWRGHFRQWDVGRSUySULR'LGL+XEHUPDQFRPDHVFROD LQJOHVDGRVGLVFtSXORVGH:DUEXUJSRLVHQTXDQWR3DQRIVN\ ID]RGLVFXUVRcrtico repousar nas constantes do comparsR:DUEXUJGHOHX]LDQRGH'LGL+XEHU-PDQHPHVPRHVVH%DXGHODLUHJR\HVFRQLHW]VFKHDQRTXHHOHQRVSURS}HHPAtlas, encontram, na chave do dispars, ou seja, dos desastres e disparates da guerra, o modo GHUHFRQJXUDUDVUHODo}HVHQWUHLPDJHPHKLVWyULD6XUJHDVVLPSRUH[HPSORDpartir dessa operao la Godard, um outro Baudelaire, que j no fenomeno-lgico, como o de Sartre, nem ps-moderno, como o de Jameson. Baudelaire, nos UHOHPEUD'LGL+XEHUPDQLQVLVWHQRFRQVWDQWHSDUDGR[RGDVFRPSRVLo}HVGH*R\Dsempre entregues fantasia dos contrastes, em que o cmico pavoroso; a stira, um espanto; e a face bestial, pura humanidade por antonomsia, a ponto tal de nos SURSRUTXHYHMDPRVQHVVHV IHUYHGRXURVGDVJXUDVGH*R\DDOJRVHPHOKDQWHDrigorosas amostras do caos.28

    Em consequncia, Didi-Huberman trabalha a histria no como um factualismo emprico, seno como uma arqueologia da sensibilidade e, nesse ponto, resgata alis o gesto de uma certa vanguarda, os atlas de Bertold Brecht, Marcel Broodthaers ou *HUKDUG5LFKWHUDVPRQWDJHQVGH(O/LVVLWVN\RX5REHUW5DXVFKHQEHUJDVHVFXOWXUDV

    27 DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas Cmo llevar el mundo a cuestas? Trad. Maria Dolores Aguilera. Madri: Museo Nacional Centro de Arte Reina So!a, 2010, p.89-91. Ver a esse respeito a entrevista concedida a Catherine Millet, Georges Didi--Huberman: atlas : comment remonter le monde. Art Press, n373, dez 2010, p. 48-55 ou a resenha de Juan Antonio Ramrez, Posicionamientos (Cuando las imgenes toman posicin). Revista de libros de la Fundacin Caja Madrid, n. 149, maio, 2009, p. 32.

    28 DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas, op. cit., p. 93.

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    involuntrias de Brassa e Breton. O objetivo , quase mimetizando a lgica de funcionamento das tablets, para as quais mesmo indiferente o funcionamento horizontal ou vertical, desmanchar uma cristalizao do quadro (tableau), como efeito autnomo da ao do artista e, projetando-o na horizontalidade, ver nele apenas uma mesa (table), onde as operaes de montagem do crtico possam fazer tabula rasa de dois princpios cruciais do autonomismo: a unidade visual e a imobilizao temporal$ideia , portanto, recuperar espaos e tempos heterog-neos que no cessam de se encontrar, de se confrontar, de se cruzar, ou at mesmo de se amalgamarem.29 Como se v, justamente o oposto de Franco Moretti, quem continua pensando o atlas em chave vertical.

    1R FDVR GH'LGL+XEHUPDQ SRUpP SDUD DDQoDUuma abordagem ps-autonmica, torna-se imperioso suspender o conceito tradicional de arte, e mesmo o de quadro, sempre formalmente considerados enquanto obra, um efeito quase residual, em que tudo j foi pre-viamente consumado, para nos propor, em compensa-o, o conceito de mesa que, pelo contrrio, seria um dispositivo)RXFDXOW$JDPEHQHPTXHWXGRSRGHDLQGDYLUDFRPHoDUVHPSUH$PHVDpXPcampo operatrio do dspar e do mvel, do heterogneo e do aberto. Seu antecedente epistemolgico, o Bilderatlas warburguiano, graas ao dispositivo de funcionar como mesa de monta-gem VHPSUHPRGLFiYHOSHUPLWLDOKHDRFUtWLFRPXOWLSOL-FDUDQDURXELIXUFDUDVQRo}HVFRQFHUQHQWHVjJUDQGHsobredeterminao das imagens, que a psicanlise tornara irrefutveis, e at mesmo diagnsticas, com o teste de 5RUVFKDFK(PEDUDOKDUHUHSDUWLUDVFDUWDVGHVPRQWDUHremontar a ordem das imagens, numa mesa operatria, a

    29 Cf. HERTBRECHTER, Stefan. Plus dUn: Deconstruction and the Translation of Cultural Studies. Culture Machine,vol. 6, 2004.

    PGHFRQJXUDUDQLGDGHVTXDVHGLYLQDWyULDVFDSD]HVde entreverem o trabalho do tempo no mundo visvel: eis o que Didi-Huberman denomina atlas. O conceito apoia-se, alm do mais, no de uma certa enciclopdia chinesa, a de Borges,30 revisitada por Foucault, para dela extrair os elementos que permitissem postular a episteme ocidental, aquela que regula as relaes entre as palavras e as coisas. Para Didi Huberman, no entanto, a mesa de Borges, tal como o poema de Murilo Mendes TXHOrDDOLDQoDGRV$UQROQLVHJXQGRYDQ(\FN 2TXD-dro, no apostam apenas moldura de uma tela que organizaria per se a quadrcula e a malcia perspectivistas. $QWHVSHORFRQWUiULRHOHVHYRFDPFHUWDVFRPSLODo}HVde desenhos chineses ou de estampas japonesas, como DVGH+RNXVDLTXHEUDQGRRVSDUkPHWURVFODVVLFDWyULRVocidentais. Se, de um lado, esse procedimento arruna o quadro (o tableau de la littrature, em que Derrida, por sua vez, no conseguia cabalmente inserir Mallarm) ou, o que o mesmo, o sistema costumeiro dos saberes, por outra parte, ele tambm libera, satiricamente, um riso capaz de suscitar o mal-estar cultural, uma vez que ele provm de um fundo enigmtico de no-saber: o 5HDOGDKLVWyULD

    2UDHVVDDXWRULGDGHDEDODGDTXH[DMXVWDPHQWHDforma das relaes entre coisas vistas e palavras enun-ciadas, fez do quadro (da obra), um espao para ver o que podemos dizer, mas onde no poderamos dizer nem mesmo ver a distncia entre objetos e linguagem. Essa distncia aquilo de que um Franco Moretti nem GHVFRQD'Dt TXH ORJRQR LQtFLR GHAs palavras e as coisas, Foucault denomine a mesa de Borges como um atlas do impossvel, uma heterotopia que no seno

    30 BORGES, Jorge Luis. El idioma analtico de John Wilkins in Obra Completa. Buenos Aires: Emec, 1974, p. 706-9.

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    DGHVRUGHPGRPXQGRTXH ID]FLQWLODURV IUDJPHQWRVGHXPQ~PHUR LQQLWRGHordens possveis, na dimenso aleatria do heterclito, espao de crise e desvio, caprichosa insero de lugares incompatveis e tempos heterogneos, ativados apenas por dispositivos socialmente separados, mas facilmente penetrveis. So, em suma, mquinas concretas de imaginao, que criam um espao de iluso que denuncia o real como um espao ainda mais ilusrio do que o prprio espao da fantasia mais recalcitrante. Nessa perspectiva de descompartimentalizao, o atlas (borgeano--foucaultiano) de Didi-Huberman funciona como um campo operatrio capaz de pr em prtica, tanto epistmica, quanto esttica, tica e at mesmo politicamente, uma impugnao to mtica quanto real do espao em que se processa nossa imaginao poltica, donde direitos humanos, multiculturalismo e at o prprio gender sairiam FRPSOHWDPHQWHPRGLFDGRV&DEHULDHPVXPDOHPEUDUDHVVHUHVSHLWRDTXDUWDOHLUHIHULGDDRXQLYHUVDOWDOFRPRHQXQFLDGDSRU$ODLQ%DGLRX

    Chamamos enciclopdia o sistema geral dos saberes predicativos internos a uma situao, ou seja, o que todos sabemos sobre a poltica, sobre os sexos, sobre a cultura ou a arte, sobre as tcnicas, e assim por diante. Certas coisas, enunciados, con%guraes, fragmentos discursivos no so decidveis quanto a seu valor a partir da enciclopdia. Tm um valor incerto, (utuante, annimo; constituem a margem da enciclopdia. Trata-se de tudo aquilo que est submetido ao regime do talvez sim, talvez no; do que se pode falar sem %m, sob a regra, ela mesma enciclopdica, da no-deciso.

    Tal , por exemplo, o caso dos indocumentados. Eles no tm os documentos TXHDWHVWDPVXDLGHQWLGDGHHXURSHLDRXUHJXODU$SDODYUD FODQGHVWLQRUHOHPEUDBadiou, designa a incerteza do valor, ou o no-valor do valor. Gente que local, mas no realmente global. Logo, expulsveis, o que quer dizer, expostos possivelmente ao no-valor do valor (operrio) da sua presena, da que um acontecimento seja, fun-damentalmente, aquilo que decide sobre uma zona de indecidibilidade enciclopdica, um exterior da lei, um fora dos direitos humanos, um anacronismo anterior a 1789.31 Dado esse paradoxo, impossvel traar um limite inequvoco para Brasil e Europa. E at mesmo, no tocante aos estudos europeus, traar uma fronteira inequvoca WRUQDVHWDUHIDYm$FXOWXUDD multi-cultura s se torna possvel graas ao conceito de FRQP, segundo o qual a realidade no um plano de consistncia homognea,

    31 DIDI HUBERMAN, Georges. Peuples exposs, peuples gurants. Loeil de lhistoire, 4. Paris: Minuit, 2012.

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    PDVXPH[WUHPRGHDOWDKHWHURJHQHLGDGH XQFRQWHVWRFKHqVLPXOWDQHDPHQWHdoppio, se non molteplice32RXSDUDGL]rORFRP1DQF\singular-plural. 2FRQPBrasilEuropa traa uma reversibilidade total entre positividade e negatividade, entre Factum e FictumHQWUHDQWHVHGHSRLVHQWUHFiHOi2FRQP%UDVLO(XURSDpostula uma origem que no fundamento nem destinao. Ela uma forma de deixarmos acfalas a totalidade, a verdade e a universalidade de todo julgamento. E a Europa vive essa contradio. Julga-se detentora de valores humanistas, mas isso a torna implacvel inimiga de um hipottico anti-humanismo extracomunitrio, esquecendo que foram europeus como Sade, Nietzsche, Flaubert, Dostoivski, Foucault ou Deleuze que ampliaram o conceito do humano at nele incluir os aspectos mais srdidos e abjetos de nossa condio.33

    Georges Bataille , talvez, quem melhor compreendeu que, na cena contempo-rnea, a guerra precipita a biopoltica como administrao da vida, o que exige a mais completa ausncia de sensibilidade. No carter desmesurado e dilacerante da FDWiVWURIHVHPQDOLGDGHpSRVVtYHOUHFRQKHFHUSRUWDQWRDLPHQVLGDGHH[SORVLYDdo tempo, uma vez que com ela se instaura um tempo ps-histrico, que nada mais do que a regresso do homem ao estado de natureza. Como o homem e o humanismo j no podem se expandir no tempo, porque ele exauriu-se, expandem agora o espao, tornado global. No obstante, a existncia universal permanece ilimitada e, por isso mesmo, sem repouso: ela no reclui nem encerra a vida num invlucro impermevel, mas, ao contrrio, abre-a e a relana, inces-VDQWHPHQWHQDLQTXLHWDomRGRLQQLWR

    $JDPEHQDFDWDQGRPDVSRUVXDYH]SDUFLDOPHQWHUHIXWDQGRWDPEpPDOHLWXUDbataillana, postular que um pensamento que queira pensar para alm do hege-lianismo no pode encontrar fundamento, contra a negatividade dialtica e o seu discurso, na experincia da negatividade sem emprego. Ele deve, em vez disso, encontrar uma experincia da linguagem que no suponha mais nenhum funda-mento negativo,34 porm, um carter complexo, o de que o sujeito (a soberania) deve estar l onde no pode estar, ou vice-versa, o de que o sujeito s pode faltar ali mesmo onde deve comparecer, como ilustra a tradio lacaniana. Essa questo

    32 VECCHI, Roberto. Nazioni/nazionalismi in Abbecedario postcoloniale. Macerata: Quodlibet, 2004, p.198.

    33 COLEBROOK, Claire. The Context of Humanism. New Literary History, vol. 42, n. 4, outono 2011, p. 701-718.

    34 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminrio sobre o lugar da negatividade. Trad. H. Burigo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2006, p. 74.

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    acelera e superpe tempos dissmeis, marcando, de resto, a passagem do sistema-mundo ao capitalismo autoritrio.35

    &RLQFLGHQWHPHQWH R OyVRIR DOHPmR%RULV*UR\VSURIHVVRUQD1HZ

  • 24 Revista UFG / Dezembro 2013 / Ano XIII n 14

    RXWURVRVIDWRVLOXVWUDPDFomRGDGRTXHQXQFDH[LVWLXD(XURSDHVyH[LVWLUDPna verdade, os imperialismos nacionais, em mtua concorrncia, o olhar de Paul 9DOpU\QRVDQRVHPDLVUDGLFDOPHQWHDWHRULDGDVHVIHUDVGH3HWHU6ORWHUGLMNem anos mais recentes, concluiriam que a prpria comunidade europeia s se tornou possvel quando todas as naes-membro entraram em situao ps-LPSHULDO(VVDSyVKLVWyULDWHUPLQDOjPDQHLUDGH.RMqYH38 seria um tempo sem passado nem porvir, fundamentalmente bio-poltico e contingente, que funciona como tempo-suplemento, como se a histria ainda tivesse a chance de uma espcie de eplogo ou recapitulao, em que seus fragmentos ainda pudessem ser disponibilizados, numa mesa de montagem, para o valor de uso do impossvel e em que a prpria questo do animal, to relevante no sculo XXI (Derrida, Bhabha, 1DQF\9LUQR$JDPEHQVHULDRUHVWRTXHRLGHDOLVPRKXPDQLVPRUDFLRQDOLVPRnormativismo) ocidental deixa como herana ao pensamento contemporneo, onde os dilaceramentos entre animalidade e humanidade ainda persistem, porm, no mais como dialtica a ser superada, mas como incontornveis aporias em que natureza e cultura tornam-se recorrentemente indecidveis.

    38 Analisando o colonialismo sob perspectiva europeia, Kojve destacava trs questes principais. Em primeiro lugar, que se deveria pensar em um colonialismo no exatamente de apropriao ou extrao, mas de doao ou distribuio; a seguir, que no se deveria apostar em produtos acabados, mas investir na produo local de matrias, para garantir o pleno emprego e, por ltimo, que esse capitalismo doador deveria abranger, prioritariamente, toda a regio mediterrnea, a qual, na longa durao, tem dado acabadas mostras de vitalidade econmica, sem se alastrar por outras regies mais distantes. Contrariando as atuais polticas da troika, Valry tambm centrava sua ateno na bacia mediterrnea, tanto quanto Derrida, em Lautre cap. Ver KOJVE, Alexandre. Perspectiva europea del colonialismo. Trad. Manuel Vela Rodriguez. La Torre del Virrey: Revista de Estudios Culturales. n. 1, Eliana (Valencia) 2006.

    dossi DOSSI RELAES BRASIL-EUROPA . BAL GLOBAL. NO CONFIMBRASIL-EUROPA