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1. ROBSON MICHEL Segue um conto curto que fiz para o meu trabalho final da minha graduação em Design. Meu trabalho era criar o protótipo de uma action figure, mas o personagem teria que ser criado por mim. Então criei um conto de background para o personagem. Sem nomes próprios, apenas um exercício de escrita, como se fosse um capítulo de um livro hipotético de fantasia sobre um monge andarilho. Penso em escrever um livro baseado nesse conto curto, muito pode mudar. Acabei me empolgando com a ideia depois que amigos disseram que eu tinha que continuar escrevendo. Pensei: se o Ivan consegue, porque eu não? (Sacanagem, é brincadeira!) Quem sabe o Ditador não curte? Atenciosamente, Um grão de areia Por R. N. Michel As portas da sala do trono se abriram. Pesadas e lentas, rangendo nas grandes dobradiças com um som grave que ecoou por todo o salão. Vi um maltrapilho em roupas simples e desgastadas de monge, que mais pareciam trapos, entrou. Seus passos eram hesitantes e contidos. Como muitos na sala, eu observava curioso um velho pequeno e curvado, sujo, que tremia a cada passo. Colares e amuletos balançavam a cada batida do seu cajado no chão de mármore polido. O dia que entrava pelas janelas não iluminava o seu rosto, envolto pelo capuz de seu manto. Havia um ar de mistério na figura, embora seu movimento e fisionomia parecessem ainda mais patéticos neste recinto, na presença do próprio imperador. Os gongos soaram, e a porta-voz anunciou o visitante. - Altíssimo, esse é monge andarilho, conhecido como o “Velho Sorriso”. Houve uma pausa e o porta-voz se dirigiu ao monge. Caro monge, histórias chegaram aos ouvidos do grande imperador, o maior de sua dinastia. Contos de um monge que vaga pelas terras do império e além, trazendo risadas e alegria por onde passa. Deveria admitir. Eram relatos divertidos. Um velho decadente, mas de humor aguçado, mais parece um comediante do que um homem sagrado. Cego, velho e frágil, ele cheira à urina e suor. Mas suas palavras debochadas sobre as mazelas da vida aliviam as dores dos enfermos e entretêm os necessitados. Entre suas proezas, se destaca fazer um executor imperial gargalhar e desistir de executar um suspeito de roubo, que na verdade tinha se esquecido de pagar por uma refeição.

AntiCast 167 – Três Páginas

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1. ROBSON MICHEL Segue um conto curto que fiz para o meu trabalho final da minha graduação em Design. Meu trabalho

era criar o protótipo de uma action figure, mas o personagem teria que ser criado por mim. Então criei um conto de background para o personagem. Sem nomes próprios, apenas um exercício de escrita, como se fosse um capítulo de um livro hipotético de fantasia sobre um monge andarilho.

Penso em escrever um livro baseado nesse conto curto, muito pode mudar. Acabei me empolgando com a ideia depois que amigos disseram que eu tinha que continuar escrevendo. Pensei: se o Ivan consegue, porque eu não? (Sacanagem, é brincadeira!) Quem sabe o Ditador não curte?

Atenciosamente,

Um grão de areia

Por R. N. Michel

As portas da sala do trono se abriram. Pesadas e lentas, rangendo nas grandes

dobradiças com um som grave que ecoou por todo o salão. Vi um maltrapilho em roupas

simples e desgastadas de monge, que mais pareciam trapos, entrou. Seus passos eram

hesitantes e contidos. Como muitos na sala, eu observava curioso um velho pequeno e

curvado, sujo, que tremia a cada passo. Colares e amuletos balançavam a cada batida do

seu cajado no chão de mármore polido. O dia que entrava pelas janelas não iluminava o

seu rosto, envolto pelo capuz de seu manto. Havia um ar de mistério na figura, embora

seu movimento e fisionomia parecessem ainda mais patéticos neste recinto, na presença

do próprio imperador.

Os gongos soaram, e a porta-voz anunciou o visitante.

- Altíssimo, esse é monge andarilho, conhecido como o “Velho Sorriso”. Houve uma

pausa e o porta-voz se dirigiu ao monge. Caro monge, histórias chegaram aos ouvidos do

grande imperador, o maior de sua dinastia. Contos de um monge que vaga pelas terras do

império e além, trazendo risadas e alegria por onde passa.

Deveria admitir. Eram relatos divertidos. Um velho decadente, mas de humor

aguçado, mais parece um comediante do que um homem sagrado. Cego, velho e frágil,

ele cheira à urina e suor. Mas suas palavras debochadas sobre as mazelas da vida

aliviam as dores dos enfermos e entretêm os necessitados. Entre suas proezas, se

destaca fazer um executor imperial gargalhar e desistir de executar um suspeito de roubo,

que na verdade tinha se esquecido de pagar por uma refeição.

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- Diga-nos, sorridente ancião, quais os motivos de procurar uma audiência com o

próprio imperador?

Com certeza os rumores tinham seu fundo de verdade, porque o tolo estava

naquele mesmo instante, voltado para a parede e não para o trono. Consegui manter a

postura, segurando um sorriso, enquanto o porta-voz fez uma pausa. Atônito, ele

procurava uma maneira de resolver a situação ridícula na presença solene do imperador.

Imponente, se mantinha impassível no trono, observando a cena. Um maltrapilho cego, e

que aparentemente não ouvia bem porque não distinguia a direção do som, parecia fitar a

parede. Com um sinal, um guarda se aproximou e lhe indicou a direção certa, com um

leve toque no ombro e um aviso discreto. Rumores com fundo de verdade. Pelas feições

do guarda que torcia o nariz, o cheiro deveria ser realmente horrível.

- Perdoe-me pelas minhas condições, altíssimo imperador. Muitas estações

passaram e levaram com elas a minha juventude, me deixando nessa humilde

aparência. Sou muito grato pela sua bondade em me receber. Não pretendo contar

piadas, nem debochar. Não venho entreter, longe disso. Trago um conselho, um alerta.

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2. JULIO BELISÁRIO Olá! Sou o Júlio Belisário, tenho 21 anos, moro em Paraibuna - SP e estudo Design. Ultimamente tenho me dedicado a escrever contos curtos e por isso estou enviando dois exemplares

(cada conto tem o tamanho de uma página). Parabenizo a iniciativa de valorizar os escritores anônimos e espero que esse formato de programa

se repita mais vezes. =) Abraço, Júlio.

Cacofonia Manhã ensolarada.

O celular despertou, com o cabelo bagunçado e um pouco cambaleante ele

levantou, de maneira letárgica, cumpriu as obrigações matinais.

Solidão e solteirice eram sombras crescentes.

A primavera bateu na janela, resolveu respirar um pouco de ar puro.

Uma caminhada com pouco mais de três quilômetros, nos primeiros oitocentos

metros a vida sedentária lhe cobrava os quinze anos procrastinando projetos de

emagrecimento. As duras penas ele seguiu. O cansaço não permitia o movimentar das

pernas. O chão de pedra o acolheu (era tão macio quanto a poltrona da sala).

Após a respiração voltar ao normal, a pequena feira livre no centro da cidade lhe

chamou a atenção.

*****

“A senhora vai querer do que?” “Mãe mãe mãe mãe, eu quero aquele!” “Peraí, deixa

eu vê com o meu marido.” “Para de puxa a minha saia! Eu já falei, que não vô comprar

mais nada!” “Antônio, cê vai querer pastel?” “Por que? Eu prometo que vô cuidar bem

dele!” “Vô sim!” “Sabor?” “Não quero sabe, você falou a mesma coisa semana passada e

não cumpriu, não vô comprar!”“O mesmo do seu!” “Então me vê dois. Calabreza com

queijo e molho de pimenta, capricha, viu?” “Engole o choro, e se continuar com birra, em

casa cê vai ter motivo pra chorar de verdade!” “Algo pra beber?” “Dois caldo de cana do

grande.” “Cê viu o tamanho da saia dela?” “Olha o melão, um é cinco, dois é dez!”

“Minina! Que era aquilo? Pelo jeito tá faltando pano em casa!” “Olha melancia, aproveita

minha senhora, promoção especial quinze a unidade!” “O pior nem é isso, cê viu o jeito

que ela olho pro Claudinei?” “Olha uva fresca” “Vi! Que desqualificada!” “ Olha o tomate,

mais barato cê não vai encontrar!” “Ela que não se meta a besta com meu Clauzinho! Eu

sô especialista em “consertar” sirigaita!” “O abacaxi mais doce da região!”

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*****

O taxista cobrou quinze pela corrida e um e cinquenta por dois cigarros. Deitado na

cama ele ponderou “Dezesseis e cinquenta para ter certeza de que não valia a pena ter

levantado... um gasto desnecessário.”

A numeração do revólver era raspada, não foi encontrada nenhuma carta.

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3. CAMILA MASELLI

A Torre das Punições não tinha janelas. O que não importava, pois ninguém que era

mandado para lá deveria permanecer vivo por muito tempo. No pequeno corredor que

seguia entre a escadaria em caracol e a cela onde Mark se encontrava, estavam

dispostos requintes de tortura que reluziam à luz sinistra das tochas; apetrechos de

mutilação como pinças e alicates gigantes, açoites de ferro, algemas das mais diversas

formas, machados, entre outros objetos que nem mesmo mereceriam um nome. A cela

era mais uma das torturas por si só; o cheiro era uma mistura nauseante de fezes, mijo,

sangue e ratos.

Se não fosse o pensamento em Annabel, Mark já teria enlouquecido muito antes de

sua morte. Fechando os olhos, ele podia ouvir novamente sua risada, sentir seu perfume

doce e observar seus lindos olhos verdes, que o contemplavam com tal admiração que

ele nunca fora capaz de compreender. Quais seriam as torturas reservadas para seu

amor? Como alguém poderia ter a coragem de machucar uma criatura tão bela como ela?

Sem dúvida alguma, esse turbilhão de pensamentos era muito pior que qualquer

parafernalha sádica de ferro.

- Muito bem! Aqui estamos nós de novo, amante de prostituta! Dormiu bem, verme?

– Duncan, o chefe encarregado de sua execução, entrou num rompante que ecoou por

toda a extensão da torre. Atrás dele seguiam mais dois soldados igualmente truculentos,

sujos e com um sorriso medonho no rosto.

- Não vamos usar o machado com ele, é nobre e rápido demais. – disse o segundo

soldado num tom despreocupado, enquanto passeava os olhos pelo corredor como quem

escolhe qual pedaço de carne lhe apetece mais.

Mark sempre soube que sua vida não terminaria de forma natural e serena, mas

precisava ter a esperança de que Annabel, de alguma forma, conseguiria um destino

melhor que o dele, um que fosse digno da princesa que ela era. Sem perceber, começou

a rabiscar na grossa camada de poeira do chão enquanto os brutamontes se

aproximavam. Mark não sabia escrever, mas aqueles traços eram o que para ele

significava “eu te amo”.

~

E se, quando estamos prestes a morrer, realmente vemos a vida passar diante dos

nossos olhos?

Nos dias de sol, os habitantes de Kinross-shire acordavam com a claridade

invadindo as frestas e falhas de seus tetos e janelas. O lugar consistia basicamente de

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um conjunto reduzido de chácaras, pasto e uma floresta de pinheiros e mato rasteiro que

se estendiam até os limites de Loch Leven, lago que comportava, em sua ilha, o

homônimo e modesto Castelo de Loch Leven. O verão era gentil no pequeno condado;

quase todos os dias o céu estava límpido, deixando o verde muito mais vivo e as águas

tão brilhantes que valia a pena abandonar as cobertas.

Mark era uma das crianças camponesas cuja tarefa era alimentar os animais.

Algumas reclamavam por causa do cheiro de estrume, outras começavam guerras de

bosta em vez de limpá-las. Mas Mark não se incomodava de levantar cedo para cuidar

dos porcos, ovelhas e cavalos; se preocupava mais com o galinheiro, onde os galos

bicavam seus pés.