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CURSO BÍBLICO APOSTILA PARA CURSO DE TEOLOGIA SGRADA ESCRITURA – ANTIGO TESTAMENTO 1

ANTIGO TESTAMENTO - APOSTILA

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ANTIGO TESTAMENTO - APOSTILA

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Page 1: ANTIGO TESTAMENTO - APOSTILA

CURSO BÍBLICO

APOSTILA PARA CURSO DE TEOLOGIASGRADA ESCRITURA – ANTIGO

TESTAMENTO

– RIBEIRÃO PRETO SP -

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CAPÍTULO I

COMO LER A BÍBLIA

Não basta ter a Bíblia, é preciso também saber ler, interpretar e viver o livro da Palavra de Deus.

“A interpretação da Bíblia traz conseqüências diretas na relação que homens e mulheres de hoje têm com Deus”.1

Diferentes maneiras de ler a Bíblia deixam as pessoas com diferentes imagens de Deus na cabeça:

Um Deus ameaçador – “Não te postaras diante desses deuses e nãos os servirás, porque eu sou o Senhor, teu Deus, um Deus ciumento, visitando a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração...”2

Um pai que perdoa – “Meu coração se contorce dentro de mim, e ao mesmo tempo a minha compaixão se acende. Não darei curso ao ardor da minha cólera, não tornarei a destruir Efraim, pois sou Deus e não homem, sou santo no meio de ti: não virei com furor”3

Alguns se revoltam contra o Deus da Bíblia, outros se apaixonam e se comprometem com ele.

Muita gente até se afasta da Bíblia ou da Igreja porque não consegue se sentir bem com o tipo de interpretação da Bíblia que lhe foi ensinado.

Outros lêem a Bíblia e se tornam juízes de todo mundo, usando a Palavra de Deus como arma de acusação; outros ficam esperando que Deus resolva tudo por milagre; existem ainda os que se desligam da vida concreta achando que qaunto mais longe do mundo, mais perto se esta de Deus.

Por esses e outros motivos é importante e urgente fazer uma interpretação da Bíblia mais de acordo com as grandes linhas do plano de Deus.

No fundo da questão está o Mistério da Encarnação

Em Jesus, Deus se mistura com a vida da gente e se comunica através do nosso jeito humano de ser, de falar. E não é um jeito humano qualquer: é o jeito de ser de um judeu daquela época. Jesus falava, rezava, trabalhava, e, principalmente, se comunicava com um judeu do seu tempo. Encarnação é isso: tornar-se “carne”, ser gente como a gente, assumir muito concretamente tudo que é humano.

A Bíblia toda foi escrita usando o método da encarnação: Deus, para se comunicar, usou as palavras humanas, o jeito humano de falar; comunicou seu recado com as 1 Interpretação da Bíblia na Igreja – Paulinas – p.62 Êxodo 20,5.3 Oséias 11,8c-9.

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limitações da nossa cultura humana. Nosso jeito de falar às vezes é meio exagerado; usamos comparações, símbolos, tratamos Deus como se ele agisse como nós e tivesse reações iguais as nossas.

“E o Senhor disse a Moisés: ‘Estou vendo esse povo! É na realidade um povo de dura cerviz! E agora deixe-me agir: minha cólera se inflame contra eles’...”4

Deus deixa que a Bíblia seja assim, porque não temos outra maneira de nos comunicar.

Na Bíblia textos que falam do braço, das mãos, das costas de Deus... como se Deus tivesse um corpo igual ao nosso! Outros mostram Deus como um rei sentado num trono; outros ainda aumentam bastante certos fatos para transmitirem o sentimento de que aconteceu alguma coisa muito importante. A Bíblia fala até na vingança de Deus, porque o povo entende Deus a partir do nosso jeito humano de reagir aos fatos da vida.

Você alguma vez já disse a um amigo que chegou atrasado a um encontro: “faz séculos que estou te esperando!” E o amigo entende, não é? Não fica chamando você de mentiroso, sabe que você exagerou só para dizer o quanto se irritou com a espera. A Bíblia não é muito diferente: pode exagerar, contar histórias, usar símbolos para que certos sentimentos, a importância de certos fatos seja percebidos.

Estudos de História, de estilos literários ou de outras ciências tem mostrado que muita coisa na Bíblia não é exatamente o que estávamos acostumados a pensar que fosse. Quando esses estudos começaram, muita gente se assustou, pensando que isso ia acabar com a fé. No entanto, percebemos que estes estudos, são bons, desde que sejam sérios, e podem ajudar a entender melhor a mensagem de Deus:

Pesquisas históricas mostram que os fatos referentes à origem do povo de Deus foram escritos muitos séculos depois;

Descobriu-se que há textos formados com pedaços de outros textos, escritos por gente de idéias e épocas diferentes: isso explica por que o mesmo fato as vezes é contado duas vezes, com detalhes que não combinam ( ver Gn 1 e Gn 2 – sobre a criação – 2 Samuel 24 e Crônicas 21 – sobre o recenseamento)

Os estudos dos estilos literários ajudam a ver que certos textos são poéticos e não devem ser interpretados como verdade científica.

Na Bíblia, o humano e o divino aparecem juntos

A mensagem de Deus “veste as roupas” do jeito humano de falar; é comunicada através dos recursos da cultura do povo e dos sentimentos humanos de quem escreveu. A inspiração do Espírito santo não apaga o lado humano do texto. A Bíblia não tem só orações, bons conselhos, frases edificantes. Nela aparecem os fatos da vida, com tudo que sabemos que a vida tem: heroísmo e violência, generosidade e pecado, sangue, guerra, casos de família, machismo, preconceitos, lealdade e traição, interesses políticos.... A Bíblia nos revela quem é Deus, é verdade! Mas ela revela também quem somos nós: nela aparecem nossas dores e alegrias, nossas virtudes e fraquezas. A Bíblia é um espelho no

4 Êxodo 32, 9

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qual também vemos a nós mesmos; com isso ela nos ajuda a refletir sobre nossas deficiências e capacidades.

Duas atitudes que podem levar a uma falsa idéia de Deus e da Encarnação:1. Dar valor absoluto a todas as palavras da Bíblia;2. ignorar os condicionamentos humanos do texto.

Os fundamentalistas dizem que não tem de interpretar nada. È palavra de Deus, tem que ser aceita como esta.

Estes pensam que, por ser Palavra de Deus, cada pedacinho da Bíblia tem de ser aceito como verdade indiscutível. Ms a Bíblia diz coisas que são apenas reflexos do que o povo sabia, sentia e vivia naquela época:

No livro do Lévítico, o morcego (mamífero) é classificado como ave. Na visão do povo da Bíblia, a Terra era o centro e o sol é que girava em torno da

terra.E assim por diante.... Ninguém está convidado a brigar com o professor de ciência

só porque essas coisas estão na Bíblia. Deus deixou o povo expressar-se de acordo com as teorias daquele tempo. O recado de Deus na Bíblia não se refere a todos esses detalhes. Deus nunca obrigou o povo a dar um passo maior do que as próprias pernas.

O especialista que estuda a Bíblia deve ser fiel à Igreja, trabalhando com competência, para ajudar a própria Igreja a aprofundar sua compreensão da Palavra. O texto da Bíblia não muda, mas certamente pode e deve mudar a nossa maneira de entender o que lá esta escrito. Isso não deve ser motivo de escândalo.

A morte dos inimigos é a vitória de Deus. Vivendo numa cultura violenta, o povo achava que era isso mesmo que Deus queria. Compreendia Deus através dos sentimentos que experimentavam na vida. Alias, ainda hoje, muita gente ainda acha que Deus deve mandar desgraças a seus inimigos. Afinal, também nos vivemos numa sociedade bem violenta.

Mas sentimos que não teria cabimento achar que Deus quer a destruição dos seres humanos. Nós, que somos Igreja, temos que fazer progresso na nossa maneira de ler a Bíblia.

CAPÍTULO II

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MÉTODOS E ABORDAGENS

O documento da Pontifícia Comissão bíblia faz uma distinção clara entre métodos e abordagens.

Abordagem é o lugar por onde a pessoa entra na Bíblia. È uma preocupação definida, que leva a pessoa a procurar aquele tema ou aquele ponto de vista dentro do texto. Ex: a abordagem feminista, doutrinal, etc. Se procuro na Bíblia afirmações ou situações que mostrem que doutrina ou ensinamento se encontra neste ou naquele trecho, ou se procuro um tema determinado como a vida depois da morte, faço uma abordagem doutrinal. Se vou procurar tudo o que se refere à mulher e ao feminino, faço uma abordagem feminista da Bíblia. A mulher ou a doutrina são lados diferentes por onde se aborda a Bíblia.

Abordagens existem muitas. Todas válidas e, muitas vezes, preciosas. Basta, que quem procura esta ou aquela abordagem tenha consciência de que a abordagem é limitada. Se procuro só o que se refere a mulher ou à doutrina, ou ao social, ao político, ao econômico etc., encontrarei muita coisa interessante, mas deixarei de ver muitas outras coisas. Se focalizo um lado, vejo bem o que está ali, mas o restante fica no escuro. Primeiro, então, ter consciência do próprio limite. Ninguém entra na Bíblia por todos os lados. Ninguém vê tudo o que ali esta.

Depois, é indispensável que se use um método sério e correto. Senão, escolhe-se só as frases que servem ao que interessa, tomando-as ao pé da letra. Alguém quer, por exemplo, condenar ou aprovar o culto das imagens. Anota, antão, todas as frases que falam disso na Bíblia. Não se interessa e recusa-se até a perguntar por que aquilo é dito dessa ou daquela forma e, mais ainda, ignora inteiramente outras afirmações em sentido diferente. Chega a ser falta de honestidade.

Por isso, a necessidade dos métodos. Vejamos dois: histórico-critico e de análise literária. Os dois se complementam.

O histórico-crítico procura entender o porquê da conversa, como e para que foi escrito aquele texto.

O de análise literária descobrirá a “malícia” do texto, o sentido duplo, as ironias, o humor daquelas frases.

O histórico-crítico desvendou a história de muitos textos da Bíblia, como foram compostos, que outras tradições ou outros documentos o autor daquele texto utilizou. Para isso comparou muitos textos. Boa parte da Bíblia acabou dividida em fatias assim: esta fatia vem daquela tradição, aquela vem de outra etc.

O de análise literária considera o texto do jeito que está, como ficou na Bíblia, sem se preocupar se é costura ou não de outros textos ou de tradições diferentes. Este é o texto. Descubramos o que ele nos diz!

No final, depois de ter lido os capítulos deste livro, o leitor encontrará um esquema para análise literária e, acompanhando-o, poderá fazer a análise de um trecho narrativo.

Façamos uma pequena experiência dos dois métodos, histórico-crítico e de análise literária. Tomemos o curto episódio da cura da sogra de Pedro nos Evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas.

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Marcos 1,29-31Saíram da sinagoga e foram logo para a casa de Simão e André, junto com Tiago e João. A sogra de Simão estava de cama, com febre e logo eles contaram a Jesus. Jesus foi onde ela estava, segurou sua mão e ajudou-a a se levantar. Então a febre deixou a mulher, e ela começou a servi-los.

Mateus 8, 14-15Jesus foi para a casa de Pedro, e viu a sogra de Pedro deitada, com febre. Então, Jesus tocou a mão dela, e a febre a deixou. Ela se levantou,e começou a servi-los.

Lucas 4,38-39Jesus Saiu da Sinagoga, e foi para a casa de Simão. A sogra de Simão estava com febre alta, e pediram a Jesus em favor dela. Inclinando-se para ela, Jesus ameaçou a febre, e esta deixou a mulher. Então, no mesmo instante, ela se levantou, e começou a servi-los.

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Na comparação (Método histórico-crítico) notará que Marcos é o mais antigo e que os outros dois modificaram alguns detalhes. Mateus mudou até o contexto, isto é, a posição dentro do conjunto do evangelho. Notará as diferenças, ai pode entrar o método de análise literária: ler cada um separadamente e observar a mensagem que cada qual quis passar am cada detalhe, por exemplo, na maneira como Jesus cura a Sogra de Pedro. Observando e meditando bastante, descobrirá mais e mais coisas.

Vamos entender um pouco como é que um método desses estuda a Bíblia. Veja alguns passos desse tipo de pesquisa, feita por gente especializada:

1. Primeiro são estudados os exemplares mais antigos de cada texto, na intenção de descobrir o mais fiel ao original; é que antigamente era tudo copiado a mão e nem sempre quem copiava sabia ler o que estava copiando. Apareceram, assim, cópias diferentes, por vários motivos: distração de quem copiava, perda de alguma parte do texto, alterações feitas de propósito para modificar algum detalhe etc.

2. O pesquisador observa o texto. Pela linguagem, tenta descobrir quando foi escrito: certas palavras e maneiras de falar indicam a época, o local da ação. Você pode reparar isso ainda hoje, nas novelas e filmes que se passam em ambiente antigo ou em diferentes estados do Brasil. Pelo jeito de falar você sabe que não é uma história do seu tempo nem de sua cidade.

3. O estilo de escrever também pode mostrar que dois textos não são do mesmo autor. Cada pessoa em seu jeito, escolhe certas palavras, gosta de certo tipo de argumentação. É por isso que nós somos capazes de saber quem escreveu certas coisas, mesmo quando a pessoa não assina. Assim como você reconhece a voz e a maneira de falar dos seus amigos e até dos artistas do rádio e da TV, os estudiosos descobrem no texto bíblico o jeitinho que cada autor tem de se comunicar. Quando no mesmo texto aparecem estilos diferentes é muito provável que haja ali mistura de trechos, escritos por pessoas diferentes.

4. Há outra maneira de perceber que o autor de um texto não é quem a gente pensava. É ver que o texto menciona coisas que não existiam no tempo em que ele vivia. Imagine só: apresentam a você uma carta, dizendo que foi escrita pela sua bisavó que já morreu; mas essa carta fala de fatos que aconteceram na semana que acabou de passar. É claro que você logo descobriria que não era possível que sua bisavó fosse a autora da carta!

Com esses e outros recursos se descobriu, por exemplo, quem nem todas as catorze cartas que costumamos chamar de cartas escritas por Paulo, foram escritas por ele. E não devemos ficar escandalizados com isso. Usar o nome de outra pessoa como autor de um texto é uma maneira de dizer que o conteúdo reflete a maneira de pensar da pessoa escolhida, ou foi escrito por inspiração das lições que essa pessoa deixou. Era coisa comum na literatura daquele tempo, sem que as pessoas visem nisso um problema.

Às vezes, dentro do texto, há repetição ou trechos que não combinam com algo que vem antes. Isso pode significar a mistura de trechos escritos por várias pessoas em épocas diferentes. No mesmo capítulo da Bíblia podemos ter frases que foram escritas até em séculos diferentes. Isso acontece muito nos cinco primeiros livros da Bíblia: eles são uma

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mistura de textos escritos em várias épocas e depois reunidos no mesmo conjunto. Nem sempre o que vem antes foi escrito primeiro.

A composição destes livros aconteceram aos poucos e levou muito tempo. É difícil saber quando começaram a ser passadas para a escrita as histórias que vinham sendo transmitidas oralmente de geração em geração. Muitos especialistas no assunto acham que ele é o resultado de quatro tradições escritas.

1. A tradição Javista, em que Deus é tratado com o nome Javé. Acham que ela é o do final do reinado de Salomão, pelo ano 950 a.C.

2. A tradição eloísta, que trata Deus com o nome de Eloim. Ela registra a memória conservada pelas tribos do Norte, depois da divisão de Israel em Reino do Sul (Judá) e Reino do Norte (Israel). Foi escrita uns 100 anos depois da primeira, por volta de 850 a.C.

3. A tradição deuteronomista, que é da época de rei Josias, lá pelo ano 650 a.C., portanto uns 200 anos depois da primeira.

4. A tradição Sacerdotal, durante o cativeiro da Babilônia, um século mais tarde, pelo ano 550 a.C.

Outro exemplo que podemos tomar, é também com referencia aos cinco primeiros livros da Bíblia – Pentateuco – que são chamados, no Novo Testamento, de Lei de Moisés ou simplesmente Moisés. Estes cinco livros fundamentais da constituição do povo hebreu são atribuídos ao principal líder desse povo.

Daí, durante muito tempo se pensou que Moises literalmente tenha escrito os cinco livros. Hoje muitos ainda os chamam de livros de Moises, imaginando que nos quarenta anos de caminhada no deserto, 1.200 a.C, sem computador, sem maquina de escrever, sem caneta esferográfica, sem caneta tinteiro, sem pacotes de sulfite ou de cadernos universitários, com os recursos que poderia ter no deserto, Moisés mesmo escreveu na grande obra.

Se assim é, leia o último capítulo do quinto livro de Moises - Deuteronômio -. Ali se conta a morte e o sepultamento de Moises. Foi ele mesmo quem escreveu?

Os Livros de Moisés, se se calcular desde as mais antigas tradições orais até os últimos retoques de redação, demoraram 700 anos ou mais até ser concluídos. Foram escritos em mutirão, com a colaboração de muitos que viveram e lutaram pela fé, que descobriram coisas novas, que interpretara mais de uma vez e de maneira diferente as antigas tradições, que guardaram e passaram adiante as histórias não contadas de boca em boca, que juntou as tradições ou escritos esparsos e montaram, enfim, os livros como os temos hoje.

Algumas tradições se distanciaram no tempo e chegaram bem perto de Moisés. É o caso do cântico de Maria, que se encontra no capítulo 15 do Êxodo, os mandamentos (Capítulo 20) e o código da aliança (21-23 do Êxodo). Outras partes são bem mais recentes. È o caso da primeira história da criação, primeiro capítulo do Gênesis. É de oitocentos anos depois de Moises.

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Outra tarefa importante é identificar o gênero literário. Não se lê poesia do mesmo jeito que se lê um relatório cientifico.

Se um arqueólogo disser que encontrou uma múmia com olhos de esmeralda, sabemos que havia uma pedra preciosa nas órbitas vazias do morto. Mas se um apaixonado disser que sua amada tem olhos de esmeralda, ninguém vai imaginar que a moça tem uma pedra no lugar dos olhos. E, se o rapaz estiver mesmo apaixonado, ele não esta mentindo: estará apenas inventando um modo de expressar melhor o quanto a mulher amada é preciosa, ou quanto são belos seus olhos. Será um outro tipo de verdade, de certa forma até mais profunda do que a afirmação, tão exatinha, do arqueólogo.

Coisa semelhante acontece, por exemplo, quando a Bíblia diz que a mulher foi feita de uma costela do homem. É claro que não é desse jeito que apareceu a mulher no mundo. O autor usa um jeito especial para falar. Ele não quer comunicar como foi feita a primeira mulher, quer refletir sobre a relação que deve existir no casal humano e sobre a situação de ambos – Homem e Mulher – diante de Deus.

Tudo isso, e muito mais, faz parte de um estudo sério da Bíblia. Hoje em dia não dá mais para fazer catequese de boa qualidade sem uma formação nesta linha.

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CAPITULO III

FUNDAMENTALISMO: UM MODO IMPROPRIO DE LER A BÍBLIA.

Esta é uma abordagem que não admite as conquistas dos estudos mais modernos. Parte do princípio de que a Bíblia, sendo Palavra de Deus, deve ser lida ao pé da letra em todos os seus detalhes.

O fundamentalismo é uma reação de quem se sente inseguro, ameaçado num mundo onde a vida parece perder o sentido. Também pode ser recurso atraente para um povo desamparado de qualquer socorro humano, que gostaria que uma intervenção sobrenatural revolvesse seus problemas. Funciona como um refúgio contra a angustia de ter de estar sempre decidindo, escolhendo, avaliando o que deve ser feito. Para os fundamentalistas, não há mais o que pensar: todas as respostas já estão prontas. Vivendo em grupo, com líderes admirados sem discussão, dá a sensação de amparo diante das incertezas da vida.

Mas para seguir tudo isso, perde-se o desenvolvimento da reflexão, do diálogo, da liberdade e da responsabilidade humana. Alem disso, fica deturpada a imagem de Deus.

Não sabe ler o que há de simbólico ou figurativo na Bíblia. O símbolo é a melhor maneira de falar de coisas que não cabem na nossa linguagem comum; por isso se usa tantos símbolos para falar das coisas de Deus. Pelo mesmo motivo se usam parábolas, linguagem figurada. Quem lê tudo ao pé da letra perde a riqueza da mensagem e pode chegar a conclusões bem absurdas.

Muitos problemas desnecessários são criados por uma interpretação errada da Bíblia. Jovens tem entrado em crise de fé quando progridem nos estudos porque aquilo que aprendem na escola entra em choque com o que ouviram na Igreja. Aí os catequistas culpam os professores, que seriam “gente sem fé”. Mas na maioria das vezes o erro está do outro lado: não são os professores que atrapalham; o que atrapalha é uma catequese que ensinou como Palavra de Deus o que era maneira de falar ou limitação cultural do povo da Bíblia.

Quem faz leitura fundamentalista pensa que com isso está valorizando mais a Palavra e a grandeza de Deus. Não percebe que é exatamente ao contrário. Uma leitura ao pé da letra diminui a riqueza da mensagem, impede que a gente perceba a real profundidade do que Deus quis comunicar.

A leitura fundamentalista, por fim, ignora todas essas reflexões que são fruto sério do trabalho dos especialistas fiéis à Igreja. Por isso, muitas vezes, defende em nome da Igreja posições que não combinam com aquilo que a tradição da fé católica tem conquistado ao longo da sua história.

O costume de ler versículos isolados, abrindo a Bíblia ao acaso em busca de resposta para qualquer problema do momento, também faz parte do jeito fundamentalista de se aproximar das Escrituras. Desse jeito, a Bíblia fica sendo uma espécie de manual de consulta mágica para situações de emergência.

“A abordagem fundamentalista é perigosa, pois é atraente para as pessoas que procuram respostas bíblicas para seus problemas de vida. Ela pode enganá-las

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oferecendo-lhes interpretações piedosas mas ilusórias, em vez de lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas. O fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ele infunde na vida uma falsa certeza, pois confunde inconscientemente as limitações humanas da mensagem bíblica com a substância divina dessa mensagem.”5

Quatro tipos de leitura da Bíblia

Abordagem fundamentalista

Ter fé:- è crer que Deus tudo pode e que pode fazer por nós tudo o quiser.O texto Bíblico:- Caiu do céu! É de Deus e nada mais a perguntar.Critérios:- Vale o que esta escrito! Cada palavra da Bíblia é a palavra de Deus e, como Deus, é infalível e imutável.Objetivo:- A leitura da Bíblia deve levar as pessoas a se converterem, comovendo-se diante do poder de Deus e passando a aceitá-lo em sua vida.

Abordagem Dogmática ou doutrinal:

Ter fé:- É aceitar a Doutrina correta e sem errosO texto Bíblico:- É fonte de revelação como a tradição doutrinal referendada pelo magistério eclesiástico. As duas fontes (S.E. e Magistério) devem se integrar e completar.Critérios:- A tradição iluminada e referendada pelo magistério (sã doutrina) é o critério máximo de interpretação da Bíblia.Objetivo:- Interpreta-se a Bíblia para mostrar como as duas fontes afirmam a mesma doutrina.

Métodos Histórico-crítico e de análise literária.

Ter fé:- É ver Deus presente na História dos homens.O texto Bíblico:- Texto literário popular antigo, formado de velhas tradições orais que tomaram forma escrita e foram agrupadas em unidades maiores.Critérios:- Espírito crítico (científico) para analisar a literatura que temos em mãos e as circunstâncias daquilo que foi escrito.Objetivo:- Estuda-se a história e a literatura para descobrir a fé das comunidades onde se originou cada escrito.

Abordagem pelos 4 lados (social, econômica, político e ideológico) sociológica ou da libertação.

Ter fé:- É olhar a vida de hoje com os olhos de Deus.O texto Bíblico:- Memória subversiva dos pobres animados pela fé. Releitura das tradições populares para responder a todos os (4) lados dos problemas de cada época e situação, numa visão de fé, em conflito com a ideologia dominante. Critérios:- A realidade pelos 4 lados ilumina a Bíblia e é iluminada pela Bíblia.

5 Pontifícia comissão Bíblica. “A interpretação da Bíblia na Igreja”. Paulinas – p.86.

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Objetivo:- Iluminar a nossa vida e a do mundo pelos 4 cantos. A Bíblia é luz e luz deve iluminar não enfeitar simplesmente.

A Bíblia: uma experiência de vida.

“A Bíblia acolheu várias maneiras de interpretar os mesmos acontecimentos ou de pensar os mesmos problemas. Assim ela convida a recusar o simplismo e a estreiteza de espírito.”6

Há muitas pessoas que, em nome da Bíblia, fica com medo de ter o direito de pensar. Outros ficam confusos quando se vêem diante de duas orientações diferentes. Mas a Bíblia é como a vida, às vezes a gente precisa dar soluções diferentes quando a situação muda.

Vejamos: às vezes precisamos dar conselhos diferentes para pessoas diferentes, sobre o mesmo assunto. Imagine uma mãe com dois filhos completamente diferentes em temperamento: um muito acomodado, tímido e sem iniciativa; outro audacioso demais, sempre metido em situações de risco. No mesmo momento esta mãe poderia dizer:

A um Filho ela diria:- Quem não se arrisca, não petisca!

A outro talvez fosse mais adequado:- Quem vive arriscando, um dia se dá mal!

Um conselho não seria menos sábio que o outro, embora oposto. Isso também acontece na Bíblia. Por exemplo, no livro dos Provérbios 26,4 diz:

“Não responda ao insensato conforme a insensatez dele, para que você não se iguale a ele”.7

Mas no versículo seguinte, a conversa é ao contrario:“Responda ao insensato conforme a insensatez dele, para que ele não se considere

sábio”.8

Certamente, dependendo do tipo de insensato, varia o que se deve fazer. Mas quem acha que tudo na Bíblia é absoluto, imutável e definido, vai ficar bem enrolado com essa e outras afirmações contrárias.

6 Interpretação da Bíblia na Igreja – Paulinas – p.1107 Pr 26,48 Pr 26,5

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CAPÍTULO IVA COMPOSIÇÃO DO ANTIGO TESTAMENTO

A Bíblia Católica contem 73 livros sendo 46 livros do Antigo Testamento e 27 do Novo Testamento. A Bíblia Protestante, no entanto só considera canônicos os livros transmitidos em hebraico (ver capítulo anterior), assim ela contem 7 livros a menos. São eles: Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc que pertencem a tradição grega.

A língua do Antigo Testamento

Os livros do Antigo Testamento foram escritos essencialmente em hebraico. Essa língua semítica — aparentada, portanto, com o árabe e o babilônico — é bastante diferente das línguas européias. Para compreender certas notas, talvez seja útil conhecer algumas de suas características, que são as mesmas para o aramaico, língua de alguns textos do Antigo Testamento .

A maior parte das palavras (verbos e substantivos, por exemplo) é formada a partir de "raízes" caracterizadas por consoantes (habitualmente três, o único elemento a ser escrito, ao menos no princípio). As vogais (variáveis) e um certo número de prefixos e sufixos servem para indicar as funções gramaticais: gênero e número dos nomes, modos dos verbos etc. Assim, a raiz brk, que exprime a idéia de bênção, pode tomar formas tais como: barek = abençoar, berak = ele abençoou, beraku = eles abençoaram, yebarek = ele abençoará, baruk = abençoado, beruká = abençoada, beraká = bênção.

Como o contexto é que determina o sentido das palavras, geralmente é fácil constatar na leitura quais vogais devem figurar em cada palavra: por isso, essa escrita abreviada (sem vogais) foi suficiente para o hebraico durante o tempo em que permaneceu uma língua viva. Quando deixou de ser falado pelo povo, foram criados diversos sistemas para a notação das vogais.

Como toda língua, o hebraico possui certo número de expressões idiomáticas: para falar do santo Templo de Deus , o hebraico diz "o Templo de sua santidade"; para descrever alguém que empreende uma viagem, o hebraico diz "levantou-se e foi"; para apresentar-se diante de Deus o hebraico diz "vir ante a face de Deus".

As primeiras traduções gregas da Bíblia transpuseram numerosas expressões desse gênero, bem como outros hebraísmos. Desse modo criaram uma língua particular: o grego bíblico, utilizado no Antigo Testamento grego e no Novo Testamento. A estrutura é quase a mesma do grego que se falava em toda a bacia do Mediterrâneo entre o século II a.C. e o século I de nossa era; mas muitas palavras

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tomaram um sentido especial, e esse idioma utiliza figuras próprias ao hebraico ou aramaico.

O fato de a escrita hebraica anotar de modo preciso apenas as consoantes tornou ambíguos certos textos bíblicos. Por volta do século VII d.C., encontrou-se um meio preciso para anotar as vogais e para indicar a vocalização tradicional das frases e membros de frases, graças a um sistema complexo de pontos e de traços que acompanham o texto consonântico. Assim se fixou por escrito uma tradição de leitura e de exegese desenvolvida no judaísmo no curso do primeiro milênio de nossa era e da qual os targumin (traduções aramaicas da Bíblia hebraica) são as testemunhas fiéis. Resquícios de algumas traduções gregas realizadas sob a influência do rabinato no curso dos dois primeiros séculos (as de Teodocião, de Áquila e de Símaco) permitem remontar ainda mais longe na história desta tradição de exegese.

O sentido do antigo testamento.

1. Para os judeus. Para ler a Bíblia (= "Lei escrita"), o judaísmo elaborou sua própria tradição interpretativa durante o período rabínico clássico, do século II a.C. ao século VIII da nossa era. Primeiramente "Lei oral" ou "tradição dos antigos" (porque transmitida de mestre a discípulo sem a mediação escrita

2. Para os cristãos. O Antigo Testamento só é antigo em relação ao Novo, isto é, a nova aliança instaurada por Jesus Cristo . Mas não se deve exagerar a diferença entre ambos, como se a antiga aliança e a literatura que dela dá testemunho tivessem caducado. Essa visão das coisas, que foi a de Marcião no século II, reaparece periodicamente na história da teologia. Ora, ela atinge mortalmente o próprio Novo Testamento .

a) O Antigo Testamento foi a única Bíblia de Jesus e da Igreja primitiva. Como livro da educação judaica, de algum modo, moldou a alma de Jesus . Este assumiu os valores do AT como fundamentos do seu evangelho : não veio para "ab-rogar" a Lei e os profetas, mas "para cumpri-los". Cumpri-los era primeiramente levá-los a um ponto de perfeição no qual o sentido primitivo dos textos se superasse a si mesmo, para traduzir em sua plenitude o mistério do Reino de Deus . Cumpri-los era também fazer entrar na experiência humana o conteúdo real das promessas que polarizavam a esperança de Israel . Era desvendar o sentido definitivo de uma história ligada a uma educação espiritual, mostrando sua relação com o mistério da salvação , consumado pela cruz e ressurreição de Jesus . Era enfim dar à oração que aí se expressava uma riqueza de conteúdo que ultrapassasse os seus limites provisórios. Sob todos estes aspectos, Jesus cumpriu em sua pessoa as Escrituras que estruturavam a fé de Israel .

b) Por isso a Igreja apostólica encontrou nas Escrituras o ponto de partida necessário para anunciar Jesus Cristo . À luz da Páscoa , ela não somente rememorou os feitos e gestos de Jesus , a fim de compreender o seu sentido profundo; também releu todos os textos antigos que lhe recordavam a história

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preparatória, com suas peripécias contrastantes, suas instituições provisórias, seus sucessos e fracassos, seus pecadores e santos. Não se encontravam esboçados, anunciados e prefigurados já no Primeiro Testamento a mensagem de Jesus , sua missão redentora, a constituição e o mandato da Igreja? Por isso os livros do Novo Testamento , sem perder de vista as lições positivas contidas nos preceitos do Antigo, habitualmente reinterpretam os textos do AT para fazer emergir neles a presença antecipada do Evangelho. Dessa forma o Antigo Testamento pôde tornar-se a Bíblia Cristã, sem nada perder de sua consistência própria, antes adquirindo o estatuto de Escritura "consumada".

c) Tal é a perspectiva na qual a primitiva teologia cristã foi construída, para explicitar o conteúdo do Evangelho e explicar quem é Jesus , Messias judeu e Filho de Deus . As imagens de Adão e de Moisés , de David e do Servo sofredor, do Emanuel e do Filho do Homem vindo sobre as nuvens permitiram elaborar a linguagem fundamental da fé cristã. Certamente a linguagem do Novo Testamento apresenta diversidade notável. Mas, embora não despreze os recursos do universo cultural no qual viviam seus autores e leitores, foi tecido com as palavras e as frases da Escritura, as quais lhe conferem densidade. A relação entre Deus e seu povo, manifestação de sua graça e fidelidade, tomou assim sua verdadeira dimensão: tudo aconteceu a nossos pais "para servir de exemplo" e Deus quis que isso fosse consignado por escrito "para nos instruir, a nós a quem coube o fim dos tempos" (1Cor 10,11).

O Novo Testamento , por conseguinte, pôs as bases de uma leitura cristã do Antigo. Descoberta do Espírito sob o véu da letra. Revelação do sentido definitivo sob invólucros provisórios. Tal trabalho não se realizou, no decorrer dos séculos da história cristã, sem suscitar problemas complexos, que cada época formulou de modo novo. Herdeiros dessa tradição interpretativa, sempre orientada por uma visão de fé, vemos esses problemas se apresentarem a nós. Que pode haver de extraordinário nisso, uma vez que a Palavra de Deus veio até nós no meio de uma história verdadeiramente humana e sob a forma de palavras verdadeiramente humanas? Para além dessa história e desses textos, a Igreja se esforça por perceber a Palavra de Deus da qual é portadora, a fim de lhe responder na "obediência da fé". Por isso é importante que a Escritura inteira se tenha transformado no tesouro comum das Igrejas, divididas por tantos dramas históricos. A obediência comum à única Palavra de Deus não é o índicio mais seguro de uma unidade que se procura construir? É vivendo da mensagem bíblica, do modo como dela viveram os apóstolos , que os cristãos de hoje reencontrarão o caminho da reunificação em Jesus Cristo .

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CAPÍTULO V

O ANTIGO TESTAMENTO

O Antigo Testamento contém 46 livros, que narram as experiências individuais e coletivas do povo de Israel com o seu Deus.

Para um melhor aproveitamento deste estudo, vamos dividi-los em quatro blocos: O Pentateuco, os livros históricos, os livros poéticos e sapienciais e os livros proféticos.

1. Pentateuco: Os cinco primeiros livros do A.T. são chamados “Pentateuco”.É uma palavra Grega que significa “Cinco livros”.Estes livros são também chamados “TORÁ” (tora = lei), porque contêm a Lei da Antiga Aliança.

Os livros do Pentateuco falam da formação do mundo, da humanidade e do povo escolhido por Deus. As histórias e leis ai contidas foram sendo escritas durante cinco séculos, reformulando, adaptando e atualizando tradições mais antigas, que vieram desde os tempos de Moisés.

As histórias mostram como e porque o Deus que se revelou, na sarça ardente, a Moisés, com o nome de Javé, é o único Deus verdadeiro. Foi ele que tirou o povo da escravidão do Egito e o conduziu, através do deserto, até a terra de Canaã, para ai estabelecer uma comunidade que fosse livre e fraterna. Refletindo sobre esse Deus livre e que liberta, os escritores do Pentateuco descobrem que ele é também o Deus dos Patriarcas (Abraão, Isaac e Jacó), o Deus que está presente na humanidade, e aquele que criou tudo o que existe.

As Leis que aparecem nesse primeiro conjunto da Bíblia são Leis muito antigas, e muitas delas parecem estranhas para nós. Mas todas elas giram em torno de um núcleo central fora do qual elas perdem o sentido: são leis dadas por um Deus livre, que quer a vida e a liberdade do homem, tanto na sua vida pessoal como comunitária.

São estes os livros: Gênesis (Gn) – traz uma reflexão sobre as origens do mundo, do

homem, do pecado e do povo de Deus. Êxodo (Ex) = a saída – Reflete sobre a saída do povo hebreu do

Egito sob a liderança de Moises. Quem desconhece a mensagem do Êxodo jamais entenderá o sentido de toda a Bíblia, pois está fundamentada nesse livro a idéia que se tem de Deus, tanto no Antigo como no Novo Testamento. De fato, a mensagem central do Êxodo é a revelação do nome do Deus verdadeiro: JAVÉ. Embora de origem discutida, esse nome no Êxodo está intimamente ligado à libertação do povo hebreu. Javé é o único Deus que ouve o clamor do povo oprimido e o liberta, para estabelecer com ele uma aliança

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e lhe dar leis que transformem as relações entre as pessoas. Daí surge uma comunidade em que são asseguradas vida, liberdade e dignidade. Essa aliança é afirmada em duas formas: princípios de vida (Decálogo) que orientam o povo para um ideal de sociedade, e leis (Código da Aliança) que têm por finalidade conduzir o povo a uma prática desse ideal nos vários contextos históricos. Desse modo, o homem só é capaz de nomear o verdadeiro Deus quando o considera de fato como o libertador de qualquer forma de escravidão, e quando o mesmo homem se põe a serviço da libertação em todos os níveis da própria vida. Somente Javé é digno de adoração. Qualquer outro deus é ídolo, e deve ser rejeitado. Percebemos aí um convite a escolher entre o Deus verdadeiro e os ídolos. Tal escolha é decisiva: ou viver na liberdade, ou cultuar e servir à opressão e exploração.

Levítico (Lv): se chama assim porque traz as leis do culto e as obrigações dos sacerdotes e levitas.

Números (Nm): Este livro se chama Números porque começa com um grande recenseamento do povo hebreu no deserto. Para os hebreus, a saída do Egito foi uma lenta e penosa caminhada em busca de uma terra. Neste livro a caminhada se transforma em majestosa marcha organizada de todo um povo. A organização mostra que dentro do povo de Deus as funções devem ser repartidas, mas com um único objetivo: realizar o projeto de Deus. E a arca da Aliança no centro indica que, nessa caminhada, Deus está sempre no meio do seu povo.

Deuteronômio (Dt): A palavra grega deuteronômio significa segunda Lei. Trata-se de uma reapresentação e adaptação da Lei em vista da vida de Israel na Terra Prometida. A idéia central de todo o livro é que Israel viverá feliz e próspero na Terra se for fiel à aliança com Deus; se for infiel, terá a desgraça e acabará perdendo a Terra. Mais do que nos determos nessa ou naquela parte do livro, encafifados talvez com uma ou outra lei, o importante é perceber o que o conjunto procura transmitir: um projeto de sociedade nova, baseado na fraternidade entre os homens e na partilha de tudo o que Deus concedeu a todos

2. Livros Históricos: São 16 os livros que narram a história do povo e seus líderes, como por exemplo: Josué, Débora, Sansão, Samuel, Rei Davi, Salomão, etc. Poderemos dividir esse conjunto em quatro grupos: 1º - Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis. Formam um relato mais ou menos contínuo, apresentando a história do povo desde a conquista da terra até o exílio na Babilônia. 2º - 1 e 2 Crônicas, Esdras e Neemias. Abarcam o tempo do pós-exílio babilônico até meados do séc. III a.C. A preocupação básica é fundamentar e organizar a comunidade depois do exílio na Babilônia (Esdras e Neemias). 3º - Rute, Tobias, Judite, Ester. Mais do

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que história propriamente dita, esses livros são narrativas. São novelas ou romances. Não refletem acontecimentos históricos. Querem mostrar situações típicas dos judeus na Palestina (Judite) ou fora (Tobias e Ester). No entanto, por trás da ficção, apresentam profunda análise da situação histórica e das possibilidades que os judeus encontraram em determinado contexto. Embora não sejam história propriamente dita, servem de modelo para analisar em profundidade certas situações reais. 4º - 1 e 2 Macabeus. Relatam a resistência heróica de um grupo de judeus diante da dominação estrangeira que ameaça destruir a identidade cultural e religiosa da comunidade judaica.

3. Os Livros Sapienciais ou de Sabedoria: Sapienciais» é o nome dado a cinco livros do Antigo Testamento: Provérbios, Jó, Eclesiastes, Eclesiástico e Sabedoria. A esses são acrescentados dois livros poéticos: Salmos e Cântico dos Cânticos. Esses livros apresentam a sabedoria e a espiritualidade de Israel. Os livros sapienciais mostram que a experiência comum do povo também é lugar da manifestação de Deus e da revelação do seu projeto: Deus fala através da experiência do povo. Estes livros, portanto, trazem o convite para também hoje darmos atenção a nossa vida cotidiana, a fim de aprendermos a articular nossa experiência da vida e da história.

4. A literatura profética pode ser dividida de várias maneiras. A mais tradicional e comum é a divisão em profetas maiores e profetas menores. Não porque uns sejam mais importantes que outros, mas simplesmente pela extensão de seus escritos. Os profetas maiores são quatro: Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel. Os menores são treze: Baruc, Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias. Os livros proféticos testemunham a vida e atividade de homens que possuem fé profunda e vigorosa; homens que procuram levar o povo a um relacionamento sempre renovado e responsável com o Deus que julga e salva. As atividades do profeta variam de acordo com seus ouvintes e com o momento histórico em que ele vive. Cada profeta tem o seu estilo próprio, e pronuncia anúncios e denúncias diante de situações bem determinadas.

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CAPÍTULO VI

O LIVRO DO GÊNESIS.

Gênesis significa nascimento, origem. No livro podemos distinguir três partes:

A primeira parte é composta pelos capítulos 1-11: aqui esta o relato da criação do mundo e do homem e mulher como o ponto mais alto e centro de toda a criação. Feitos à imagem e semelhança de Deus, possuem o dom da criatividade, da Palavra e da liberdade. Encontramos aqui também a história dos homens e do processo humano dominado pelo pecado. Não querendo se submeter a Deus, o homem quebra o relacionamento consigo mesmo (pecado original), com o irmão (Abel e Caim), com a natureza (Dilúvio) e com a comunidade, reduzindo a convivência a uma confusão (Babel)

A segunda parte 12-36, conta a história dos Patriarcas, as raízes do povo que, dentro do mundo, será o portador da aliança entre Deus e a humanidade. O início da história do povo de Deus é marcado por um ato de fé no Deus que promete uma terra e uma descendência. A promessa de Deus cria uma aspiração que vai pouco a pouco se realizando em meio a dificuldades e conflitos. A missão de Israel é anunciar e testemunhar o caminho que leva a humanidade a descobrir e viver o projeto de Deus: ter Deus como único Senhor, conviver com as pessoas na fraternidade, e repartir as coisas criadas, que Deus deu a todos.

A terceira parte 37-50 apresentam a história de José, preparando já o relato do livro do Êxodo, onde se apresenta a mais grandiosa ação de Deus entre os homens: a libertação de um povo da escravidão.

Poderíamos pensar que essas narrativas são história no sentido atual daquilo que um historiador faz. São antes reflexões do povo sobre suas origens e a origem das coisas. Fazendo isso, porém, o povo mantém um olho na sua realidade presente e o outro no passado. O que vê aqui e agora, ele projeta no passado distante e até na origem. Seu interesse não é tanto dar uma explicação científica ou histórica sobre o passado, mas contar o passado para explicar a realidade que se vive no presente.

Embora não seja história propriamente dita, devemos dizer que o seu conteúdo é muito mais profundo, pois busca analisar o que acontece no mais profundo da história e da vida. Dessa forma, o texto procura mostrar os alicerces e estruturas fundamentais dos acontecimentos e realidades que se desenrolam em todo tempo e lugar.

O conteúdo do livro tem aspecto de uma verdadeira “colcha de retalhos”, formada por “causos”, historinhas mais ou menos desenvolvidas, genealogias, etc. Podemos dizer que o livro levou quase mil anos para chegar à forma com que nós o conhecemos hoje. Basicamente houve três momentos importantes na sua história:

- o tempo do rei Salomão (971-931 a.C.)

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- o período entre 800-700 a.C.

- O período do exílio na Babilônia e do pós-exilio (586-400 a.C.)

Dois temas ajudarão o leitor a compreender melhor o livro do Gênesis:

1. O bem e o mal: Tudo o que Deus cria é bom (Gn 1 e 2); o mal entra no mundo através da auto-suficiência do homem (Gn 3), e se desenvolve e cresce até afogar o mundo, salvando-se apenas uma família (Gn 4-11). Com Abraão inicia-se uma etapa em que o bem vai superando o mal até que, por fim e através do próprio mal, Deus realiza o bem, que é a vida (Gn 12-50). 

2. A fraternidade: Através de um fratricídio, a fraternidade é rompida (Gn 4,1-16), desvirtuando o projeto de Deus para os homens. Com isso abrem-se as portas para a vingança sem fim (4,17-24), a dominação (6,1-4), a desconfiança (12,10-20; cf. 20,1-18), a falta de hospitalidade (19,1-29), a concorrência desleal (25,29-34), que gera o medo do irmão (32,4-22), a exploração e a escravidão (31,1-42; 37,12-36). Para essa humanidade ferida Deus repropõe a restauração da fraternidade através de uma comunidade que será bênção para todos os povos (12,1-3). Desse modo, o homem deixará de ser egoísta (13,1-18), aprenderá a perdoar (18,16-33; 33,1-11) e a deixar suas próprias seguranças (22,1-19) para viver de novo a fraternidade (45,1-15). Só assim os oprimidos poderão lutar contra a exploração e opressão, formando uma sociedade justa, na qual haja liberdade e vida para todos (livro do Êxodo).

6.1 – A criação – Gn 1-2.

Encontramos no Gênesis, duas narrativas da criação. Pertencentes a épocas diferentes, refletem situações e problemas diferentes.

A primeira narrativa (Gn 1,1-2,4a) nasceu durante o exílio da Babilônia (586-538 a.C.) e é obra de sacerdotes. Os Judeus corriam o risco de perder a própria identidade, cultura e religião, e assimilar o ambiente estrangeiro.

A narrativa tem a forma de um grande poema, e assim deve ser visto, deixando de lado a comparação com as modernas concepções sobre a origem do universo.

Toda a origem do universo é estruturada no esquema da semana: a criação precede gradativamente e em clima crescente, até chegar ao homem no sexto dia. O principal de tudo é o sétimo dia ou Sábado, quando terminada toda a criação, Deus “descansou de todo o seu trabalho”. Dessa forma, a observância do sábado como lei divina se torna o aspecto que distingue os Judeus dos outros povos: Sábado é o dia divino, porque ele marca o término da criação e o descanso de Deus, que é cultuado pelo homem. Sábado é uma palavra hebraica que quer dizer sétimo. Para os Judeus o

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Sétimo é o dia do descanso. È a tradição deles há séculos. Para o Árabe a sétima feira, o dia do descanso, é a nossa sexta-feira. Para o Cristão, a “sétima feita”, ou o dia do descanso é o nosso Domingo (palavra latina que significa dia do Senhor). Jesus ressuscitou no primeiro dia da semana, por isso, este dia passou a chamar, “dia do Senhor”. Essas diferenças entre Judeus, Árabes e Cristãos dependem da tradição e dos costumes dos povos e das religiões.

A segunda narrativa Gn 2,4b-25 é muito anterior à primeira. Redigida no tempo de Salomão (971-931 a.C.). A primeira começa com a ordenação do mundo a partir da água; esta começa a partir da terra seca ou deserto. Vemos que o foco de interesse é o tema da fertilidade do solo. O próprio homem nasce da terra e é modelado por Deus, como se fosse um oleiro modelando um vaso, só que um vaso vivo, graças ao “sopro de vida” (respiração), de modo a tornar-se um ser vivo. Logo, o primeiro dever do homem é o de aceitar-se a si mesmo na sua condição de criatura perante Deus. Nisto está o início da verdadeira sabedoria.

Os nomes do primeiro casal é Adão e Eva. Entendemos, então, estes dois nomes como nomes próprios do tipo João e Maria. Pensamos num casal determinado. A Bíblia, no entanto, não pensa nestes termos, ela nem sequer pretende falar só do primeiro casal. Ela pretende é falar de todos os homens, representados e caracterizados nos dois protagonistas da narração, chamados simplesmente HOMEM e MULHER, ou seja, ADAM e ISSHA. O nome Eva aparece só no fim, depois do pecado. Eva é um nome simbólico que indica o papel da mulher: ser mãe.

6.2 A Origem do Mal Gn 3

Se perguntamos qual foi o pecado cometido por Adão e Eva, já erramos na formulação, pois Adam e Issha, não são nomes próprios. Também não podemos cometer, outro erro, de querer dar uma resposta vinda de uma simples dedução racionalista, baseada exclusivamente na exegese do Gênesis.

Então, nada se diz sobre o pecado dos primeiros homens? Muito! Tanto quanto se diz sobre o nosso pecado: na raiz de todos os males esta uma ruptura do homem com a sua Origem que é Deus. Nada, porém, se diz sobre a forma na qual se concretizou aquele abuso da liberdade do homem frente a Deus no início da história da humanidade, como também nada se diz sobre a forma na qual hoje se concretiza em nós esse mesmo abuso da nossa liberdade frente a Deus. Hoje o grande pecado do Adam, essa ruptura fundamental com Deus, está encoberto. Os homens não o percebem. Não percebem a raiz que deve ser atacada para se poder abrir uma estrada que leve á Paz do Paraíso.

A serpente simboliza o mal, com o qual o homem se defronta. Nas mitologias do antigo Oriente próximo, a serpente comportava vários simbolismos diferentes. Representava as forças subterrâneas, veneradas pelos cananeus. Era o símbolo da religião Cananéia que afastava o povo do caminho da lei de Deus. Por isso, ela tornou o símbolo da força contrária a Deus, que se concretizou, de maneira diferentes, nas diversas épocas da história. Assim aconteceu que a imagem da serpente, pouco a

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pouco, se desligou do seu simbolismo inicial de ser figura da religião Cananéia para ser simplesmente o símbolo do mal.

Voltando ao tempo de Salomão, período em fora escrito este episódio, podemos identificar melhor a serpente, pois ela resume o problema central da monarquia salomônica. Este rei havia importado do Egito não só a sua esposa, mas também o modelo inteiro da política e economia egípcia. Ora, sabemos que no Egito a serpente era um símbolo da cultura e da diplomacia que sustentavam a política absolutista do Faraó. Este, com uma serpente simbólica envolvendo a cabeça, era julgado possuidor do discernimento absoluto, para governar sem qualquer oposição. Salomão adotou o mesmo modelo político.

Assim, a identificação da serpente leva-nos ao ambiente da idolatria dos cananeus e ao fermento ideológico do absolutismo do regime opressor dos faraós, resumindo assim os ideais absolutistas do governo de Salomão. A serpente é o resumo da pretensão de um discernimento que leva o homem à auto-suficiência, pretendo ocupar o lugar de Deus, para dominar e explorar os outros.

6.3 – O rompimento da fraternidade Gn 4-11.

Encontramos aqui a história do progresso da civilização. Não tomada no sentido de um registro científico dos acontecimentos, mais em uma analise profunda da estrutura da história dominada pela ambigüidade humana, isto é, a pretensão de ocupar o lugar de Deus.

Caim e Abel (Gn 4,1-16) são irmãos e representam a relação social segundo o projeto de Deus: a fraternidade em que cada um protege a vida do outro. Todavia, a auto-suficiência pode introduzir o veneno da rivalidade e da competição que leva a morte. Aqui, trata-se da rivalidade do agricultor (Caim) e do pastor (Abel). Um resquício da idéia antiga de que Deus preferiria vítimas animais, ou então que pastores e agricultores disputavam o uso da terra. O importante, porém, é que rivalidade e competição geram o ódio que leva a morte. A partir disso, o sangue (vida) começa a clamar por justiça. Este clamor é, ao mesmo tempo, acusação e condenação, pois a vida do outro é dom de Deus e o homem não tem direito sobre ela. É a primeira vez na Bíblia que se fala de “pecado”, e num contexto de relação social.

Os descendentes de Caim começam a projetar a civilização e o progresso. A violência, porém continua crescendo em proporção geometria. A ambigüidade continua, pois as criações e invenções servem tanto para a vida, como para a morte (enxada ou espada).

Com tudo isso, parece que a humanidade produz apenas violência, que a leva para a própria destruição. Em meio a tudo isso, aparece o homem religioso, que invoca o nome de Jave (Gn 4,26). Ele pereniza dentro da história um precedente que pode resgatar a ligação com Deus e com o seu projeto original.

6.4 – As catástrofes Históricas, Gn 6-9.

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A narrativa do dilúvio inspira-se nas inundações provocadas pelos grandes rios no Oriente Médio antigo. Na sua base certamente existe um acontecimento real, uma enchente catastrófica (Essa hipótese tem fundamento na arqueologia: em Ur, em Quis e em outros lugares de escavações, na Baixa Mesopotâmia, foram encontrados, sob uma espessa camada de lama argilosa, traços de uma avançada civilização. Mas as datas desses depósitos não concordam em todos os sítios. Compreende-se que tais inundações catastróficas, ampliadas pela imaginação popular, pudessem dar origem à lenda de um dilúvio universal.)9. O autor bíblico, porém, a utiliza com um significado simbólico: o dilúvio é uma volta ao caos primitivo. Segundo o autor o dilúvio é fruto da pretensão dos homens que querem ser como deus, produzindo uma corrupção do projeto original de Deus.

Os justos, porém, sobrevivem à catástrofe. Noé é o modelo desse homem justo, que sabe discernir os acontecimentos, sabe agir em conseqüência, e continua dentro da história. È a partir dele que se constrói um mundo novo e uma nova história, aberta para Deus, para o homem e para o mundo.

O historiador Javista colocara as origens da civilização antes do dilúvio. Ele supõe que essa civilização continue depois, na descendência dos três filhos de Noé: Sem (ancestral dos Israelitas), Cam (declarado Pai de Canaã) e Jafé (ancestral dos filisteus). O universo é, pois, limitado à proporção do território no qual vivem os israelitas, no tempo do autor da narração, e isto permite situar as três populações da “terra prometida” em sua posição particular no plano da salvação.

6.5 – A dispersão dos homens Gn 11

O universo da narração precedente era bem restrito. O episódio da torre de Babel trata, ao contrário, de um problema de proporções maiores: o da ruptura da unidade humana. Por que essa dispersão dos homens em povos, nações, línguas? O quadro das origens insistia na unidade fundamental da raça, solidária em sua vocação antes de o ser no seu destino. O narrador constata aqui que se trata de uma unidade ferida e procura desvendar o mistério desse ferimento.

6.6 – As raízes do povo de Deus – Gn 12-36.

A história dos patriarcas não pode ser lida como histórias isoladas, e sim como narrativas sobre famílias, clãs e tribos. Por trás das personagens individuais temos, na verdade, grupos inteiros, ora em acordo, ora em desacordo entre si.

Mais do que laços de sangue, o que une esses grupos, representados pelos patriarcas, é um objetivo comum. São grupos que se inscrevem nos grandes movimentos arameus em busca de uma terra fértil para se instalar. Seu senso de

9 Grelot, P. Homem quem és? Paulinas, São Paulo, 1980.

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liberdade e autonomia os impedia de se submeterem de modo conformista ao regime das cidades-estado, tanto da Mesopotâmia (Harã) como de Canaã.

Ao contrario de outros grupos já fixados, estes grupos seminômades em busca de terra professavam a fé num Deus diferente, chamado “Deus dos pais”. A característica principal dessa divindade é que ela não ficava localizada num templo, mas acompanhava os movimentos do grupo, como uma espécie de Deus itinerante.

O texto do Dt 26,5-9 pode ser designado como o mais antigo credo do povo de Israel.

“Meu pai era um arameu errante: ele desceu ao Egito e aí residiu com poucas pessoas. Depois tornou-se uma nação grande, forte e numerosa. 6 Os egípcios, porém, nos maltrataram e humilharam, impondo uma dura escravidão sobre nós. 7

Clamamos então a Javé, Deus dos nossos antepassados, e Javé ouviu a nossa voz. Ele viu nossa miséria, nosso sofrimento e nossa opressão. 8 E Javé nos tirou do Egito com mão forte e braço estendido, em meio a grande terror, com sinais e prodígios. 9 E nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra: uma terra onde corre leite e mel”.

6.7.1 – História de Abraão – A fé como abertura histórica

Com Abraão começa a história do povo de Deus como alternativa para o processo histórico narrado em Gn 3-11. Desde o início, Abraão aparece como o homem cuja vida é determinada pela fé. Em que consiste a fé? Em deixar todas as seguranças (terra, parentes, casa do pai) e ir para uma terra que ele não conhece.

“Javé disse a Abrão: «Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei”. 10

O que motiva esse movimento é a promessa de se tornar um grande povo e possuir uma terra como propriedade. No tempo, isso era o grande anseio de um seminômade: terra para o rebanho e descendência para perpetuar o nome e continuar a existência da família. Todavia, no clima da fé, o horizonte é maior: tornar-se um povo numeroso, portador de bênção e, portanto, de vida para toda a humanidade.

“Eu farei de você um grande povo, e o abençoarei; tornarei famoso o seu nome, de modo que se torne uma bênção. Abençoarei os que abençoarem você e amaldiçoarei aqueles que o amaldiçoarem. Em você, todas as famílias da terra serão abençoadas”.11

Abraão recebe a promessa e responde com empenho total de fé, entregando a sua vida para que a promessa se cumpra. Vemos, portanto, que a fé é dinamismo que

10 Gn 12, 111 Gn 12,2-3

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provoca mudança: deixar uma determinada situação para produzir uma realidade alternativa. Ela não implica necessariamente movimento geográfico ou no tempo. Sair e ir podem e devem ser entendidos como transformação da realidade. Não qualquer mudança, mas aquela que satisfaz às aspirações legítimas, tanto de Deus como do homem. Na verdade, o Deus que fala a Abraão, fala por dentro das suas aspirações.

O tempo passa. Abraão continua peregrino e não possui nenhuma terra; por outro lado, torna-se cada vez mais velho e a esterilidade de Sara compromete qualquer descendência. Como a promessa de se tornar um grande povo pode se realizar, quando parece impossível ter ao menos um filho?

O que parece impossível para a visão humana, não é impossível para Deus. A fé exige entrega e confiança total, pois o mais íntimo da aspiração humana só pode ser realizado pela graça de Deus.

Diante da impossibilidade, o homem muitas vezes tenta criar um meio para as suas aspirações profundas se realizem, viabilizando, segundo a visão humana, aquilo que Deus prometeu. É o caso de Abraão tendo um filho com a escrava Agar, um subterfúgio legítimo naquele tempo para que a família não ficasse sem descendência.

Abraão teve um filho com a sua escrava Agar; porém, este não é o filho da promessa. Ismael acabou sendo o antepassado de um outro grande povo: os ismaelitas, que são o povo árabe do deserto. E aqui surge a questão: esse descendente de Abraão fica fora da promessa? O relato de Gn 21,8-21 mostra que Deus está aberto para o clamor de todos os oprimidos.

“O menino cresceu e foi desmamado. E no dia em que Isaac foi desmamado, Abraão deu uma grande festa. Ora, Sara viu que o filho que Abraão tinha tido com a egípcia Agar estava zombando de seu filho Isaac. Então ela disse a Abraão: «Expulse essa escrava e o filho dela, para que o filho dessa escrava não seja herdeiro com meu filho Isaac». Abraão ficou muito desgostoso com isso, porque Ismael era seu filho. Mas Deus lhe disse: «Não fique aflito por causa do menino e da escrava. Atenda ao pedido de Sara, pois será através de Isaac que sua descendência levará o nome que você tem. Entretanto, também do filho da escrava eu farei uma grande nação, pois ele é descendência sua». Abraão levantou-se de manhã, pegou pão e um cantil de água e os deu a Agar; colocou a criança sobre os ombros dela e depois a mandou embora .Ela saiu e andava errante pelo deserto de Bersabéia. Quando acabou a água do cantil, ela pôs a criança debaixo de um arbusto e foi sentar-se na frente, a distância de um tiro de arco. Ela pensava: «Não quero ver a criança morrer!» E sentou-se a distância. O menino começou a chorar. Deus ouviu os gritos da criança, e o anjo de Deus, lá do céu, chamou Agar, dizendo: «O que é que você tem, Agar? Não tenha medo, pois Deus ouviu os gritos do menino que aí está. Levante-se, pegue o menino e segure-o firme, porque eu farei dele uma grande nação». Deus abriu os olhos de Agar e ela viu um poço. Foi encher o cantil e deu de beber ao menino”.12

12 Gn 21, 8-19

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As crises de fé mostram bem que a origem e a formação do povo de Deus acontecem através da impossibilidade humana que, em vez de ser logo solucionada por Deus, é, pelo contrário, ainda mais testada, para que fique claro que o povo de Deus nasce por pura graça.

O nascimento de Isaac parecia ser finalmente a viabilização da promessa: desse filho nasceria o povo numeroso. Depois da longa espera, será que Abraão vai poder ficar tranqüilo? Pouco mais adiante vai se mostrar que não. Novamente o patriarca é colocado a prova: sacrificar o próprio filho, que lhe havia custado tanta expectativa.

Sacrificar o filho a Deus significa sacrificar o futuro, ou melhor, não se apossar de antemão desse futuro. Dessa forma, podemos perceber que a fé é um tipo de posse, mas não posse segura do que virá pela frente. A vida pertence a Deus e só ele pode determinar o seu caminho. O sacrifício não se realiza, mas o seu significado simbólico já foi transmitido: o futuro do povo de Deus pertence em primeiro lugar a Deus. Cabe ao povo entregar-se e confiar no projeto de Deus.

“Depois desses acontecimentos, Deus pôs Abraão à prova, e lhe disse: «Abraão, Abraão!» Ele respondeu: «Estou aqui». Deus disse: «Tome seu filho, o seu único filho Isaac, a quem você ama, vá à terra de Moriá e ofereça-o aí em holocausto, sobre uma montanha que eu vou lhe mostrar». Abraão se levantou cedo, preparou o jumento, e levou consigo dois servos e seu filho Isaac. Rachou a lenha do holocausto, e foi para o lugar que Deus lhe havia indicado. 4 No terceiro dia, Abraão levantou os olhos e viu de longe o lugar. Então disse aos servos: «Fiquem aqui com o jumento; eu e o menino vamos até lá, adoraremos a Deus e depois voltaremos até vocês». Abraão pegou a lenha do holocausto e a colocou nas costas do seu filho Isaac, tendo ele próprio tomado nas mãos o fogo e a faca. E foram os dois juntos. Isaac falou a seu pai: «Pai». Abraão respondeu: «Sim, meu filho!» Isaac continuou: «Aqui estão o fogo e a lenha. Mas onde está o cordeiro para o holocausto?» Abraão respondeu: «Deus providenciará o cordeiro para o holocausto, meu filho!» E continuaram caminhando juntos. Quando chegaram ao lugar que Deus lhe indicara, Abraão construiu o altar, colocou a lenha, depois amarrou seu filho e o colocou sobre o altar, em cima da lenha. Abraão estendeu a mão e pegou a faca para imolar seu filho. Nesse momento, o anjo de Javé o chamou lá do céu e disse: «Abraão, Abraão!» Ele respondeu: «Aqui estou!» O anjo continuou: «Não estenda a mão contra o menino! Não lhe faça nenhum mal! Agora sei que você teme a Deus, pois não me recusou seu filho único”.13

O sacrifício de Isaac foi substituído pelo sacrifício de um cordeiro. Para entender isso, devemos nos lembrar que os povos do leste praticavam o sacrifício do filho primogênito, enquanto os povos do oeste o substituíam pelo sacrifício de um animal. O que interessa aqui é que Deus não quer o sacrifício da vida humana, seja ele interrupção ou diminuição dessa vida.

13 Gn 22, 1-12

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Não podemos esquecer da contextualização: O texto foi redigido no tempo do rei Salomão, o período áureo e ambíguo da monarquia. Por trás dele há uma grande crítica. O povo podia achar que a monarquia de Davi e Salomão tinha finalmente realizado a promessa feita a Abraão: Israel era agora um povo numeroso e habitava em vasto território. O sacrifício pedido a Abraão é um modo de criticar a visão triunfalista de uma fé que arriscava cair no perigo de uma cristalização histórica e duvidosa da promessa.

6.7.2 – Esaú e Jacó: Um relacionamento difícil – Gn 25,19-36,43.

A história de Esaú e Jacó é, desde o início, um história de conflito. O passo adiante nesse conflito é apresentado quando Esaú perde os seus direitos de filho mais velho, isto é, herança maior, poder maior sobre o clã etc.

“ Certa vez, Jacó estava preparando um cozido, quando Esaú voltou do campo, esgotado. Esaú pediu a Jacó: «Deixe-me comer dessa coisa vermelha, porque estouesgotado». É por isso que ele recebeu o nome de Edom. Jacó respondeu: «Venda-me primeiro o direito de primogenitura». Esaú disse: «Estou quase morrendo... Que me importa o direito de primogenitura?» Jacó retomou: «Primeiro, o juramento». Esaújurou e vendeu seu direito de primogenitura a Jacó. Então Jacó lhe deu pão e o cozido de lentilhas. Esaú comeu e bebeu, levantou-se e partiu. E assim Esaúdesprezou o direito de primogenitura”.14

Essa perda dos direitos se realiza efetivamente pouco mais tarde, quando Jacó, aliado com sua mãe Rebeca, usa um estratagema para conseguir a benção do pai, reservada para o filho mais velho. (ver Gn 27).

Jacó tem que pagar caro por sua trapaça. O ódio de Esaú já promete vingança mortal. Por isso, Jacó tem que fugir para longe, onde também será ludibriado por seu tio Labão. ( ver Gn 29, 15-28 )

Após ter sido enganado por seu Tio Labão, Jacó tem consciência de como dói ser trapaceado. Como encontrar o irmão depois de tudo o que fizera? Jacó teme uma vingança e pensa comprar o irmão com presentes. Todavia, é no encontro com Esaú que Jacó recebe uma grande lição de fraternidade. Esaú o recebe espontaneamente e afetuosamente, sem qualquer sinal de ódio. Até recusa o presente que Jacó lhe mandou. No centro do texto está a confissão de Jacó, que reconhece a sua falta e admite que não esperava boa acolhida: “Vim à sua presença como se eu fosse à presença de Deus, e você me acolheu bem” (Gn 33,10).

Os doze descendentes de Jacó indicam as tribos que, unidas, formaram uma confederação que quebrou o domínio das cidades-Estado em Canaã e aí se estabeleceram permanentemente, formando o povo de Israel. Os descendentes de

14 Gn 25, 29-34.

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Esaú indicam os grupos que se fixaram ao sul de Canaã e não tomaram parte na confederação israelita. Em vez disso, formaram em Estado à parte, chamado reino de Edom.

6.7.3 – A história de José: Deus age através dos acontecimentos – Gn 37-50

A história de José apresenta-se claramente como ponte entre as narrativas patriarcais e o relato do livro do Êxodo.

O inicio da história de José é dramático e já aponta para o seu desenvolvimento posterior. José, filho de Jacó e Raquel, é o preferido do pai, e sua “túnica de mangas longas” é roupa de festa, sinal de que José não precisava trabalhar, e ainda dedurava os irmãos. Não bastasse isso, os sonhos, que ele ingenuamente conta para a família, acabam suscitando raiva e ciúme, pois tais sonhos indicam claramente a sua supremacia.

A reação dos irmãos logo se faz sentir, e agora a narrativa se encaminha para o lugar onde tudo o mais vai acontecer: o Egito.

Na prisão, José continua sua trajetória de homem privilegiado: é ele que praticamente supervisiona a prisão. Dessa forma, o autor vai sempre mostrando que José é o escolhido de Deus para grandes coisas.

Para os antigos, o sonho era uma mensagem cifrada em que Deus se manifestava ao homem e revelava o futuro. O significado do sonho, porém, só podia ser interpretado por Deus. Mostrando que José é capaz de interpretar os sonhos, o texto afirma que ele sabe discernir a ação de Deus na história.

Os sonhos do Faraó tornam-se a ocasião concreta para a ascensão de José. Além de mostrar discernimento para interpretar os sonhos e perceber a ação de Deus, José demonstra também o tino administrativo que poderá salvar o país da fome. Com isso, fica provado que José é sábio: é capaz de discernir a ação de Deus e agir de acordo.

Mais tarde, no encontro de José com os seus irmãos, a narrativa caminha para mostrar como os hebreus se fixaram no Egito. Trata-se certamente de uma idealização da história. Na verdade, muitas levas de migrantes foram forçadas a procurar o Egito a fim de sobreviver. Dessa forma, o livro do Gênesis prepara já a narrativa do livro do Êxodo, e a última palavra de José alude à libertação do Egito:

“Por fim, José disse aos irmãos: «Estou para morrer, mas Deus cuidará de vocês e os fará subir daqui para a terra que ele prometeu, com juramento, dar a Abraão, Isaac e Jacó». E José fez os filhos de Israel jurarem: «Quando Deus intervier em favor de

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vocês, levem meus ossos daqui». José morreu com cento e dez anos. E eles o embalsamaram e colocaram num sarcófago no Egito”.15

6.7.4 – Curiosidades:

A DURAÇÃO DA VIDA

números simbólicos: vida bem ou mal vivida o aumento do mal, a diminuição da vida:

* de Adão a Noé : de 700 a 1000 anos* de Noé a Abraão : de 200 a 600 anos* os patriarcas hebreus : de 100 a 200 anos* no tempo do escritor : de 70 a 80 anos

A MUDANÇA DE NOME

A mudança dos nomes de Abraão e Sara simboliza, segundo a tradição, o encargo de nova missão, o começo de decisiva atividade.

O nome Abraão é explicado aqui pela assonância com 'ab hamôn, "pai de uma multidão (de povos)". Acontece que ambos Abram e Abraham são apenas formas dialetais do mesmo nome, sendo muito comum o acréscimo de "ha" em aramaico. Significam "meu pai (= a divindade) é sublime" ou "o pai é glorificado" ou ainda "ele é grande quanto seu pai" ou "ele é de nobre linhagem".

Também é o que acontece com Sarai e Sara, novamente apenas duas formas do mesmo nome, com o significado de "princesa".

A DESTRUIÇÃO DE SODOMA E GOMORRA - GN 19,1-28 (J)

Este texto reflete, provavelmente, uma antiga tradição, lembrança de um terremoto na região sul do Mar Morto, quando algumas cidades teriam sido destruídas.

Sodoma, que constitui o núcleo de nosso texto, e Gomorra - possível acréscimo a este texto, vindo de outros - seriam talvez parte de uma citada Pentápoles (Gn 14; Sb 10,6) composta pelas cidades de Sodoma, Gomorra, Adama, Seboim e Segor. Apenas a última existia no tempo de Israel. Contudo, outros topógrafos situam esta Pentápoles ao norte do Mar Morto, em Teleilat el-Gassul.

É possível que um sismo tenha liberado gás junto com asfalto e petróleo, presentes na região, ocasionando um grande incêndio no território, logo invadido pelas águas do Mar Morto.

Baseado nesta tradicional lembrança é que o J busca motivos etiológicos para sua explicação: o homossexualismo (ou pederastia) considerado como o mal de Sodoma provocou a sua destruição.

Pode ser que uma antiga lenda israelita sobre a quebra da hospitalidade tenha sido posteriormente referida a Sodoma, como sede de todos os males.

Quanto à morte da mulher de Ló, transformada em estátua de sal, trata-se de um tema etiológico típico: alguma formação de sal (cloreto de sódio), muito abundante na região, sugeriria a forma de uma mulher, sendo interpretado através da história da fuga de Ló e família.

15 Gn 50, 24-26.

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calendário cósmico

A história do universo em 1 ano

ESCALA

20 bilhões de anos = 1 ano1 bilhão de anos = 18 dias e 6 horas1 milhão de anos = 26 minutos e 17 segundosmil anos = 1 segundo e 58 centésimoscem anos = 16 centésimos de segundo

ou:1 ano = 20 bilhões de anos1 mês = 1,67 bilhões de anos1 dia = 55,55 milhões de anos1 hora = 2,31 milhões de anos1 minuto = 38.580 anos1 segundo = 643 anos

Daí:Criação do universo = 10 de janeiro (0 hora)Via Láctea (13 bilhões de anos) = 8 de maioTerra (5 bilhões de anos) = 10 de outubroVida (3,5 bilhões de anos) = 29 de outubroPeixes = 21 de dezembroAnfíbios = 24 de dezembroRépteis = 26 de dezembroMamíferos (200 milhões de anos) = 28 de dezembro, às 8hAves = 28 de dezembro, às 18hRamapithecus = 31 de dezembro, às 17h e 27mAustralopithecus afarensis = 31 de dezembro, às 22h e 7mHomo habilis = 31 de dezembro, às 23h e 7mHomo erectus = 31 de dezembro, às 23h e 27mHomo sapiens neanderthalensis = 31 de dezembro, às 23h e 55mHomo sapiens sapiens = 31 de dezembro, às 23h e 58mHomem na América = 31 de dezembro, às 23h, 59m e 13sAbraão (1800 a.C.) = 31 de dezembro, às 23h, 59m e 54sJesus Cristo = 31 de dezembro, às 23h, 59m e 56,9sSão Francisco de Assis = 31 de dezembro, às 23h, 59m e 58,9sDescobrimento do Brasil = 31 de dezembro, às 23h, 59m e 59,2sRevolução francesa = 31 de dezembro, às 23h, 59m e 59,69sIndependência do Brasil = 31 de dezembro, às 23h, 59m e 59,74sProclamação da República = 31 de dezembro, às 23h, 59m e 59,85sBrasília = 31 de dezembro, às 23h, 59m e 59,96sAgora = 31 de dezembro, 24h.

FREIRE-MAIA, N., Criação e evolução. Deus, o acaso e a necessidade, Petrópolis, Vozes, 1986, pp. 39-43.

SAGAN, C., Os dragões do Éden. Especulações sobre a evolução da inteligência humana, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 19833, pp. 1-5.

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CAPÍTULO VII

O LIVRO DO ÊXODO

A palavra êxodo significa saída. O livro tem esse nome porque começa narrando como os hebreus saíram da terra do Egito, onde eram escravos. O acontecimento se deu por volta do ano 1250 a.C.

Quem desconhece a mensagem do Êxodo jamais entenderá o sentido de toda a Bíblia, pois está fundamentada nesse livro a idéia que se tem de Deus, tanto no Antigo como no Novo Testamento. De fato, a mensagem central do Êxodo é a revelação do nome do Deus verdadeiro: JAVÉ. Embora de origem discutida, esse nome no Êxodo está intimamente ligado à libertação do povo hebreu. Javé é o único Deus que ouve o clamor do povo oprimido e o liberta, para estabelecer com ele uma aliança e lhe dar leis que transformem as relações entre as pessoas. Daí surge uma comunidade em que são asseguradas vida, liberdade e dignidade. Essa aliança é afirmada em duas formas: princípios de vida (Decálogo) que orientam o povo para um ideal de sociedade, e leis (Código da Aliança) que têm por finalidade conduzir o povo a uma prática desse ideal nos vários contextos históricos. Desse modo, o homem só é capaz de nomear o verdadeiro Deus quando o considera de fato como o libertador de qualquer forma de escravidão, e quando o mesmo homem se põe a serviço da libertação em todos os níveis da própria vida. Somente Javé é digno de adoração. Qualquer outro deus é ídolo, e deve ser rejeitado. Percebemos aí um convite a escolher entre o Deus verdadeiro e os ídolos. Tal escolha é decisiva: ou viver na liberdade, ou cultuar e servir à opressão e exploração.

O personagem mais importante do livro é os Filhos de Israel, num relato que se une com relatos anteriores (Gênesis) acerca de Jacó e José, advertindo o leitor que o relato não começa do ponto zero. Dá-se por conhecer tudo o que se tratou nos relatos dos patriarcas.

O livro pode ser dividido em 4 partes ou momentos16:1. A opressão: projeto de morte (1,1-2,22)2. A libertação: projeto de vida (2,23-13,16)3. Os perigos da passagem para a terra que mana leite e mel e as primeiras ameaças

contra-revolucionárias (13,17-18,27)4. As bases para a nova sociedade (19,1-40,38)

7.1. - o assunto tratado nos capítulos 1-15

a opressão dos israelitas pelos egípcios : Ex 1,1-22 Moisés: nascimento, crescimento, vocação e missão : Ex 2,1-7,7 a luta entre Moisés (e Aarão) e o Faraó : Ex 7,8-10,29 a décima praga e a Páscoa : Ex 11,1-13,16

16 PIXLEY, G. V., Êxodo, São Paulo, Paulus, 1987, índice.

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a partida, a perseguição e a passagem do mar : Ex 13,17-14,31 o canto de vitória : Ex 15,1-21

7.2 - O nome divino de IAHEWH

“ Moisés replicou a Deus: «Quando eu me dirigir aos filhos de Israel, eu direi: ‘O Deus dos antepassados de vocês me enviou até vocês’; e se eles me perguntarem: ‘Qual é o nome dele?’ O que é que eu vou responder?» Deus disse a Moisés: «Eu sou aquele que sou». E continuou: «Você falará assim aos filhos de Israel: ‘Eu Sou’ me enviou até vocês’ «. Deus disse ainda a Moisés: «Você falará assim aos filhos de Israel: ‘Javé, o Deus dos antepassados de vocês, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó, foi quem me enviou até vocês’. Esse é o meu nome para sempre, e assim eu serei lembrado de geração em geração».17

Várias etimologias já foram propostas para o nome YHWH. Seria, segundo alguns, um nome composto de duas palavras egípcias: Yah, o deus "lua" e we3 (=um). Poderia, segundo outros, vir do indo-europeu Dyau-s, em grego, Zeus, Júpiter em latim, Yaw em hebraico. Ou viria do hurrita, onde ya significa "deus", sendo aumentado com os sufixos hurritas ha ou wa. Ou através da escrita não-decifrada do vale do Indo, do III milênio a.C., onde se mencionaria um deus Yae ou Yaue.

Mas as explicações acima procuram o sentido de YHWH fora do âmbito semita. Neste, porém, já se interpretou o nome como uma exclamação cultual, formada pela interjeição ya, comum em árabe, e o pronome pessoal huwa (= ele). Assim, Ya-huwa (= oh ele); palavra que teria dado origem às formas Yhwh e Yhw.

Também já se explicou que o nome contém uma raiz verbal hebraica hwh, o antigo hwy, no sentido de "cair". Assim o nome YHWH seria o de uma divindade da tempestade, do trovão e do raio. Existe também, em árabe, uma raiz hwy no sentido de "amar", "agir com paixão" e o hebraico tem o correspondente substantivo hawwah (= desejo). Daí, YHWH seria o que ama e age com paixão, o "Apaixonado".

Mas a maioria dos autores fazem derivar o nome YHWH da raiz semítica do noroeste hwy (= ser). Poderia ser, segundo alguns, uma forma causativa deste verbo, e o nome se traduziria por "ele faz ser", "ele traz à existência". R. de Vaux opta, porém, pela solução mais simples: o nome YHWH é formado pela raiz hwy/hwh, no imperfeito, e significa "ele é".

Quanto à interpretação deste nome dado no v. 14, ('ehyeh 'asher 'ehyeh), R. de Vaux traduz por "eu sou o que eu sou" ou por "eu sou o existente".

17 Ex 3,13-15

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Na época em que viveu Jesus já se tinha deixado de pronunciar o nome sagrado de Deus entre os Judeus. Transmitiam o texto escrito dos livros sagrados com as consoantes YHWH, mas era obrigatório pronunciar ADONAY: “Meu Senhor”. Quando passaram a escrever as vogais do texto hebraico da Bíblia nos séculos VII e IX d.C., colocaram-se com as consoantes tradicionais YHWH os pontos das vogais da palavra ADONAI. Esta combinação ocasionou que algumas versões européias adotassem a forma “JeHoVa”. A opção de outras traduções foi seguir o costume judaico, traduzindo “Senhor” cada vez que aparece no original a forma YHWH. Mais recentemente alguns tradutores optaram por uma versão modernizada da pronúncia original mais provável: YaHWeH ou JAVÉ.

7.3 - A luta entre moisés (e Aarão) e o faraó: Ex 7,8-13,16 (J/E/P)

As 10 pragas são constituídas pela fusão de relatos diferentes de sinais e prodígios em quantidades diferentes, segundo as tradições.

O javista traz 8 pragas:1) a água transformada em sangue2) as rãs4) as moscas5) a peste dos animais7) a chuva de pedras8) os gafanhotos9) as trevas10) a morte dos primogênitosA palavra praga (maggepah) aparece só uma vez, em Ex 9,14, texto considerado como secundário. Na realidade, trata-se de prodígios (môpet: Ex 4,21;7,9;11,9) ou sinais ('ôt: Ex 4,8.9.17.28.30;10,1.2).

Não passariam tais fenômenos de acontecimentos naturais, comuns na época, talvez com maior intensidade naquele ano. O conceito de milagre para o israelita é bem diferente do nosso; não é algo que supera ou contradiz as leis da natureza, que, por sinal, não era considerada autônoma para os povos da antigüidade. Milagre podia ser um acontecimento normal, carregado, porém, de profundo significado religioso, ocasião de manifestação da divindade.

Nesta ótica - as pragas consideradas como fenômenos naturais - os especialistas propõem várias explicações:

* Explicação cósmica: durante o II milênio um cometa passou próximo à terra duas vezes e teria provocado as pragas: pó vermelho que coloria o Nilo, irritava a pele dos homens e o pelo dos animais, provocando feridas; queda de pequenos meteoritos (a chuva de pedras); tempestades de poeira e cinza (as trevas), terremotos que matavam as pessoas (os primogênitos).

* Explicação geológica: uma violenta erupção do vulcão Santorin ou Thera, por volta de 1447 a.C., seguida por outras erupções menores, explicaria as pragas.

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* Explicação naturalista: as pragas consistiriam em uma série de fenômenos naturais encadeados.

Uma excepcional cheia do Nilo (julho-agosto) dá-lhe uma cor avermelhada que vem do lodo e de microscópicas bactérias, a Euglana sanguinea. Este organismo absorve muito oxigênio, matando os peixes (1ª praga).

Os peixes mortos infectam as margens do Nilo. As rãs, que aí vivem, saem e vão refugiar-se nas casas, último lugar úmido. Porém, contraíram o Bacillus anthracis e morrem, em agosto (2ª praga).

A cheia do Nilo provocou a multiplicação dos mosquitos. Estamos em outubro-novembro (3ª praga).

Com a baixa das águas a mosca Stomoxys calcitrans prolifera, picando gente e animais, desaparecendo rapidamente. É dezembro-janeiro (4ª praga).

O gado, ao sair para as pastagens, em janeiro, contrai o Bacillus anthracis, que contaminava o capim após a morte das rãs. No delta do Nilo, porém, onde o gado volta mais tarde para as pastagens e a chuva lava mais a terra, o gado dos israelitas fica a salvo (5ª praga).

As úlceras são antrax (ou antraz, do gr. ánthrax, "carvão", pelo lat. anthrace: grave infecção que ocorre em animais, produzida pelo Bacillus anthracis, e que, ocasionalmente, se transmite ao homem, por inoculação acidental de pele ou por inalação - Cf. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Nova Fronteira, Rio de Janeiro 1986, 2ª edição revista e ampliada, verbete antraz), mal que ataca as pessoas e o gado nas casas e estábulos, no final de dezembro, início de janeiro (6ª praga).

Nos primeiros dias de fevereiro, o granizo destrói o linho e a cevada, porém poupa o trigo e a espelta (= espécie de trigo de qualidade inferior, chamado triticum spelta), que são plantados mais tarde (7ª praga).

Neste ano, excepcionalmente úmido, emigram da Arábia do Norte para o Egito grandes quantidades de gafanhotos, levados pelo vento do leste (8ª praga).

A cheia excepcional do Nilo deixou uma espessa camada de poeira vermelha que é soprada pelo primeiro siroco (= vento quente do sueste, sobre o Mediterrâneo) do ano, em princípios de março. São as trevas, que não afetam os hebreus residentes no Wadi Tumilat, uma depressão perpendicular ao vale do Nilo e protegida do vento (9ª praga).

Inicialmente, a última praga não era a morte dos primogênitos (bekorîm), mas a destruição das primícias (bikkûrîm), do restante trigo e espelta. Destruição provocada pelo siroco. Os hebreus, protegidos do vento, não a sofrem, em março-abril (10ª praga).

7.4 - A partida, a perseguição e a passagem do mar: Ex 13,17-14,31 (J/e/p)

Em Ex 13,17-19 diz o E que a saída dos israelitas não foi pelo caminho que levava à região dos filisteus, mas pelo caminho do deserto do mar dos juncos. E Ex 14,15-30, alternando versículos J e E, descrevem a passagem do mar.

Compreende-se que, ao fugir do Egito, um pequeno e fraco grupo não tome o caminho que levava diretamente do delta do Nilo ao sul da Palestina. Apesar de curto, este era poderosamente defendido pelos egípcios através de postos militares. Conservaram-se listas meticulosas, mantidas pelos guardas egípcios, de chegadas e partidas nesta fronteira (Cf. AA. VV., Israel e Judá. Textos do Antigo Oriente Médio, Paulus, São Paulo 1985, pp.

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36-37). Este caminho saía de Tieru (Zilu), passava ao sul do lago Sirbonis e seguia a costa até Gaza.

O nome "mar de Suf" foi erroneamente entendido como o atual Mar Vermelho. Quem traduziu assim foram os LXX. Trata-se na realidade de um local onde havia juncos, provavelmente papiros, já que o hebraico suf equivale ao egípcio twf (= papiro).

Dois problemas:Ø qual foi a rota do êxodo?Ø onde se localiza este "mar dos juncos" e o que aconteceu na sua passagem?

A propósito da rota do êxodo, os textos dão as seguintes indicações;Ex 12,37 (J): "Os filhos de Israel partiram de Ramsés em direção a Sucot"Ex 13,18a (E): "Deus, então, fez o povo dar a volta pelo caminho do deserto do mar

Juncos"Ex 13,20 (J): "E tendo saído de Sucot, acamparam em Etam, à entrada do deserto"Ex 14,2 (P): "Dize aos filhos de Israel que retrocedam e acampem diante de Piairot, entre Magdol e Baal Sefon; vós acampareis diante deste lugar, junto ao mar".

O texto de Nm 33,5-8, que elenca todas estas localidades, para traçar a rota do êxodo, é bastante tardio e considerado secundário em relação a P, merecendo, por isso, pouca atenção.

Vejamos a localização das cidades e regiões mencionadas: Ramsés está em Tânis ou Cantir, localidades vizinhas Sucot deve ser o egípcio Teku, uma das saídas para o deserto, na desembocadura do

Wadi Tumilat, onde viviam os hebreus Etam (htm = fortaleza) deveria ser a fortaleza de Zilu, mas a questão de sua

identificação permanece aberta Magdol é também de difícil identificação, pois os textos egípcios falam de quatro

Magdol, situados na rota para Canaã. Costuma-se situar Magdol uns doze km ao sul de Pelusium, porém a questão fica aberta

Piairot poderia ser várias coisas, desde o braço pelusiano do Nilo até uma extensão de água em Tell Maskuta, localizado um pouco mais ao sul

Baal Sefon é comumente localizado perto do lago Sirbonis.

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O exame destes nomes não nos leva muito longe. Na realidade só há três rotas possíveis para o êxodo:Ø junto à costa do Mediterrâneo, no "caminho dos filisteus", que, embora negado pelo E,

tem o apoio da localização de alguns dos nomes acima bem ao norte, uma possível identificação do Sinai ao norte da península e a importância de Cades na tradição do êxodo

Ø diretamente através do Sinai até Cades, pouco provável dado as dificuldades para o suprimento de água

Ø em direção ao sul (ou sudeste), até o Sinai, situado no sul da península e depois para o norte, até Cades. Esta é a rota mais provável, sob qualquer ponto de vista.

Estes dados parecem refletir a hipótese de dois êxodos: o êxodo-expulsão, das tribos do sul, tradição conservada pelo J, e que estaria relacionado à expulsão dos hicsos do Egito pelo faraó Amósis, fundador da 18ª dinastia, por volta de 1570 a.C.; e o êxodo-fuga, do grupo mosaico, gente das tribos do norte, acontecido na época de Ramsés II, por volta de 1250 a.C., tradição transmitida pelo E. O êxodo-expulsão deu-se na rota mais direta e curta para Canaã, seguindo a costa, enquanto que o êxodo-fuga aconteceu pelo caminho do sul, através do deserto e do monte Sinai.

Quanto à passagem do "mar dos juncos", existem duas apresentações do fenômeno:

A primeira apresentação é provavelmente um texto E, embora alguns o queiram P. Segundo esta narrativa, Moisés deve erguer seu cajado, estender a mão sobre o mar e dividi-lo em dois para que os israelitas passem a pé enxuto (Ex 14,16). Moisés assim o faz, e os israelitas passam a pé enxuto (Ex 14,21aa.bb.22). Porém, os carros egípcios lançam-se

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em sua perseguição (Ex 14,23), enquanto Iahweh ordena a Moisés que estenda a sua mão para que as águas retornem e se fechem sobre os egípcios (Ex 14,26). Assim, ficam os egípcios submersos e os israelitas salvos (Ex 14,27aa.28.29).

A segunda apresentação é seguramente J e se desenvolve da seguinte maneira: durante a perseguição, os israelitas acreditam que estão perdidos e rebelam-se contra Moisés: ele, entretanto, manda que fiquem calmos e observem os acontecimentos (Ex 14,10-14). Então, a coluna de nuvem que os protege (símbolo de Iahweh) coloca-se entre eles e os egípcios (Ex 14,19b.20; o v. 19a é uma duplicata). Durante a noite, Iahweh faz soprar um forte vento do leste (oriental) que seca o mar (Ex 14,21ab.ba). No dia seguinte, de madrugada, Iahweh, da coluna de fogo e de nuvem, semeia o pânico entre os egípcios e estraga as rodas de seus carros (Ex 14,24-25). Ao nascer o dia, as águas voltam ao seu leito e Iahweh submerge nelas os egípcios... e Israel vê os egípcios mortos na praia do mar (Ex 14,27ab.b.30).

Hoje, as duas apresentações estão de tal modo unidas, que o texto dá ao leitor desavisado a impressão de ser uma narrativa originariamente unitária.

Quanto ao que pode ter acontecido realmente, durante esta fuga dos hebreus, há hoje muitas explicações, assim como para as pragas, como vimos.

Se o "mar" atravessado pelos hebreus era na verdade, como indicam os termos, uma laguna rasa ou um pântano, abundante em papiros, nada mais simples do que a coincidência de uma maré baixa com um vento forte para permitir a passagem de um punhado de pessoas a pé. Já os carros egípcios atolaram, impossibilitando a passagem dos perseguidores.

Outro elemento interessante para a solução deste problema é o teor da segunda apresentação da passagem do mar, o texto J: não há neste texto nenhuma referência à passagem dos hebreus, mas sim à destruição dos egípcios. Nisto consiste o "milagre", para o J. Tradição conservado em Ex 15,21;Dt 11,4;Js 24,7.

R. de Vaux, Historia Antigua de Israel I, pp. 369-373, sugere que esta tradição javista, sublinhando a atuação de Iahweh e o aspecto bélico do relato, foi moldada, nas suas características, sobre outro episódio muito significativo para os israelitas, a passagem do Jordão, de Js 4,22-23.

7.5 - O êxodo como paradigma de libertação

Obs.: simplificação do esquema de E. Dussel, O paradigma do êxodo na Teologia da Libertação, em Concilium 209 (1987/1), pp. 88-89. Dussel está se reportando a Rubem Alves (1970).

O Faraó oprime, domina os israelitas, transformando-os em Escravos. O povo clama a Deus, que chama, convoca o profeta, Moisés. Este questiona o faraó opressor e também interpela o povo. Acontece a libertação, a saída e a Passagem pelo deserto, pelas provações e a entrada na Terra Prometida que é dada por Deus a Israel.São 6 elementos paradigmáticos interligados por oito (Dussel coloca 9) relações constituintes:

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* os seis elementos:o poder Faraônicoos EscravosDeusMoisésa Passagema Terra

* as oito relações:a) a dominaçãob) o clamorc) a convocaçãod) o questionamentoe) a interpelaçãof) a libertaçãog) a entradah) o dom.

7.6 – . O código da aliança (Ex 20,22-23,19)

Conhecendo o povo que elabora o código

a situação do povo que elabora o código* um povo de agricultores* conserva costumes de vida familiar e pacata* há conflitos sociais muito graves* as instituições não conseguem mais defender as pessoas* há muitos deuses e vários cultos

Aplicando o código na vida do povo

(4 chaves de leitura)

o código retoma o ideal dos 10 mandamentos (cf. p. 50) o código toma posição dentro dos conflitos (7 pontos: cf. pp. 51-52) o código não resolve tudo, mas aponta o caminho (ex.: 5 leis)

* Ex 20,25 : não se pode usar a religião para legitimar a exploração* Ex 20,24 : a defesa do povo (mais fraco) contra o sistema do rei (mais forte)* Ex 21,15.17 : a defesa do clã contra o sistema do rei* Ex 21,22.27 : a defesa do mais fraco (mulher e escravo) contra o mais forte

(homem e senhor)* Ex 21,20-21.37: a conciliação de interesses opostos dos vários grupos em luta

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a divisão do código clareia o seu objetivo (cf. pp. 56-57)

A lição que aprendemos com o código da

aliança

É preciso lutar para criar leis que:

ajudem a convivência humana, fraterna e justa tomem posição dentro dos conflitos e combatam as causas da opressão orientem o povo na defesa de seus direitos e no cumprimento de seus deveres mantenham o povo na caminhada rumo à realização do ideal da aliança animem o povo a lutar para conseguir o possível despertem e fortaleçam as forças boas do povo e combatam a ideologia opressora mantenham acesa a fé em Iahweh que escuta o clamor dos pobres e defende o direito dos

pequenos e oprimidos.

7.7 - O Decalogo (EX 20,1-17)

1* Então Deus pronunciou todas estas palavras:2 «Eu sou Javé seu Deus, que fiz você sair da terra do Egito, da casa da escravidão.

Primeiro, antes de promulgar a Lei, Javé se apresenta e declara o motivo e a autoridade da nova Lei, e os anuncia solenemente. Não é qualquer um que pode decretar uma Lei, mas somente aquele que tem autoridade para isso. Deus teria autoridade para decretar Leis para todos os homens, pois ele é o criador de todos. Mas ao decretar as Leis, ele não invoca a sua autoridade como Criador, mas demonstra a sua vontade de ser o Libertador de seu povo.

Os Mandamentos são o recado, a ferramenta que Deus entregou ao povo libertado, para o povo continuar na sua marcha para a plena liberdade e conquistar a terra que lhe pertencia.

3 Não tenha outros deuses diante de mim. 4 Não faça para você ídolos, nenhuma representação daquilo que existe no céu e na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. 5 Não se prostre diante desses deuses, nem sirva a eles, porque eu, Javé seu Deus, sou um Deus ciumento: quando me odeiam, castigo a culpa dos pais nos filhos, netos e bisnetos; 6 mas quando me amam e guardam os meus mandamentos, eu os trato com amor por mil gerações

Aquilo que Deus mais condena e menos suporta é que haja gente que use a imagem de Deus para poder oprimir os irmãos, por isso, pertencer ao povo de Deus

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é, em primeiro lugar, romper com um sistema de idolatrias inventado por Faraó, a fim de oprimir o seu povo, que construía tempos e santuários, imagens e esculturas de pedra e madeira, ouro e prata gigantes. Inventava ritos e cerimônias grandiosas para dar ao povo uma idéia de força desses deuses inventado. O Faraó levava o povo a dobrar os joelhos diante de seu poder como se fosse um poder divino.

Assim, a comunidade que quer ser realmente a comunidade do Deus verdadeiro deve estar sempre bem atenta para não deixar entrar nela o ensinamento de falsas doutrinas. A comunidade só pode ter um único Deus: é Javé, o Deus que ouve o clamor do povo oprimido, desce para ver de perto a sua situação, e quer o seu povo livre e feliz.

Tem pessoas que, para obedecer ao primeiro mandamento, tiram de casa qualquer imagem ou figura. Acham que é o suficiente. Mas não é bem isso que o primeiro mandamento pede. Ele pede não adorar nem apoiar o sistema que, em nome de um falso Deus, explora e oprime o povo. Pede para respeitar a Imagem de Deus que é o próximo. Pede para amar a Deus sobre todas as coisas.

7 Não pronuncie em vão o nome de Javé seu Deus, porque Javé não deixará sem castigo aquele que pronunciar o nome dele em vão.

Este mandamento não esta relacionado a ingenuidade de misturar o nome de Deus a outras coisas, tais como, Se Deus quiser...”, “Deus do Céu...”, etc. Mas condena todo sistema ou opressor que usa o nome de Deus em favor próprio, ou a fim de legitimar o seu próprio poder”.

E hoje, como anda as coisas? O nome de Deus aparece em todo canto, até mesmo nos lugares onde se praticam as maiores injustiças. Juizes, sentados debaixo da cruz de Cristo, pronunciam sentenças contra os pobres e a favor dos corruptos. O nome de Deus esta na boca dos governantes e chefes das nações que oprimem e exploram os outros povos. O nome de Deus é usado para abençoar as armas dos exploradores. O nome de Deus continua sendo pronunciado em vão para justificar a opressão e para fazer com que o povo continue na “casa da escravidão”.

8 Lembre-se do dia de sábado, para santificá-lo. 9 Trabalhe durante seis dias e faça todas as suas tarefas. 10 O sétimo dia, porém, é o sábado de Javé seu Deus. Não faça nenhum trabalho, nem você, nem seu filho, nem sua filha, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu animal, nem o imigrante que vive em suas cidades. 11

Porque em seis dias Javé fez o céu, a terra, o mar e tudo o que existe neles; e no sétimo dia ele descansou. Por isso, Javé abençoou o dia de sábado e o santificou.

Este mandamento, não apenas nos pede para ir a Igreja aos domingos, mas esta relacionado com a libertação do povo da casa da escravidão. O terceiro mandamento foi dado para impedir que a escravidão voltasse a oprimir o povo. Este mandamento estabelece que todos devem parar todo o trabalho durante um dia da semana. Não só o judeu, mas também o estrangeiro e até os animais. Nenhum trabalho pode ser feito por nenhum motivo. O dia de descanso é para que o

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trabalhador tome alento. Este descanso não é para que depois o trabalhador possa produzir e render mais para o seu patrão. Não! Aquilo que deve orientar o trabalho não é vontade de acumular e de ganhar dinheiro, nem pode ser a obrigação de produzir mais a de enriquecer o patrão. O trabalho tem um objetivo muito mais nobre: deve imitar Deus que trabalha durante seis dias na criação do mundo, mas descansou no sétimo. Pelo trabalho o homem participa da obra da criação

Sábado é uma palavra hebraica que quer dizer sétimo. Para os Judeus o Sétimo é o dia do descanso. È a tradição deles a séculos. Para o Árabe a sétima feira, o dia do descanso, é a nossa sexta feira. Para o Cristão, a “sétima feita”, ou o dia do descanso é o nosso Domingo (palavra latina que significa dia do Senhor). Jesus ressuscitou no primeiro dia da semana, por isso, este dia passou a chamar, “dia do Senhor”. Essas diferenças entre Judeus, Árabes e Cristãos dependem da tradição e dos costumes dos povos e das religiões. O que importa é o sentido do terceiro mandamento.

12 Honre seu pai e sua mãe: desse modo, você prolongará sua vida, na terra que Javé seu Deus dá a você.

Este mandamento defende a família e a comunidade. Honrar Pai e Mãe, não esta apenas relacionado a respeitar, mas na obrigação de prolongar seus dias. Logo, honrar Pai e Mãe, e cuidar deles na velhice e na doença. Amparando-os sempre que necessitar de nosso apoio e mais ainda. Ama-los.

13 Não mate.

Como entender este mandamento? Em nome dele são presos os criminosos que matam. Mas os grandes criminosos que matam milhares e até milhões de pessoas andam soltos e são até honrados. A vida é dom de Deus, o maior dom de Deus! Ela deve ser respeitada como se respeita a imagem do próprio Deus. Um atentado contra a Vida é o mesmo que um atentado contra Deus.

“Quem derrama o sangue do homem, terá o seu próprio sangue derramado por outro homem. Porque o homem foi feito à imagem de Deus” ( Gn 9,6)

14 Não cometa adultério.

O Sexto Mandamento não faz distinção entre homem e mulher, a nenhum dos dois é permitido ser infiel ao companheiro (a).

O catecismo da Igreja reduz este mandamento apenas a castidade, entendida como um esforço de se respeitar o próprio corpo. A Bíblia, porem, quer mais do que isso. Ela quer que seja respeitada a Imagem de Deus no ser humano. Esta imagem só aparecerá plenamente quando homem e mulher chegarem a um

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respeito mútuo, e quando o amor entre ambos não for mais motivo para um dominar o outro, mas for motivo de crescimento igual e harmonioso para ambos.

15 Não roube.

Dizendo, não roubaras, ele não se dirige em primeiro lugar a um indivíduo isolado, mas ao próprio povo. Deus deseja uma nova organização que não seja baseada no roubo legitimado por lei. Não é só o indivíduo que não pode roubar. È o povo que não pode roubar o povo.

16 Não apresente testemunho falso contra o seu próximo.

Com este mandamento o que se quer acalmar é: não imitar o exemplo dado pelo sistema corrupto, mas ter a coragem de defender o irmão, sobretudo o pobre, nos tribunais da justiça. Lutar para criar uma nova organização em que seja possível todos conseguirem os seus direitos na justiça, e em que já não seja possível alguém levantar falso testemunho contra o seu irmão.

Alem disso, o que se quer promover com a observância deste mandamento é que o amor a verdade se torne novamente a base do relacionamento entre as pessoas.

17 Não cobice a casa do seu próximo, nem a mulher do próximo, nem o escravo, nem a escrava, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma que pertença ao seu próximo».

O catecismo da Igreja, divide o mandamento em dois: “Não desejar a mulher do próximo” – “Não cobiçar as coisas alheias”, por isso temos dez mandamento.

Este mandamento condena a ganância e a cobiça. Não adianta proibir o roubo, se não se combate também a ganância que causa o roubo. Esta lei impede um sistema de escravidão e o domínio de um ser sobre outros. Ela defende o direito que os pequenos tem de possuir o necessário para viver. Invocar este mandamento para defender latifundiários que cria tanta opressão e tanta injustiça, é o mesmo que “invocar o nome de Javé em vão”. È o mesmo que transformar a lei de Deus em instrumento de mentira. É manter a letra e negar o espírito da lei. O sistema do opressor não pode ser defendido por uma lei que quer dizer exatamente ao contrário.

Hoje, a propaganda na televisão, no rádio, nas revistas, em todo canto, é feita para alimentar no povo o desejo de comprar e de possuir. Ela cria necessidades artificiais e faz o povo sentir-se infeliz e até inferior aos outros, enquanto não tiver comprado este ou aquele artigo da propaganda. Na propaganda a mulher é usada

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para aumentar a venda dos produtos. Moças bonitas com pouca roupa para aumentar o desejo, a ganância e a cobiça. O consumismo tomou conta da nossa sociedade e levam todos a transgredir este último mandamento da Lei de Deus.

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I. OS DEZ MANDAMENTOSTodos nós estamos bem lembrados dos Dez Mandamentos, decorados a partir das

páginas do Primeiro Catecismo da Doutrina Cristã. Ali aprendemos que esses mandamentos são "leis de Deus", isto é, a suprema vontade de Deus sobre a vida da humanidade. Em geral, porém, nunca mais aprofundamos esse primeiro conhecimento.

Outra lembrança constante é a figura das Tábuas da Lei: duas tábuas de pedra, sozinhas nas nuvens ou nas mãos de Moisés. Figura muito comum nas pinturas das Igrejas ou nos santinhos que colecionávamos quando crianças. A primeira pedra contém os três mandamentos, e a outra os restante sete. Aprendíamos que a primeira apresentava os deveres para com Deus e a segunda os deveres para com o próximo. E ficávamos entre Deus e o próximo, dilacerados pelos deveres. E "deveres", essa coisa terrível da qual procuramos nos livrar o mais depressa possível. Cumprimos logo os deveres para ficar, enfim, livres para o resto. Mas, que resto? E aqui surgem as perguntas: Esses mandamentos são mesmo ordens? Até que ponto podemos dividi-los em deveres para com Deus e deveres para com o próximo? Até que ponto esses mandamentos implicam deveres? Pior ainda, até que ponto esses mandamentos são mandamentos? E são dez? Ou são onze? Ou nove apenas?

Em vista dessas perguntas, e de muitas outras que irão aparecer, convidamos todos os irmãos em Cristo à aventura de reler os Dez Mandamentos. Agora como adultos, que conhecem a vida e podem enxergar as coisas de modo novo. O que era dever agora se torna satisfação. O que era ordem e mandamento agora se torna caminho e necessidade. O que era para Deus e para o próximo agora pode ser descoberto como sendo para nós mesmos. E, sobretudo, descobrir que os Dez Mandamentos não são um freio, mas sim um estímulo para viver mais.

FREIO OU ESTÍMULO?Quando pensamos nos Dez Mandamentos logo nos vem à idéia que eles são um

freio para a nossa liberdade. Como se Deus, que é pai, estivesse preocupado em nos segurar, em impedir que "batêssemos as asas para longe", conhecendo lugares e situações que ele ciumentamente conservasse para si próprio. Por trás disso está a idéia errada de um Deus contra o homem, competindo com a sua própria criatura. Ora, isso pode ser tudo, menos o Deus Vivo e Verdadeiro.

O prazer de Deus é a Vida. E a maior glória que podemos dar a Deus é vivermos e estarmos, a cada momento, criando, inventando formas novas de vida. Deus é vida. Seu projeto é liberdade e vida para todos. Sua maior alegria acontece quando inventamos liberdade e vida para todos. Ele jamais iria criar freios para o nosso desejo de liberdade e vida. Ele apenas quer que todos estejam incluídos nesse projeto. Se inventamos liberdade só para nós, só para um grupo, estamos de um lado criando o poder de poucos, que é acúmulo de liberdade de muitos, e, de outro lado, criando um rebanho de escravos dos poderosos. Se inventamos vida só para nós, só para um grupo, estamos de um lado criando a riqueza de poucos, que é acumulo da vida de muitos, e, de outro lado, criando um rebanho de miseráveis. Ora, Deus quer que todos tenham liberdade e vida.

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Por isso ele nos deu os Dez Mandamentos. Esses mandamentos são estímulo para que inventemos liberdade e vida para todos. Estímulo para repartir em vez de acumular, a dar em vez de roubar, a conceder em vez de exigir. Em poucas palavras, a repartir a liberdade e a vida, em vez de as acumular, criando poder e riqueza. Deus não quer que vivamos fechados em nossos projetos egoístas. Ele quer que estejamos abertos para todos.

PARA MIM OU PARA TODOS No catecismo aprendemos, em geral, que os Dez Mandamentos são para mim: devo fazer isso e evitar aquilo. E esquecemos que vivemos em sociedade, e que todos devem procurar a liberdade e a vida para todos. Reduzimos a palavra de Deus ao nível individualista, esquecendo que todos os outros também são filhos de Deus, e que juntos formamos uma só família. Deus deu os Dez Mandamentos para que essa família inteira aprenda a repartir a liberdade e a vida.

Os Dez Mandamentos são palavras que ensinam a viver em sociedade, em família, como irmãos. Não se preocupam apenas com o que eu devo ou não fazer, mas o que todos devem ou não fazer para que a liberdade e a vida sejam usufruídas por todos. Todos nós estamos sempre implicados em ações individuais e coletivas. Acontece que muitas vezes somos justíssimos em nossas ações individuais, mas fazemos exatamente o contrário em nossas ações coletivas. É claro que evitamos matar o próximo, mas em geral colaboramos socialmente para que o próximo seja morto, ou tenha seus direitos diminuídos, ou que a sua alma, puro desejo de liberdade e vida, seja pouco a pouco assassinada. Será que o quinto mandamento não compreende tudo isso?

Os dez mandamentos são projeto de uma sociedade nova, onde todos possam ter liberdade e vida. Onde alguém não goza de liberdade e vida esse projeto está falhando. E de quem é a falha? De todos e de cada um de nós. Alguém, ou todos nós, está falhando no respeito para com a liberdade e a vida que devem reinar na sociedade.

Os Dez Mandamentos são caminhos para aprender a construir uma sociedade onde as pessoas não se sufoquem uma às outras; onde cada um possa ser livre e viver com todos os outros, somando, e não diminuindo, a liberdade e a vida que Deus deu para todos.

II. PRIMEIRO MANDAMENTO: O DEUS LIBERTADORO primeiro mandamento começa: "Eu sou Iahweh teu Deus que te tirou do Egito, da

casa da escravidão"( Ex 20,2 e Dt 5,6). Aí está a raiz dos Dez Mandamentos: eles foram dados pelo Deus que liberta a pessoa da escravidão.

Que escravidão? Todas. Desde a escravidão da criança aos pais, satisfazendo seus caprichos, até a escravidão do adulto diante do patrão no trabalho, ou do povo diante do poder que o impede de ser gente e ter sua opinião própria. A escravidão que submete a mulher ao homem, o amigo ao amigo, a pessoa a qualquer outra pessoa. Deus nos criou livres, e é contra toda forma de escravidão. Escravidão significa a impossibilidade de sermos o que somos. Quem somos nós? Ninguém sabe. Só Deus. Cada um de nós deve descobrir, passo a passo, o que é. Nossa vida é uma descoberta e uma concretização do que

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somos chamados a ser. Isso, porém, fica impossibilitado quando alguém nos impede de descobrir ou de realizar o que nós seremos, seja os nossos pais, os nossos amigos, nossos chefes, ou até nós, ou a sociedade em que vivemos.

O primeiro sinal de que conhecemos o Deus verdadeiro é a libertação. Quando o conhecemos e adoramos, percebemos que vamos ficando libertos de todas as escravidões, externa e internas. Nem nossos pensamentos nos aprisionam mais. Ficamos livres para descobrir novos horizontes, dentro e fora de nós, porque o que passa a nos comandar é o desejo de plenitude, a própria presença do Deus infinito, que nos chama a uma vocação de eternidade. Respeitar e realizar esse desejo, em nós e nos outros, é o maior sinal de que encontramos o Deus do êxodo, esse Deus que nos faz atravessar todas as fronteiras da escravidão, para criar a liberdade e a vida para todos.

DEUS E DEUSESO primeiro mandamento continua: "Não terás outros deuses diante de mim"(Ex 20,3

e Dt 5,7). Aí está a primeira e incondicional exigência do Deus que liberta. Ele é ciumento e não suporta dividir sua soberania com nenhum outro deus. A Bíblia sabe que existe outros deuses, aliás muitos. Mas sabe também que o Deus verdadeiro é um só, e sua ação principal é nos libertar de todos os outros deuses que escravizam.

Em geral pensamos que somos muito modernos e esse negócio de Deus e deuses já era. Coisa de gente antiga, atrasada e alienada. E nos enganamos. Hoje temos e fabricamos muito mais deuses que os antigos. Só que não lhes damos o nome de deuses. Mas o efeito é o mesmo: escravidão em todos os sentidos. Endeusamos pessoas, coisas, situações, estruturas, quando não a nós mesmos; ou então idéias, sistemas, dinheiro, prestígios, poder e riquezas. O principal de tudo é que todo deus exige adoração. Se for o Deus verdadeiro, tudo bem, ficamos cada vez mais libertos. Mas se forem falsos deuses, se forem ídolos, ficamos cada vez mais escravizados e frustrados, roubados exatamente naquilo que tínhamos procurado em nosso deus.

Como saber se estamos adorando o Deus verdadeiro ou os deuses falsos? É fácil. Basta ver onde colocamos o maior valor da nossa vida. Cada um de nós é uma espécie de templo, e lá dentro colocamos o deus que servimos. E nossa vida é um culto ao nosso deus. Mas que deus é? O livro do Gênesis diz que o homem foi criado "a imagem e semelhança de Deus" (Gn 1,26-27). Somos sempre, a expressão do deus que servimos. Não adianta confessarmos de boca o Deus verdadeiro. É nossa vida que mostra qual deus, de fato, servimos. Não adianta reclamar depois. A culpa não é de Deus. É nossa mesmo. O importante é ver logo qual deus entronizamos no templo de nossa vida. E tomar uma atitude, antes que seja tarde demais. DEUS É MISTÉRIO

O primeiro mandamento continua: "Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra" (Ex 20,4 e Dt 5,8). Em outras palavras, o Deus verdadeiro não pode ser representado adequadamente por nada que conhecemos. Céu, terra e região subterrânea

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são a imagem do universo para os antigos. Nenhum ser humano pode dar uma imagem do que Deus é. Todos os seres são expressões parciais de Deus, mas nenhum deles esgota o que Deus é.

Deus é mistério que não pode ser representado. Nenhuma imagem visual pode dar uma idéia do que Deus é. Apenas uma alusão, um símbolo fugidio, um aceno distante. E isso vale também para a palavra, que também é um modo de representar a realidade. Nossas palavras, com as quais construímos as idéias e os sistemas de pensamento, são apenas setas que indicam o mistério, mas não conseguem dizer o que ele é em si mesmo. Isso vale principalmente para a Teologia, que é a ciência sobre Deus. A Teologia é apenas uma leve indicação do que Deus parece ser. Não é uma linguagem absoluta. Deus está muito além de toda e qualquer Teologia, e não se deixa prender por nenhuma forma de pensamento. Se absolutizarmos o que a Teologia diz, provavelmente já não estaremos diante do Deus vivo, e sim diante de um ídolo, o mais perigoso de todos.

Deus ultrapassa tudo o que podemos conceber. E onde é que podemos experimentá-lo? Em dois mistérios: o da liberdade e o da vida. No da liberdade ele nos liberta de todas as prisões, para sermos finalmente o que sempre fomos sem contudo nunca ter sido antes. No da vida ele nos chama a viver e a criar vida em todos os sentidos. Liberdade e vida são um mar sem margens, o infinito de Deus que podemos pressentir, mas nunca representar. Deus é quadro sem moldura. E nós somos sua imagem e semelhança.

DEUS É CIUMENTO O primeiro mandamento continua: "Não te prostrarás diante desses deuses e não os

servirás porque eu, Iahweh teu Deus, sou um Deus ciumento" (Ex 20,5 e Dt 5,9). "Esses deuses" são aquelas representações de que a Bíblia falava logo antes: os seres do céu, da terra e do mundo subterrâneo. O que se quer dizer é que nós, seres humanos, não devemos adorar nenhum desses seres como se fossem Deus. Deus está além de tudo isso. Somente a ele devemos adorar e servir. Com as outras criaturas devemos nos relacionar, com cada uma em seu plano.

Deus nos criou para vivermos três tipos diferentes de relação. Diante de todos os seres inferiores nós somos senhores, não para abusar deles, mas para deles usar, com respeito e amor. Diante das pessoas, nossos semelhantes, nós somos irmãos, para viver em relação de fraternidade e partilha, com respeito e amor. Diante de Deus, somos todos filhos, e a Deus devemos temor e obediência, porque ele é Deus e nós não somos Deus. E Deus é ciumento: ele não suporta que substituamos a relação que devemos ter com ele por qualquer outra relação; nem quer que adoremos e sirvamos qualquer outro ser que não seja Deus. Como veremos na próxima coluna, seu ciúme nos castiga de vários modos, para que aprendamos a colocar as coisas nos devidos lugares.

Certa vez ouvi uma coisa tão bonita que deve ser verdade. Que devemos tratar cada ser como se estivesse um grau acima do que ele é. Tratar as pedras como se fossem plantas, as plantas como se fossem animais, os animais como se fossem pessoas, e as pessoas como se fossem deuses. Como não disseram como tratar Deus, eu acrescendo: tratar a Deus com total adoração, porque ele é o fundo de tudo isso e, ao mesmo tempo, está infinitamente

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além disso tudo, numa perfeição, santidade e beleza que nem somos capazes de imaginar. Pois é. E nós somos sua imagem e semelhança.

DEUS CASTIGA?O primeiro mandamento continua: "Sou um Deus ciumento, que puno a injustiça

dos pais sobre os filhos, até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas que também ajo com amor até a milésima geração para aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos"( Ex 20,5-6 e Dt 5,9-10). É a continuação do que dizíamos na coluna anterior: Deus é ciumento e, se adorarmos outros deuses, ele nos castigarás. Se o adoramos, porém, e formos fiéis à sua vontade, expressa nos mandamentos, ele nos amará e tratará com misericórdia.

Como é que Deus castiga? De todos os modos imagináveis. Na dimensão psíquica e espiritual, conta-se desde a simples inquietação até a angústia, depressão profunda, neurose e psicose. Na dimensão física com todo tipo de desordens funcionais e doenças, até mesmo o câncer. Na dimensão social, com todas as formas de desencontros e conflitos desde o simples desentendimento nas relações até as guerras intestinas e internacionais. Pois é. Com Deus não se brinca.

Mas será que é mesmo Deus quem castiga? Sim e não. Ele apenas faz com que arquemos com as conseqüências de nossas opções. Deus é liberdade, vida, harmonia e paz. Se o adorarmos teremos liberdade, vida, harmonia e paz. Mas se cultuarmos deuses falsos teremos tudo ao contrário: escravidão, morte, de todos os modos e em todos os setores e dimensões. No fundo de todos os nossos sofrimentos há sempre um desvio, uma escolha infeliz, um momento em que deixamos de obedecer ao Deus verdadeiro para servir a um ídolo. Basta olharmos com atenção, e descobrirmos o deus falso nos premiando com uma vida falsa. E muitas vezes, o erro não é pessoal, mas familiar, social, nacional. Mas existe um erro que exige tomada de consciência e conversão. O sofrimento já é em si uma chamada de atenção. Felizes os que percebe isso e têm a coragem de fazer uma mudança radical.

III. SEGUNDO MANDAMENTO: COM DEUS NÃO SE BRINCAConforme o catecismo, o segundo mandamento diz: "Não tomar seu santo nome em

vão". A Bíblia vai mais longe: "Não pronunciarás em vão o nome de Iahweh teu Deus, pois Iahweh não deixará impune aquele que pronunciar em vão o seu nome" (Ex 20,7 e Dt 5,11). Isso muitas vezes é entendido literalmente: não repetir o nome de Deus à toa. Os judeus, por respeito, nem falam o nome de Deus - em vez de Iahweh dizem Senhor, e hoje simplesmente "o Nome".

É bom lembrar que o nome de Deus era usado para garantir os juramentos, e principalmente para assegurar a verdade dos que depunham no tribunal. Ora, isso é muito delicado. Usar o nome de Deus para garantir o que estamos dizendo ou fazendo é manipular a Deus em favor dos nossos interesses. Se esses interesses são bons e verdadeiros, tudo bem. Mas, se for por puro capricho, ou para torcer a verdade, ou para prejudicar os outros, é bom tomar cuidado, porque Deus não ficará quieto e "não deixará impune".

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Esse mandamento é muito sério. Quantas vezes não dizemos que Deus quer isso e aquilo, só para justificar nossos interesses? É assim que muitos pais controlam seus filhos, muitos padres e freiras e agentes controlam a comunidade e, pior ainda, muitos políticos tapeiam o povo, dizendo Deus quer aquilo que eles estão querendo. Perigo. O projeto de Deus é liberdade e vida para todos. Quando usamos o seu nome para justificar a nossa ganância (sempre muitíssimo bem disfarçada) pelo poder, riqueza e prestígio - que criam as maiores injustiças - estamos certamente brincando com fogo. Não podemos manipular o nome de Deus para encobrir nossas intenções injustas, seja para "pôr ordem em casa", ou "dirigir a comunidade", ou "zelar pela ordem social". O que é que está por trás disso? Com Deus não se brinca...

IV. TERCEIRO MANDAMENTO: UM DIA PARA IAHWEHO catecismo simplificou bastante o terceiro mandamento: "Guardar o domingo e

festas de guarda". A Bíblia diz mais: "Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo. Trabalharás durante seis dias, e farás toda a tua obra. O sétimo dia, porém, é o sábado de Iahweh teu Deus. Não farás nenhum trabalho, nem tu nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu animal, nem o estrangeiro que está em tuas portas (da cidade)" (Ex 20,8-10 e Dt 5,12-14a). Assim, conforme a Bíblia, o terceiro mandamento fala de trabalho e descanso: trabalhar durante a semana e descansar no fim. Para Israel o dia santo era o sábado. Para os cristãos esse dia ficou sendo o domingo, o dia em que Jesus ressuscitou.

Para começar, o importante do mandamento é que ele fala de trabalho e descanso. Todos devem trabalhar e descansar, ou todos têm direito ao trabalho e ao descanso. Isso por si já supõe uma sociedade igualitária, onde, para viver dignamente, todos trabalham e todos podem usufruir do descanso: pai, mãe, filho, filha, empregado, empregada, os imigrantes e até os animais. Em outras palavras, o dia do descanso, consagrado a Iahweh, é o dia em que todos - sem diferença de idade, sexo ou condição social - têm direito a descansar e se refazer de todo o trabalho realizado durante a semana. Descobrimos então que o dia santo não é mais um dia de obrigação, agora para com Deus. Deus não quer nada para si. O que o homem dá a Deus ele está dando a si mesmo, porque Deus é puro dom de vida, e dar alguma coisa a ele é receber multiplicado em troca. E Deus não reserva seu dom para este ou aquele, somente. Seu dom é para todos, pois ele quer que todos tenham liberdade e vida. E o dia consagrado a Deus é dia de liberdade e vida para todos. Dia de festa, de alegria, de fruição do próprio trabalho.

DESCANSO PARA TODOSPor que descansar um dia por semana, consagrando-o a Deus? O catecismo não dá a

motivação. A Bíblia apresenta duas. A mais antiga se encontra no livro do Deuteronômio: "Deste modo o teu escravo e a tua escrava poderão repousar como tu. Recorda que foste escravo na terra do Egito e que Iahweh teu Deus te fez sair de lá com mão forte e braço estendido. É por isso que Iahweh teu Deus te ordenou guardar o dia de sábado" (Dt 5,14b-

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15). O dia do descanso, portanto, é o dia em que se lembra a libertação da escravidão. E todos sem exceção, até os animais, têm direito de participar da liberdade.

"Recorda-te que foste escravo.. e que Iahweh te libertou"... O dia do descanso é um dia de lembrança da grande passagem da escravidão para a liberdade. Consagrar esse dia é lembrar-se de que Deus é libertador, e que o homem deve repetir em sua vida, em relação aos outros, o que Deus fez por todos nós. Só quem foi escravo compreende o que significa ter sido liberto. Escravo não tem descanso, não tem vida própria, nem liberdade, nem direito a nada. Em poucas palavras, escravo tem que ser o que os outros querem, e por isso tem que matar as suas aspirações e desejos próprios. Sua vida só tem deveres, obrigações, trabalho todo dia, quando não toda noite. Mas não é isso que Deus quer. Deus quer a liberdade para todos, para que todos possam se descobrir, desabrochar e participar da sociedade e da história, dando sua contribuição insubstituível para a realização do projeto de Deus, que é liberdade e vida para todos.

O dia do Descanso é, portanto, o dia de festejar o Deus libertador, e, por isso, de nos alegrarmos com a liberdade. É dia de revermos se a nossa história está caminhando no sentido de todos poderem usufruir da liberdade. O que faremos na semana que vem para que isso se concretize?

DESCANSAR COM DEUSO livro do Êxodo apresenta outra motivação para o descanso semanal: "Porque em

seis dias Iahweh fez o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm, mas repousou no sétimo dia; por isso Iahweh abençoou o dia do sábado e o santificou" (Ex 20,11). E, para a nossa surpresa, descobrimos que o dia do descanso semanal devemos servir ao Deus que descansa. O que significa isso?

Assim como Deus criou tudo em seis dias, e no sétimo descansou, também nós devemos criar o mundo em seis dias, através do nosso trabalho, e no dia do descanso descansar. Será que Deus nos libertou de tudo para depois nos tornar escravos dele? Sim e não. Acontece que servir ao Deus da liberdade significa encontrar a liberdade. Servir ao Deus que descansa é descansar junto com ele. Só fica um problema: Quando é que todos vão poder descansar de fato no fim da semana? Dentro de uma sociedade onde a maioria trabalha e uma minoria usufruiu do trabalho (dos outros), como é que todos poderão descansar? Podemos então perceber que estamos bem longe de poder observar essa ordem de Deus. Precisamos antes criar uma sociedade nova onde todos, de fato, trabalhem, para que todos, de fato, possam descansar. Caso contrário, estaremos sempre, de alguma forma, roubando o descanso dos outros, e neste caso o descanso do próprio Deus.

Para que serve o descanso? Para voltarmo-nos para nós mesmos e para as realidades mais profundas da vida: a esposa, os filhos, nossa alma, nossa sociedade, nossa história, o projeto de Deus, tudo o que é nossa maior aspiração. Liberdade e descanso para repensar a semana que vem, a fim de nos encaminharmos para a sociedade e a história que Deus quer construir junto com todos e cada um de nós. Só então poderemos finalmente descansar com Deus!

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V. QUARTO MANDAMENTO: O BERÇO DA VIDAQuarto e sexto mandamentos têm em comum o tema da família. Se o quarto

mandamento fala da nossa, o sexto fala da dos outros. E aqui se coloca uma questão de princípio: não faça aos outros o que você não quer que façam a você. Honre o pai e a mãe dos outros assim como você procura honrar os seus. Não adultere (estrague) a família dos outros, da mesma forma que você não gostaria que estragassem a sua.

A família é o berço da vida humana. Das relações que se vive dentro dela dependem os fundamentos biológicos e psíquicos que por toda a vida governarão o comportamento da pessoa individual e as relações sociais. Não que sejamos simples resultados da soma das personalidades de nosso pai, mãe, irmãos e irmãs. Somos cada um um ser original e irrepetível, com caminho e destino próprio. Mas, e isso é muito importante, esse ser original e irrepetível pode ficar para sempre abafado e soterrado por causa das influências familiares que recebemos. Sem dúvida que é possível nascer de novo. Todavia, nem todos têm chance ou coragem para semelhante empresa. Por isso é melhor prevenir do que remediar. É na família que nosso corpo, alma, história e destino são formados ou deformados. A grandeza da família pode se tornar drama ou tragédia.

Nossa família é um mistério. E a dos outros também. A sociedade futura dependerá do respeito à liberdade e à vida a que todos têm direito desde o seio da família. Vida é a base que possibilita a sustentação biológica para descobrir e realizar o mistério da liberdade. E a liberdade é a possibilidade inesgotável de descobrir a própria originalidade e se tornar uma pessoa irrepetível. Contudo, se a família for adulterada - tanto a nossa como a dos outros - o que seremos nós?

RESPEITAR A FONTE DA VIDAO quarto mandamento, conforme o catecismo, diz: "Honrar pai e mãe". Na versão

mais longa do Deuteronômio, temos: "Honra teu pai e tua mãe, conforme te ordenou Iahweh teu Deus, para que os teus dias se prolonguem e tudo corra bem na terra que Iahweh teu Deus te dá" (Dt 5,6 e Ex 20,12). Percebemos logo que o mandamento não tem apenas uma finalidade filantrópica, mas se refere à vida da própria pessoa que deve observá-lo: vida longa e sucesso na sociedade fundada pelo Deus libertador dependem da honra que se dá aos pais.

O que significa esse mandamento? Na origem ele se refere à "casa do pai", uma grande família de mais ou menos cem pessoas, formada por três ou mais gerações, que perpetuavam o nome e a propriedade da família. Isso evitava que a história e os costumes familiares se apagassem ou diluíssem, e que os bens duramente conquistados através do trabalho fossem alienados pela ganância de latifundiários e alguns ricos proprietários que, pouco a pouco, iam devorando as terras e bens que significavam a sobrevivência dos pobres. Vida longa e sucesso, portanto, significava zelar pela continuidade do grupo que havia conquistado representação dentro de uma sociedade. E isso tem um lado econômico, um lado político e um lado ideológico. Economicamente significa que os filhos não devem "jogar fora" as propriedades que os pais conquistaram; politicamente quer dizer que os filhos devem continuar a luta por uma sociedade fraterna e igualitária, onde os direitos dos pobres sejam respeitados; ideologicamente significa que os filhos devem preservar os

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valores verdadeiros pelos quais os pais viveram e educaram seus filhos. E, se levarmos em conta que Israel fazia tudo isso para respeitar o Deus libertador devemos acrescentar o lado religioso: os filhos devem continuar a religião dos pais, que lhes garantiu um espaço de liberdade e vida.

PAIS, MESTRES DE VIDAContinuando a comentar o quarto mandamento - "honrar pai e mãe, para ter vida

longa e sucesso" - devemos acrescentar um ponto muito importante: os pais são mestres de vida, porque viveram mais. Se acertaram ou não, se erraram muito ou não, isso já é outra coisa. Mas o importante é que, acertando ou errando, os pais caminharam e ensinaram os filhos a caminhar. É tarefa dos filhos, portanto, discernir e compreender o que os pais buscaram e perseguiram na vida, conquistando até certo ponto a meta a que se propunham. Disso depende a nossa vida. Como dizia o grande psicólogo C.G. Jung, "quanto menos compreendemos o que nossos pais e avós procuraram, tanto menos compreendemos a nós mesmos". Podemos achar, em nossa pujante juventude, que nossos pais são quadrados e caretas. No fim, porém, como diz o nosso músico Belchior, acabaremos descobrindo que apesar de tudo estamos vivendo exatamente "como nossos pais". Ou até muito pior, acrescento eu.

Nossos pais ensinam a viver. Para os israelitas, os pais eram os transmissores da história, a ponto de dizer que a história era uma transmissão da interpretação dos acontecimentos que os pais forneciam aos filhos, para que estes, por sua vez, a transmitissem aos seus próprios filhos. Contar o que deu certo e o que deu errado é ensinar. E quem está disposto a aprender poderá poupar muito tempo e energia, que poderão ser usados, com maior proveito, na tentativa de algo realmente novo. E aí descobriremos como é difícil construir algo de verdadeiramente novo. Quando conversamos com nossos pais, podemos perceber que eles também viveram nossas secretas experiências, fantasias e esperanças. Se os ouvirmos, quem sabe não "quebraremos a cara" como eles. E aí aprenderemos que todo passo a frente na vida custa sangue.

CARREGAR OS PAIS NO COLOHá ainda mais um aspecto do quarto mandamento que devemos considerar: a honra

que devemos ter para com nossos pais velhos. Nascemos no colo deles e eles nos amparam desde o primeiro momento, dando-nos o que tinham para que finalmente pudéssemos chegar a ser o que somos. Se estamos contentes, devemos isso a eles. Se estamos insatisfeitos, também devemos isso a eles. Mas, num e noutro caso, como é que poderemos retribuir? Eles nos deram o que eram e tinham. O que temos e somos para lhes retribuir?

Quando nascemos dependemos. Quando somos adultos imaginamos que não dependemos de ninguém (grande ilusão...). E quando ficamos velhos, voltamos a depender. E agora, depender de quem?

Quando velhos, os pais passam a depender dos filhos. Depender da sua bondade, compreensão, paciência e por fim, da suportabilidade mesmo. Tudo isso que eles próprios tiveram que ter pelos filhos pequenos. E aqui vem o momento delicado. Os filhos não se lembram disso, ou não estão dispostos a abrir mão da "sua vida", ou se vingam pelos maus tratos, mal sabendo que estão repetindo a mesma dose que receberam, e que, afinal, estão

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sendo exatamente "como nossos pais". E vem o abandono. E vem o asilo ou como se costuma dizer: "a casa do repouso" (melhor dizer logo "a casa onde se espera a morte"). Mal se imagina que o pior dos lares é melhor do que o mais luxuoso e confortável asilo. Nada substitui o carinho e a atenção, por mais minguados que sejam.

Nossos pais velhos são um desafio. Desafio a nos lembrarmos que deles nascemos, por eles fomos (bem ou mal) cuidados. Mas graças a eles somos o que somos. Certamente a maneira como deles cuidamos já é um julgamento. Resta sempre a questão: bons ou maus que eles tenham sido, será que nós somos melhores do que eles?

VI. QUINTO MANDAMENTO: VIDA X MORTEO quinto mandamento é o centro de todo o Decálogo, e aqui o catecismo e a Bíblia

coincidem: “Não matarás" ( Ex 20,13 e Dt 5,17). Aí está o centro do projeto de Deus: Deus quer a vida e não a morte. Ele do nada criou tudo para a vida, e da escravidão à morte ele libertou para a vida. O que é que Deus quer de nós? Que façamos o mesmo: que do nada tiremos vida e onde existe escravidão à morte invertamos o processo, transformando morte em vida. Tanto que o projeto de Deus culminou em Jesus, ressuscitando-o para a Vida, quando todos os tinham condenado à morte.

A vida é um mistério que vivemos, mas não compreendemos. Sentimos na própria pele e na própria alma quando estamos vivos ou mortos. Percebemos quando nossos atos nos fazem viver ou morrer. Sabemos quando nossos pensamentos, palavras ou gestos fazem os outros viver ou morrer. Todo esse bruto contraste é muito claro para nossos sentimentos. O único problema é que nosso pensamento frio nem sempre acompanha nosso sentimento mais profundo, que é o espelho do próprio sentir de Deus, que só quer vida.

O quinto mandamento é o fio da navalha em que todos nós caminhamos. Quantas vezes não fabricamos a morte dos outros através de um momento mínimo de nosso pensamento, palavra ou ação? Pode ser que nunca tenhamos empunhado um revólver nas mãos, mas o resultado é o mesmo: a morte, em algum nível ou dimensão dos nossos semelhantes. E aqui descobrimos que o limite entre a vida e a morte é algo misterioso: qualquer projeto - imaginado, dito ou feito - pode implicar na vida ou na morte dos nossos irmãos. Depende de mínima mudança de direção caminharmos para a morte ou a vida, e fabricarmos, consciente ou inconscientemente o destino fatal dos nossos irmãos. Este dilema é terrível.

VIDA É PROJETO"Não matarás". Pensamos que o quinto mandamento proíbe apenas tirar diretamente

a vida do próximo. E nos esquecemos de que a Vida, principalmente a humana, é um projeto que está sempre se fazendo, em contínuo desenvolvimento. Mais do que algo realizado. Vida é direção e meta para a qual nos dirigimos. Resta ver se é realmente para ela que caminhamos. Pois no lado oposto vamos encontrar a Morte. Também ele é um projeto e uma meta para a qual podemos estar caminhando. A cada instante, dependendo do que pensamos, falamos e fazemos, estamos sempre construindo a Vida ou a Morte.

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O conjunto inteiro de nossa vida tem efeito mediatos e duradouros, que ultrapassam a dimensão curta de nossas pequenas atitudes neste ou naquele momento. Podemos ser educados, respeitosos e até muito atenciosos para com os nossos semelhantes nos inumeráveis encontros que se repetem indefinidamente em nosso dia-a-dia. Contudo, estamos sempre engajados num projeto de vida: no nosso trabalho, nossas idéias, nosso engajamento político, nossa vida familiar e social. É nisso tudo que construímos a Vida ou a Morte. De nada adianta nunca empunhar um revólver, mas trabalhar numa fábrica de armamentos. E de que vale falar de vida quando produzimos alimentos contaminados com germes de Morte e pretendemos curar tudo com remédios que em vez de curar comprometem ainda mais a saúde?

Sim, Vida e Morte são coisas que se decidem em atos mínimos que fazem parte de grandes projetos. Dois projetos só: um voltado para a acolhida e o desenvolvimento do dom da Vida. Outro comprometido com a destruição gradual que leva à Morte. É necessário rever o processo de nossa educação familiar, escolar e social, se quisermos que este mundo tenha algum futuro. E sobretudo reconhecer que depende de nós a vitória da Vida ou o terrível triunfo da Morte.

QUEM PAGA POR ESSAS MORTES?

"Não matarás". Mas hoje acontecem tantas mortes que nos deixam perplexos, perguntando: Quem é o culpado? Quem é que vai pagar - se isso fosse possível - por tantas mortes prematuras?

Primeiro, a situação dos índios, habitantes de nosso continente, que são pouco a pouco mortos como animais pelo homem branco. Depois a morte de crianças que não chegam a um ano de vida, por falta de alimento. E as que são abortadas? Depois vem a morte do povo trabalhador, subalimentado e exaurido, que não tem a mínima segurança de trabalho. Depois vem a morte de mendigos e marginalizados, que nunca puderam usufruir dos benefícios da vida social. ( E sabe-se que muitos batem palmas pela existência de "esquadrões da morte", encarados como companhias dedetizadoras...) E vêm depois as milhares de pessoas exterminadas pelo trânsito mortífero de nossas cidades e estradas... Sem contar os que encontraram a morte quando buscavam o lazer e a convivência.. ou os que cumpriam pena por crimes que sabe Deus quem os levou a cometer, e morreram sufocados numa cela hermeticamente fechada... Isso para não falar de 90% da população que ganhando até três salários mínimos, vive continuamente espreitada pela morte que os ameaça de fome, doença, aviltamento... Ao ver tudo isso pensamos: Mas que vida, meu Deus! Nem se pode chamar de vida ... É morte mesmo!

Pois bem. "Não matarás" se refere a tudo isso. E quem é o culpado? Em maior ou menor grau todos nós. Toda vez que fechamos os olhos ou nos calamos diante da morte brutal somos culpados. Podemos não ter poder para fazer nada, mas temos pelo menos a palavra que ninguém poderá calar. E falar incomoda, e faz pensar e rever que mundo é esse que estamos fabricando. Pois se todas essas mortes ficam impunes é sinal que a maioria de nós está aprovando. Até quando vamos suportar que a Vida seja derrotada pela morte?

LUTA INADIÁVEL

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Expresso no quinto mandamento, o centro do projeto de Deus é a Vida. Ele mesmo é essa Vida, e toda a criação é comunicação dele mesmo, do seu próprio mistério, que chamamos tão simplesmente de Vida. Nesse mistério nascemos, crescemos e existimos. E também encontramos inúmeros obstáculos que se levantam contra esse mistério: nossos desvios, nossos caprichos e interesses egoístas que, multiplicados por bilhões de seres "humanos”, criam a gigantesca e monstruosa figura da Morte, espreitando o mistério da Vida. E o projeto de Deus se transforma em tragédia, em luta contra a Morte.

Em grau maior ou menor, somos todos vítimas e responsáveis por essa tragédia. Nós podemos compreender, mas o resto da criação apenas sofre, sem entender nada. Cabe a nós tomar consciência do problema e providenciar atitudes pessoais e coletivas que mudem o processo da Morte em processo de vida. Em primeiro lugar, ver, reconhecer e aceitar que estamos errando muito. É bom lembrar que Deus sempre perdoa, porque ele "não fez a morte, nem tem prazer em destruir os seres vivos" (Sb 1,13). Nós, seres humanos, podemos perdoar, e isso depende da nossa compreensão e grandeza de coração. Contudo, não esqueçamos: a natureza, seja a nossa interior (o inconsciente, como a chama a psicologia) seja a exterior (todo o universo) não perdoa. Porque ela só sabe obedecer ao Criador, que a projetou para a vida. Nós, "humanos", somos os únicos seres capazes de nos desviar e desviar toda a criação para a Morte.

Estamos todos situados num ponto muito delicado, entre Deus e a natureza. Deus nos entregou as rédeas. Cabe a nós todos, e a cada um, decidir sobre o futuro: vitória ou derrota, da Vida ou da Morte. Quem vai ganhar ou perder? Nós mesmos!

A MATANÇA DA ALMA"Não matarás". Pensamos que o quinto mandamento diz respeito apenas à

materialidade do corpo. E nos esquecemos de que o corpo é a encarnação da alma espiritual, a raiz última da Vida que se expressa no amor, na arte, na religião e nas idéias criadoras de novas realidades e caminhos. Não basta respeitar o corpo. É preciso respeitar a alma que dá e se expressa através desse corpo. Mas, para isso, também a alma precisa de um corpo alimentado, cuidado, sadio.

No seu livro "Terra dos Homens", Saint-Exupéry descreve uma aldeia miserável que conheceu, e termina lamentando que em cada uma daquelas pessoas havia um Mozart assassinado. Ora, Mozart foi um dos maiores músicos, e nos deliciamos com aquilo que ele produziu. Mas nos esquecemos de que cada pessoa à nossa volta poderia ser um Mozart, ou um Bach, ou um Michelangelo, ou quem sabe, um novo Moisés, ou profeta, filósofo, cientista ou político que abririam insondáveis caminhos para nós todos. No entanto essa pessoa têm seus corpos tão castigados que sua alma nunca despertou, ou já murchou, ou já inevitavelmente ressequiu tanto que nada mais se pode esperar. Culpa de quem? De Deus? Ou do destino, como se as coisas tivessem que ser assim mesmo? Não. É culpa da mesquinhez cheia de interesses e caprichos egoístas de uma sociedade que impede que as pessoas usufruam da Vida que Deus deu para todos.

O pior assassínio é o da alma, porque ele resume todos os outros. A alma é incomensurável e está sempre voltada para Deus, o infinito da Vida que sequer podemos imaginar. Todavia, a cada vez que matamos a alma dos nossos irmãos, estamos impedindo

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que o próprio Deus se revele ao mundo em sua bondade e beleza. Se achamos que as pessoas "não têm mais alma", é porque foi cometido um grande crime. Quem foi que o cometeu, e como? Se não dermos condições para que a alma do povo viva e se expresse, todos nós acabaremos frustrados.

A MATANÇA DO PLANETA"Não matarás". Esse mandamento foi dirigido às pessoas humanas. E imaginamos

que não matando a pessoa que está perto de nós estamos quites com o mandamento. Esquecemos que a vida nos ultrapassa e nos cerca por todos os lados. Aliás, os antigos já diziam que o universo é um grande organismo vivo do qual fazemos parte. Coisa que os cientistas modernos estão começando a descobrir.

Fazemos parte de um grande sistema de Vida, que Deus criou voltado para mais Vida. E somos os únicos seres dotados de consciência, isto é, sabendo o que as coisas são. Mas parece que ainda não sabemos muito, porque, quanto mais civilizados somos, parece que estamos tanto mais destruindo este planeta que, no dizer dos astronautas que o contemplaram da lua, se parece com uma imensa jóia azul. No entanto, o que vemos? Estamos a cada instante comprometendo esta jóia. Desde os agrotóxicos, sabões, detergentes (queremos limpar o quê?), até os compostos de clorofluorcarbono (os elegantes aerossóis) estamos fabricando pouco a pouco a destruição do equilíbrio vital do nosso planeta. Isso para não falar dos lixos atômicos e de todos os outros lixos que nós, seres humanos, somos os únicos a produzir. O que é a civilização, afinal? Vida ou Morte?

Quando Deus criou a humanidade, ele disse que o Homem iria dominar toda a natureza (Gênesis 1). Não disse, porém, que devia destruir tudo, por uso indevido. Devemos sim entrar em sintonia consciente (com toda a ciência) com a natureza, para multiplicar a Vida, e não para destruí-la. Somos "imagem e semelhança" do Deus Criador da Vida. Toda vez que desrespeitamos, ou violamos, ou destruímos a Vida da natureza, para satisfazer nossas comodidades egoístas, estamos comprometendo a nossa própria vida e o destino futuro de toda a humanidade. Isso não é matar? Não é violar o quinto mandamento?

VII. SEXTO MANDAMENTO: RESPEITAR A FAMÍLIA DOS OUTROS

"Não pecar contra a castidade". Foi assim que aprendemos o sexto mandamento no catecismo. A Bíblia, porém, diz outra coisa: "Não cometerás adultério" ( Ex 20,14 e Dt 5,18). Claríssimo que são coisas completamente diferentes. O sexto mandamento, segundo a Bíblia, não está nada preocupado com a sexualidade, nem com a castidade.

Adultério é relação que acontece entre diferentes pessoas casadas, homens ou mulheres. Ao menor sinal disso, todo mundo fica preocupado ou interessado na área sexual, que parece ser o maior escândalo. E não é nisso que o sexto mandamento está interessado. O mandamento quer preservar o núcleo básico da sociedade, que é a família. Pois é dentro dela e a partir dela que o homem e a mulher se revelam um ao outro, crescem juntos e se lançam na relação social. E é no ninho formado pela relação amorosa entre homem e

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mulher, é nesse forno aquecido na temperatura exata que nasce a humanidade - futuros homens e mulheres - que vai continuar o mistério da vida humana. Só que os humanos demoram pelo menos dezoito anos para caminharem por si mesmos. Até lá terão de ser acompanhados. Por quem? Pelos pais, pai e mãe, marido e esposa, homem e mulher que se comprometeram.

Adultério é injustiça social. Injustiça contra a própria família e contra a família dos outros. É roubo perpetrado contra a própria esposa ou marido, e contra a esposa ou marido do outros. Principalmente um roubo do direito dos próprios filhos e dos filhos dos outros. Se o quarto mandamento nos mandava respeitar os próprios pais, este nos manda respeitar pais, mães e filhos dos outros. Deus é Vida que se dá. Ele não quer que tiremos a vida de ninguém. Como sua imagem e semelhança, ele quer que também nós demos a vida, e não que a roubemos!

E A SEXUALIDADE?Por quais caminhos, o sexto mandamento, que proíbe o adultério, acabou dando o

nosso "não pecar contra a castidade"? Difícil saber. Parece que a sexualidade não era problema para o povo da Bíblia, mas para nós ficou sendo. E tanto, que as mais diferentes pessoas vivem se perguntando e perguntando aos outros - pais (raramente), padres, professores, amigos, psicólogos - "afinal, posso ou não posso fazer?” Fazer o quê? Sabe lá Deus o quê, e nós também. Quem é inteligente não pergunta, e quem é prudente não responde.

Sexo é natureza e, como o nome diz, natureza é aquilo que nasce, é vida produzindo vida, que cresce e produz vida nova. Mas o que é Vida? Podemos descrever todo o processo visível de vida. Palmas para a ciência. Mas não sabemos nada daquilo que está por trás do visível, o fundo desse mistério insondável que chamamos tão simplesmente de "vida". Podemos ou não criar vida? Não podemos. Mas devemos. O fato é que ela se faz de nós, e mesmo apesar de nós. Somos apenas canais, e ela corre através de nós.

Sexo é mistério criador de vida. Quando compreendemos isso, só nos resta adorar o mistério e servir a vida. Não adianta querermos fazer dele o que ele próprio não é, ou dele tirar proveito. Ficaremos frustrados. A vida não volta atrás, para servir aos nossos caprichos. Ela sai de Deus, e, uma vez desencadeado o seu processo, ela vai sempre para a frente, de novo à procura de Deus. Porque Deus pode satisfazer o infinito anseio de vida que a vida tem. Somos um elo na corrente que liga a mão direita de Deus à sua esquerda. Perceber, aceitar e amar esse mistério é a nossa tarefa de animais (seres animados) racionais. O importante é nunca se esquecer da pergunta: "Por quê?" Um dia Deus nos responderá!

O QUE É A CASTIDADE?Dizem que a castidade é uma das grandes virtudes. O sexto mandamento, segundo o

catecismo, teve grande influência nisso. Mas nunca explicam direito o que é castidade. É fazer ou não fazer sexo, ou "fazer amor", como se diz? Tormentos, dúvidas, escrúpulo. Pode ou não pode? Vale ou não vale a pena?

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"Tudo vale a pena, se a alma não é pequena", diz Fernando Pessoa, o grande poeta. E muito antes diz Agostinho, o pecador que se tornou santo: "Ame e faça o que você quiser!" E aí temos tudo: alma e amor. Um depende do outro e um faz o outro. Mas, por que é que as coisas se complicam tanto na vida? Porque a insegurança, falta de confiança, sempre acaba se intrometendo no mistério da alma e do amor. E aparece a idéia da posse. Segurar o que se conquistou, possuir o que se cativou. Prisão. E quem é que gosta disso?

Castidade é se relacionar com o mundo sem possuí-lo. O mundo é de Deus. Nós também. Cada um de nós. E cada um dos seres. E, compreenda quem puder, Deus não possui nada. Criou tudo, e entregou tudo à humanidade. Restou seu Filho. Pois ele entregou seu Filho também. E Deus ficou apenas sendo, sem mais nada. Ele é castidade absoluta. Nós, criados à imagem e semelhança dele, ficamos com esse modelo que podemos aceitar ou não. Deus é a felicidade absoluta, porque só é. Não possui nada porque deu tudo.

Castidade é essa pureza de ser puro dom, entrega, presente. Deus criou o universo inteiro, e não ficou com nada para si. Tornou-se pobre. Não bastasse isso, deu-se a si mesmo. Se ele, Deus, fez isso, o que nós, sua imagem e semelhança, somos convidados a fazer? Darmo-nos também. Aprender que as flores não precisam ser apanhadas no jardim. Elas já estão se dando!

VIII. SÉTIMO MANDAMENTO: NÃO ROUBARÁSCatecismo e Bíblia concordam na versão do sétimo mandamento: "Não roubarás"

(Ex 20,15 e Dt 5,19). Alguns preferem o verbo furtar, menos chocante, mais elegante. Contudo, o que proíbe esse mandamento? O texto fala de roubar, mas não especifica o quê.

O verbo hebraico roubar (ganab) é usado em muitos contextos na Bíblia, tanto para o roubo de coisas, como, principalmente, para o roubo da liberdade, que reduz as pessoas à escravidão. E esses dois roubos podiam estar intimamente ligados: depois de completamente roubada no que possuía (bens, casa, pequena propriedade), a pessoa não tinha outra saída senão vender a si mesma como objeto, um corpo sem consciência e vontade própria. Daí por diante ficava à mercê de alguém mais poderoso, que lhe roubava o que há de mais íntimo: a liberdade que garante a originalidade de uma vida pessoal e irrepetível.

O povo de Israel havia lutado por uma sociedade igualitária, onde todos podem ter uma vida digna, com os bens necessários e um espaço para a liberdade, tanto para tomar decisões próprias, como para participar nos rumos da sociedade e da história. E tanto lutou que conseguiu. A ganância, porém, era um perigo sempre à espreita. Mal interpretado, o desejo de eternidade torna-se ganância sem medida, que não respeita mais os próprios limites, invadindo o terreno da liberdade e da vida dos outros. E assim, pouco a pouco, alguns se tornam poderosos e ricos, fabricando ao seu lado a miséria e a escravidão de um povo todo, quando não de nações e continentes inteiros. Israel tinha consciência disso e, quando intuiu o sétimo mandamento, estava procurando conter a volta para trás para o abismo escuro e profundo da miséria e da escravidão, que matam a liberdade e a vida do povo!

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O ROUBO "LEGALIZADO""Não roubarás!" certo. Para o povo de Israel esse mandamento era a forma de

garantir a continuidade de uma vida social igualitária. Contudo, e quando a relação social não é nada igualitária? E quando se baseia justamente na desigualdade, na injustiça estabelecida, reconhecida e aprovada daquele caso muito especial de roubo que se chama lucro? Como é que fica então o sétimo mandamento?

O alicerce econômico principal de qualquer nação do Ocidente, principalmente as chamadas "desenvolvidas", é o lucro. Lucro que dá origem ao capital, capital que é investido na produção, produção que dá mais lucro, lucro que aumenta mais o capital, que aumenta a produção, que multiplica o lucro, que... O que nunca fica claro é: de quem é todo esse lucro? Do povo? Não, é claro. O povo mal tem o que comer, o que vestir, não tem casa própria, se "vira" como pode (quando pode), não descansa, não pode educar direito os filhos, e ainda procria futuros proletários e proletárias e prostitutas... Para satisfazer a ganância de quem? Aqui o sétimo mandamento já rodou há muito tempo. Esse povo inteiro já foi roubado, tanto na sua vida, reduzida à miséria, quanto na sua liberdade, há muito transformada em escravidão. Já não tem forças para viver e, quando pára de trabalhar, dorme. Dorme no ônibus, no banco da praça, no chão, na sarjeta, sem força no corpo, sem vida na alma, tudo morto... Já foi roubado em tudo: no que produziu, no que é, roubado na alma, reduzido a menos que um bicho... E ainda dizem que ele é indolente, vagabundo, imprestável!

Se nos calarmos diante disso, Deus não calará. Ao ver o que foi feito com a sua criação, Deus fica revoltado, e convoca o julgamento, e nos pede contas. Como é que podemos agüentar esse julgamento?

ROUBO? OU JUSTIÇA?"Não roubarás!" Todo mundo concorda com o mandamento, até mesmo os ladrões

disfarçados e legitimados pelo sistema que tem sua base fundamental no lucro, que é roubo puro, mas disfarçados, legalizado, “limpo", como se diz. Aqui o roubo já se tornou a regra do jogo. E o sétimo mandamento?

Em geral ficamos calados diante do roubo generalizado e institucionalizado, aquele que vai criar gordas somas nos bancos estrangeiros - a Suíça que o diga. Mas somos sensibilíssimos aos pequenos roubos, o roubo perpetrado por aquele que passa fome, e rouba para comer ou tomar um gole de cachaça, tão pequeno o roubo é. Diante disso todo mundo grita, e chama a polícia, e clama para pôr o "trombadinha" na cadeia, para que ele aprenda. Aprender o quê? A roubar com mais elegância? Uma pessoa com profundo senso de justiça me disse que seria capaz de chefiar um grupo de pessoas com fome para um assalto. E algo semelhante disse uma prostituta cuja especialidade é proteger trombadinhas perseguidos pela polícia. Quando o perigo passa, ela diz ao menino: "Vá, meu filho, vá. E que Deus o abençoe!" Será que Deus abençoa essa atitude? Creio que sim, numa sociedade em que esse exemplo vem de cima, dos poderosos que roubam impunemente um povo inteiro.

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Segundo a Bíblia, Deus inverte as nossas perspectivas. Ele próprio se aliou a um grupo de escravos para formar o seu povo (livro do Êxodo), subvertendo o sistema que rouba a liberdade e a vida em nome da pura ganância. Se compreendermos isso, também compreenderemos que Deus abençoa e legitima o roubo feito pelo pobre. Não seria ele uma denúncia e, ainda que tortuosa e canhestra, uma busca desesperada de fazer a justiça que Deus quer?

QUESTÃO DE FILOSOFIA"Não roubarás!" Mandamento difícil de se observar numa sociedade em que roubar

é a regra. Exceção é ser honesto, ou bobo, como se costuma dizer. O interessante é que tudo isso envolve uma questão de filosofia, ou de três sistemas filosóficos, todos eles lindamente expostos na parábola do bom samaritano, em Lucas 10,25-37.

O primeiro sistema filosófico é o dos assaltantes que saqueiam aquele homem, roubando-lhe tudo: o dinheiro, os bens, a força de trabalho, a vida... O ponto de vista do ladrão é: "o que é teu é meu!" O outro sistema é o do sacerdote e do levita, que passam, vêem o homem assaltado e agonizante, e seguem em frente, sem nada fazer. A filosofia destes é "o que é meu é meu", ou seja, não tenho nada a ver com isso. O terceiro sistema filosófico é o do samaritano, inimigo consumado dos judeus - e, ao que parece, o homem assaltado era um judeu.

Pois bem, o samaritano se enche de compaixão (= sofrer junto), faz ali mesmo tudo o que pode, continua a cuidar da vítima numa hospedaria, e ainda se dispõe a saldar os gastos futuros... A filosofia dele é "o que é meu é teu!"

Aí estão os três grandes sistemas econômicos que atingem o ser e o ter das pessoas. É claro que Jesus, e Deus com ele, escolheram o terceiro. Afinal, Jesus entregou-se a si mesmo pelo povo, dando tudo o que tinha e o que era. E não impôs nada. Deixou apenas uma sugestão, um convite: "Por que vocês não fazem o mesmo?"

A meu ver não existem outras filosofias econômicas além das três apresentadas nessa parábola. Não há como escapar delas. Resta-nos ver qual delas dirige a nossa vida. Mas, atenção: Deus está com o samaritano, superando todas as barreiras que criamos. E agora, com quem vamos ficar?

TRABALHO X ESPERTEZANuma visão concêntrica do Decálogo, o terceiro mandamento corresponde ao

sétimo. O terceiro mostra o ritmo da vida - trabalho e descanso - que propicia a base econômica para sustentar a família na sua vida biológica, base imprescindível para a vivência do mistério da liberdade. O sétimo mandamento proíbe de roubar. Mas roubar o quê? O trabalho e/ou o descanso a que o próximo tem direito.

Não há muitos caminhos para sustentar a vida e possibilitar o exercício da liberdade. Só há duas formas: ou trabalhar (e descansar, para agüentar a parada), ou roubar o trabalho e o descanso dos outros. Isto é, ou se vive do próprio trabalho, ou se vive da esperteza de roubar o trabalho dos outros. A primeira forma gera uma sociedade onde os bens da vida e da liberdade podem ser igualitariamente conquistados por todos. A segunda produz a

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relação social injusta e desigual, onde um grupo de espertos rouba o trabalho e o descanso da maioria. Os privilegiados ficam sempre mais ricos e poderosos; o povo se torna cada vez mais pobre e fraco, reduzido à mínima (quando há) expressão de vida e liberdade. Enquanto isso, os privilegiados esbanjam possibilidades que nenhum proveito lhes traz. É sempre assim: só damos valor àquilo que conquistamos às duras penas, com dedicação e suor.

Se o trabalho possibilita a sustentação da vida, o descanso permite a descoberta e o exercício da liberdade. A escravatura foi abolida há muito tempo. O que não se aboliu foi a mentalidade de explorar e roubar os corpos e as consciências dos outros. Essa mentalidade gerou sistemas econômicos e políticos diabólicos, onde roubar é a regra do jogo. Até quando o povo continuará em silêncio, achando que "Deus quer assim?" Esse não é o Deus verdadeiro...

IX. OITAVO MANDAMENTO: A FAMA DO PRÓXIMOConforme o catecismo, o oitavo mandamento diz: "Não levantar falso testemunho!"

A Bíblia continua: "contra o teu próximo" (Ex 20,16 e Dt 5,20). À primeira vista o mandamento proíbe "falar mal dos outros!" Mas a coisa é mais grave, e envolve o depoimento das testemunhas no tribunal encarregado de fazer justiça.

Em Israel o tribunal funcionava nas portas da cidade, isto é, no lugar mais público. Para aí se dirigiam as pessoas que tinham alguma questão para resolver, em geral conflitos de interesse. Eram convocados os anciãos do lugar, que exerciam a autoridade de juízes e davam a sentença. Cada uma das partes conflitantes levava suas testemunhas, para apoiar seu depoimento. Ouvida a "briga" entre as partes, ouvidas as testemunhas, os anciãos davam a sentença e a penalidade correspondente, prevista por lei.

O mandamento se refere a esse clima de tribunal, principalmente ao papel das testemunhas. Estas podiam ser "contratadas" ou "compradas" e, assim, servir aos interesses de "quem podia mais" ou de "quem pagava mais!" O célebre suborno que, na atualidade, atingiu proporções políticas e econômicas de grande porte.

Hoje as portas da cidade são o Ministério da Justiça e os tribunais, onde se espera a justiça. Não é o que acontece, porém. Quem é que vê os poderosos perderem uma causa? Quem é que vê o pobre sem meios (econômicos) ganhar sua pequena questão, embora dela dependa sua magra sobrevivência? Nos tribunais de hoje há inúmeras "gavetas", onde os processos dos pobres apodrecem, e de onde os processos de "quem pode" desaparecem. Coisa maravilhosa, para não dizer mágica. O que são os tribunais? Templos da justiça ou da injustiça?

FAMA E QUESTÃO SOCIALÉ claro que o oitavo mandamento - "Não levantar falso testemunho contra o

próximo"- não fica apenas em questões de relacionamento pessoal, mas envolve os relacionamentos mútuos de grandes segmentos da sociedade, permeados sempre por questões econômicas e políticas, por sua vez penetradas pelas idéias que procuram justificar e cimentar toda a construção social.

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A sociedade capitalista estratifica o povo de acordo com seu poder aquisitivo e sua chance de participação nas decisões políticas e no mundo das idéias. Temos assim as classes sociais. Na camada mais baixa temos os marginalizados, totalmente dependentes da "bondade" social. Depois vêm os pobres, ganhando entre um e cinco salários mínimos. Depois temos a classe média, ganhando entre seis e duzentos salários mínimos. Finalmente vem a classe rica, que vive do "trabalho estafante" de administrar suas rendas.

Nesse quadro de sociedade, como fica a honra devida ao próximo? As classes sociais se interpenetram e interdependem, para o bem de uns e mal dos outros. Afinal, como explicar a riqueza e o poder de uns sem recorrer à pobreza e à fraqueza de outros? Quando algo encrenca na máquina social - em geral uma busca mínima de justiça - as coisas complicam. De quem é a culpa? Quem está com a razão? Os ricos e os médio-ricos culpam os pobre e os marginalizados. Estes últimos, por sua vez, culpam-se a si próprios, e se digladiam no próprio seio da miséria. E a justiça? E a honradez ou boa-fama do próximo, para onde vai? Os que estão em cima culpam os de baixo, os do meio culpam os de baixo também, e os que estão lá embaixo culpam os que estão à margem. Acabamos todos no buraco negro e sujo da injustiça. E uma vez aqui, quem é que pode ter boa-fama?

FOFOCO - TERAPIA? Se o oitavo mandamento busca proteger o direito de todo o mundo à boa-fama, ele

está contra toda e qualquer forma de difamação. E aqui temos o caso da fofoca, em todos os níveis em que ela acontece: crítica destrutiva nos grandes meios de comunicação, distorção nas informações, desvendamento de segredos delicados, mexericos ao pé do muro (ou da cerca)... Em tudo isso o que se visa é sempre acabar com a fama e a credibilidade dos outros.

Dizem que "fofocar", ou "falar mal dos outros", é psicoterapia de pobre, e que isso faz bem, alivia. Para quem fala, é claro! Coisa muito discutível. Os psicólogos de hoje conhecem bem o fenômeno da sombra inconsciente que, quando não é reconhecida, torna-se projetada. Mas, bem antes da Psicologia atual, Jesus dizia: "Vocês serão julgados com o mesmo julgamento com que vocês julgarem... Hipócrita, tire primeiro a trave de seu próprio olho, e então você enxergará bem para tirar o cisco do seu irmão" (Mt 7,1-5). E quinhentos anos antes, Confúcio já dizia : "O Homem de bem, quando vê uma qualidade nos outros, ele a imita, quando vê um defeito nos outros, ele o corrige em si próprio!"

Nós vemos nos outros aquilo que nós mesmos somos. Os outros funcionam como espelho, tanto para o que temos de bom, como para o que temos de sombra. É nessa luz que podemos compreender melhor o que significa a inveja e a irritação que os outros provocam em nós. A inveja mostra que temos aquela qualidade, só que ainda não desenvolvida. Por que não desenvolvê-la então? E a irritação mostra que também temos aquele defeito, só que abafado, escondido. E por que não corrigi-lo? Só então entenderemos o desafio: "Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra"(Jo 8,7).

TUDO ISSO, MAS ...A técnica mais refinada de ir contra o oitavo mandamento, destruindo a boa-fama

dos outros, técnica praticada por pessoas muito inteligentes ou educadas, é a técnica do

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"mas". Funciona assim: Em determinado ambiente ou círculo de pessoas, alguém fala de alguém muito conhecido e, em geral muito respeitado. Então uma das pessoas começa a tecer uma série longa de elogios a esse alguém (ausente, é claro): "Ah, fulano ou fulana é assim e assim, faz isso e aquilo, também já fez coisas deslumbrantes, e tal e tal..."e prolonga os elogios ao máximo. Contudo, no momento do maior suspense, vem o "mas... ele é assim" ou então "mas ele fez aquilo..." Assim como ou aquilo o quê? Claro, uma coisa que todos condenaria, sem pestanejar. A técnica é ótima. Usada com inteligência de construção e delicadeza na execução, não falha nunca. É também a mais sofisticada forma de acabar com qualquer neste mundo, pois não há santo ou leigo que não tenha sido ou feito o seu "mas". Até São Paulo tinha o seu "espinho na carne"... E São Pedro então? Não renegou ele o Cristo?

"Mas" é uma forma eficientíssima de condenar qualquer pessoa. Só que não percebemos que por trás do "mas" e daquilo que vem depois dele estamos nós mesmos. Só vemos nos outros o que nós mesmos somos. E pior ainda: Por que é que precisamos condenar os outros? Esta é apenas uma forma de absolvermos a nós mesmos. Este é o mal dos perfeitos, daqueles que jamais tiveram a coragem de se olhar no espelho. Deus sabe lá por quê. Elas preferem se olhar nos outros e condenarem a si mesmas nos outros. E no fim não entendem como é que ficaram tão anuladas e tudo. Não são capazes de compreender que o "mas" com que mataram os outros acabou por matá-las também.

X. NOVE OU DEZ?Lendo atentamente o texto de Ex 20,17, perceberemos que um só verbo rege o nono

e o décimo mandamentos: "Não cobiçarás (hamad) a casa do teu próximo, não cobiçarás (hamad) a sua mulher, nem seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo!" Isso nos permite afirmar que, na origem, os dois últimos mandamentos do catecismo ("Não desejar a mulher do próximo" e "Não cobiçar as coisas alheias") fossem um só. O mandamento proíbe a cobiça. E a mulher, entre outras coisas, podia ser um objeto cobiçado. Coisa de sociedade patriarcal e machista.

O Deuteronômio é um pouco diferente. Em Dt 5,21 temos: "Não cobiçarás (hamad) a mulher do teu próximo; nem desejarás ('awah) para ti a casa do teu próximo, nem o seu campo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo!". A mulher vem em primeiro lugar na lista, regida pelo verbo cobiçar (hamad), e o resto é regido pelo verbo desejar ('awah). Há uma distinção no Deuteronômio, e foi provavelmente a partir dela que o Decálogo do nosso catecismo aparece na forma de Dez mandamentos. E então, são nove ou dez?

Nem o texto do Deuteronômio nem o do Êxodo reproduzem a forma antiga do mandamento. Na origem, este devia ser simplesmente: "Não cobiçarás as propriedades do teu próximo!" A mulher era uma das coisas que o próximo possuía. Pode ser estranho, mas era assim. Será que hoje as coisas mudaram? É bom verificar, porque em geral se pensa uma coisa e se vive outra. Como a esposa e o marido já são especialmente contemplados no

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sexto mandamento (proibição do adultério), prefiro ficar com a conta de nove mandamentos, e perguntar o que é cobiça!

COBIÇAR É DESEJAR?Nono e décimo mandamentos proíbem a cobiça, qualquer que seja a forma de seu

objeto. Mas o que é cobiça? Em geral a confundimos com o desejo. Estamos errados. Cobiça é um passo além do desejo.

Desejar, em hebraico, é 'awah, verbo que significa "ter vontade de, ter impulso para, querer tal coisa!" Esse verbo é sempre aplicado para alguém que vê alguma coisa e a deseja, querendo tê-la para si - pode ser uma mulher, um homem, ou qualquer coisa que não se possua. Mas cobiçar é coisa muito mais séria. Hamad, em hebraico, significa "fazer planos, maquinações e armadilhas para arrebatar aquilo que se deseja!" Pode ser a mulher do próximo, ou o marido da próxima, ou outra coisa que o próximo possua: sua propriedade, meio de trabalho, ou suas idéias, e daí para a frente. Enquanto o desejo é realidade interna, a cobiça é o plano para realizar externamente o desejo. Achar bonita a mulher do próximo, e até desejá-la, é uma coisa. Mas fazer planos para apropriar-se dela é outra: aqui já entra a cobiça. Pode não ser a mulher, mas o sitiozinho, a empregada ou empregado, ou o quintal, o meio de trabalho, ou o emprego, o trator, as idéias, e até a roupa ou o sapato do próximo.

Israel tinha lutado para criar uma sociedade igualitária, onde todos pudessem ter o necessário para viver dignamente. Lutou e conseguiu. Mas o desejo não se extingue e, quando ele se transforma em cobiça, em plano para tirar o que o outro possui, ele começa a recriar a desigualdade que em nome da justiça se havia antes combatido. O desejo é infinito. Certo. Mas, se mal compreendido, transforma-se logo em cobiça e produz o engano fundamental: ter mais em vez de ser mais. E quem disse que a felicidade está em ter mais?

A FONTE DA DESIGUALDADEO mandamento que proíbe a cobiça procurar assegurar a continuidade de uma

sociedade igualitária, onde todos podem ter o necessário e o suficiente para viver bem (partilha econômica dos bens) e se expressar socialmente (exercício político da liberdade). De fato, a cobiça de possuir o que pertence ao outro é a fonte da desigualdade, pois ela se alimenta da exploração dos bens e da opressão das liberdades. Desse modo nasce a sociedade de classes, onde uma pequena minoria privilegiada detém o controle econômico e político, contra os interesses da grande massa do povo, reduzido à miséria e marginalidade.

Esmagado pela insaciável cobiça dos grandes e poderosos, cedo ou tarde o pobre só vê uma saída para continuar sobrevivendo: vender bem barato a sua casa, o seu pequeno campo, seus poucos animais (meio de trabalho) ou seu pequeno comércio. Sem nada, procura agora um subemprego e uma submoradia. Em troca formam-se os grandes latifúndios, improdutivos ou sustentados a custo de "bóia-frias", e, na cidade, a especulação imobiliária, onde os aluguéis astronômicos dão origem às favelas e cortiços, e a concentração do comércio e industria na mão de multinacionais, que mais e mais exploram a força de trabalho e o magro salário do povo pobre.

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Falar de cobiça dentro de um sistema construído e alimentado pela cobiça é o mesmo que pôr abaixo o sistema. Usar o mandamento para defender a propriedade dos poderosos seria torcer a Palavra de Deus e, em primeiro lugar, ir contra o segundo mandamento, tornando Deus cúmplice da injustiça. Contra a cobiça desenfreada dos grandes, aos pobres só resta um caminho: cobiçar desenfreadamente a liberdade que, alimentada com a fome e a sede de justiça, sempre venceu todas as batalhas!

SER OU CONSUMIR?Todos nós somos seres inacabados e com uma vocação infinita. Somos e não

somos. Temos sede de ser e, quando nos tornamos, desejamos ser mais, e sempre cada vez mais, rasgando todos os limites e horizontes conhecidos. No centro de cada um de nós está o desejo infinito, espelhando o próprio Deus que nos chamou à vida para sermos "imagem e semelhança" dele mesmo (Gn 1,26-27). De modo que o que desejamos mesmo é Deus, ou a eternidade.

O perigo é confundir o ser com o ter. Aí vem o engano fundamental: ter mais, em vez de ser mais. Como o desejo é infinito, infinita é a sede também. E agora? Quem não tem, quer ter, e quem tem, quer ter sempre mais. Está montado o jogo do consumo que, em nome do lucro e do poder de alguns, vai explorar o nosso desejo de eternidade, transformando-o em cobiça de ter, sempre oferecendo a cada instante um ilusório passo a mais para a nossa realização. Realização ou tapeação? A cada instante as vitrinas e os meios de comunicação (TV, Rádio, Jornal, Revistas, Cartazes) nos oferecem a "eternidade" em troca de um produto qualquer. Acreditamos. Experimentamos. E ficamos frustrados. Tudo acabado? Não. Logo chegam novas propagandas, e tudo recomeça. E nós, sempre com aquela sensação amarga de que "Tudo isso é bom. A gente é que não presta"!

Numa sociedade em que a cobiça dos grandes é a regra, o povo é sempre tapeado para consumir "cobiças menores". Os grandes, é claro, sempre embolsam seus polpudos lucros. Quem vai nos ensinar que tudo isso é tapeação do nosso mais profundo e legítimo desejo, transformado em ilegítima cobiça que não leva a nada, a não ser voltar vazios e desesperados ao terno desejo de ser e viver, em vez de ter e consumir máscaras vazias?

XI. UMA LEITURA DIFERENTEHá muitos modos de se ler um texto, e cada modo leva a descobrir novos

significados. Os antigos cultivavam uma técnica literária chamada quiasmo, que consiste em construir o texto a partir de um núcleo central. Ao redor desse núcleo ou idéia central monta-se o resto, usando a técnica do paralelismo, de modo a conseguir diversas correspondência em paralelo. No fim o texto o texto se parece com uma cebola, onde as várias capas ou folhas envolvem o centro, preparando e tirando as conseqüências do tema central. Visto numa estrutura concêntrica ou quiástica o Decálogo ficaria assim:

1. Servir ao Deus Libertador (Ex 20,2-6; Dt 5,6-10)

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2. Não Manipular o Nome de Deus Ex 20,7; Dt 5,11 3. Trabalhar e descansar Ex 20,8-11; Dt 5,12-15 4. Honrar a própria família Ex 20,12; Dt 5,16 5. Lutar contra a Morte pela Vida Ex 20,13; Dt 5,17 6. Não adulterar a família do próximo Ex 20,14; Dt 5,18 7. Não roubar o trabalho e o descanso Ex 20,15; Dt 5,19 8. Não difamar o nome do próximo Ex 20,16; Dt 5,20 9. Não cobiçar os bens do próximo Ex 20,17; Dt 5,21

V I D A X MORTE

caminho da vida caminho da morte

1 - 2 - 3 - 4 > 5 < 6 - 7 - 8 - 9

Vemos logo que o quinto mandamento - “Não matarás” - é o centro do Decálogo. Aí se encontra ao mesmo tempo o problema central que está por trás de todos os nossos problemas pessoais e sociais: lutar contra a Morte, para preservar a Vida. Os diversos momentos dessa luta fundamental são apresentados nos outros mandamentos. Estes se correspondem dois a dois , aos pares: o 4º com o 6º, o 3º com o 7º, o 2º com o 8º, e o 1º com o 9º. Basta olhar para o gráfico e começaremos a descobrir várias coisas. Por exemplo: nunca se viola um mandamento só, porque um sempre implica o outro. Também se percebe que todo o conjunto é fortemente amarrado, de modo que o desrespeito a um mandamento compromete logo todos os outros. A observação de todos leva à Vida. A violação de um só deles desmonta o conjunto inteiro, e acaba sempre comprometendo a Vida e produzindo algum tipo de morte.

É interessante agora ter em mente este gráfico e reler os textos bíblicos do Decálogo e os comentários que já foram feitos. Vamos dar um passo à frente.

HONRAR A DEUS E AO PRÓXIMO

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Segundo e oitavo mandamentos se correspondem. Se o segundo proíbe desonrar ou manipular o nome de Deus para servir aos nossos caprichos egoístas, o oitavo nos proíbe fazer o mesmo com o nome do próximo. As duas coisas estão intimamente unidas: quem não respeita a Deus é claro que também não respeita o próximo.

Desonramos a Deus quando usamos o seu nome para nossos interesses egoístas, contrários ao seu projeto, que é liberdade e vida para todos. É claro que todos nós desejamos liberdade e vida. Contudo, sempre que este desejo se restringe só para nós mesmos, não temos o direito de dizer que estamos servindo a Deus, e muito menos dizer que estamos com ele, ou que ele está conosco. Podem ser projetos pessoais, ou sociais, econômicos, políticos e ideológicos. No projeto de Deus não há cercas nem fronteiras. Se colocarmos cercas ou fronteiras (familiares, de classe, de nação, raça ou religião) em nossos projetos, já não podemos dizer que o nosso projeto coincide com o projeto de Deus.

Antigamente, e ainda hoje, o nome de Deus era usado nos tribunais, onde se joga com a honra do próximo. Fora dos tribunais também. Contudo, de modo algum temos o direito de manipular o nome do próximo em proveito dos nossos interesses. Muito menos ainda servindo-nos do nome de Deus. É claro que, quando isso acontece apenas querendo salvar nossa própria pele, ainda que para isso tenhamos que sujar o nome de Deus e o nome do próximo. Ora, se não estamos contentes com o que somos, para que querer diminuir Deus e o próximo às nossas proporções? Não seria melhor nós mesmos nos transformarmos e crescer, em vez de querer que o mundo se reduza ao tamanho do nosso quintal e de nossas mesquinhas proporções?

OU DEUS OU OS ÍDOLOSO primeiro mandamento corresponde ao nono. O primeiro nos convida a servir

exclusivamente ao misterioso Deus vivo, que liberta as pessoas da escravidão e da morte, para levá-las todas à liberdade e à vida. O nono proíbe a cobiça, que é a mãe de todos os ídolos, falsos deuses que, em nome da liberdade e da vida para mim, fabrica a escravidão e a morte para todos.

O Deus verdadeiro liberta a pessoa para ela ser o que ela é e ter o necessário para viver, sem prejuízo de ninguém, ou melhor, para a alegria de todos. Liberdade é esse mistério de podermos descobrir o que somos e passar a ser aquilo que Deus projetou para sermos, repartindo o nosso ser com todos os outros. Vida é outro mistério: descobrirmos que temos o direito de viver e ter o necessário para viver dignamente, repartindo tudo o que existe e o que temos com todos outros. Partilha do ser e do ter, com todos. Isso é o que Deus quer, porque isso é também o que ele próprio é. Criados à sua imagem e semelhança, só nos realizaremos sendo como ele é.

A cobiça, porém, solapa o projeto de Deus. Nossa fome de liberdade, em vez de se descobrir e se realizar, começa a ir pelo caminho torto de fazer planos para roubar o que os outros são ou seriam. Pensamos que assim seremos mais. Grande engano. E a nossa fome de vida? Em vez de repartirmos o que temos, começamos a querer ter mais, insaciavelmente, roubando o que os outros têm. Pensamos assim satisfazer nossa fome de vida. Outro grande engano.

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Nossa cobiça cria ídolos, e eles são o contrário de Deus, e justamente o contrário do que queríamos. Em vez de liberdade, teremos escravidão, para nós e para os outros. Em vez de vida teremos morte para todos, e em todos os sentidos!

O CAMINHO DA VIDAOs mandamentos foram fruto da luta que o povo de Deus fez contra a escravidão e a

morte, para conquistar a liberdade e a vida. Nessa luta Deus se aliou ao povo e o chefiou, pois o Deus verdadeiro é a própria fonte da liberdade e da vida, e quer que todos usufruam delas.

Vitorioso na luta liderada pelo próprio Deus, o povo conquistou a liberdade e a vida. Restava agora criar uma sociedade nova, onde a conquista não fosse jogada fora e as coisas simplesmente voltassem a ser como antes. Para que isso não acontecesse surgiram os mandamentos, as palavras sagradas. Elas são o dom feito por Deus através do discernimento do povo que se dispôs a construir a sociedade e a história conforme o projeto divino.

O centro do projeto é a VIDA. Para que todos a tenham é preciso observar todos e cada um dos mandamentos. Primeiro servir ao Deus verdadeiro, misterioso e irrepresentável em formas ou conceitos. E também não manipular o seu nome a serviço do egoísmo pessoal ou social. Depois construir o mundo humano com trabalho e descanso, com esforço e suor, mas também com arte e beleza. E no meio disso tudo, respeitar e continuar a luta que os nossos pais começaram; luta da qual nascemos, crescemos e somos. Qual luta? A luta da Vida, em todos os sentidos, contra a Morte, em todos os sentidos.

Deus projetou a Vida e quer que todos nós estejamos sempre a caminho dela. Esse caminho precisa ser procurado, descoberto, construído e trilhado por todos e cada um. É em nossa vida pessoal e social que vamos construindo o caminho da Vida. Mas, para onde vai ele? Para Deus, fonte e fim, começo e plenitude, inspiração e realização do mistério da Vida. Ele que é a própria Vida!

O CAMINHO DA MORTESe do primeiro ao quinto mandamento temos o caminho da Vida, na direção inversa

temos, do nono ao quinto mandamento, o caminho da Morte. Foi contra esse projeto de Morte que o povo de Deus lutou. E pode ser que nós, pessoal ou socialmente, estejamos envolvidos nesse projeto de Morte. Pode ser que nem percebamos, mas é certo que sofremos inevitavelmente suas conseqüências.

O caminho da Morte começa com a cobiça. Quando começamos a cobiçar (= fazer planos para tomar para si) o que os outros são e têm, já estamos fabricando ídolos, falsos absolutos que, colocados no lugar de Deus, passam a construir o caminho da escravidão e da morte. Dado esse passo inicial, o restante é mera conseqüência. Se nossa avidez é o mais importante, para que respeitar a pessoa ou a honra do próximo? Se o mais importante é sermos e termos mais, por que não roubar, sempre com muita elegância, o que o próximo é ou possui? E se o mais importante é eu mesmo e a minha família, por que respeitar a família do próximo - sua mulher, seu marido, seus filhos e filhas? E para que lutar pela Vida, quando o lucro, o sucesso e o prestígio estão do lado dos que fabricam a Morte?

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Quando entendemos mal e colocamos mal a nossa ânsia de liberdade e vida, acabamos invertendo tudo. Primeiro usurpamos o lugar de Deus e, a seguir, ninguém mais pode nos segurar. Queremos engolir os outros e o mundo inteiro para saciar essa fome divina e infinita que, mal entendida e mal direcionada, transforma-se em apetite devorador. Não nos assustemos se no fim descobrirmos que estamos escravizados e condenados à morte. Nós, que queríamos tanto. Às vezes o arrependimento chega tarde demais...

SÓ DOIS MANDAMENTOSOs mandamentos também são temas do Novo Testamento. Nos três primeiros

evangelhos sempre alguém pergunta a Jesus sobre isso. A forma mais interessante aparece em Lucas 10,25-28. Um especialista em leis (e, portanto, sobre os mandamentos) pergunta a Jesus o que deve fazer para ter a vida eterna, que é a vida que Deus promete. Jesus faz o próprio homem responder: "Ame o Senhor seu Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com toda a sua força e com toda a sua mente; e ao próximo como a si mesmo!" E Jesus aprova a resposta: "Você respondeu certo. Faça isso, e viverá!"

Vemos logo que o Evangelho dá um passo à frente dos Dez Mandamentos(ou nove, ou onze, ou doze). Jesus sintetiza a vontade do Pai em apenas dois mandamentos: amar a Deus com total devotamento (coração, alma, força e mente) e ao próximo como a si mesmo. Aí está a essência do comportamento que leva à vida verdadeira e plenamente humana, a vida do reino que Deus projetou para nós.

O amor a Deus é a mística do Reino. Esse amor deve estar por trás e penetrar tudo o que fazemos, desde a mamadeira para o bebê que acorda à noite chorando, até a luta pela justiça que nos faz gritar nas manifestações de rua. Devemos fazer tudo com a mística do amor a Deus, porque Deus é vida, projeta a vida, e obedecer a ele é obedecer à vida, para que todos tenham Vida.

E o amor ao próximo é a ética do Reino. Se amar a Deus é a nossa devoção, o amor ao próximo é a nossa ação, traduzindo visivelmente aquela devoção ao invisível mistério da Vida. E o critério é muito fácil: como a si mesmo. Podemos não saber o que queremos, mas sabemos muito bem o que não queremos. É só agir assim com o próximo...

SEGUIR A JESUSCerto homem queria ter a vida eterna e perguntou a Jesus o que devia fazer. Jesus

lhe disse para observar os mandamentos. O homem respondeu que já observava os mandamentos desde a juventude. Jesus percebeu que aquele homem queria dar um passo além dos mandamentos, e olhou com amor. Então lhe disse: "Falta só uma coisa para você fazer: vá, vende tudo, dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois venha e siga-me!" (leia Marcos 10,17-31).

Esse trecho do evangelho nos mostra que o caminho de Jesus está além dos mandamentos. Depois de observar tudo o que Deus pedia na antiga aliança, o Evangelho pede para aqueles que querem dar um passo a mais: desfazer-se de tudo o que têm, distribuir aos pobres, e depois seguir a Jesus.

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Seguimento exigente esse. Desfazer-se de tudo implica deixar para trás tudo aquilo a que damos importância, e com razão, pois em geral são coisas duramente conquistadas: propriedades, dinheiro, boa-fama, privilégios, idéias... Balancete total, venda e, em vez de aplicar em algo mais rendoso, distribuir às pessoas necessitadas, que nada têm. E então, e só então, estaremos prontos para seguir o caminho de Jesus.

É duro isso? É. O homem que fez a pergunta a Jesus era "muito rico", e Marcos diz que ele "ficou abatido e foi embora cheio de tristeza" (Mc 10,22). É duro, porque em geral queremos o novo sem deixar o velho. A novidade de Jesus é tão radical que exige deixar tudo para poder seguir a Jesus. Todos nós queremos isso, e esse desejo, de vez em quando sentido, vem lá do fundo de nós mesmos. Mas, será que teremos coragem de nos desfazer de tudo, dar o dinheiro aos pobres, e depois seguir a Jesus?

O MANDAMENTO NOVOOs três primeiros evangelhos mandam amar a Deus de modo total e exclusivo, e ao

próximo como a si mesmo (Mt 22,34-40; Mc 12,28-34; Lc 10,25-28). O evangelho de João dá um passo à frente. Diante da morte que se aproxima, Jesus diz aos discípulos: "Eu dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim como eu amei vocês, vocês devem amar uns aos outros. Se vocês tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos" (Jo 13,34-35).

Agora a ordem é amar como Jesus amou. Como judeu fiel à Bíblia, Jesus seguiu os mandamentos e amou a Deus com total devotamento, e ao próximo como a si mesmo. Viveu cumprindo o projeto do Pai, e sua vida foi em todos os sentidos amor pelo próximo como a si mesmo, testemunhando sua entrega total a Deus. Mas Jesus não ficou aí. Mais à frente ele diz que "não existe amor maior do que dar a vida pelos amigos" (Jo 15,13). E foi isso que Jesus fez: entregou sua vida para dar Vida aos seus amigos. Quem são os amigos dele? Jesus explica: "Vocês são meus amigos, se fizerem o que eu estou mandando" (Jo 15,14).

Compreendemos então que o Evangelho pede o amor sem limites, ou seja, amar como Jesus amou. Para além de qualquer romantismo, amar é dar a própria vida. É dar-se em cada pensamento, palavra e gesto. O amor tem como regra Deus e Jesus. Deus deu tudo o que criou. Depois deu o seu Filho, que era tudo o que tinha. Jesus deu-se em cada pensamento, palavra e gesto. E quando tudo já estava entregue deu-se a si mesmo. sua vida foi o supremo dom e testemunho. Amar é dar-se sem limites. O limite é a Vida sem limites. Puro dom, que cresce quando morre para si mesma, entregando-se para que outros tenham vida!

O MISTÉRIO DO AMORNa sua primeira carta, João contempla o supremo mistério. Ele diz: "Amados,

amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus. E todo aquele que ama , nasceu de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor" (1Jo 4,7-8).

Deus é amor. Nunca se disse algo mais belo de Deus, nem coisa mais profunda do amor. João diz muito e explica pouco. A que amor ele se refere? A todos. Desde o amor

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que une homem e mulher no êxtase criador que gera vida nova, até o amor paterno e materno, o amor filial, o amor entre amigos, o amor pelos inimigos, pelos animais, plantas, pedras, até o amor universal, abraçando toda a criação no gesto amoroso que nasce de Deus, passa através de nós, e continua infinitamente.

Amar é o modo de Deus ser. É também o nosso mais profundo desejo e modo de ser. Estranho? Não, pois somos "imagem e semelhança de Deus" (Gn 1,26-27). Por amor Deus criou tudo. Nós também criamos. Por amor Deus liberta para dar vida nova. Também nós, quando amamos, fazemos o mesmo. Deus vai até o limite: dá tudo o que tem. Pois também somos assim: quando amamos de fato, somos capazes de dar tudo o que temos e somos. Jesus fez isso e pediu que fizéssemos o mesmo.

Amar é prazer infinito. Só não sabe disso quem nunca amou. Quando descobrimos esse mistério, vemos que Deus não é o Pai egoísta e severo que só manda e castiga. Pelo contrário. Deus só manda fazer o que é prazer para nós. E jamais castiga. Somos nós que castigamos quando traímos o amor. Amor só quer liberdade e vida para todos. Esse é o projeto de Deus. Se amamos de verdade, também iremos querer liberdade e vida para todos. Então realmente estaremos sendo "imagem e semelhança" de Deus!

O POVO É SÁBIOO povo, principalmente o povo simples e analfabeto, sofre grande complexo de

inferioridade. Olhando os poucos que tiveram a chance de freqüentar a escola e a universidade, o povo simples fica temeroso, pois pensa que não sabe nada.

A Bíblia inverte esse modo de pensar. Uma série de livros do Antigo Testamento, chamados de livros sapienciais (Jó, Salmos, Provérbios, Cântico dos Cânticos, Eclesiástico), mostram que sabedoria não é a erudição aprendida nos livros e nas escolas, e sim o discernimento que se conquista através da experiência concreta da vida no dia-a-dia, com todos os seus grandes e pequenos problemas. A vida é a escola do povo, e nela o povo aprende a viver e a se orientar, desatando o nó dos problemas e abrindo caminho para construir a história e a vida.

O povo é sábio e expressa o seu discernimento de modo simples, poético, intuitivo e profundo. o Livro dos Provérbios testemunha isso. Nele encontramos centenas de frases curtas e incisivas, que mostram a sabedoria do povo descobrindo a realidade da vida e abrindo caminhos para viver melhor e se realizar. E o mais importante é que esses simples provérbios são revelação de Deus. Deus fala através da boca do povo, confirmando que "a voz do povo é a voz de Deus!"

XIII. CONHECENDO O AUTORPe. Ivo Storniolo nasceu em Ibitinga (SP), em 1944. É Mestre em Sagrada Escritura

pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Foi coordenador da tradução, revisor exegético e um dos tradutores de "A Bíblia de Jerusalém" em língua portuguesa. Foi professor de Bíblia na Faculdade N. S. da Assunção, no ITESP e no ITCR da PUC-Campinas. Por vários

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anos redigiu os Roteiros Homiléticos da Revista Vida Pastoral, na qual colabora como membro da Equipe de redação há mais de 20 anos.

É coordenador da coleção "Amor e Psique", publicada pela Paulus. Publicou, na mesma editora, entre outros, “As Tentações de Jesus" e em parceria, "Salmos e Cânticos, a oração do povo de Deus", "Conheça a Bíblia", "Salmos, a oração do povo que luta", além de vários volumes da coleção "Como ler a Bíblia". Faz parte da equipe dos tradutores-redatores da "Bíblia Sagrada - Edição Pastoral".

Durante o ano de 1989 escreveu uma seqüência de artigos no folheto litúrgico- catequético O DOMINGO. O tema desses artigos foi MANDAMENTOS, HOJE.

Na Revista Vida Pastoral nº 149, de l989 - pp. 27-29, encontra-se uma Entrevista com Pe. Ivo Storniolo sobre o artigo: "Mandamentos, Hoje".

Trechos da entrevista com Ivo Storniolo, publicada na Vida Pastoral 149 (novembro/dezembro de 1989), pp. 27-29, sob o título “Mandamentos, ontem e hoje”

“Ao começar a tarefa, deparei-me com a questão da metodologia: como iria abordar esse tema tão importante? De um lado eu sabia que o povo cristão já conhecia os mandamentos pelo catecismo. De outro, sabia também que muitos ignoravam o texto bíblico. Decidi então tratar o assunto comparando o texto dos mandamentos segundo o catecismo com a versão dos mandamentos segundo a Bíblia. Pronto. Para muitos, pareceu que eu estava criticando o catecismo, e até querendo “jogar o catecismo no lixo”. Não foi isso que pretendi”.

(...) “Mas não bastava conhecer o texto bíblico. Os mandamentos não caíram do céu, como um presente aleatório de Deus. Presente a gente dá na hora certa, para comemorar algum grande acontecimento. Os mandamentos apareceram na hora certa, para coroar a grande luta que o povo de Deus fez para conquistar uma nova forma de viver, superando um sistema de sociedade que explorava e oprimia as pessoas. Os mandamentos eram a grande carta para construir uma nova forma de vida, a fim de que todos pudessem viver de forma digna, com igualdade fundamental, preservada pela justiça, que cria fraternidade e partilha. E aqui veio uma segunda incompreensão. As pessoas não estão muito acostumadas a pensar que os textos bíblicos têm raízes. Pensam que tudo caiu do céu, sem porquê nem para quê. A tarefa que o povo de Deus fez naquele tempo deve se repetir com os mandamentos. Enquanto não fazemos a mesma luta, os mandamentos ficam sendo apenas provocação para aquela luta fundamental entre a Vida e a Morte, que se repete a cada dia na vida do povo”.

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“E aí vem um outro ponto que, creio, foi difícil de aceitar para muitos. Os mandamentos provocam. Se não vivemos numa sociedade igualitária, fundada na justiça, os mandamento se tornam provocadores, inquietantes, e não nos deixam dormir “como anjos”.

(...) “Enquanto introduzi e comentei os cinco primeiros mandamentos não houve reação (...). Do sexto mandamento para a frente a reação foi imediata. A cada mandamento uma classe determinada de pessoas se manifestou. Coisa engraçada. Meu comentário sobre o sexto mandamento afetou principalmente pessoas de Igreja. Quando expliquei que o texto bíblico falava de adultério e não de castidade recebi muita cartas perguntando: fora o adultério, a gente pode fazer tudo? Tudo o quê? Sabe lá Deus. Já prevendo isso, escrevi sobre a sexualidade, explicando bem que ela é função geradora de vida (...) Houve uma chuva de protestos (...) Aí escrevi sobre a castidade e, em boa ou má hora, achei de citar, juntos, Fernando Pessoa e Santo Agostinho. O primeiro dizendo que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”, e o outro: “ame e faça o que você quiser”. Foi a conta. Acharam que eu estava dizendo que pode tudo. Tudo o quê? Sei lá o que anda pela cabeça das pessoas, mas percebi que cada um lê o que quer, e não o que está escrito. A essas pessoas pergunto eu: Será que as pessoas com alma grande e que amam farão qualquer coisa? Para mim, alma é a interioridade de onde nasce o amor, faculdade que tem um discernimento superior para decidir o que fazer a cada momento, de forma muito mais perfeita do que qualquer lei ou regra. Mas a incompreensão foi grande. Será que essas pessoas perderam a alma, nunca a tiveram, ou nunca amaram?”

(...) Quando escrevi sobre o sétimo mandamento a incompreensão começou [através dos grandes meios de comunicação]. Primeiro porque eu disse que “lucro é roubo puro”. Comecei a receber cartas de empresários, reclamando que o que eu dizia era generalização, que eles agora achavam duro ir à Igreja etc. Ora, nem direta nem indiretamente pretendi criticar pessoas. Pretendi fazer uma crítica estrutural ao sistema econômico em que vivemos. Um empresário entendeu isso muito bem, e me perguntou por escrito: “Como posso ser justo dentro de um sistema injusto?” Simplesmente não pode. Dentro de um sistema injusto, o máximo que se pode ser é honesto para com o sistema, e injusto para com as pessoas. Dentro dele todos nós nos tornamos, em grau maior ou menor, conivente com a injustiça, que é exatamente o contrário do projeto de Deus”.

(...) Muita gente ficou irritada quando dei aquele exemplo (real) da prostituta que protege trombadinhas da polícia e depois os abençoa. Certa pessoa ficou chateadíssima e me escreveu, sem assinar: “Pronto. Agora as prostitutas viraram professoras de moral”. Pois é. Jesus dizia que as prostitutas vão nos preceder no Reino (Mt 21,31). E tem o caso daquela adúltera que, apesar de ser pega em flagrante, estava sozinha para ser linchada, e linchamento previsto por lei. E o adúltero, cadê ele? Esse nunca foi pego. O adúltero somos todos nós, hipócritas consumados, que temos a coragem de fazer Deus assinar as injustiças que cometemos. Jesus não deixou a coisa por menos, e até hoje ele continua a rabiscar no chão, desprezando nossas farisaicas questiúnculas... (leia Jo 8,1-11).

“A celeuma, porém, aumentou quando escrevi que “Deus abençoa e legitima o roubo feito pelo pobre”. Pois é. Quando o pobre tem que roubar para comer, a coisa chegou às raias do desespero, e só quem passou por isso é capaz de compreender e compadecer-se (= sofrer junto), deplorando todo esse sistema social que nega os bens da vida a quem suou

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por ela. São Gregório Magno dizia que “quando damos aos indigentes algo de que necessitam, estamos lhes devolvendo o que lhes pertence e não estamos lhes dando o que é nosso. Estamos antes pagando uma dívida de justiça do que realizando uma obra de misericórdia” (ML 77,87). Nossa esmola é devolução, pagamento de dívida. E São João Crisóstomo diz que “o ladrão pobre nunca furta. Só retoma o que é seu”.

(...) “Acho que há coisas muito graves [por trás dessas críticas]. Primeiro as pessoas em geral não lêem o que está escrito, e sim o que lhes convém e não abala o modo de viver em que se acomodaram. Quando algo lhes incomoda, elas tentam a todo custo dar um jeito. Todos nós temos a nossa fronteira de ego: quem está dentro dela é nosso amigo, pensa e vive como nós. Os que pensam e vivem de forma diferente são inimigos e devem ficar fora da fronteira. Não é a melhor solução, mas é a mais cômoda. Também temos a questão do nosso quadro de referências. Ele é uma espécie de superestrutura, formada lentamente pela educação familiar, escolar, social e pelos meios de comunicação, todos eles refletindo a consciência coletiva de um determinado tempo e de suas condições. Quando chega um fato novo, ele imediatamente se choca com o quadro de referência, e aí vem a questão. Ou o fato novo encontra um lugar ou não. É uma questão vital, porque o quadro de referência dirige nossa vida toda, nossa visão e ação no mundo. Quando o fato novo não se encaixa no quadro, tendemos ou a rejeitar o fato ou a mudar o quadro de referência. Mudar não é fácil. É conversão”.

(...) “A compreensão dos mandamentos é extremamente chocante para nós que não vivemos numa sociedade igualitária. Aí eles se tornam provocadores, e acabamos descobrindo que temos medo da fraternidade, da justiça, da partilha, enfim, de sermos humanos como Deus quer, isto é, à imagem e semelhança dele próprio (Gn 1,26-27)”.

“Acho que isso explica um pouco as reações. Mas devo dizer também que recebi muitos elogios e muito apoio. Muita gente simples não escreve nem carta e nem em jornal, mas fala. E eu descubro então que há muita gente aberta para Deus e para o seu projeto. A certeza de compreensão de milhões de pessoas me encoraja a caminhar para a frente, sem desanimar com os obstáculos. Afinal, se Deus não desiste de acreditar em nós, apesar de tudo, por que é que nós vamos desistir?”.

c:\meus documentos\aulas\pentateuco 2004\o decálogo hoje.doc: cacimiro/airton - 12/8/2004 17:16:39

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CAPÍTULO VIII

O LIVRO DO LEVÍTICO

8.1 – introdução:

Levítico provém do nome Levi, a tribo de Israel que foi escolhida para exercer a função sacerdotal no meio do seu povo.

Embora situado logo após o êxodo e atribuído a Moisés, o livro do Levítico, na verdade, foi escrito depois do exílio na Babilônia. Concorreram para a sua formação textos elaborados pelos sacerdotes através dos tempos: um ritual para os sacrifícios, um ritual para a consagração dos sacerdotes e critérios para distinguir o que é puro e o que é impuro. A tudo isso foi acrescentado Lv 17-26, chamado Lei de Santidade.

O Levítico é, sem dúvida, um dos livros do A.T. menos lido pelos cristãos. Falando do culto, do sacerdócio e das praticas religiosas de Israel e do judaísmo, parece-nos que o livro ficou desatualizado com a vinda de J.Cristo e o culto da nova aliança.

Todavia, é interessante e útil ler o livro, sobretudo para compreender o período pós exílio e a ascensão progressiva da classe sacerdotal, que, graças à ideologia da mediação, no tempo de Jesus se havia tornado detentora de todos os poderes – econômico, político, religioso e judiciário.

O sacerdócio em Israel passou por longa evolução. Inicialmente o pai de família – na verdade o chefe do clã – exercia funções sacerdotais, como podemos ver no tempo dos patriarcas. Isso nos permite dizer que nas raízes do judaísmo o sacerdócio não era exercido por especialistas.

Uma segunda fase é encontrada no êxodo do Egito e na tomada de Canaã. Sabemos hoje que o grupo do êxodo foi liderado pelos levitas – Moises e Ararão – Tal grupo não só liderou a saída do Egito, mas também, chegando a Canaã, passou a liderar a revolta dos camponeses contra o imperialismo das cidades-Estado Cananéias. Assim, foi o levitismo que colocou as bases para uma formulação igualitária de sociedade, contra o sistema tributário do Egito e de Canaã. Neste período o sacerdócio levítico funcionava de forma itinerante, com o levita morando em geral junto a uma família. Logo depois aparecem como foco de união cultual de toda a tribo. Aos poucos surgem diversos santuários, onde famílias levíticas garantiam o serviço no santuário e preservavam as antigas tradições e ritos.

Uma terceira fase é a da monarquia. Depois de conquistar todos os territórios ao Sul e ao Norte, Davi finalmente conquista a cidade de Jerusalém, ficando com a todo poder político e dando aos sacerdotes o poder reliogioso.

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No período do rei Salomão, os levitas são expulsos para o norte, desta forma, a ideologia de uma sociedade igualitária é completamente erradicada de Jerusalém e Judá e continua viva no Norte. Teríamos então dois tipos de sacerdócio: o levítico, no norte (Israel), representando ideais mais democráticos das tribos, no sul (judá), os sadocitas, claramente apoiando os ideais monárquicos e tributários.

Com o exílio, os sacerdotes exercem o papel de continuar fomentando a vida dos exiliados a conversão histórica, imaginando uma restauração da vida nacional e uma reestrutação do povo a partir de Jerusalém e do Templo.

O ideal sacerdotal é retomado no pós-exílio. Os sacerdotes progressivamente se tornam os chefes da comunidade judaíta, lançando os fundamentos para o judaísmo posterior. Esses sacerdotes descendem tanto dos levitas como dos sadocitas que fazem entre si, uma aliança.

Esta aliança, pode ser definida como um compromisso que sacerdotes e levitas assumiram de organizar a comunidade judaica segundo o culto a Jave e as tradições dos antepassados conservadas principalmente pelos levitas. Fato é que o sacerdócio de Jerusalém tornou-se cada vez mais forte e consolidado, e os levitas, como ideólogos de uma sociedade igualitária, desaparecerem, ou melhor, tornaram-se meros funcionários subordinados no Templo de Jerusalém.

8.2. – A ideologia do sacerdote mediador.

Fruto de longo desenvolvimento histórico, o livro do Levítico apresenta a ideologia sacerdotal no pós-exílio. O centro desta ideologia é a função de mediador que, engenhosamente enraizada na herança direta de Moises e Aarão, pouco a pouco invadirá todos os campos da vida judaica, desde o religioso propriamente dito até o moral e social. È graças às disposições desse livro que progressivamente o poder sacerdotal acumulará todos os outros poderes – econômico, político, religioso e judiciário.

A justificativa deste poder sacerdotal, se encontra na idéia de mediação: o sacerdote é o mediador entre Deus e o povo. O povo só pode chegar até Deus através do sacerdote. Por sua vez, Deus só pode chegar até o povo atreves do sacerdote. O sacerdote se situa, portanto, numa zona intermediária ele tem acesso a um e outro, como ponte.

Deus Deus

(sagrado)

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8.3 – A estrutura do Livro.

Fruto de longa evolução, o livro de Levítico deixa ver, contudo, uma estrutura bastante marcada. Seguindo os grandes temas poderíamos ver o seu conjunto assim:

1. Os sacrifícios (1 – 7)2. O sacerdócio mediador (8 – 10)3. Pureza e impureza (11 – 16)4. O Código de Santidade (17 – 26)5. Apêndice:o resgate (27)

Cada um desses conjuntos é meio estanque, mas a redação final do livro os costurou num conjunto que poderíamos chamar de “manual do sacerdote”.

8.4 – Yom kippur – Dia da expiação.

O dia da expiação (yom kippur) é para Israel a maior festa religiosa do ano, e assim continua para os judeus até hoje. É também superlativamente chamado “o dia”, porque nesse dia o povo expia seus pecados e se reconcilia com o Deus da aliança. O capítulo 16 do Levítico é complexo e reúne ritos diferentes de várias épocas, mas sem dúvida desde épocas mais remotas existia uma cerimônia de expiação.

Devemos esclarecer aqui alguns pormenores, como a disposição do santuário e a questão do bode expiatório.

O santuário é dividido em duas partes: o ambiente santo e o ambiente santíssimo ou “santo dos santos”, separados por um véu ou cortina. No santo podem entrar todos os sacerdotes; no santíssimo somente o sumo sacerdote pode entrar uma vez por ano. No santíssimo encontra-se a arca da aliança, onde fica o documento que estabelece Israel como povo de Deus. A arca é fechada por uma cobertura – uma placa de ouro com dois querubins alados nas extremidades. É sobre essa placa que se manifesta a presença de Jave; a placa seria o seu trono. Para preservar o sumo sacerdote de um contato direto com a divindade é oferecido o incenso sobre a placa, velando a presença de Jave. No dia da expiação o sumo sacerdote atravessa o véu, entra no santíssimo, oferece o incenso e asperge a plana com o sangue do bezerro e depois com o sangue do bode. É esse sangue que reconcilia o povo com Jave, restabelecendo a ligação da aliança.

Quanto ao bode expiatório, escolhen-se dois bodes, sorteando-se um para Jave, como holocausto, e outro para Azazel. Azazel aparece apenas aqui na Bíblia, e seria um chefe dos demônios que habita o deserto. No ápice da

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cerimônia de expiação o sumo sacerdote impõe as duas mãos sobre o bode expiatório e para transfere, por meio da confissão, todos os pecados do povo. Em seguida este bode é expulso para o deserto. A comunidade fica, assim, livre de seus pecados e restabelecida na aliança com Jave.

(Olhando para o N.T., recordamos que o véu do santuário se rasgou quando Jesus morreu na cruz. Não há mais separação entre Deus e o mundo. A carta aos Hebreus, por outro lado, mostra que Jesus realizou definitivamente a expiação dos pecados de todos. Nele está presente o santuário, o sacerdote e o sacrifício. Ele derrama o próprio sangue, isto é, oferece conscientemente sua vida a Deus em benefício dos homens).

Estrutura do Templo de Jerusalém

DEUS

______

SUMO SACERDOTE

SACERDOTES E LEVITAS

JUDEUS HOMENS

MULHERES JUDIAS

PAGÃOS

MUNDO NATUREZA

8.5. – As festas religiosas.

O capítulo 23 nos apresenta o calendário litúrgico do A.T.. Nesses calendários são previstas as datas das comemorações religiosas populares. Sabemos que as festas de Israel eram de início comemorações populares profanas que depois adquiriram significado religioso. Com exceção da festa da Páscoa, que é de origem pastoril, as outras eram inicialmente de caráter agrícola.

1. O SÁBADO: fundado no número sete, é o dia sagrado da semana, e já em Gn 2,1-3 – texto de origem sacerdotal – torna-se um fato cósmico. Como dia do repouso semanal é uma das maiores conquistas da humanidade.

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2. PASCOA E PÃES SEM FERMENTO: aparecem em estreita relação, mas em datas diferentes. A origem dessas festas é diversa: a da Páscoa provém da cultura de tipo pastoril, enquanto que a dos pães sem fermento provém da cultura agrícola, onde é certamente ligada a um ritual de renovação da natureza. O fermento é proibido porque é feito com a massa produzida a partir da colheita anterior.

3. FESTA DA OFERTA DO PRIMEIRO FEIXE: o primeiro feixe contém simbolicamente a colheita inteira e sua oferta à divindade demonstra a gratidão pelos produtos do campo. Não há uma data certa de comemoração, e certamente era celebrada juntamente com a dos pães sem fermento.

4. FESTA DAS TENDAS: era inicialmente de caráter agrícola, mas foi historicizada em contato com as tradições do êxodo. O costume de habitar por sete dias em cabanas feitas de galhos e folhas procura reconstruir as condições de vida camponesa, e esse modo de comemorar perdura até hoje.

8.6. - O ano de júbilo ou jubileu.

O ano de júbilo, ou jubileu, se abre com o toque da trombeta, que se chama em hebraico Yôbel – daí o nome jubileu. Segundo a legislação do Levítico, deve ser celebrado depois de sete semanas de anos, no qüinquagésimo ano.

Neste ano confluem o repouso da terra, a libertação dos escravos e o perdão das dívidas. Tudo isso estava ligado a interdependente, pois muitos camponeses endividados tinham de vender sua propriedade e entregar-se para o trabalho escravo. No qüinquagésimo ano, porém, podiam recuperar a liberdade e a propriedade, voltando para a família.

A cada sete anos a terra deverá descansar, ficando sem cultivo. É o sábado da terra, oferecido a Jave. Dessa lei aparecem duas grandes perspectivas: ecológica e social.

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CAPÍTULO IX

O LIVRO DOS NÚMEROS

Introdução: O nome veio da tradução grega do AT. Certamente se baseou nos recenseamentos que encontramos em Nm 1 e 26. O que chama a atenção porém é no primeiro recenseamento estão todos os que foram libertos da escravidão. Essa geração, todavia, morre toda no deserto. Quem vai chegar a Terra prometida é a geração seguinte, recenseada em Nm 26.

O título do livro em hebraico é mais interessante: “No deserto” (bamidbar). Com efeito, neste livro o deserto é a personagem principal e decisiva. Nele se determina o destino da geração de hebreus que saíram do Egito, e o da geração seguinte, que entrará na terra prometida.

Para os hebreus, a saída do Egito foi uma lenta e penosa caminhada em busca de uma terra. Neste livro a caminhada se transforma em majestosa marcha organizada de todo um povo, como uma procissão ou um exército. As tribos de Israel estão todas presentes, formando os esquadrões de Deus, cada uma com o seu estandarte e avançando em rigorosa formação. No centro de tudo vai a arca da Aliança. Isso mostra que o livro não pretende narrar fatos históricos, mas quer nos transmitir mensagens. Assim como os antepassados saíram da escravidão do Egito para chegar à terra de Canaã, do mesmo modo todo o povo de Deus é peregrino e caminha para o Reino prometido por Jesus. A organização mostra que dentro do povo de Deus as funções devem ser repartidas, mas com um único objetivo: realizar o projeto de Deus. E a arca da Aliança no centro indica que, nessa caminhada, Deus está sempre no meio do seu povo.

O deserto foi o tempo da grande disciplina e pedagogia para o povo de Deus. Não basta estar livre: é preciso aprender a viver a liberdade e conquistá-la continuamente, para não voltar a ser escravo outra vez. No deserto Israel teve que superar muitas tentações: acomodação, desânimo, vontade de voltar para trás, desconfiança de Javé e dos líderes, imprudência etc. Foi no confronto com essas situações que ele descobriu o que significa ser livre para construir uma sociedade justa e fraterna, alicerçada na liberdade e voltada para a vida. Visto sob essa perspectiva, o livro dos Números nos ensina que qualquer transformação profunda exige um longo período de educação e amadurecimento.

9.1 – DESERTO: educação para a liberdade.

O projeto de Jave incluía dois momentos: libertar do sistema tributário de Egito e introduzir o povo no sistema igualitário em Canaã, a Terra Prometida. O que aconteceu, porém, não foi uma transformação rápida de um sistema para outro. O povo saiu do Egito e entrou no deserto, uma terra inóspita e hostil, cheia de dificuldades e perigos, tanto externos quanto internos.

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“Lembre-se, porém, de todo o caminho que Javé seu Deus fez você percorrer durante quarenta anos no deserto, a fim de o humilhar e o colocar à prova, para conhecer suas intenções: será que você iria observar os mandamentos dele ou não? Ele humilhou você, fez você sentir fome e o alimentou com o maná, que nem você nem seus antepassados conheciam, tudo para mostrar a você que o homem não vive só de pão, mas que o homem vive de tudo aquilo que sai da boca de Javé. As roupas que você usava não se gastaram, nem seu pé inchou durante esses quarenta anos. Portanto, reconheça em seu coração que Javé seu Deus educava você como o homem educa o próprio filho”. (Dt 8,2-5)

Crueldade de Jave? Não. Diz o Deuteronômio que tudo o que aconteceu no deserto era tão somente pedagogia, educação: “reconheça em seu coração que Jave seu Deus educava você como o homem educa o próprio filho”. Educação para que? Para aprender a conservar a liberdade e a vida, cada um repartindo o que é e o que tem com todos os outros. Educar para passar de um sistema injusto para um sistema justo.

9.2. – DESERTO: as tentações.

Deserto é lugar de dificuldades e desgraças, que o povo logo encontrou (11,1-3). E a primeira reação humana é a queixa e a busca de um bode expiatório que carregue a culkpa pela desgraça ou dificuldade. Aqui o povo se queixa e põe a culpa em Jave, que libertou do Egito para levá-lo ao terrível deserto. Jave reage destrutivamente, mas, graças à intercessão de Moises, a situação é contornada.

Deserto é lugar de fome, que o povo logo sentiu(11,4-9). E a tentação é forte, atingindo até mesmo a raiz da liberdade: o povo sente saudade do Egito.

Deserto é lugar de pragas e doenças (17,6-15). A comunidade acusa Moises e Aarão “estão matando o povo de Jave”. Indiretamente estão dizendo que seua líderes é que são culpados pelo fato de o povo estar no deserto, efrentando pragas e doenças.

Deserto é lugar de sede (20,2-13). Falta água para o povo, que por isso revolta, acusando os líderes de terem trazido do Egito para o deserto. Água é o elemento mais necessário para a vida.

Deserto é lugar de cansaço (21,4-9). Caminhar exige desacomodação e esforço, e o povo não suporta a viagem prolongada e cansativa. Acusa Deus e Moises. É a ultima tentação: desanimar pelo cansaço e questionar todo o projeto exposto em Êxodo 3,8 – “Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel, o território dos cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus e jebuseus”. Lembremo-nos de que a ação de Jave fora uma resposta ao anseio do próprio povo (Nm 20,15-16). Agora o povo renega o seu próprio

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anseio pela liberdade e pela vida. O castigo pelas serpentes venenosas é sintomático: renegar o próprio anseio pela vida leva a morte. A serpente de bronze, que cura e protege, é vista como símbolo da proteção de Jave, que cura e traz a vida.

9.3. – DESERTO: os conflitos.

Alem das tentações vamos encontrar no deserto uma série de conflitos, típicos de todo processo de transformação. Os capítulos 13 e 14 espelham esses conflitos, embora o texto nem sempre seja claro. Tudo acontece na iminência de entrar na Terra Prometida. 12 exploradores são enviados a Canaã para fazer um reconhecimento exploratório do local a fim de viabilizar um quadro de estratégias e táticas. Quando voltam e fazem o relatório os conflitos aparecem.

Povo contra Moises e Aarão. O povo grita (13,30) se revolta contra Moises e Aarão, e o resultado é a desistência total: “Vamos escolher um chefe e voltar para o Egito”. (14,1-4). A situação é de desespero: de que adianta entrar em Canaã para ser escravo dos cananeus?. No fundo encontramos a inércia provocada pelo velho sistema e a ilusão infantil de que a Terra seria simplesmente dada “na bandeja”, como se diz. Quando o povo percebe que precisa lutar, desiste; não quer conquistar a terra que Jave está dando.

Caleb contra o povo (13,30). Caleb é um dos exploradores, e sua visão é otimista: “temos que subir e tomar posse dessa terra; nós podemos fazer isso”. Numa crise sempre há os que olham a realidade com otimismo. É o caso de Josué e Caleb, que tentam a todo custo convencer a comunidade (14,6-9). Seu argumento é forte: Jave está conosco e por isso estaremos mais protegidos do que os cananeus, apesar de sua rubustez física e das cidades fortificadas....

O povo não se deixa convencer pela argumentação de Josué e Caleb, e chega a falar em apedrejá-los. O texto (13,31-33) não diz claramente, mas é de supor esse conflito, porque os outros 10 exploradores fazem um relatório diferente. Eles põem defeitos na terra e aumentam o medo do povo, menosprezando a si mesmos e ao povo: perto dos habitantes dessa Terra parecemos gafanhotos.

Povo contra Jave (14,40-45). Assustados pela perspectiva de nunca mais entrar na Terra Prometida, o povo, ou certamente um grupo, se arrepende e, queimando etapa, se arrisca a entrar na terra, mesmo sabendo que Jave não aprova isso. A presunção custa-lhes um preço caro, e todos são mortos pelos habitantes locais. É temeridade querer agir por conta própria, menosprezando o aval de Deus.

Esse quadro dos conflitos mostra que as coisas não são pacíficas no processo de conquistar a vida. Corremos o risco de pensar infantilmente que Deus realiza seus dons sem nada exigir do seu povo. Ora, todos sabemos que ninguém dá valor ao que é simplesmente dado. Damos valor ao que conquistamos. A graça de Deus se realiza através de um binômio paradoxal: Deus dá e o povo conquista. Deus realiza o dom prometido através da conquista do povo. Deus esta no meio do povo, dando força para lutar e conquistar. Deus não age sem o povo, e o povo quando age sem Deus, só consegue o fracasso.

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9.4. – DESERTO: Conflito pela liderança.

Não faltaram também os mais variados conflitos em torno da liderança. Neles vemos as brigas pelo poder, ameaçando todo o processo de criar um nova forma de sociedade. A luta pelo poder ou a chamada “vocação política” muitas vezes esconde os mais baixos motivos, como servir-se do poder para explorar e oprimir o povo, reeditando os mesmos males que haviam combatidos antes.

Maria e Aarão contra Moises (12,1-15). Aparentemente o motivo é Moises tes desposado uma mulher cuchita (noiva). Mas o motivo real parece ser a vontade de poder. Maria e Aarão querem fazer parte na chefia: “será que Jave falou somente a Moises? Não falou também a nós?”.

É graças ao espírito profético de Moises que foi revelado o projeto de Jave, todo voltado para a liberdade e a vida para todos. Ninguém poderá contestar a autoridade de Moisés sem, ao mesmo tempo, contestar o projeto de Jave.

Um Novo Chefe? (14,4). Na grande crise em Cades, o povo, apavorado diante do relato desanimador dos 10 exploradores, grita:”vamos escolher um chefe e voltar para o Egito”. Isso mostra não só o desanimo e desespero do povo, mas havia gente disposta a chefiar o povo em vista de um projeto inteiramente contrario àquele proposto por Javé e liberado por Moises.

Os capítulos 16 e 17 são um ninho de conflitos pela liderança. Embora à primeira vista haja um só conflito, podemos, com olhar atento, descobrir pelo menos quatro:

1. Core contesta Aarão (16, 1a.2-11). Isso reflete um conflito entre levitas e sacerdotes.

2. Data e Abiram contestam Moises e Ararão (16,1-2.12-15): É a rejeição dos líderes, sob a alegação de que falharam no projeto de levar o povo para uma terra onde corre leite e mel.

3. 250 homens contra sacerdotes (16,2-3.16-17; 17,1-5). Estes opositores são descritos como chefes da comunidade, membros do conselho e pessoas de fama. São os grandes. Reclamam uma igualdade de direitos, como os levitas; “Chega! Todos os membros da comunidade são consagrados, e Jave está no meio deles. Por que vocês dois se colocam acima da comunidade de Jave?” Isso mostra um conflito não mais entre levitas e sacerdotes, mas entre o povo e a classe sacerdotal.

4. Povo contra sacerdotes (17,16-26).

Toda essa trama de conflitos mostra que nem tudo é pacífico na caminhada histórica para um horizonte novo. Não é fácil liderar um grupo humano onde sempre há conflitos de interesse. Em meio a todas essas dificuldades podemos compreender melhor as crises do líder.

Moises demonstra grande paciência e é descrito como “o homem mais humilde entre todos os homens da terra” (12,3). Suas qualidades porém não o pouparam do desânimo, da dúvida e até do espírito de vingança.

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Desânimo (11,10-15)

Dúvida (11,21-23; 20,1-13). Na primeira vez ele duvida que Jave terá poder para dar carne o bastante para todo o povo. Na segunda Jave dis para Moises falar à rocha, para que ela dê água. Ele, põem, fala ao povo e golpeia a rocha duas vezes com a vara, como se não estivesse acreditando. Por causa disso ele e Aarão são punidos: não irão introduzir o povo na Terra.

Espírito de vingança (16,15)

9.5. – Aprendendo solidariedade.

A ultima etapa do aprendizado de Israel no deserto foi, sem dúvida, a da solidariedade. Chegando à margem oriental do Jordão, Israel está para entrar e conquistar Canaã, lutando duramente contra as cidades-Estado cananéias que dominam a região. Duas tribos, a de Rubem e a de Gad, preferem estabelecer-se nesse lado oriental do Jordão. O motivo é que o território é fértil e propício para as pastagens de rebanhos.

Origina-se um quase-conflito. Moises considera a decisão das duas tribos uma espécie de desistência da luta que todo Israel deveria enfrentar. Põe então uma condição: que primeiro todos participem da conquista do lado ocidental do Jordão, e só depois as duas tribos voltem para a sua propriedade no lado oriental do rio. AS duas tribos aceitam e desaparece o conflito.

O momento da entrada da terra é grave. Certamente foi ai que o grupo do êxodo encontrou –se com o grupo de camponeses cananeus descontentes e formou-se a liga que mais tarde recebeu o nome de Tribos de Jave. A solidariedade devia ser total, caso contrario todo o projeto de tomar (ou recuperar) e redistribuir a terra viria abaixo. A seqüência da solidariedade na luta e na conquista deve, continuar com o cultivo da solidariedade social, a fim de que a justiça venha sempre antes do direito, o direito consolide relações realmente justas.Um povo que não conheça a solidariedade social é um povo fraco e vulnerável, totalmente impotente diante dos lobos que devoram sua liberdade e sua vida. O perigo para os lobos devoradores é o povo se organizar para fazer frente à ambição insaciável dos grandes.

Se estamos convencidos de que para haver grandes transformações é necessário haver uma educação para a novidade, então o livro dos números tem grande significado para nós. Com efeito, também nós não vamos para frente, para o novo, quando conservamos os hábitos e vícios de um velho sistema social – ou, se for o caso de uma pessoal individual, se ela conserva os costumes arraigados de uma antiga forma de viver. Para se ter algo novo é preciso em longo e profundo processo de educação, caso contrário o novo jamas acontecerá.

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CAPÍTULO X

O LIVRO DO DEUTERONÔMIO

Introdução: A palavra grega deuteronômio significa segunda Lei. Trata-se de uma reapresentação e adaptação da Lei em vista da vida de Israel na Terra Prometida. Este livro nasceu muito tempo depois da situação histórica que nele encontramos (discurso de Moisés antes da entrada na Terra), e passou por um longo período de formação. Para o autor, porém, o povo de Deus está sempre na posição de quem deve se converter a Deus e viver em aliança com ele, para ter a vida (Terra = Vida).

A idéia central de todo o livro é que Israel viverá feliz e próspero na Terra se for fiel à aliança com Deus; se for infiel, terá a desgraça e acabará perdendo a Terra. O livro, porém, não se contenta com idéias gerais. Após relembrar o Decálogo (5,1-22), ele mostra que o comportamento fundamental do homem para com Deus é o amor com todo o ser (6,4-9). A seguir apresenta uma longa catequese, explicando o que significa viver esse amor em todas as circunstâncias da vida pessoal, social, política e religiosa. Essa catequese é apresentada, sobretudo através das leis do Deuteronômio (capítulos 12-26), onde se procura ensinar ao homem como viver em sua relação com Deus, com as autoridades, com o outro homem, e até mesmo com os seres da natureza.

O livro do Deuteronômio é, sobretudo, um modelo de ação pastoral e social. Sua parte central (Dt 12-26) nasceu em meados do séc. VIII a.C., numa época de grande desenvolvimento econômico, que acabou por acelerar a injustiça e a desigualdade social: uma minoria privilegiada detinha a riqueza e o poder, enquanto a maioria do povo ficava reduzida à miséria. Diante disso os levitas itinerantes (não ligados diretamente a um santuário) desenvolveram uma catequese que mostrava o caminho para a superação dos conflitos. Essa catequese diante de situações concretas se cristalizou nas leis do Deuteronômio. Tais leis não devem ser entendidas no nosso sentido moderno de lei, mas muito mais como orientação, ensino, educação para produzir relações justas e fraternas dentro da sociedade. A intenção básica dos levitas era provocar coerência entre a Aliança que se celebra e a vida que se vive. O esforço deles é um modelo para que também nós saibamos tirar as conseqüências econômicas, políticas e sociais da fé que professamos, a fim de que o fermento evangélico gere de fato uma sociedade nova.

O Deuteronômio sempre foi muito importante para o judaísmo. É nele que se encontra o Shemá (6,4-9), que os judeus até hoje recitam diariamente e que é o centro do livro.

Nele, encerra o grande discurso do Pentateuco, centrado literalmente na figura de Moisés. Neste livro temos as ultimas palavras de Moisés e seu destino. Sua colocação no final do Pentateuco se deve ao momento histórico (cerca de 1230-1220 a.C.) e ao lugar geográfico a que o seu conteúdo se refere: a terra de Moab, no além-Jordão, no último ano da marcha pelo deserto(Dt1,1-3), antes da entrada na Palestina central.

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O livro apresenta ficticiosamente Moisés que reúne o povo e faz o seu discurso de despedida, exortando à fidelidade para com Jave. Ele relembra o passado e indica as possibilidades e perigos do futuro (1-4), dá instruções para ávida na terra (5-28), estimula uma nova aliança em Moab e passa o cargo a Josué(29-31); pronuncia depois o seu cântico e benção (32-33), sobe ao monte Nebo, contempla a Terra Prometida e morre (34). Como vemos o livro se apresenta como um longo e dramático apelo à conversão, dirigido à liberdade que pode escolher entre o Deus vivo e os ídolos, entre a liberdade e a escravidão, entre a vida e a morte (30,15-30).

10.1.- Introdução histórica e teológica (1-11)

A – Primeiro discurso de Moisés (1,1-4,40)

1 – Introdução ligando a Nm e ao Pentateuco (1,1-5).

2 – Primeiro discurso (1,6-4,40)

a – evocação do passado (1,6-3,29): acontecimentos no Horeb, travessia do deserto, primeiros combates, disposições finais;

b – exortação (4,1-40): obedecer às leis promulgadas no Horeb (evitar a idolatria e adorar a Jave sem imagens)

B – Segundo discurso de Moisés (4,44-11,32)

1 – Introdução histórica (4,44-49)

2 – Segundo discurso (5,1-11,32 ...28,68). Não há descontinuidade até o cap. 26. O Código foi inserido neste segundo discurso, que termina no cap. 28.

a – prólogo (cap. 5): - introdução (5,1-5); Decálogo no Horeb (5, 6-21); reação de Israel e exortação (5,22-23).

b - o amor de Jave e a observância dos mandamentos (cap.6). (nota: 6,4-9 é o centro teológico de Deuteronômio)

c – fidelidade a Jave na Terra Prometida (7-8): Exterminar o povo cananeus e seus ídolos (7,1-6); escolha divina e benefícios de Jave (8,1-6); proteção de Javé (7,17-26); lembrar-se dos benefícios de Javé (8,1-6); resistir às tentações na Terra Prometida (8,7-20).

d – evocação do passado (9,1-10,11): não ser auto-suficiente (9,1-6); lembrar-se das revoltas passadas (9,7-29); intercessão de Moises e perdão (10,1-11)

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e – conclusão (10,12-11,32): fideliddae a Javé e circuncisão do coração(10,12-22). (nota: é a maior expressão do monoteísmo); as lições de Javé (11,1-7); promessas e ameaças (11,8-32)

10.2. – Código Deuteronômico (12-26)

A – Relações com Deus: leis cultuais (12,1-16,17)

1 – Introdução (12,1)

2 – unidade no culto: unidade no santuário(12,2-13,1):

a – santuário central (2,2-12);

b – proibição dos santuários cananeus (12,13-13,1).

3 – unidade na fé: castigo dos idólatras (13,2-19).

4 – Pureza do culto (14,1-21):

a – ritos funerários pagãos proibidos (14,1-2)

b – alimentos puros e impuros (14,3-21)

5 – Festas e observâncias religiosas e sociais (14,22-16,17):

a – dízimos (14,22-19)

b – ano da remissão (15,1-18);

c – oferta dos primogênitos (15,19-23);

d – freqüência ao santuário nas festas de Páscoa-Ázimos, semanas e Tendas (16,1-17).

B – Relações com as mediações: leis sobre as autoridades (16,18-18,22)

1 – Juízes e escribas para a prática da justiça (16,18-20)

a – proibições de estelas e postes sagrados (16,21-22)

b – imolar vítimas sem defeito (17,1);

b – castigo dos idólatras (17,2-7).

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2 – Tribunal superior no santuário para causas difíceis (17,8-13)

3 – Situação das autoridades (17,14-18,22):

a – O rei (17,14-20): escolhido do meio do povo (17,14-15); refrear as ambições (17,16-17); observar a lei (17,18-20).

b – sacerdotes – levitas e seus direitos (18,1-8)

c – Rei e sacerdotes – levitas mantêm o direito (18,9-22): queimar adivinhos e magos(18,9-14); discernir o verdadeiro e o falso profeta(18,14-22).

C – Relações sociais: leis civis (19,1-21,19)

1 – Respeito pelo homem e pela vida (19,1-21,9):

a – cidade de refúgio para o homicida involuntário (19,1-13);

b – propriedade individual (19,14);

c – testemunhas e falsas testemunhas (19,15-21);

d – conduta na guerra (20,1-20);

e – expiação do homicídio de autor desconhecido (21,1-9)

2 – Direito familiar e social (21,10-25,19):

a – casamento com prisioneira de guerra (21,10-14);

b – direito de primogenitura (21,15-17);

c – o filho incorrigível (21,18-21)

d – sepultamento de supliciados (21,22-23)

3 – Respeito pela vida: animais (22,1-12)

4 – Respeito pela vida nas relações sociais (22,13-23,1)

5 – Critérios para pertencer à comunidade (23,2-15)

6 – Respeito para com os pobres e necessitados (23,16-24,22)

7 – Respeito pela dignidade, boa fama e lealdade para com o próximo (25,1-16)

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8 – Destruição de Amalec (25,17-19)

D – Prescrições rituais e conclusão (26,1-19)

1 – Os primeiros frutos (26,1-11)

2 – O dízimo trienal (26,12-15)

3 - Conclusão: obrigações dos contraentes (26,16-19):

a – Israel: obedecer às leis e ser povo de Deus;

b – Javé: ser o Deus de Israel, tornando-o grande nação.(O código, iniciado no cap.12, recebe a conclusão definitiva no cap 28.)

10.3 – Preparação e conclusão da Aliança (27-30)

A – Preparação e ritos da aliança (27)

1 – Pedras da lei coma legislação (27,1-10)

2 – 12 maldições sancionando a infidelidade (27,11-26)

B – Bênçãos (28,1-14) e maldições (28,15-68) pela fidelidade ou infidelidade às prescrições da aliança (nota: aqui termina o código – 28,69.).

C - Terceiro discurso de Moisés (29-30)

1 – Evocação do passado (29,1-8)

2 - Gravidade do contrato (29,9-28)

3 – Punição do exílio e volta graças à conversão (30, 1-10)

4 – O povo é colocado diante da escolha fundamental (30,11-20)

10.4. – Apêndices (31-34)

Conclui o Deuteronômio, ajustando-o ao conjunto do Pentateuco.

A – De Moisés a Josué (31)

1 – Exortação ao povo e eleição de Josué (31,1-8.14-15.23)

2 - Livro da Lei para ser lido a cada sete anos (31,9-13)

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3 – Introdução ao cântico de Moisés (31,16-22) e convite ao povo (31,28-30).

4 – O livro é guardado o lado da Arca (31,24-27)

B – O Cântico de Moisés (32,1-47)

1 – Profecia e celebração (32,1-43)

2 – Exortação: Lei como fonte de vida (32,44-47)

C – Último ato de Moisés (32,48-33,29)

1 – Moisés sobe ao monte Nebo e contempla a terra (32,48-52)

2 – Benção de Moisés (33)

D – Morte de Moises (34)

1 – A morte (34,1-9)

2 – Elogio (34, 10-12).18

18 - Ivo Storniolo. Como ler: o livro do Deuteronômio. Paulus.s/d.

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CAPÍTULO XI

O LIVRO DE JOSUÉ

Introdução aos livros históricos: Terminamos de estudar os livros do Pentateuco, agora entramos no segundo conjunto de nosso estudo; os livros históricos: a história desde a conquista da terra até o exílio na Babilônia.

Os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis formam um conjunto coerente, relatando a história do povo desde a conquista da Terra (séc. XIII) até o exílio na Babilônia (586-538 a.C.). A comparação com os temas e o estilo do livro do Deuteronômio mostram que esse relato histórico foi não só influenciado, mas determinado a partir da visão econômica, política, social e religiosa do Deuterônomio. Em outras palavras, o livro do Deuteronômio fornece a chave de leitura para a interpretação dos acontecimentos relatados nessa história.

Essa literatura teve duas redações. A primeira foi feita no tempo do rei Josias, entre 622 e 609 a.C. Nessa época, foi descoberto no Templo o núcleo antigo do livro do Deuteronômio (2Rs 22,8ss). A partir disso, Josias organiza uma grande reforma político-religiosa (2Rs 22-23). Para fundamentar e justificar essa reforma foi escrita uma versão da história, desde o tempo de Salomão até o reinado de Josias. A segunda redação foi feita durante o exílio na Babilônia, provavelmente pouco depois de 561 a.C. (cf. 2Rs 25,27-30 e nota). Foi no contexto do exílio que se redigiu a grande história que vai da conquista até a perda da terra. O que o autor pretendia era não só explicar por que o povo foi exilado, mas, e principalmente, o que o povo deve fazer a partir dessa situação.

O autor se serviu de tradições antigas, talvez já parcialmente escritas, que ele reuniu e interpretou a partir da ideologia do Deuteronômio. Nesse livro se diz que a história depende da fidelidade ou infidelidade do povo à aliança com Javé. Se o povo for fiel, Javé lhe dará a bênção, isto é, uma história marcada pela prosperidade e harmonia em todos os sentidos. Se o povo for infiel, Deus o castigará com a maldição, isto é, com o fracasso histórico, acarretado pela deterioração da vida social em todos os níveis, culminando com a perda da Terra. Tudo isso, de fato, acabou acontecendo.

E agora, tudo perdido? Não! O autor quer mostrar que Javé continua fiel, e que Israel tem pela frente uma grande tarefa: rever a história e descobrir onde estão os erros e por que eles foram cometidos. O sentido dessa história, portanto, não está no seu final, mas dentro do relato, na própria articulação da narrativa. É em Jz 2,6-3,6 que vamos encontrar a articulação dialética com que o autor interpretou a história: pecado e castigo, conversão e graça (cf. Introdução ao livro dos Juízes). Aplicando esse esquema à história, o autor mostra para os exilados que Deus foi fiel à aliança: deu a Terra para que Israel nela construísse uma sociedade e uma história novas. Israel, porém, não foi fiel: esqueceu-se de Javé para servir aos ídolos (pecado). Esse pecado foi cometido durante o regime monárquico, em que os reis traíram o projeto de Javé, servindo a outros projetos. A conseqüência foi uma decadência progressiva da vida social, que acabou

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acarretando o desastre nacional (castigo). Faltam, agora, os dois momentos finais do esquema dialético: a conversão e a graça.

Podemos dizer que toda essa história foi escrita para produzir esses dois momentos finais. E o autor deixa isso bem claro em passagens importantes de sua narrativa, tais como 1Sm 7,3; 2Rs 17,13; 2Rs 23,25 e, principalmente, 1Rs 8,46-53: se Israel tomar consciência de seus pecados, se se arrepender e sinceramente suplicar a Javé, este lhe concederá a libertação e uma nova situação de graça. Essa mesma exortação ecoa nos acréscimos exílicos ao Deuteronômio (cf. Dt 4,29-31 e 30,1-10).

O conjunto histórico formado por Josué, Juízes, Samuel e Reis, portanto, é um grande «evangelho», um anúncio que procura suscitar conversão e esperança. Para nós ele se torna um convite a também lermos a nossa história através da bênção e da maldição, da fidelidade e da infidelidade ao projeto de Deus. Também nós podemos utilizar o esquema dialético de Jz 2,6-3,6 para rever a nossa história, descobrir os erros que a paralisam e projetar a ação que abre o futuro da esperança.

Introdução ao livro de Josué: O livro de Josué relata acontecimentos situados no séc. XIII a.C.: a conquista e a partilha de Canaã, a Terra Prometida, pelas tribos de Israel. À primeira vista, o livro apresenta a tomada global da Terra, feita por uma geração. Isso se deve à idealização do autor. A conquista foi, de fato, um processo longo e lento, ora pacífico, ora violento, que só terminou dois séculos mais tarde, com o rei Davi.

O conteúdo pode ser dividido em três partes. Na primeira (Js 1-12), temos a conquista. Os acontecimentos se dão numa área limitada e têm como pano de fundo o santuário de Guilgal, próximo de Jericó; como esta cidade está no território da tribo de Benjamim, é provável que as narrativas provenham de tradições cultivadas no âmbito dessa tribo e, talvez, da tribo de Efraim. A preocupação é fortemente etiológica (do grego aitía: causa), procurando explicar fatos, nomes de lugar, edificações e ruínas para uma geração que vive muito tempo depois («...até o dia de hoje»). A segunda parte (Js 13-21) apresenta a partilha da Terra entre as tribos, servindo-se de documentos geográficos que descrevem as fronteiras das tribos e que remontam à era pré-monárquica, e de listas de lugares e cidades, provenientes do tempo da monarquia. O capítulo 21 é talvez um acréscimo feito no pós-exílio. A terceira parte (Js 22-24) apresenta o fim da vida de Josué e consta de três conclusões: retorno das tribos transjordânicas para seus territórios (Js 22); último discurso de Josué (Js 23); aliança em Siquém e morte de Josué (Js 24).

O livro não é uma crônica, mas uma interpretação dos fatos para mostrar o significado da conquista de Canaã. A personagem principal é a Terra Prometida: Deus realizou a promessa feita aos patriarcas e renovada aos seus descendentes. O povo foi libertado da escravidão do Egito para ser livre e próspero na Terra que Deus ia dar (Ex 3,7-8). Portanto, por trás das longas e minuciosas listas de lugares devemos ver a alegria e a gratidão pelo dom de Deus. E um fato chama a atenção: o povo teve de conquistar a Terra que Deus lhe dera. Deus concede o dom porém não suprime a liberdade e a

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iniciativa do homem. Pelo contrário, supõe e exige que o homem busque e conquiste o dom de Deus. Assim, a Terra é fruto da promessa e dom divinos e, ao mesmo tempo, da aspiração e da conquista do homem. Em outras palavras, Deus promete por dentro das aspirações do homem, e realiza seu dom por dentro das conquistas do homem.

O livro de Josué constitui, portanto, um insuperável tratado sobre a graça de Deus, que é a base da vida e da história. A graça não é dom paternalista de Deus, deixando o homem passivo. Ela é o dom que Deus faz das possibilidades já contidas na estrutura de toda a criação, e principalmente da pessoa humana. Sem a atitude livre e responsável que procura descobrir, tomar posse e endereçar as possibilidades, o homem jamais encontrará a graça. A vida é o dom de Deus que o homem deve descobrir e conquistar. Tudo se concretiza na tensão histórica que existe entre o presente efetivo de Deus, que abre seu dom nas possibilidades, e o presente-futuro do homem que busca, descobre, toma posse e dá endereço ao dom de Deus. E, para que o dom se torne vida concreta, Deus propõe uma só condição: que o homem seja e continue sempre seu fiel aliado.

11 . 1 – A conquista da Terra (1-12).

Depois de uma introdução (1), relata –se que Josué envia espiões a Jericó, que são hospedados pela prostituta Raab (2). A seguir o povo atravessa o Jordão à altura de Jericó e acampa em Guilgal (3-4), onde se realiza uma circuncisão geral e é celebrada a primeira Páscoa em Canaã (5). A parte central da Terra começa a ser conquistada a partir da cidade de Jericó (6), seguida pela conquista de Hai (7-8), durante a qual é descoberto o pecado de Aça(7). Depois Josué faz uma alinaça com os gaboanitas (9), fato que provoca a coalizão chefiada pelo rei de Jerusalém contra Israel, culminando na batalha de Gabaon, seguida pela conquista das cidades do sul (10). Na parte norte, o povo enfrenta a coalizão chefiada pelos israelitas (11). Terminada a fase da conquista temos uma lista dos reis vencidos(12).

11.2 – A partilha da Terra (13-21).

Mostra-se aqui como os territórios ocupados foram repartidos entre as tribos (13-19). Segue-se a enumeração das cidades de refúgio (20) e das cidades reservadas aos levitas (21)

Esta parte é formada por documentos em forma de listas, que apresentam:

1. Inventários de fronteiras: nunca mostradas em sua totalidade. Algumas são repetidas duas vezes, outras precisam ser completadas recorrendo às fronteiras de uma tribo vizinha;

2. Inventário de cidades: Para algumas tribos o inventário é bastante complexo, ao passo que para Judá fltam algumas cidades, e Efraim não conta com nenhuma;

3. Inventários regionais: Identificando nomes de regiões ou horizontes geográficos com a fórmula “de (tal lugar) até (tal lugar)”;

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4. Anais sobre batalhas:conquistas ou ocupações de cidades e regiões, ou então sobre o malogro em expulsar os cananeus.

11.3 – Três Conclusões (22-24)

A primeira apresenta a despedida das tribos transjordânicas que ajudaram solidariamente na conquista da Cisjordânia para voltarem a seus respectivos territórios na Transjordânia; um mal entendido torna-se a ocasião para um acordo solene entre as doze tribos.

A segunda apresenta o discurso de despedida ou testamento de Josué.A Terceira relata a alinaça realizada em Siquém, seguida pela morte de Josué.

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CAPÍTULO XII

O LIVRO DOS JUÍZES

Introdução:- O livro dos Juízes relata fatos situados entre 1200 e 1020 a.C., descrevendo a continuação da conquista da Terra e a vida das tribos até o início da monarquia. Trata-se de um tempo de «democracia tribal» (Jz 17,6; 21,25) e cheio de dificuldades. As tribos são governadas por chefes que têm um cargo vitalício (juízes menores); nos momentos de grande dificuldade surgem chefes carismáticos (juízes maiores), que unem e lideram as tribos na luta contra os inimigos.

O mais importante em Juízes é a chave de leitura da história, que vale não só para o livro, mas para toda a história de Israel. Essa chave é apresentada em Jz 2,6-3,6 e reaparece diversas vezes no texto. Segundo o autor, para levar à frente um projeto social, é preciso manter a memória ativa ou consciência histórica, adquirida através da resistência e da luta. A geração que luta mantém viva essa consciência. A nova geração, porém, quebra essa memória e ameaça fazer o projeto voltar atrás. O resultado é um conflito na história, entre a fidelidade a Javé e seu projeto, e o culto aos ídolos, que corrompe a sociedade.

Jz 2,11-16 apresenta a dinâmica que marca o destino histórico de um povo:

- Pecado = alienação da consciência histórica: o povo abandona Javé, o Deus que produz liberdade e vida, para servir aos ídolos que corrompem, produzindo um sistema social injusto.

- Castigo = perda da liberdade e da vida: servindo aos ídolos da escravidão e da morte, o povo alienado perde a liberdade e a vida, que tinham sido duramente conquistadas.

- Conversão = volta à consciência histórica: no extremo limite do sofrimento, o povo volta à consciência histórica, e clama a Javé.

- Graça = libertação: Javé responde ao clamor, fazendo surgir líderes (juízes) que organizam o povo e o ajudam a reconquistar a liberdade e a vida.

O livro dos Juízes é um convite a ler a história aplicando essa chave de leitura. O importante, porém, é começar pelo castigo, procurando tomar consciência das limitações e dos sofrimentos que uma determinada geração está experimentando. A seguir, procurar identificar os ídolos aos quais a sociedade está servindo em vez de cultuar a Javé e se comprometer com o seu projeto.

 1.1 – Os Juízes, instrumentos de Javé.

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As personagens principais do livro são os Juízes, cujas façanhas são relatadas por um conjunto de sagas, transmitidas certamente num clima de grupos naturais, como a família, o clã e a tribo. Estas sagas têm um estilo bem determinado: são sagas de heróis, líderes que em tempos de calamidade enfrentaram situações quase impossíveis e realizaram grandes façanhas.

Importante é perceber que a figura desses lídres é construída segundo um esquema fixo em quatro passos: chamado, dúvida, sucesso, abaixamento.

1.1.1 – 1º passo: chamado.

Em meio à situação difícil em que se encontram uma ou mais tribos, a pessoa recebe o chamado ou vocação: o “espírito de Javé” posa sobre a pessoa e esta se sente impulsionada à missão de libertar o povo da opressão causada pelos inimigos.( Jz 13,1-7)

1.1.2 – 2º passo: Dúvida.

Mesmo sentindo o chamado a pessoa entra em dúvida. E isso é muito importante, porque a tarefa a realizar é nada mais nada menos do que agir em nome de Deus! Falar ou agir em nome de Deus é coisa muito perigosa. Ninguém pode pretender isso, sob o risco de arruinar a si mesmo e aos outros. Entendemos então a dúvida e a resistência desses futuros líderes populares, e porque eles pedem sinais que confirmem de fato que foram chamados pata tal função, ao mesmo tempo tão delicada e tão brutal. (Jz 16,15-24)

1.1.3 – 3º passo: Sucesso

Sentindo o chamado e experimentando a dúvida, a pessoa está preparada para ser líder do povo. Passa então a organizar os grupos e planejar as estratégias e táticas para lutar contra o inimigo. Luta certa da vitória, pois quando se busca a justiça Deus assina embaixo, e o sucesso é sempre garantido, porque não se trata simplismente da vitória do homem, mas de Deus e do seu projeto. (Jz 16,25-30)

1.1.4 – 4º passo: Abaixamento

O último traço do líder no livro dos Juízes é um pouco chocante. Depois de tudo, o herói acaba mal: vítima de catástrofe, de pecado, de desmoralização. O principal otivo, é que o sistema das tribos não comporta um poder central permanete. O poder centralizado só pode existir ocasionalmente, quando necessário. Terminada a tarefa termina também o mandato, e tudo volta ao normal. (Jz 16,30-31)

1.2. – Débora: Mulher, Juíza e Profetisa.

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O capítulo 4 concentra a atenção em duas mulheres, Débora e Jael, e dois homens, Barac e Sísara. A contraposição é proporcional, e procura mostrar o valor e a coragem da mulher dentro da luta popular. Temos quatro episódios.

1.2.1 – Introdução: a situação difícil (4,1-3)

Repete-se o esquema dialético: pecado (v.1), castigo (v.2), conversão – clamor (v.3). O resto do capítulo mostra a libertação. Desta vez os israelitas são vítimas de Jabin, rei cananeu da cidade-estado de Hasor, que controlava a região através de Sísara, general do seu exercíto.

1.2.2 – Débora e Barac: a organização (4,4-11)

Débora significa “abelha”, nome apropriado para essa mulher perspicaz e industriosa. Era juíza em Israel, e exercia a função de administrar o direito, vivendo nas montanhas de Efraim, entre Rama e Betel. Diante da situação difícil, Débora convoca Barac, um israelita da tribo de Neftali, para organizar as tribos de Neftali e Zabulon contra Sísara e seu exercíto. O lugar junto ao rio Quison é estrategicamente escolhido.

Barac se acovarda. Está na dependência de Débora, que se dispõe a acompanhá-lo, mas avisando que Javé concederá a vitória através de uma mulher.

1.2.3 – Barac e Sísara: a batalha (4,12-16)

Informado de que Barac e seus homens estão no monte Tabor, Sísara mobiliza seu exercito com nocecentos carros de ferro até o rio Quison. Sísara precisa ficar esperando, porque os carros não podem subir à região montanhosa; Depois vem a luta. Conforme encontramos depois no cap. 5,4-5.19-22 houve uam forte chuva, provocando uma enchente no rio, que inundou a planície. Os carros ficaram emperrados. Enquanto isso, porém, os homens de Débora e Barac desceram das montanhas e acabaram com o exercito inimigo, certamente a pedradas e pauladas, pois os camponeses e pastores não tinham armamanto.

1.2.4 – Sísara e Jael: o trágico desfecho (4,17-24)

Sísara foge a pé, até a tenda de Jael, mulher do quenita Héber. Suspense. Jael o recebe bem: dá-lhe leite para asede e o acomoda para o repouso. Depois pega uma estaca e, varando-o pelas têmporas, prega a cabeça dele no chão. Coragem e esperteza femininas. Quando Barac chega, tudo já está feito.

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CAPÍTULO XIII

O LIVRO DE RUTE

Introdução: Sob forma de uma história familiar, o livro de Rute apresenta um roteiro para a luta do povo pobre em busca de seus direitos. Foi escrito em Judá, depois do exílio na Babilônia, pela metade do séc. V a.C.

O período após o exílio foi muito difícil. Era preciso recomeçar tudo. As antigas tradições tinham sido esquecidas, e se tornava necessário fazer sérias reformas, que atingissem os fundamentos econômicos, políticos e sociais, para que o povo de Deus não perdesse sua identidade.

O autor do livro coloca princípios de orientação para reorganizar a comunidade, que sofreu grandes abalos. E isso acontece a partir da situação do povo pobre, apontando-se o caminho para a luta em vista do pão, da terra e da família. Por outro lado, o livro salienta: Deus não quer leis que, em nome da ordem, acabam obrigando as pessoas a sacrificar seus direitos básicos. É também uma grave advertência para aqueles que fazem as leis e para quem obedece à letra e não ao espírito das leis. Elas devem, acima de tudo, ser meios eficazes para que os pobres tenham como defender seus direitos. Quando não servem para proteger o povo pobre, devem ser modificadas, atualizadas ou abolidas. A protagonista do livro é uma estrangeira, e isso mostra que a salvação não tem fronteiras: o amor de Deus não é nacionalista, nem exclusivista. Ele quer liberdade e vida para todos.

1.1 – Rute 1,1-5: o Quadro Inicial: Um Retrato do Povo

O quadro inicial, que conta a história sofrida da família de Noemi e Elimelec, funciona comi um espelho. Nele o povo se reconhece com o seu sofrimento. É o seu retrato: povo faminto sem pão, povo errante sem terra, povo disperso sem família e sem futuro.

Dizendo “No tempo em que os Juízes governavam” (1,1), o livro de Rute se apresnta como a continuação da história dos juízes e suscita nos leitores a esperança de que apareça um novo juiz, igual a Sansão, Jefté, Gedeão, Débora e outros tantos heróis que, no passado, libertaram o povo do cativeiro e da opressão.

Dizendo “Eram do vale de Éfrata, de Belém de Judá” (1,2), o livro lembra a profecia de Miquéias que diz: “Mas você, Belém de Éfrata, tão pequena entre as principais cidades de Judá! É de você que saíra para mim aquele que há de ser o chefe de Israel!” (mq5,1). Sugere assim que a promessa do Messias se realizará através da pequena família errante e sofrida de Noemi, a viúva de Belém. É dos pobres que virá a salvação!

Resumindo, o quadro inicial da história de Rute retrata o passado, o presente e o futuro do povo, isto é, o seu pecado, o seu sofrimento, a sua esperança.

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1.2 – O inicio da caminhada (1,6-14)

O ínicio de tudo é levantar-se! Levantar-se e voltar para a terra em busca do pão! Sair do lugar onde se está, colocar o pé na estrada e começar a andar. Durante Dez anos Noemi ficou parada distante da terra.

Três mulheres: Noemi, Órfã e Rute (Graça, Costa e Amiga). Uma delas é do povo de Deus, as outras duas são de outra religião. Mistura de raça e religião!Eram pessoas sem voz e sem vez na sociedade daquele tempo, pois eram pobres viúvas, estrangeiras e mulheres.

Noemi não esconde a dureza da caminhada e avisa as duas noras: continuando com ela, nunca terão marido; terão ao contrario, a amargura do peso da mão de Deus. Desistindo de caminhar com ela, terão casa, descanso e marido, e não perderão a misericórdia de Deus. Elas é que se decidam e faça a sua escolha! Diante disto, Órfã se define, dá as costas e se afasta da caminhada. Agora só restam duas, Noemi e Rute.

Rute não segue o exemplo de Órfã. Em vez de dar as costas, ela é Amiga, agarra-se a Noemi. ”Elas começaram de novo a chorar. Depois, Orfa se despediu da sogra e voltou para seu povo. Rute, porém, ficou com Noemi. 15 Então Noemi lhe disse: «Veja: sua cunhada voltou para o seu povo e o seu deus. Volte você também com ela». 16 Rute respondeu: «Não insista comigo. Não vou voltar, nem vou deixar você. Aonde você for, eu também irei. Onde você viver, eu também viverei. Seu povo será o meu povo, e seu Deus será o meu Deus. 17 Onde você morrer, eu também morrerei e serei sepultada. Somente a morte nos poderá separar. Se eu fizer o contrário, que Javé me castigue!» (1,14-17)

Noemi e Rute continuam a caminhada e chegam a Belém. Ela não percebe os sinais de esperança, nem o futuro.

1.3 – Rute 2,1-33: O segundo Passo.

O acaso queria que Rute fosse catar espigas no campo de Booz (2,3). Booz chega, cumprimenta os empregados, vê rute e pergunta”Quem é aquela moça”(2,5). Mas quem é Booz? – Booz significa Pela Força. Ele é um homem rico, dono de terras, senhor de muitos empregados. O seu titulo é uma pessoa importante. Era o título de alguns juízes que, no passado, libertaram o povo: Gedeão e Jefté. Era também parte do título do messias, o novo Davi, que, no futuro, haveria de libertar o povo.

Qual o papael de Booz nesta história? Rute faz lembrar as mulheres estrangeiras, expulsas por Esdras. Noemi faz lembrar o povo abandonado. Booz faz lembrar a ação de Javé, o Deus do povo. Booz entra na historia como o juiz esperado. Atravez dele e pela força dele, Javé vai salvar o seu povo. Pela sua força o problema do povo vai ser resolvido: ele vai dar o pão, vai garantir a posse da terra para a família de Noemi e vai gerar o filho.

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Apesar disto Booz não lidera nada, não impõe nada, não tem proposta nem projeto. Ele apenas executa as sugestões das duas viúvas.

Booz gostou de Rute. Foi amor a primeira vista! Insistiu com ela para não ir embora. Ofereceu proteção, restolho e água. Rute estranhou a oferta e perguntou pelo motivo de tanto favor. A resposta de Booz é o miolo do segundo passo. Por meio dela, Booz “fala ao coração” de Rute:

“Então Booz disse a Rute: «Escute, minha filha. Não vá catar espigas em outro campo. Não se afaste daqui. Fique com minhas empregadas. 9 Observe o terreno que os homens estão ceifando e vá atrás deles. Ordenei aos meus empregados que não incomodem você. Quando estiver com sede, pode ir até as bilhas e beber a água que os empregados tiverem trazido». 10 Então Rute se prostrou com o rosto no chão e perguntou a Booz: «Por que o senhor está sendo tão bom comigo? Por que está dando tanta atenção para mim? Eu sou uma estrangeira!» 11 Booz respondeu: «Fiquei sabendo de tudo o que você fez por sua sogra, depois que você perdeu o marido. Você deixou pai e mãe, abandonou sua terra natal e veio viver no meio de um povo que você não conhecia. 12 Javé lhe pague o que você fez. Que você receba uma grande recompensa de Javé, Deus de Israel, pois foi debaixo das asas dele que você veio buscar abrigo». 13 Rute disse: «Que eu mereça o favor que o senhor está fazendo por mim. O senhor me tranqüilizou e me falou ao coração, embora eu não seja nem mesmo sua empregada». (2,8-13)

Rute foi escolhida por Booz como filha de Abraão e como membro do povo de Deus não por ela ser da raça de Israel nem por estar observando todas as normas da lei, mas por ter assumido concreto com Noemi e, através dela, com Deus e com o povo.

1.4 – Rute 3,1-18: uma noite fecunda.

A colheita tinha chegado ao fim. Não havia mais restolho no campo. Rute ficou em casa. E agora, como sobreviver? Noemi diz: “Booz é nosso parente”. Ora, se ele é parente, terá de cumprir o que a lei de Deus exige dele.

Rute se ajeita e se enfeita, vai ao terreiro, espera Booz dormir, chega perto, levanta a coberta e deita junto dele. No meio da noite, Booz acorda do sono, descobre a mulher e pergunta: “quem é você?” Ela responte: “sou Rute, sua serva. Estenda seu manto sobre mim, porque você tem direito de resgate”(3,9). Rute não pede favor, mas apela pelo direito que a lei lhe dá.

Booz aceita exercer o seu direito como goêl ( aquela que é resgatada), aceita fazer o resgate.

Na Bíblia, o amor humano é imagem do amor de Deus para com o seu povo (Os 2,16-22). Aquilo que Booz faz por Rute é revelação do que Deus faz por seu povo. Booz estendeu o manto sobre Rute. Isto lembra Deus estendendo o manto sobre o povo, sua noiva (Ez16,8). A noite fecunda no terreiro de Booz lembra as palavras de Isaias ao povo: “Como o esposo que se alegra com a esposa, seu Deus se alegrará com você”. E ainda: “A mulher abandonada terá mais filhos que a casada, porque o seu marido é o seu

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criador. Quem redime (goêl) você é o Santo de Israel. Javé chama você como a esposa abandonada e abatida” (Is 54,1.5.6).

Resumindo: a linguagem ou o jeito de dizer as coisas tem claramente um duplo sentido. São os dois lados da mesma medalha: é o amor humano, visto como revelação do amor de Deus para com seu povo; e é o amor de Deus que se concretiza no amor fecundo entre Booz e Rute.

A esperança vinda de longe! Ela vinha como um movimento muito amplo, desde debaixo do chão do desespero de uma família migrante. Agora, tudo dependerá do menino que vai nascer. Ele é a porta Poer onde vai passar a esperança da família, do povo!

“ Noemi pegou o menino, o pôs no colo e foi para ele uma verdadeira mãe de criação. As vizinhas deram um nome ao menino, dizendo: «Nasceu um filho para Noemi». E lhe deram o nome de Obed. Obed foi o pai de Jessé. E Jessé foi o pai de Davi.”(4,16-17)

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CAPITULO XIV

O LIVRO DE SAMUEL I – II

Introdução: Os livros de Samuel relatam acontecimentos que se situam entre 1040 e 971 a.C. Temos aí uma análise crítica do aparecimento da realeza em Israel.

Em 1Sm temos duas versões do surgimento da autoridade política central: a primeira é contrária e hostil à monarquia (1Sm 8; 10,17-27), representando a visão mais democrática das tribos do Norte, que viviam em terras mais produtivas. A segunda versão é favorável à monarquia (1Sm 9,1-10,16; 11) e representa a visão da tribo de Judá, que vivia em terras menos produtivas. Unindo as duas versões, vemos que a autoridade é um mal necessário (embora justificável, ela pode se absolutizar, explorar e oprimir o povo) e, ao mesmo tempo, um dom de Deus (uma instituição mediadora, que deve re-presentar, isto é, tornar presente o próprio Deus, único rei que liberta e governa o seu povo).

A - 1Sm oferece, portanto, uma visão crítica da autoridade política. Mostra que Deus é o único rei sobre o seu povo. Para ser legítimo, o rei humano (e seus equivalentes) deve ser representante de Deus, isto é, servir a Deus através do serviço ao povo. E isso compreende duas funções:

1 - função externa: reunir e liderar o povo, auxiliando-o a proteger-se e a libertar-se dos seus inimigos (1Sm 9,16; Sl 110,2);

2 - função interna: organizar o povo e promover a vida social conforme a justiça e o direito (Sl 72; Dt 17,14-20; Pr 16,12; 29,14).

As duas funções se resumem, portanto, numa dupla relação: obedecer a Deus e servir ao povo. Qualquer autoridade que não obedece a Deus e não serve ao povo é ilegítima e má, pois acaba ocupando o lugar de Deus para explorar e oprimir o povo.

B - 2Sm está centrado na figura de Davi, cuja história começa propriamente em 1Sm 16, e nas lutas dos pretendentes ao trono de Jerusalém. Podemos dizer que 2Sm continua a avaliação do sentido e da função da autoridade política.

Davi é apresentado como o rei ideal, que obedece a Deus e serve ao povo. Graças à sua habilidade política, ele consegue aos poucos captar a simpatia das tribos, sendo primeiro aclamado rei de Judá, sua tribo, e depois rei também das tribos do Norte. Após ter conseguido reunir todo o povo, Davi conquista Jerusalém e a torna, ao mesmo tempo, o centro do poder político e da religião de Israel. O ponto mais alto da sua história é a profecia de Natã (2Sm 7), em que o profeta anuncia que o trono de Jerusalém sempre será ocupado por um messias (= rei ungido) da família de Davi. É a criação da ideologia messiânica: o povo será sempre governado por um messias descendente de Davi. Logo

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depois começa a competição pelo poder e pela sucessão e, finalmente, o trono é ocupado por Salomão que, por si, não era o herdeiro direto (2Sm 9-1Rs 2).

Davi passou para a história como o modelo da autoridade política justa. Por isso, mesmo com o fim da realeza, os judeus permaneceram confiantes no ideal messiânico e ficaram à espera do messias que iria reunir o povo, defendê-lo dos inimigos e organizá-lo numa sociedade justa e fraterna. Dizendo que Jesus é descendente de Davi, os Evangelhos mostram que ele é o Messias esperado (daí o nome grego Cristo = Messias). Ele veio para reunir todos os homens e levá-los à vida plena, na justiça e fraternidade do Reino de Deus.

14.1 – O fim de um Sistema (1Sm 1-7)

A primeira parte do livro de Samuel é uma espécie de preparação para os temas que se desenvolvem a seguir: falência progressiva do sistema das tribos, aparecimento de Samuel, que é ao mesmo tempo sacerdote, juiz e profeta, e as peripécias da arca da Aliança, como sinal da presença do Deus que protege os aliados e destrói os inimigos.

O sistema dos juizes funcionou durante 200 anos aproximadamente. Todavia, dois fatores se uniram e acabaram comprometendo essa forma de vida do antigo Israel.

1 – O primeiro fator foi a ameaça do inimigo externo, nesse tempo representado pelos filisteus, que se fixaram na costa sul de Cannã, quase ao mesmo tempo em que as tribos estabeleciam o seu novo sistema. Com o tempo os filisteus se tornaram um povo forte com poderio militar, tornando-se uma ameaça constante contra o território Israelita, uma vez que as tribos não tinham organização militar adequada e permanente para assegurar suas fronteiras.

2 – O segundo fator de ordem interna: a corrupção e enfraquecimento do próprio sistema tribal. As diferenças entre as tribos começaram a se fazer sentir tanto no terreno político como no econômico, o que ameaçava o ideal de partilha e participação política. Dessa forma, ao lado das rixas entre as tribos, verifica-se o enfraquecimento da religião javista, que já não era forte o suficiente para manter e sustentar o ideal tribal. Uma das expressões da corrupção era o abuso praticado pelos sacerdotes que se serviam dos santuários para viver às custas do povo (1Sm 2,11-36).

Perigo externo e corrupção interna, foram as grandes causas da falência de um sistema que procuravam a igualdade econômica e a participação política, de modo que todos pudessem ter igual acesso aos bens da vida e à liberdade.

14.1.2 – Samuel – O Guardião da Consciência Popular.

E meio a esta situação nasce Samuel, que será a personagem mais importante na grande transformação. Seu nascimento é miraculoso, como o de outras personagens em situação igualmente importantes – Isaac (Gn 18,9-15), Sansão (Jz 13,1-25), João Batista (Lc 1,5-25). O que se pretende mostrar é aintervensão de Deus que realiza

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que parece impossível para os homens, a fim de trazer para o povo uma nova esperança dentro de situações difíceis. Samuel será uma figura muito complexa: ao mesmo tempo em que exerce o cargo de Juiz, também é sacerdote e profeta, acumulando assim funções administrativas e carismáticas, sempre a serviço do povo.

14.1. 3 – Cântico de Ana (1Sm 2,1-10)

Deus Santo é também misericordioso. Não fica indiferente ao drama humano. Ouve o clamor do esmagado. Possui um coração sensível aos míseros. Toma partido pelos pobres. Faz sua a causa deles. Ama o mundo porque saiu de sua palavra onipotente. Mas protesta contra ele, pela forma histórica de injustiças e opressões que os homens lhe imprimiram.

Exemplo desta atitude misericordiosa de Deus, encontramo-lo na história de Ana, mãe de Samuel. É estéril. Sofre humilhações e zombarias por parte de sua concorrente Fenena. Chora amargamente e não come de tristeza. Entre copiosas lagrimas reza: «Javé dos exércitos, se quiseres dar atenção à miséria da tua serva e te lembrares de mim, e não te esqueceres da tua serva, e lhe deres um filho homem, então eu o consagrarei a Javé por todos os dias de sua vida, e a navalha não passará sobre a cabeça dele». E Deus ouviu a súplica da desanparada: nasceu Samuel, e mais três filhos e duas filhas. Ao apresentar o primogênito no templo, Ana prorrompeu num cântico que está na base do cântico de Maria. O paralelismo é tão surpreendente que não nos furtamos a traçar uma sinopse:

«Meu coração se alegra com Javé, em Deus me sinto cheia de força.

Agora, que eu possa responder aos meus inimigos,

pois me sinto feliz com tua salvação.

Ninguém é santo como Javé, não existe Rocha como o nosso Deus.

Não multipliquem palavras soberbas, nem saia arrogância da boca de vocês,

porque Javé é um Deus que sabe, é ele quem pesa as ações.

O arco dos poderosos é quebrado, e os fracos são fortalecidos.

Os saciados se empregam por comida, enquanto os famintos engordam

com despojos.

A mulher estéril dá à luz sete filhos, e a mãe de muitos filhos se esgota.

Javé faz morrer e faz viver, faz descer ao abismo e dele subir.

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Javé torna pobre e torna rico,

ele humilha e também levanta.

Ele ergue da poeira o fraco e tira do lixo o indigente,

fazendo-os sentar-se com os príncipes e herdar um trono glorioso;

pois a Javé pertencem as colunas da terra, e sobre elas ele assentou o mundo.

Ele guarda o passo de seus fiéis, enquanto os injustos perecem

nas trevas

- pois não é pela força que o homem triunfa.

Javé derrota seus adversários, o Altíssimo troveja lá do céu.

Javé julga os confins da terra. Ele dá força ao seu rei

e aumenta o poder do seu ungido». (1Sm 2,1-10)

«Minha alma proclama a grandeza do Senhor,

meu espírito se alegra em Deus, meu salvador,

porque olhou para a humilhação

de sua serva.

Doravante todas as gerações me felicitarão,

porque o Todo-poderoso realizou grandes obras em meu favor:

seu nome é santo,

e sua misericórdia chega aos que o temem,

de geração em geração.

Ele realiza proezas com seu braço:

dispersa os soberbos de coração,

derruba do trono os poderosos e eleva os humildes;

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aos famintos enche de bens, e despede os ricos de mãos vazias.

Socorre Israel, seu servo,

lembrando-se de sua misericórdia,

- conforme prometera aos nossos pais -

em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre.» (Lc 1,46-55)

O Cântico de Ana mostra que a consciência e o discernimento, diante dessa grande transformação, deve se feito a partir dos pobres e fracos e em favor deles.

14.1.4 – A Vocação de Samuel (1Sm 3).

O texto sobre a vocação profética de Samuel é um modelo de como se processa o nascimento da consciência profética. Três vezes Samuel é chamado e três vezes ele pensa que foi o sacerdote Eli quem o chamou. Esse é um engano freqüente: confundir a voz de Deus com a voz de qualquer outra pessoa, principalmente com a voz de qualquer autoridade. No entanto, Deus fala ao homem a partir do mais profundo dele mesmo, comunicando inclusive uma ordem para ir até mesmo contra aqueles que à primeira vista são importantes. Samuel deverá anunciar ao sacerdote Eli que ele e seus filhos serão condenados. Mais tarde, Samuel também criticará o rei Saul. Ai temos seu grande papel de profeta: denunciar a corrupção do antigo sistema e também denunciar as falhas e perigos do novo sistema.

14.1.5 – Arca de Aliança: presença de Deus (1 Sm 4-7)

Boa parte do inicio de 1Sm se ocupa com a Arca da Aliança. Ela, na verdade, é símbolo da presença de Javé no meio do povo, consolidando com a religião o sistema de vida das tribos. Não sabemos ao certo o que a Arca devia conter nesses tempo; talvez as tábuas da Aliança com o decálogo, como é apresentada em 1Rs8,9. Dessa forma, a Arca consolidava também uma nova forma de sociedade, fundada na liberdade e dignidade exigidas pelo decálogo. É interessante notar que essa Arca representava para os israelitas um verdadeiro sacrário da presença de Javé e, por isso, era levada à frente dos exércitos quando estes saíam para lutar (1Sm 4,3).

É no contexto de uma batalha com os filisteus que a Arca é tomada e levada para o meio dos inimigos (1Sm4,4-22). Para Israel isso significa a total derrota, pois perdia, assim, tanto o sacramento da presença de Javé, quanto o símbolo da sociedade justa pela qual tanto havia lutado.

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Acontece, porém, um episódio curioso: entre os inimigos, a Arca se torna um perigo constante, vencendo os deuses dos inimigos e provocando neles uma série de malefícios (1Sm 5). Tudo isso indica que javé não é compatível com os deuses das nações, nem com o modo de vida delas.

Por fim, a Arca deve retonar ao seu lugar de origem. O cerimonial realizado (1Sm6) é para salientar a plena liberdade de Deus, voltando para o seu povo, onde a Arca continua sua função de proteger e relembrar que o Deus verdadeiro devbe ser temido e sua vontade e projeto devem ser respeitados.

14.2 – Ambiguiddes do Novo Sistema (1Sm 8-11)

A passagem do sistema tribal para o regime monárquico não é historicamente muito clara. Os estudiosos distinguem várias versões sobre o surgimento da monarquia em Israel. Destacamos duas versões mutuamente contrárias. A primeira (1Sm8;10,17-27) é totalmente desfavorável. A segunda (1Sm 9,1-10,16;11) é francamente favorável. Conservando estas duas versões, a Bíblia salienta que a autoridade política central é, no mínimo, ambígua: ela pode ser um instrumento de Deus a serviço do povo; mas pode também, caso se absolutize, explorar e oprimir o povo, tornando-se completamente má.

Em 1Sm 8,3 mostra os motivos que levaram à busca de um novo sistema: Joel e Abias, filhos de Eli, que se tornaram juízes, se corromperam: ganância, suborno e distorção do direito. Por isso o povo pede que Samuel inaugure uma instituição monárquica, “como acontece entre as nações”.

Samuel resiste. Mas como a história caminhou irreversivelmente para a monarquia, ele a aceita e expõe ao povo o direito do rei: formação de um exercito, exigência de tributos, escravos da corte real, desapropriação de terras e mão de obra escrava.

14.3 – Saul e as tentações do poder político.

Em 1Sm 9,1-10,16 mostra que toda iniciativa, a implantação do novo regime, foi de Javé, usando Samuel como instrumento. Todo episódio da perda das jumentas serve como pretexto para o encontro de Saul como o profeta. Samuel unge secretamente Saul como rei (10,1-16). Os sinais que seguem são para confirmar que Saul foi a pessoa escolhida por Deus para assumir a realeza. É a forma de mostrar que a instituição do poder central é vista como dom de Javé.

Em 1Sm 11, a saga continua. Já ungido rei, Saul lidera, de forma carismática, as tropas contra os amonitas e, depois da vitória, o povo o proclama rei. Não há uma nova unção, apenas sacrifícios de comunhão e uma grande festa.

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Na mudança de sistema em Israel, encontramos duas coisas: uma revisão positiva sobre o sistema anterior e uma previsão sombria, seguida logo depois por uma descrição viva dos perigos do novo sistema.

O perigo do poder centralizado( absoluto) não tarda a aparecer. O primeiro se manifesta numa situação difícil: os filisteus se preparam, com superioridade de homens e armas, para atacar Israel, e este treme de medo. Era costume oferece sacrifício antes de partir para a batalha, e isto cabia a Samuel, certamente por suas prerrogativas de sacerdote. Samuel, contudo, se demora, e Saul toma a iniciativa de ele próprio oferecer o sacrifício, temendo ser abandonado pelo povo. O episodio foi grave. Não certamente por oferecer o sacrifício, cometendo um ato indevido.O problemático da situação é que Saul ultrapassa suas funções, usurpando a função sacerdotal, que era própria de Samuel, isto é, de interceder pelo povo diante de Javé. E aqui percebemos então que um dos grandes perigos do poder político é ultrapassar sua função e tornar-se absoluto, pretendendo dar a última palavra sobre todas as coisas e, assim, ser o único detentor do destino do povo. Ultrapassando a autoridade de Samuel, o rei Saul, estava, na verdade, pretendendo colocar Deus a serviço de seu medo e capricho, isto é, servindo-se de Deus para assegurar seu próprio poder.

A Segunda tentação do poder político é a cobiça, a acumulação de riqueza, muitas vezes disfarçadas por motivos à primeira vista até louváveis. Naquele tempo, existia a lei do anátema ou extermínio, que devia ser cuidadosamente observada nas guerras. Esta lei tinha dois motivos: evitar a contaminação religiosa, cultural e política, e evitar as guerras como o único objetivo de acumular riquezas. Ora, Saul desobedece a lei e retém ovelhas e vacas que, segundo ele, serviriam para oferecer sacrifícios a Javé. Na verdade, podemos suspeitar de uma cobiça, já que a posse de rebanhos era um dos bens mais cobiçados da época. A resposta de Samuel é dura e traz uma revelação importante sobre a vontade de Javé:

“ Samuel, porém, replicou: «O que é que Javé prefere? Que lhe ofereçam holocaustos e sacrifícios, ou que obedeçam à sua palavra? Obedecer vale mais do que oferecer sacrifícios. Ser dócil é mais importante do que a gordura de carneiros. A rebelião é um pecado de feitiçaria, e a obstinação é um crime de idolatria. Você rejeita a palavra de Javé. Por isso, ele rejeita você como rei»” (1Sm 15,22-23)

A palavra de Samuel, em primeiro lugar, é um desmascaramento da ideologia que muitas vezes pode se esconder sob a capa de piedade religiosa. Na verdade o que se estava em jogo era a cobiça. O segundo erro de Saul é muito grave porque induz o povo a uma concepção distorcida da própria relação com Deus. O mais importante não é o culto externo a Deus, e sim a prática de sua vontade; caso contrário, o culto se torna uma verdadeira idolatria, onde o próprio Deus é reduzido ao tamanho de um ídolo, que esconde a cobiça e a ganância do próprio homem.

14.4 – Davi – itinerário de um líder popular.

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Logo que Saul é rejeitado por Javé, Samuel unge Davi (1Sm 16,1-13) Essa pequena história serve como temática para preparar o destino de Davi e também para ilustrar a máxima que aparece no v.7: “O homem olha as aparências, mas Javé olha o coração”

A seguir temos duas versões de como Davi entrou para a corte de Saul. Conforme a primeira (1Sm16,14-23), Davi é músico e contratado para a corte, a fim de abrandar as crises neuróticas de Saul. O importante nesta versão, é que o poder de Davi se explica porque “Javé está com ele”. Na segunda versão (1Sm17,1-58), é frisada a capacidade guerreira e a coragem de Davi, por ter vencido o robusto e armado Golias, símbolo do exército filisteu. Nessa versão, é importante a palavra de Davi ao filisteu: “Você vem contra mim armado de espada, lança e escudo. E eu vou contra você em nome de Javé dos exércitos, o Deus do exército de Israel, que você desafiou”.(v.45) Isto é uma preparação para mostrar que Davi será um líder popular, que conseguirá vitórias, mais através de estratégias e táticas do que pelas armas.

É provável que esta segunda versão seja mais histórica, pois é através dela que podemos entender o fato de Davi atrair a inimizade de Saul (1Sm 18,1-19,7). Por trás dessa inimizade vemos que o poder se torna motivo de inveja, cobiça e competição e que, na realidade, por trás de Davi está a tribo de Judá, ameaçando as tribos do norte, representadas por Saul. O que vai garantir o futuro de Davi é sua amizade com Jônatas, filho do próprio Saul.

Instigado pela inveja e pelo medo de perder o poder, Saul começa a alimentar ódio assassino contra Davi. A principal razão do ódio é que Davi começa a se destacar como líder, conquistando vitórias contra os filisteus e atraindo a simpatia do povo. Para se proteger, Davi tem que fugir e se esconder. Doravante, sua vida depende da proteção de Deus (1Sm 21-2,7), de sua própria força (1Sm 21,8-10), da própria astúcia (1Sm 21,11-16) e da ajuda dos amigos (1Sm 20)

Com a fuga, começa uma nova fase da vida de Davi. Longe do centro do poder, ele depara com a realidade vivid pelo povo e atrai para si “todos os que estavam em dificuldade, todos os endividados e todos os descontentes”, formando um grupo de quatrocentos homens. Podemos, portanto, dizer que ele se torna o líder dos descontentes e é a partir da marginalidade social que ele começa a exercer uma liderança que o levará, mais tarde, ao poder.

Diante da perseguição persistente de Saul, Davi não tem outra alternativa senão refugiar-se entre os filisteus, os piores inimigos de seu povo. Trata-se de um refúgio tático, pois ele protege secretamente as cidades e aldeias de Judá, servindo-se da proteção e armas fornecidas pelos próprios filisteus (1Sm27)

Em 2Sm 1 temos uma versão sobre a morte de Saul. Em 1Sm31, outra versão. Nesta Saul se suicida, e 2Sm ele é morto por um estrangeiro, que por sua vez é morto por Davi, em sinal de solidariedade para com o rei Saul.

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14.5 – O Rei Davi

A história inicial de Davi mostra o itinerário de um líder popular que chega ao poder. Esse itinerário é sintomático: não é do centro do poder que se costuma ver com objetividade a situação do povo; é preciso estar no meio do povo para descobrir suas verdadeiras aspirações.

As tribos do Norte, antes chefiadas pelo rei Saul, continuavam fora do domínio de Davi, pois Abner, chefe do exército de Saul, procurava a todo custo manter a família de Saul no poder e, ele mesmo, conquistava cada vez mais ascendência. Após uma série de intrigas entre Abnere Joab, chefe do exercito de Davi, Abner acaba sendo morto por este, deixando Davi completamente inocente da questão. Restava, porém, um empecilho: Isbaal, filho de Saul, continuava vivo e poderia reinvindicar o trono e governar as tribos do norte. O problema foi resolvido, pois recab e Baana, soldados de Isbaal, o mataram e levaram sua cabeça a Davi (2Sm4,1-12). Com isso, ficava livre o caminho para Davi reinar sobre as tribos do Norte, unificando-as numa só nação (2Sm5,1-5)

Assegurado o domínio sobre todas as tribos, restava a Davi escolher um lugar apropriado para ai estabelecer a sede do governo. Era uma questão delicada pois, se escolhesse no sul, provocaria a desconfiança do Norte e vice-versa. A solução foi escolher um lugar que até então estava neutro: a cidade de Jerusalém, que era um quisto dos Jebuseus, governado por sacerdotes.

Jerusalém se torna o centro político e religioso do povo. Com a transferência da Arca para a cidade, estava definitivamente estabelecida como a capital do reino e assegurava, religiosa e simbolicamente, a unidade do povo sob uma mesma política e religião (2Sm6,1-23). Com o tempo, Jerusalém também se tornará o centro econômico e social da nação, atraindo continuamente o povo para o comercio e as festas religiosas.

Com a unificação das tribos sob o seu poder e o estabelecimento de Jerusalém como sede do governo, Davi podia ficar tranqüilo. Tinha conseguido o que queria. Em suas mãos, Israel deixa de ser um conjunto de tribos e se torna um Estado em vias de estruturação.

Em 2Sm 8 marca o apogeu máximo de Davi. Vitorioso sobre todas as nações inimigas que ameaçavam Israel, ele consolida geograficamente os territórios em seu poder. Fato interessante é comparar a extensão dos territórios conquistados por Davi com a delimitação dos territórios de Abraão contra os reis estrangeiros (cf Gn 14,1-16). O que se quer dizer é que Davi, finalmente, realizou o que Deus havia prometido a Abraão: dar uma terra e formar da descendência de Abraão um grande povo.

14.6 – Gloria e Corrupção

Ao ser proclamado rei, Davi fizera um pacto ou contrato com povo (1Sm 5,3). Nesse contrato a autoridade do rei deveria ser usada para duas finalidades: defender o povo dos inimigos e fazê-los viver segundo a justiça e o direito. Ora, 2Sm 11 mostra que Davi traiu completamente sua função de autoridade: não acompanha mais o

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exército na batalha e, portanto, deixa de defender o povo; ao mesmo tempo, torce a justiça e viola o direito, usando o poder para satisfazer seus caprichos pessoais. Todas as artimanhas que ele usa para conseguir apossar-se de Betsabéia são totalmente ilegais e mostram que ele se corrompeu, embriagado pelo próprio poder.

O erro de Davi é duramente acusado e julgado pelo profeta Nata (2Sm 12). Apanhado na armadilha provocada pela parábola, Davi não tem como fugir ou ignorar seu erro, pois é ele próprio quem dá a sentença para si mesmo (2Sm 12,5-6). Diante do julgamento, só lhe resta reconhecer a própria culpa, sofrer o castigo e arrepender-se profundamente. O pecado de Davi, porém, deve ser julgado num contexto maior. A violação do contrato feito com o povo traz outra conseqüência que agora escapam à simples penitência pessoal: a autoridade do rei fica comprometida e, em conseqüência, desencadeia-se a luta pelo poder dentro da própria família de Davi.

A história da luta pelo poder é uma história de intrigas, lutas golpes e mortes. A cobiça pelo poder faz ultrapassar todos os limites e princípios e, em meio a corrupção, ela se torna desenfreada. Na velhice, Davi encontra-se em meio a dois partidos de sucessão: um apóia Adonias, o filho com direito a sucessão, o outro apóia Salomão, filho de Davi com Betsabéia. Natã, partidário de Salomão, convence Betsabéia a aproveitar da velhice de Davi para lembrá-lo que havia prometido entregar a Salomão o poder. Davi é interamente manobrado pela intriga e imediatamente nomeia Salomão como sucessor (1Rs 1,11-40)

O final da História da Sucessão se preocupa com a consolidação do poder de Salomão. Enquanto Davi, próximo da morte, aconselha o novo Rei a obedecer a lei (1Rs 2,1-11)

Como vimos, a história dos reis é pontilhada de competições, lutas, sangue e morte. É a historia do poder e da ambição que, quando não conhece sua função e não se atém a ela em vista do bem comum, torna-se ocasião de opressão, favorece intrigas, corrupção e ganância.

Davi é uma figura positiva e bem intencionada. Sua trajetória de líder popular que chega ao poder é um exemplo para a história. Contudo, mesmo assim, foi vítima das ambigüidades de um sistema que traz consigo a competição pelo poder: para subsistir, é sempre necessário aniquilar a oposição, inclusive dentro da própria família.

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CAPITULO XV

O LIVRO DOS REIS I – II

Introdução: Os livros dos Reis relatam acontecimentos que vão de 971 a 561 a.C., continuando a história da monarquia iniciada com Saul e Davi. Depois de Salomão, o império se divide (931 a.C.) em dois reinos: o reino de Israel, com sede em Samaria, que caiu em poder da Assíria em 722 a.C., e o reino de Judá, com sede em Jerusalém, que caiu em poder da Babilônia em 586 a.C. Mais do que uma relação pormenorizada de acontecimentos, estes livros fornecem uma reflexão crítica sobre a história do povo e dos reis que o governaram: a fidelidade a Deus leva à bênção e à prosperidade; a infidelidade leva à maldição, à ruína e ao exílio (cf. 2Rs 17,7-23).

Devemos salientar que os livros tiveram duas elaborações, atualmente entremeadas; mas facilmente reconhecíveis a partir de uma analise das motivações que ai aparecem:

1 – Edição pré-exílica: do tempo do rei Josias (640-609 a.C.), abarcando a história que vai desde de Salomão até Josias.

2 – Edição exílica: do tempo do exílio. Produz uma segunda edição da história dos reis, completando a versão pré-exílica e, entre outras coisas, ai produziu uma segunda edição da história dos reis, completando a versão anterior. É acrescentada o resto da historia dos reis até o ano 561 a.C.

15.1. – Fontes da história dos reis.

As fontes e os materiaid usados pelo historiador são facilmente identificáveis

Livro da história de Salomão (1Rs 11,41). São os anais historiográficos da corte de Jerusalém no tempo do rei Salomão. Embora possa conter todos os dados, feitos e acontecimentos referentes ao rei, certamente não formava um complexo coeso e ordenado.

Anais da corte real. Temos aqui os anais dos reis de Israel, quanto aos dos reis de Judá, aparece um resumo colhendo apenas os dados sobre a origem, idade, duração do governo e o julgamento( bom ou mau, conforme tenha ou não combatido a idolatria e centrado o culto em Jerusalém.)

Lendas proféticas. São pricipalmente sagas ou estórias populares com tema religioso. Em geral se apresentam com traços maravilhosos, que indicam não tanto um milagre, mas a exageração não-científica de fenômenos naturais, devido ao desconhecimento das leis da natureza. Para este tempo o aoutor tinha em mãos

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as legendas sobre os profetas Aias de Silo (1Rs11,26-40; 14,1-17); Elias, o tesbita(1Rs 17-2Rs 2), etc.

Discursos. Benção e orações de Salomão por ocasião da inaguração do Tempo (1Rs 8,14-53).

Avaliações particulares. Nos momentos cruciais da história, o autor insere reflexões pessoais sobre os acontecimentos.

15.2 . Os reinos de Judá e Israel

No reinado de Salomão a Palestina torna-se um importante ponto de encontro e intercâmbio de variadas correntes espirituais, religiosas e artísticas do Oriente próximo. Centro dessas ações de encontro e fusões é com razão a corte de Jerusalém. Materiais de sabedoria egípcia, babilônica, edomítico-vétero-árabe transpuseram-se para o campo da sabedoria judaica, dotando-se de novas acentuações, motivações e finalidades.

A construção do tempo por Salomão não deve levar ao engano de se pensar que não tenha havido uma transformação da fé tradicional javista, evidentemente não através de duros embates, mas no silêncio e imperceptivelmente. A construção levou a desvalorização e esvaziamento de inímeros lugares de culto pré-existentes, espalhados por todo o país. Retrai-se com isso a piedade popular do dia-a-dia. A função especial de Jerusalém marcou cada vez mais a piedade popular judaica a partir da perspectiva do culto e cumprimento dos preceitos cultuais.

A prosperidade econômica e a segurança militar favoreceram um pensamento antropocêntrico e voltado para o aquém. O verticalismo religioso, que durante o movimento de migração e antes da sedentarização apontava para o “Deus libertador” e para o “povo santo”, transpôs-se em horizontalismo religioso de solidariedade humana e de compromisso com o mundo.

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De acordo com a concepção tradicional, Javé era “um Deus ciumento” (Ex 20,5), que não tolerava a idolatria. Contudo, sob Salomão, ao que parece, chega ao fim o tempo das “guerras de religião”. A onda dessa aproximação tolerante e cosmopolita levou a um intercambio pacífico com outros povos. A compenetração com as culturas estrangeiras acarretou também a compenetração com religiões estrangeiras. O próprio rei exerceu uma política rasteira de compromisso religioso. Por um lado, construiu o templo e, por outro, erigiu diante do templo, no monte das oliveiras, também santuários para os deuses estrangeiros. (1Rs 11, 3-8).

De Salomão não se narra nenhuma expedição militar exterior. Contudo, no âmbito da política interna, ele eliminou brutalmente todos os possíveis concorrentes, na maioria das vezes por meio de assassinatos políticos, sobretudo na luta contra seu irmão mais velho, o quarto filho de Davi, Adonias (2Sm3,4) e contra membros da família de Saul (1Rs 15,2-46). Foi um administrador por excelência. Primava por extraordinário dom por finanças, levantamento de impostos e planejamento a longo prazo. Para suas atividades amplas, precisava de dinheiro e mais dinheiro: para suas empresas e construções. Ereção ou melhoria de fortificações e baluartes espalhados por todo o país, para o adestramento de um exército vigoroso, principalmente para a formação de uma forte frota comercial. (1Rs 9,26-27;10,11-22)

Morto Salomão, sobe no trono seu filho Roboão (1Rs11,43). E agora explode toda a pressão lentamente acumulada ao longo do reinado de Salomão. Roboão começa a reinar em clima tenso. Jeroboão, filho de Nebat que havia de refugiado no Egito, volta e assume a liderança da revolta popular. É a primeira vez que se tem noticias a voz do povo, que até agora tinha sido massa passiva, explorada e oprimida. “Seu pai nos impôs um fardo pesado. Se você nos aliviar da dura escravidão e do fardo pesado que ele nos impôs, nós serviremos a você” (1Rs 12,4). Roboão não da ouvido ao povo, viola assim o ideal de justiça proposto em 1Rs 3,4-15: o requisito básico para ser uma autoridade justa é saber ouvir o povo (ter um coração que escuta).

Diante desta autoridade política que não escuta o clamor do povo, so resta a atitude de rejeição ao governo. As tribos do norte rejeitam não so a pessoa de Roboão, mas a dinastia de Davi, que governava o povo a partir de Jerusalém e de Judá. É um repudio à monarquia de Jerusalém. Proclamado rei sobre Israel, Jeroboão procura a todo custo evitar que os israelitas voltem para o domínio de Roboão.

15.3 – Profetas:arautos da consciência popular.

É curioso notar que o profetismo aparece juntamente com a monarquia, quando há uma troca do sistema tribal pelo tributário: ao lado do rei temos o profeta.

Os profetas são defensores ferrenhos do javismo e da justiça, e críticos acerbos da idolatria e da injustiça.Temos or profetas não-escritores ( aqueles que não possuem um livro com seu nome) e os escritores. O livro dos reis conserva as legendas sobre vários deles: Aias de Silo (1Rs 11,26-40;14,1-17); Jeú, filho de Hanani (1Rs 16,1-4); Elias, o tesbita (1Rs 17-2Rs 2).

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CAPÍTULO XVI

LIVROS PROFÉTICOS

Introdução:

Pela sua coragem de questionar a situação presente e vislumbrar um futuro diferente para o seu povo, os profetas sempre exerceram atração fascinante. Muitos chegam até a confundir profeta com adivinhador do futuro. Outros chegam a pensar que eles ensinavam coisas absolutamente novas. O verdadeiro profeta, no entanto, é aquele que preserva a tradição autêntica do seu povo, perdida ou deformada em meio a tantas «tradições» criadas para defender interesses, legitimar poderes e sustentar sistemas. O núcleo central da tradição autêntica é a fé exodal, ou seja, o reencontro com o verdadeiro Deus revelado a Moisés: «Eu sou Javé seu Deus, que fiz você sair da terra do Egito, da casa da escravidão» (Ex 20,2; Dt 5,6). Portanto, profeta é aquele que se inspira na ação libertadora do Deus do êxodo e, a partir daí, analisa a situação presente e mostra o projeto de Deus para o futuro do seu povo.

As atividades do profeta variam de acordo com seus ouvintes e com o momento histórico em que ele vive. Cada profeta tem o seu estilo próprio, e pronuncia anúncios e denúncias diante de situações bem determinadas. No entanto, podemos perceber duas grandes vertentes na atividade dos profetas:

- Exigência de conversão, para mudar o sistema social, a fim de que o julgamento de Deus não recaia sobre o povo. Esse tema é predominante nos profetas que exerceram sua atividade antes do exílio na Babilônia.

- Anúncio de esperança, para encorajar e estimular o povo, que tinha perdido sua terra e corria o perigo de perder a própria identidade. Esse anúncio fazia retomar a caminhada da reconstrução, recuperando a fé em Javé e os valores históricos alcançados em nome dessa mesma fé.

Os livros proféticos testemunham a vida e atividade de homens que possuem fé profunda e vigorosa; homens que procuram levar o povo a um relacionamento sempre renovado e responsável com o Deus que julga e salva.

Os Reis de Israel e de Judá deixaram-se arrastar pelo exemplo dos outros povos. Tornaram-se semelhantes ao faraó de Egito, de que fala o livro do Êxodo, e instam na própria terra prometida e conquistada a “casa da escravidão”. Acontece o que Samuel tinha previsto “ Samuel transmitiu todas as palavras de Javé ao povo que lhe pedia um rei. E lhes disse: «Este é o direito do rei que governará vocês: ele convocará os filhos de vocês para cuidar dos carros e cavalos dele, e correr à frente do seu carro. Ele os nomeará chefes de mil e chefes de cinqüenta. Ele os obrigará a ararem a terra dele e fazerem a colheita para ele, a fabricarem para ele

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armas de guerra e as peças dos seus carros. As filhas de vocês serão convocadas para trabalhar como perfumistas, cozinheiras e padeiras. Ele tomará os campos, as vinhas e os melhores olivais de vocês, para dá-los aos ministros. Pegará a décima parte das plantações e vinhas de vocês, e as dará aos oficiais e ministros. Os melhores servos e servas, os bois e jumentos de vocês, ele os tomará para que fiquem a serviço dele, e cobrará, como tributo, a décima parte dos rebanhos. E vocês mesmos serão transformados em escravos dele.” (1Sm 8,10-17).

A aliança entre o palácio e o templo nunca deu certo. O Deus de Israel começou a ser cultuado como um ídolo qualquer para legitimar os abusos da monarquia, a desintegração do projeto tribal e a opressão do povo. Para se manter no trono, os reis esqueceram a Aliança e procuraram o apoio das grandes potências imperialistas. Primeiro, caíram nas garras do Império Assírio, que arrasou Samaria, a capital do Reino de Israel (Norte). Depois sofreram a devastação do império Babilônico, que destruiu Jerusalém.

Antes do cativeiro, os profetas: Amos (Nasceu em Judá, mas foi profeta em Israel na época de JeroboâoII; condenou os povos vizinhos de Israel pela sua crueldade; advertiu que os israelitas seriam feitos prisioneiros pelos assírios); Oséias (Durante os anos que precederam a queda de Samaria, Oséias advertiu o povo que seria escravo da Assíria, porque tinha conhecido a Deus, a ponto a pedir ajuda da Assíria e do Egito); Isaias 1-39 (viveu em Jerusalém na época em que Judá estava ameaçado pelos assírios. Previu a tomada de Jerusalém pelos babilônios, mas também uma futura era de paz); Miquéias ( previu a invasão assíria e babilônica, bem como a queda de Samaria e de Jerusalém); Sofonias (Viveu no tempo de Josias; condenou o culto dos deuses cananeus e assírios; previu a ruína das nações pagãs vizinhas, bem como a destruição e reconstrução de Jerusalém); Naun (Anunciou a destruição de Nínive como sentença de Deus contra os assírios, por causa da sua crueldade com os outros povos); Jonas ( Enviado por Deus a Nínive para anunciar o julgamento de Deus; os habitantes converteram-se e Deus poupou a grande cidade)

Estes profetas, em nome da Aliança: 1 – Defenderam o povo do campo contra o avanço explorador da cidade; 2 – gritaram : “oráculos do Senhor”, e anunciaram a intervenção direta de YHWH; 3-Denunciaram os erros dos reis e do povo, e convocaram para a conversão; 4 anunciaram a proximidade do desastre que viria como conseqüência da política nefasta dos reis ( o cativeiro).

Durante o cativeiro os profetas: Jeremias (advertiu repentinamente que Jerusalém seria tomada e os habitantes exilados para a Babilônia. Profetizou contra as nações pagãs. Prometeu que depois de setenta anos os judeus retornariam. Depois da destruição de Jerusalém em 586 a.C. foi levado para o Egito); Habacuc (indagou como Deus podia permitir que os cruéis babilônios vencessem o seu povo); Ezequiel (foi um dos Judeus deportados para a Babilônia. Profetizou a queda da nações inimigas de Judá e animou os exilados com a esperança da volta à sua pátria); Abdias (profetizou contra Edom, que tinha atacado Judá no tempo da invasão babilônica); Daniel ( Foi deportado na época do ataque de Nabucodonosor

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contra Jerusalém em 605 a.C. Tornou-se primeiro ministro na corte real de Babilônia e outros impérios subseqüentes). Isaias 40-55 ( Profeta anônimo da época do exílio em Babilônia, apresentado uma mensagem de esperança e consolação – Este profeta chamamos de segundo Isaias – O povo de Deus convertido mas oprimido é chamado de “servo do Senhor”; o novo Testamento atribui esse título a Jesus, o justo que sofreu e morreu para libertar seu povo).

Estes profetas têm como características comuns: 1 – Solidarizaram-se com o povo na tragédia em que foi vítima e re-descobriram a presença de Deus nos próprios fatos dolorosos do cativeiro; 2 – descobriram uma maneira de ajudar o povo a ler os fatos à luz da fé e a criticar o sistema opressor dos ídolos; 3- releram o passado a lúz da nova experiência de Deus e re-descobriram a missão do povo que sofria: ser servo, ser luz das nações; 4- fizeram a revisão da história, procurando apontar a causa do fracasso.

Depois do cativeiro, o povo voltou para a sua terra, mas ficou sob o domínio persa e helenista. Os profetas deste período: Ageu ( em 502 a.C. , dezoito anos depois que os Judeus tinham retornado de Babilônia, ele exortou-os a esquecer os interesses pessoais e concluir a reconstrução do templo); Zacarias ( profetizou aos judeus repatriados entre 520 – 518 a.C.; predisse a destruição das nações que tinham oprimido os judeus e previu uma era que viriam povos de todo mundo para adorar em Jerusalém); Joel (profetizou uma devastação que atingiria o país como uma praga de gafanhotos e uma grande esperança que viria depois); Malaquias (profeta que viveu no século V a.C. Os judeus estavam desiludidos e apáticos. Malaquias lembrou-lhes as exigências de Deus e avinda do Messias); Isaias 56-66 (coleção de oráculos anônimos que procura estimular a comunidade que sai do exílio e se reuniu em Jerusalém com os que estavam dispersos. Condena os abusos que começam de novo a aparecer e mostra qual é o verdadeiro Jejum para que haja novos céus e nova terra).

Este período é marcado pela restauração da monarquia (Zorobabel); restauração do templo, do culto e da cidade; reorganização em torno da Lei e da pureza da raça; desaparece a profecia dando lugar à Escrituras, à tradição e à Sinagoga.

16.1 - Profetas

A - Conhecendo os profetas

Para bem iniciar este estudo convém partir do seguinte princípio.

O que é um Profeta?

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De forma bastante ilustrativa gostaria de parafrasear Guimarães Rosa em

“Grande Sertão: Veredas” que de maneira simples denota muito bem o que venha a ser

um profeta. Diz ele: digo o real não esta na saída nem na chegada: ele se dispõe para a

gente é no meio da travessia”.

É com total tranqüilidade que os convido a adentrar no mundo dos profetas.

O profeta é exatamente aquele que entende o significado de sua crise. Crise que

se localiza na própria amplitude social. De outro modo, o profeta é aquele que fala por;

em nome de ...;Com propostas concretas. Afinal, sabemos que a busca do Deus

verdadeiro esta na construção do homem verdadeiro!

O fato é que o profeta fala em nome de Javé, ele não é um “santo” é um cidadão

comum com limitações e desejos. A sua diferença, portanto esta no recolhimento e

compreensão de suas dificuldades em prol de um bem maior, no caso, a reconstrução de

Israel. Para tal propósito ele, o profeta, terá por credibilidade o chamado de Javé, ou

seja, este homem que vê as injustiças de seu tempo, se sentira extremamente

vocacionado em denunciar as formas de corrupção que escravizam o povo de seu

Senhor o Deus todo poderoso. No contexto judaico isto é uma ação de imenso

comprometimento, pois é a própria presença de Javé, o cumprimento da aliança; é Javé

quem fala, faz e acontece pelas ações do profeta. Vamos mais a fundo!

Na Constituição dogmática Dei Verbum Sobre a Revelação Divina diz o

seguinte; Deus, no seu grande amor, planejando e preparando com solicitude a

salvação de todo gênero humano, escolheu por especial providencia um povo a quem

confiar suas promessas. Tendo esclarecido a aliança com Abraão (Cf. Gn. 15,18) e

com o povo de Israel por meio de Moisés (Cf. Ex. 24,8), de tal modo se revelou, com

palavras e obras, a esse povo eleito, como único Deus verdadeiro e vivo, que Israel

conheceu por experiência os caminhos de Deus a respeito dos homens, os compreendeu

cada vez mais profundo e claramente ouvindo o mesmo Deus falar por boca dos

profetas, e os tornou cada vez mais conhecidos entre as nações (Cf. Sl.21,28-29; 95,1-

3; Jr.3,17). 19

19 Dei Verbum. Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Ed. Paulus . São Paulo, 2001. p. 358-359.

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Para entender bem o que é um profeta uma coisa é necessária e, portanto nos

chama a atenção: Os grandes profetas aparecem com a sociedade monárquica. Isto

parece ser significativo. Que relação existe entre profetismo e monarquia em Israel?

A relação é a seguinte: os grandes profetas surgem a partir das contradições da

sociedade monárquica tributaria e nela encontram sua função, evoluindo para novas

formas de manifestação após o fim da monarquia.

Para bem nos adiantar convém nos situar dentro da historia de Israel, afinal que

monarquia é esta? Qual a proposta central destes profetas, ou melhor, o que estão

denunciando? Para tanto os convido a nos contextualizar. Nos delimitemos no profeta

Jeremias:

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CAPITULO XVII

LIVRO DO PROFETA JEREMIAS

Introdução - Jeremias nasceu no povoado de Anatot, pertinho de Jerusalém,

entre 650 e 640 a.C. Era filho do sacerdote Helcias, da casa de Eli. Talvez descendesse

de Abiatar, chefe dos Levitas em Jerusalém na época do rei Davi, e que foi desterrado

para Anatot por Salomão, segundo 1Rs. 2,26-27.

O significado do nome Jeremias é incerto. Há, portanto, duas possibilidades

Yirmeyâhû quer dizer “Ihaweh exalta”, “Ihaweh é sublime” ou “Ihaweh abre (= faz

nascer)”. Este nome era bastante comum nos tempos bíblicos.

17.1 Qual a influencia que Jeremias nos apresenta.

Não existe nenhuma duvida acerca da influencia do profeta Oséias sobre o

pensamento de Jeremias. Além dos fatores geográficos Anatot pertence a tribo de

Benjamin- e familiares de Jeremias descendia da casa de Eli, sacerdote de Silo- é

possível que a educação de Jeremias tenha incluído os ensinamentos de Oséias.

Entendo que Oséias e Jeremias foram os dois profetas mais radicais de todo o

Israel, pois foram os que mais perto chegaram de uma compreensão profunda das

causas da opressão que o povo de Israel vivia naquele tempo. Ambos entendem pó

exemplo, que o Javismo caducou ou se oficializou e foi, por isso, neutralizado por

praticas institucionais do aparelho estatal, a corrupção, a opressão e o despotismo

generalizado dominaram.

Jeremias atuou cerca de 50anos, de 627 – 580 a.C., sob os governos de Josias

(629-609), Joaquim (609-598), Sedecias (597—586) e Godolias /exílio (586-580).

17.2 Jeremias: Vocação, denuncia, angustia e esperança

No tempo do rei Josias, 1º período da atuação de Jeremias, o profeta de Anatot

proclama um julgamento contra Israel por causa de sua infidelidade a Iahweh e sua

adesão aos deuses estranhos, especialmente aqueles cultos à fertilidade. 20

20 N.E. Jeremias só criticara abertamente a reforma no mando do rei Joaquim que buscara manter-se no poder sob os pés do Faraó.

Page 123: ANTIGO TESTAMENTO - APOSTILA

Israel, abandonando Iahweh e seguindo deuses estrangeiros, não poderia voltar

de novo ao javismo. Mas a possibilidade de volta é admitida, caso Israel resolva praticar

a verdade (`emeth), o direito (mishpât) e a sua justiça (Sedhâqâh). Categorias centrais

da aliança. Ainda no livro de Jeremias encontramos duas observações sobre seus

poemas de 2,1-4,4:

→ especialmente quatro tipos de autoridade são responsáveis pela idolatria e

pela desgraça em que caiu o país: reis, príncipes, sacerdotes e falsos profetas.

→ as alianças políticas com a Assíria e o Egito, geradores de dependência e

miséria, são duramente criticadas pelo profeta que as considera verdadeira idolatria

política. “São os impérios, não seus deuses, que ocupam o lugar de Iahweh”.

Podemos, enfim, resumir os temas centrais desta época na contraposição feita

por Jeremias, entre:

Fidelidade X infidelidade

Iahweh X ídolos

Verdade, direito, justiça X injustiças.

Queria ainda fazer um parâmetro do que foi esboçado. È que na época de

Jeremias existia uma coleção de normas jurídico-morais, considerada Lei Divina, e que

alguns guardiões, quer fossem legítimos ou usurpadores, não temiam adulterá-la, ou com

acréscimos arbitrários ou com interpretações errôneas.

Outro fator de destaque é a critica que Jeremias faz ainda nesta fase ao retratar a

idolatria política.

Como pequena nação espremida entre as grandes potencias, Israel se viu sempre

pressionado a praticar uma política de alianças. O que o levava quase sempre a rigorosa

dependência estrangeira.

Território-ponte entre dois continentes, a Ásia e a África, a Palestina era ora

controlada pelo Egito, ora pelas potencias que se sucediam na Mesopotâmia, Assíria,

Babilônia ou Pérsia. Por outro lado, governos israelitas ilegítimos ou fracos se amparavam

na força estrangeira para permanecer no poder, contrariando os interesses de seu povo e

país. A substituição de Iahweh pelo Poder político pode ser considerada aqui uma forma de

idolatria, a idolatria política. Ela assume varias formas ao longo da historia da monarquia,

como as seguintes:

Page 124: ANTIGO TESTAMENTO - APOSTILA

A difusão de praticas idolátricas cultuais por conveniência política.

A divinização do rei ou do Estado para manter o “status quo” político.

O culto a própria sabedoria política

O culto ao poderio militar

O culto aos grandes impérios, com os quais Israel faz alianças políticas.21

17.3 Israel tem um novo rei?!

Josias é sucedido por Joacaz e este por seu irmão Joaquim (609-598 a.C.), de 25

anos de idade. E é neste reinado, conduzido com refinado despotismo e vergonha

corrupção, que Jeremias vai romper, de vez, com as instituições do Estado.

Jeremias tornou-se então um ferrenho adversário da classe sacerdotal de

Jerusalém. Pois acontece que, sob os desmandos do governo de Joaquim, a reforma de

Josias se perdeu totalmente. O que restou foi um culto enfatizado e superestimado como

garantia da nação, conseqüência da centralização de todas as atividades religiosas no

templo de Jerusalém e na mão de seus sacerdotes. Culto agora usado para mascarar os

males sociais e os crimes contra o povo.

A primeira intervenção publica de Jeremias na época de Joaquim vai tocar neste

ponto. É um violento discurso contra o Templo. (Jr 7, 1-15 vers. Dtr. E Jr. 26,1-24, vers. de

Baruc)22 .

Jeremias, no começo do governo de Joaquim, portanto, entre setembro de 609 e

abril de 608 a.C., talvez durante a festa, coloca-se no pátio do Templo e pronuncia essas

duras palavras.

Acontece que a desastrosa morte de Josias, o curto governo de Joacaz (3meses),

seu exílio, a dependência do Egito sob Joaquim criaram um clima de incerteza e

insegurança geral. O que faz o povo? Refugia-se na crença de que a presença de Iahweh no

Templo garante a cidade a sua liberdade. Jeremias critica justamente a mudança deste

discurso monárquico, que, utilizava o javismo como sobra para tampar a realidade.

21 Cf. SICRE DIAZ, J. L., Los dioses olvidados, pp.23-27.22 NE. As versões acima mencionadas serão abordadas mais adiante.

Page 125: ANTIGO TESTAMENTO - APOSTILA

17.4 - O que fez Jeremias no tempo de Joaquim

Quando Joaquim, de 25 anos de idade, assumiu a mando do Faraó do Egito, o

governo de Judá em 609, Jeremias rompeu, de vez, com as instituições do Estado. Jeremias

tornou-se, então, um ferrenho adversário da classe sacerdotal de Jerusalém, já sob os

desmandos do governo de Joaquim a reforma de Josias se perdeu totalmente, restando um

culto superestimado como garantia da nação, conseqüência da centralização de todas as

atividades religiosas no Templo de Jerusalém e na mão de seus sacerdotes. Culto agora

usado para mascarar os males sociais contra o povo. E è aqui que Jeremias faz a sua

denuncia! Mas ficá-nos a pergunta o que acontece com ele?

Conta-nos Jr.26,1-24 que Jeremias quase morre por fazer tal denuncia. Aos

olhos do pessoal do templo, como sacerdotes e profetas, Jeremias cometera duas

blasfêmias: Falara em nome de Ihaweh e falara contra a casa de Ihaweh. Perante o tribunal

a que é levado, ele, porém, confirma suas palavras e só não morre porque alguém se

lembrou do profeta Miquéias, que, um século antes, pregara destino parecido para o

Templo e para a cidade e nada sofrera.

Jeremias disse muitas coisas contra o governo de Joaquim. Segundo Jr.22,13-19,

considerado um dos mais duros oráculos proféticos já pronunciados contra um rei. Jeremias

compara Joaquim23 a seu pai Josias e denuncia o rei como anti-javista, pois não cumpre sua

função real de exercer a justiça e o direito e de proteger os mais fracos.

17.5 - Cuidado Judá. Lembra de Teu Deus!

Jr.4,5-6,30 e Jr.8,13-17 falam de um inimigo que vem do norte. Embora haja

varias possibilidades de identificação desse inimigo, muitos comentaristas pensam que

Jeremias esta falando de Nabucodonosor, o grande rei Babilônico, que invade regiões da

Palestina em 605/604 a.C. trazendo o terror da guerra para as fronteiras de Judá.

Muitos dos versos de Jeremias, nestes poemas, são de uma dramaticidade

impressionante, como Jr. 5,15-17, sobre a nação que vem de longe para atacar Judá: nação

antiga, duradoura, cujos homens são heróis. Nação que devorará os filhos, os animais e

23 Joaquim não conhece Ihaweh. Josias conhecia Ihaweh.

Page 126: ANTIGO TESTAMENTO - APOSTILA

todo alimento de Judá, destruindo pela espada suas fortalezas. Segundo Jeremias, é Ihaweh

quem aplicara a Judá tal castigo.

O fato é que a rebeldia em Judá a ruptura da aliança, Jeremias só vê ausência de

Ihaweh, pois não existe mais a pratica do direito e da justiça. Jeremias vê a corrupção dos

poderosos, que não agem mal por ignorância, senão por determinação consciente e

persistente (Jr 5,4-5). Quando mais a crise nacional se aprofunda, mais os lideres se

recusam a encontrar soluções. Só procura satisfazer seus interesses imediatos e deixam o

país afundar. Eles cuidam da ferida do meu povo superficialmente, dizendo: Paz! Paz!,

Quando não há Paz! Ver. Jr 6,14.

Voltando mais um pouco, em 600 a. C. quando Nabucodonosor tentou invadir o

Egito e não conseguiu. Joaquim rebelou-se e morreu em 598. provavelmente assassinado,

enquanto os babilônicos marchavam para tomar Jerusalém. Seu filho Joaquin de 18 anos

de idade, o substituiu, mas capitulou 3 meses depois em 597. O rei foi deportado para a

Babilônia com a corte e a classe dirigente.

No seu lugar, os babilônios deixaram seu tio, outro filho de Josias, de nome

Sedecias, então com 21 anos de idade, para dirigir um Judá todo arruinado. Com varias

cidades destruídas e com a economia do país desorganizada, pouco restava ao fraco

Sedecias que pudesse ser feito.

No governo de Sedecias Jeremias começa criticando as pretensões do novo

governo através da visão dos dois cestos de figos de Jr.24,1-10. Segundo o profeta, os

exilados correspondem a figos bons, enquanto o atual governo com figos estragados. È

possível que o novo governo, instalado no poder de Sedecias, se afirmasse como solução

para o país, já que os maus, os governantes anteriores, tinham sido exilados, pagando por

seus crimes Jeremias é de opinião contraria. Nada tinha resolvido e a sombra do Templo

não garantira ninguém.

Ainda nos primeiros anos do governo de Sedecias, Jeremias escreveu uma carta

aos exilados de 597, segundo Jr 29,1-23. Ele tenta desfazer as ilusões alimentadas por

falsos profetas, durante convulsões sociais acontecidas no império babilônico, de que o

exílio estava para acabar. Segundo Jeremias, os exilados devem aprender a viver

tranqüilamente entre os babilônicos, pois o exílio será longo.

Page 127: ANTIGO TESTAMENTO - APOSTILA

Em Jr.27,1-22 e Jr.28,1-17 ele se opõe radicalmente a aventura de fazer um

levante contra a babilônia, incitada em Jerusalém pelos pequenos reinos da Síria-Palestina

que se encontravam na mesma situação de Judá. Colocando um jugo (= haste no pescoço e

ombros para transportar carga) sobre o próprio pescoço. Jeremias simboliza aqui o domínio

babilônico a que estavam submetidos Jr. 27,2-3.

Quando Jerusalém enfim foi sitiada por Nabucodonosor em 587, Jeremias disse

ao rei Sedecias que a vitória dos babilônicos era inevitável, pois Ihaweh entregara a cidade

nas mãos do inimigo, já que não houve conversão (Jr. 34,1-7).

Após a queda de Jerusalém em 586, assistimos ao crepúsculo do profeta.

Deixado livre pelos babilônicos, Jeremias escolheu ficar com o governador Godolias, neto

de Safã escriba chefe da reforma de Josias, membro da família que sempre o apoiara

Jeremias em Jerusalém . Assim, junto ao resto do povo pobre que ficou no país, Jeremias

certamente alimenta ainda a esperança de “CONSTRUIR e PLANTAR’ como conta o texto

que fala de sua vocação em Jr. 1,10.

A situação em Judá se complicou rapidamente, quando um rei davítico chamado

Ismael, que escapara para Amon, voltou e assassinou Godolias, provavelmente em outubro

de 586 segundo Jr. 41,1-18. Os sobreviventes, entre eles Jeremias, fogem para o Egito,

temendo uma represália Babilônia (Jr. 42,1-43,7).

Lá no Egito, em Táfnis, cidade situada a leste do delta do Nilo, o incansável

profeta, que já devia ter uns 70 anos de idade, passa a repreender a idolatria que seus

conterrâneos ali praticavam, segundo Jr. 44,1-30.

Depois disso, nada mais sabemos sobre Jeremias. Diz a lenda que o profeta de

Anatot foi apedrejado e morto por seus conterrâneos, lá no Egito. Esta lenda está no

apócrifo Vida dos profetas, um texto escrito por um judeu da Palestina no século I d.C.24

17.6 - As confissões de Jeremias

Mais do que “confissões”,deveríamos falar aqui de diálogos com Ihaweh,

lamentos, orações, disputas. Foi durante este período de sua vida, durante o governo de

Joaquim, que Jeremias mais sentiu o peso de sua missão. Obrigado a ser do contra, a pregar

24 N.E. Fontes abstraídas em Perguntas mais freqüentes sobre o Profeta Jeremias. Silva, José Airtom.

Page 128: ANTIGO TESTAMENTO - APOSTILA

a desgraça para o seu povo, a remar contra a corrente; ameaçado, rejeitado, caluniado,

desprezado, ele se lamenta amaldiçoando até mesmo o dia em que nasceu.

São textos difíceis de serem datados com precisão. É possível que tenham sido

escritos em 605 a.C, como um desabafo, não como oráculos previamente ditos ao povo.

Talvez possam ser lidos como síntese das crises vividas pelo profeta desde o começo de sua

atividade.

1º Confissão Jr. 11,18-12,6.

2º Confissão Jr. 15,10-11.15-21.

3° Confissão Jr. 17,14-18.

4º Confissão Jr. 18,18-13.

5º Confissão Jr.20,7-10.14-18.

Da 1°Confissão Jeremias amplia o problema, questionando porque persiste a

prosperidade dos ímpios e a paz dos apóstatas. Daqueles que vivem falando em

Ihaweh, mas na verdade estão muito longe dele. Daqueles que tem uma fachada

de piedade, mas não estão, de fato com Ihaweh. E Jeremias conclui que é um

problema sem para o qual ele não tem resposta...

Da 2°Confissão a questão colocada aqui por Jeremias é : Vale a pena ser

Profeta? Jeremias confessa estar vivendo a suprema tentação profética, que é a

vontade de se acomodar, de desistir, de aceitar a cooptação, de ser “normal”, de

passar para o lado daqueles a quem ele critica para sair da solidão a que é

obrigado a viver.

3°Confissão Jeremias apela a Ihaweh contra seus perseguidores que lhe cobram

a realização da palavra de Ihaweh por ele pregada e o profeta não sabe mais o

que fazer. Jeremias se sente desacreditado perante seus ouvintes, porque as

desgraças prometidas não acontecem. Vive duramente impressionado.

4ºConfissão Jeremias denuncia nova trama contra a sua vida. Seus adversários

argumentam que podem tranqüilamente eliminá-lo, já que o sacerdote, o sábio e

o profeta ( ligam-se aos interesses da corte) não lhes faltarão. Com tristeza o

profeta constata: estes que querem eliminá-lo são os mesmos a quem ele tantas

vezes defendeu diante de Ihaweh...

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5ºConfissão a mais dramática e a mais conhecida de todas, usando fortes

imagens, Jeremias chega ao máximo de sua angustia. Acredita que Ihaweh o

enganou: o seduziu para ser profeta e o dominou, para depois abandoná-lo.

Agora todos querem sua queda, inclusive seus amigos. Por isso, ele quer parar

de ser profeta, mas o problema é que não consegue, pois as palavras de Ihaweh

queimam-no como fogo. Fogo que atinge até os ossos. Então Jeremias

amaldiçoa o dia em que nasceu. Ver a analogia do Chamado Jr.1,4-19.

17.7 Os Textos

Há quatro tipos de textos no livro de Jeremias:

Oráculos em forma de poesia, como Jr. 4,5-6,30. Relatos autobiográficos, como Jr. 1,4-19. Relatos biográficos, como Jr 26,1-24. Discursos em prosa, como Jr. 7,1-8.

Como se convencionou unir em um só os dois primeiros tipos, quase totalmente em forma poética, costuma-se classificar os textos de Jeremias em três tipos.

Palavras de Jeremias em versos e relatos autobiográficos em versos e prosa. Relatos biográficos, na 3° pessoa, sobre Jeremias atribuídos por muitos a

Baruc, seu secretario Discursos em prosa, em número de 10, de autoria incerta, mas que muitos

atribuem aos mesmos autores de Josué, Juízes, 1e 2 Samuel e 1 e 2 Reis, a chamada Obra Histórica Deuteronomista (OHDtr), possivelmente composta por levitas.

1.7 Jeremias fala a todos, a mensagem de sua vocação.

Arrancar destruir construir plantar

Casas

Plantas

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Estes versos pautam toda a missão do profeta e podem também ser encontrados as vezes, em outra ordem, como em Jr. 12,14-17; 18,7-9; 24,6; 31,28-40;42,10; 45,4.2

CAPITULO XVIII

LIVRO DO PROFETA AMÓS

Introdução: Por volta do séc. VIII a.C., pelo ano 760, um homem chamado Amós “caiu na arapuca” de Deus. Deixou, então, sua vida no sul (reino de Judá) e foi anunciar e denunciar no norte (reino de Israel), no tempo do rei Jeroboão II (1,1).

Sobre a pessoa de Amós, o livro nos dá três informações sobre a sua profissão: um pastor (1,1), criador de gado e cultivador de sicômoros (7,14). À primeira vista, pensaríamos que Amós fosse um grande proprietário e que sua atividdae profética pudesse ser em defesa dê seus próprios interesses de proprietário. Todavia, podemos

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pensar, e talvez com mais acerto, que Amós fosse uma pessoa pobre, com vários empregos a serviço de outros para sobreviver: ora trabalhava como pastor, ora como vaqueiro, ora como agricultor, dependendo dos “bicos” que conseguia. Lembraria hoje o bóia-fria que vive das oportunidades passageiras de trabalho. Nessa perspectiva, a palavra de Amós adquire outro sentido: torna-se denúncia de uma situação que gera a injustiça social e a pobreza do povo.

18.1 – Contextualização Histórica. No tempo de Jeroboão II, rei de Israel, entre 783-743 a.C., o Reino do Norte conheceu relativa tranqüilidade pelo fato do império assírio estar ocupado com Damasco. Isto permitiu uma espécie de “milagre econômico”: Israel recuperou os territórios perdidos e houve uma fase de grande prosperidade, com muitas e luxuosas construções, aumento de recursos agrícolas, progresso da industria têxtil e tinturaria.

O livro de Amós confirma esses desenvolvimento e progresso, acompanhado de injustiças e contrastes sociais, corrupção do direito e fraude no comércio. A religião servia para tranqüilizar a consciência da classe dominante, fomentando o sentimento de superioridade em relação a outros povos. A aliança com Deus tornou-se letra morta, celebrada no culto, mas sem qualquer influência na vida diária.

É dentro desta situação que Amós começa a falar. Além de denunciar a situação de desigualdade social, ele aprofunda sua crítica, principalmente no que se refere à religião. Denuncia uma religião que é mera fachada para a injustiça e que acoberta um sistema iníquo, já viciado pela raiz.

Junto com o desenvolvimento econômico, multiplica-se a miséria do povo. Porque esta contradição? Aqui encontramos a injustiça penetrando o sistema social pela base: a distribuição desigual dos bens produzidos, que caracteriza o sistema tributário. No fundo, o povo produz e a produção é acumulada na mão de poucos. Em geral, a produção é feita no campo e o consumo na cidade que, com o desenvolvimento, vai se tornando o centro econômico e político.

18.2 - A Vocação profética.

Em 3,3-8, Amós relembra o seu chamado para a atividade profética. Temos ai uma série de perguntas com respostasa previsíveis, visando à última: “Fala o Senhor Javé: quem não profetizará?”. Com isso, o profeta quer salientar a inivitabilidade da profecia. O profeta fala impulsionado pela palavra de Deus, que se apresenta a ele de uma forma imperiosa: ele não tem escolha, é impulsionado a falar. Contudo, seria o profeta, mero auto-falante, de Deus, sem decisão própria? No v.7 ele explica o que acontece na profecia: “O Senhor Javé não faz coisa alguma sem revelar seu segredo aos profetas, seus servos”. Aqui vem salientando que Deus revela o seu segredo ao profeta. Coisa, significa acontecimento, situação, realidade.

Todo mundo vê as coisas ou os acontecimentos. Contudo, em geral, as pessoas ficam na casca ou aparência dos acontecimentos. Enquanto isso, o profeta penetra a casaca do acontecimento e vai ao seu núcleo profundo, que é o segredo ou o sentido que

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o acontecimento possui. Em outras palavras, ele vê dentro dos acontecimentos o projeto de Deus em realização.

Porque as pessoas, em geral, não vêem o que o profeta vê? Porque, os acontecimentos ficam com uma casaca grossa produzida pelas idéias e interpretações que vigoram dentro do sistema vigente. Essas idéias são impostas por aqueles que se beneficiam de um determinado sistema e não querem a transformação. As dominadas pelo sistema ficam impossibilitadas de conhecer e compreender a realidade, porque esta se apresenta já interpretada pelos mantenedores do sistema, que assim se perpetua como coisa inquestionável. O profeta, por sua vez, não engole essa versão manipulada da realidade. Diante das situações e acontecimentos, ele desconfia das interpretações vigentes e vai até o fundo na análise da realidade, descobrindo o que Deus quer dizer com os acontecimentos. É aqui que encontramos a revelação do segredo ou do sentido verdadeiro da realidade.

Como o profeta consegue chegar até o segredo do acontecimento? Ele conserva na memória a lembrança dos acontecimentos e experiências fundamentais da história, que levaram o povo a experimentar mais vida e liberdade.Com o espelho destes acontecimentos e experiências, o profeta se torna então capaz de suspeitar das interpretações vigentes e criticá-las, desvendando, ao mesmo tempo as interpretações falsas e apresentando a verdade nua e crua, ou seja, aquilo que Deus quer dizer. Por isso, a vocação profética é, sem dúvida, grandiosa e importante. Mas a vocação profética não é uma escolha exclusiva do homem, mas quem escolhe é Deus. Ele escolhe alguém descomprometido com a situação dominante, para ter certeza de que o profeta estará em primeiro lugar comprometido com Deus e com sua palavra.

Amos era criador de gado e cultivador de sicômoros, um trabalhador rural; uma pessoa do povo. Isto, no netanto, não o impediu de enfrentar a classe privilegiada e as maiores autoridades do reino de Israel. Deus chama quem ele quer, para a missão que ele ordenar.

18.3 – O grande Julgamento: O inicio do livro traz a palavra julgamento. Não se trata de um tribunal comum, mas de um processo em que o profeta faz as vezes de Javé, o parceiro da aliança, discutindo com outro parceiro, no caso o povo de Israel. Para Chegar a isso, o profeta usa a estratégia que envolve os ouvintes, sem deixar escapatória. Desse modo, ele começa falando dos erros de outras nações, vai apertando até chegar a Israel. DE início, parece que o profeta esta apontando o erro dos outros. Ai temos o efeito surpresa que Amós quer produzir. O crime cometidos por eles, povo considerado escolhido, são ainda maiores e mais graves, porque dizem conhecer o projeto de Deus, mas acabam servindo-se de Deus para realizar impunemente crimes piores que os das nações pagãs (2,6-8).

Quais são os culpados e quais são as vítimas? O texto deixa claro quais são as vítimas: o justo, o necessitado, o fraco, o pobre, a jovem e, ao lado deles, o nome santo e próprio de Deus. Os criminosos são aqueles que se consideram povo de Deus e até ousam usar o nome de Deus para encobrir sua injustiça.

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A esses crimes, o profeta contrapõe os benefícios de Javé, entre os quais a libertação do Egito, a proteção no deserto e a liderança na luta contra os inimigos. Para perpetuação dessa memória, ele ainda suscitou os profetas e os homens consagrados, para manter o seu povo no caminho da justiça (2,9-11)

18.4 – Os crimes de Israel.

A – O culto que mascara a injustiça: Amós começa denunciando a prática cultual que se desenvolvia no Reino do Norte (Israel) nos santuários de Betel e Guilgal. Ele não teme dizer que esse culto, acompanhado de sacrifícios, dízimos, ofertas, são, na verdade, pecados(4,4-5). Em outras palavras, o culto serve de mascara para esconder e justificar a prática da injustiça. É o pecado das pessoas de “boa consciência”, que costuma separar a religião da vida cotidiana, como se Deus ocupasse um compartimento separado do toda o resto da casa. Pode-se ate dizer, que a finalidade deste culto é tapear e subornar Deus. Betel era o santuário central do culto no Reino do Norte, e é ai que vai começar o julgamento e a sentença de javé: a destruição, acompanhada pelo exílio, sem que fique qualquer fuga possível (9,4). Javé esta disposto a destruir seu próprio santuário para evitar que os injustos se sirvam desse santuário para subornar a Deus e enganar o povo. Essa visão é trágica, mas talvez seja o único modo de preservar a religião como fermento da justiça.

B – A injustiça que massacra o povo: Em 8,4-6, o profeta denuncia que é principalmente no comercio que se faz a exploração dos pobres. Os comerciantes são duramente criticados, porque se enriquecem graças as fraudes. Enquanto freqüentam as festas e cerimônias realizadas no sábado, eles, na verdade, estão continuamente maquinando o que poderão fazer para conseguir mais lucro. É a perversão total, pois as festas e o sábado estão ligados a libertação do povo., para construir uma sociedade justa. O profeta, porém, não se detém, apenas, no comercio. A atividade comercial produz uma classe social de privilegiados, que passa a controlar outras estruturas, principalmente nos tribunais, único recurso para o pobre rever o que lhe é de direito (5,10-12). Graças a toda essa exploração, os privilegiados usufruem vida luxuosa, cheia de prazeres e banquetes.(4,1-3; 5,10-13; 6,1-6).

C – A política que administra a injustiça. Em 3,9-10, Amós mostra que a cidade de Samaria tornou-se a capital da corrupção e da injustiça. O profeta convida o Egito e os filisteus, tradicionais opressores de Israel, para, com ironia, mostrar que dentro do próprio povo de Deus a opressão se tornou ainda maior que a deles. Na cena aparecem dois grupos: os oprimidos e os que entesouram; os primeiros são apresentados como sujeitos passivos, e os segundos como ativos, acumulando bens a fim de viver luxuosamente.

D – Religião a serviço do sistema injusto. É sintomático que Amós não só critique a religião que é praticada por uma sociedade injusta como desculpa para os crimes dela. Ele denuncia também a aliança existente entre sacerdotes e poderes políticos, que consolidam firmemente o sistema injusto. Condenado assim o altar de Betel (santuário) junto com os palácios e as casas luxuosas. (3,3-15; 7,9)

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Também em 7,10-17 a denuncia aparece mais clara nas suas conseqüências, denunciando as injustiças cometida pelo poder político, o profeta e acusado e expulso pelo próprio sacerdote Amasias, que é claro: no santuário não se admite falar contra o rei, pois o lugar santo é “do rei e o templo do reino”. Isto é, a religião que se pratica em Israel deve estar de acordo com a vontade do rei.

18.5 - A Misericórdia de Javé.

Em 4,6-12, o profeta faz uma longa revisão da história. Nela, Deus sempre esteve em ação, dando sinais para que seu povo se convertesse. Por cinco vezes o profeta constata que o povo não entendeu o sinal e não converteu. Agora, Deus prepara um grande julgamento. É mais uma chance de conversão. (5,14-15).

As duas visões (7,1-6) que se referem a destruição ocasionada pelo julgamento divino: tanto os gafanhotos como o fogo devorador são figuras do castigo devido a injustiça. Nas duas visões, porém, o profeta suplica a Javé para que o povo inocente não seja atingido pelo julgamento. “Por favor, Javé, perdoa! Jacó é tão pequeno! Como poderá resistir?» 3 Então Javé se compadeceu, e disse: «Isso não vai acontecer» (7,2-3).

CAPÍTULO XIX

O LIVRO DO PROFETA ISAIAS

Introdução: O livro que traz o nome de Isaías pode ser dividido em três grandes partes:

Os capítulos 1-39 contêm a mensagem do profeta chamado Isaías, cuja preocupação central é a santidade de Deus, ou seja, só Deus é absoluto. Esse é o dado principal para que a prática não se torne uma idolatria. Em meio a grandes mudanças políticas internacionais, Isaías condena a aliança com as grandes potências, mostrando que a nação só será salva se permanecer fiel a Deus e ao seu projeto, no qual a justiça é o valor supremo. Assim, uma espiritualidade baseada na santidade de Deus conduz o profeta a uma fé política, que combate os ídolos presentes na sociedade. Ele fala também do Emanuel (7,14), no qual o Novo Testamento viu Jesus Cristo, que veio ao mundo para salvar o seu povo.

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Os capítulos 40-55 foram escritos por profeta anônimo, na época do exílio na Babilônia, apresentando uma mensagem de esperança e consolação. Esse profeta é comumente chamado Segundo Isaías. O fim do exílio é visto como um novo êxodo e, como no primeiro, Javé será o condutor e a garantia dessa nova libertação. O povo de Deus convertido, mas oprimido, é denominado «Servo de Javé». O Novo Testamento atribui esse título a Jesus, o justo que sofreu e morreu para nos libertar. A comunidade, depois de convertida e libertada, se tornará missionária, luz para que as nações se voltem para o verdadeiro Deus.

Os capítulos 56-66 são atribuídos a Terceiro Isaías. Apresentam uma coleção de oráculos anônimos que procuram estimular a comunidade que veio do exílio e se reuniu em Jerusalém com os que estavam dispersos. Condena os abusos que começam de novo a aparecer e mostra qual é o verdadeiro jejum (58,1-12) necessário para que haja novos céus e nova terra.

19.1 – Nome, data, local de atuação do profeta.

Pouco se sabe a vida pessoal de Isaias, cujo nome significa “Javé é salvação”. Seu nascimento pode ser datado por volta de 760 a.C., no reino do Sul, Judá, durante o reinado de Ozias. Seu pai se chamava Amós (1,1), mas com todo certeza não se trata do profeta Amós de Técua.

Isaias tinha formação e cultura típicas de Jerusalém. Era profeta do Templo e conselheiro do rei (2Rs 19,1-7). Esse lugar social, com suas tradições religiosas, delineou a vida, as opções e a mensagem do profeta. Grande parte de sua pregação era baseada na escolha divina de Jerusalém e na eleição da dinastia davídica, princípios teológicos fundamentais, reflexo da fé que sustentava. Dessa convicção, Isaias deduziu as mais sérias conseqüências para a situação histórica do seu povo.

Por volta de 740 a.C., com apenas 20 anos de idade, recebeu a vocação profética (6,1.8). A data de sua morte é incerta.

Os textos de Isaias nos mostram um homem decidido, claro em suas posições. Voluntariamente se ofereceu a Deus no momento em que foi chamado (6,8). Com esta prontidão enfrentou, mais tarde, reis e políticos, sem jamais deixar abater. Era um dos profetas oficiais, conselheiro do rei, não adepto de revoltas e lutas por mudanças sociais mais radicais (3,1-9). O que não significa que apoiasse as injustiças e a corrupção das classes altas. Pelo contrario, foi extremamente duro com os grupos dominantes injustos: anciãos, Juízes, latifundiários, políticos, mulheres da elite de Jerusalém (1,10-28; 3,16-24; 5,8-24). Ele defendeu com todo o vigor os oprimidos, os órfãos, as viúvas (1,17; 10,1-4) e o povo explorado por seus líderes (3,13-15).

O estilo de seus escritos é clássico e original. Foi verdadeiramente um poeta, cheio de sensibilidade, breve e preciso: linguagem direta, com imagens simples que tocavam o âmago da questão e atingia em profundidade o destinatário.

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19.2 – Estrutura do livro.

Vamos dividir este período histórico da atuação de Isaias em quatro etapas, a partir da informação do próprio livro: “visão de Isaias, filho de Amós, sobre Judá e Jerusalém, no tempo do Ozias, Joatão, Acaz e Ezequias, reis de Judá” (1,1).

O capítulo primeiro, tempo de prosperidade, esta situado no período histórico de Ozias e Joatão (740 – 736 a.C.). Nesse momento Judá vive um tempo de independência, prosperidade e paz. No segundo capítulo trabalhamos a época do reinado de Acaz (736-716 a.C.). O enfoque mais forte é a guerra Siro-Efraimita (735-734 a.C.). Os primeiros anos do governo de Ezequias são tratados no terceiro capítulo, cujo o tema é o movimento antiassírio. Dando seqüência a essa situação de guerra, temos no quarto capítulo o cerco de Jerusalém, que corresponde à segunda parte do governo de Ezequias (705-701 a.C.) Aqui se encontra a situação de guerra e a quase destruição de Jerusalém.

19.3 – Isaias viu.

A descrição dos primeiros anos de sua vida ministerial profética nos a encontramos já capítulo 1 (1,21-26). Isaias lamenta a atual situação de Jerusalém, a cidade escolhida por Javé. Antes, estava cheia de direito, e nela morava a justiça; agora, esta cheia de criminosos!”. Isso na visão do profeta, faz dela uma prostituta. A imagem é a do matrimônio. Jerusalém ou o povo é a mãe de família que gera e acolhe. É a esposa do Senhor, a quem deve fidelidade.

O profeta faz memória de um tempo em que Jerusalém, cumpria fielmente sua missão de praticar o direito e a justiça. Este espelho do passado mostra a calamidade do presente e se torna luz para que ela seja fiel no futuro. Justiça e direito medem a qualidade das relações de aliança entre Deus e a cidade santa Jerusalém.

Como amigo do “esposo”, o profeta assume seus sentimentos e entoa um cântico em seu nome (5,1-7). Esse poema reflete a dura experiência do vinhateiro. É um apaixonado que narra, através do canto, sua decepção amorosa...

O poema enumera os benefícios que o vinhateiro fez para sua vinha, e a decepção com a falta de retribuição por todo o trabalho e cuidado desenvolvido. Sem esperar resposta, talvez os gestos falem por si mesmo, o cantor passa a ameaça. Vai tirar toda a proteção.

Javé é o senhor da história, o noivo que fala através do profeta. O chefe do povo, os juízes são condenados.

Diante desta situação de calamidade, Deus assume posição de Juiz contra aqueles que deveriam conduzir o povo com retidão e justiça. Isaias chama todo esse grupo de “seu povo”, em oposição a “meu povo”, que são os pobres. ((3,13-15)

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As acusações são fortes: os ricos estão enchendo suas casas com objetos roubados dos pobres. E, pior ainda, tudo indica que isso faz parte do cotidiano. O profeta é direto na sua pergunta, que faz nítida a compaixão de Deus pelo “meu povo”: que direito tem vocês de oprimir o meu povo e de esmagar a face dos pobres? Isaías se identifica com os pobres, cuja face esta sendo esmagada. Não se trata de um povo sem identidade; é um povo que tem face, tem identidade: é o povo de Deus!

O orgulho dos homens dirigentes de Judá se completa com o orgulho e a vaidade de suas mulheres. O profeta denuncia seus gestos de altivez e sua atitudes de provocação e sedução. Tal comportamento atraíra duro castigo: vão se tornar repugnantes e expostas à vergonha pública (3,16-26).

O acumulo e a ostentação da classe dirigente refletem a realidade de concentração da terra e da moradia. Essa concentração de terra nas mãos de poucos é uma injustiça contra o próximo e contra Deus. Os ricos, ao acumularem casa a casa, terra a terra, estão despojando aqueles que nada têm, nem mesmo o poder de se defenderem. Isaias é implacável no anuncio do castigo: destruição das casas e improdutividade das terras. (5,8-10).

Ao denunciar todas esta inversões ao projeto de Javé, o profeta é objetivo: enquanto o povo estiver sofrendo com as injustiças, o culto será uma farsa. Um suborno! É querer enganar a Deus (1,12-15ab). Todas esta práticas são inúteis porque encobrem a falta de justiça e a infidelidade às leis fundamentais de defesa do pobre. Fazem sacrifícios e ao mesmo tempo massacram o pobre. Isso é incoerência. O profeta faz um apelo a conversão, que se dá através da prática concreta do direito e da justiça para com o pobre, personificando no oprimido, no órfão e na viúva. (1,15c-17).

19.4 - Isaias reage

O Rei Ozias, que fora considerado pelo pessoal da capital como um novo rei Davi, por suas obras e conquistas, é atingido pela lepra. Teve que ficar isolado e veio a falecer. A lepra era obtida como um castigo de Deus por alguma falta grave. Isso faz com que Isaias perceba que Ozias não era um super-homem, desmistificando assim a imagem do rei que ele carregava. Ocorreu uma conversão na vida do profeta. Ele passou a relativizar o rei, os dirigentes da nação e a questionar a realidade social de seu povo. O verdadeiro rei era somente Javé. (6,1-7)

A vocação e a missão do profeta se dão no Templo, lugar privilegiado da presença de Javé, segundo a teologia davídica. Isaías vê Javé como um rei, sentado no trono em pleno exercício de seu poder. A pratica da justiça e do Direito enche a terra, habitação dos seres humanos.

Em Isaias 6,8-11, o profeta se vê seduzido pelo convite desafiador: “Quem é que vou enviar? Quem ira de nossa parte?” e não resiste: “envia-me...”. Entra no jogo

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de Deus e se oferece voluntariamente como quem compreende o desafio que se lhe apresenta.

A conseqüência do pecado, da arrogância humana, é abatida por Deus. A mensagem do profeta se dirige diretamente à sociedade que se gloria de sal auto-suficiência econômica, social e militar, que revive o apogeu salomônico durante o governo de Ozias e filho Joatão. Esta situação de independência e paz pouco a pouco foi sendo ameaçada, e agravou no final do período de Joatão. Era o início do expansionismo do império assírio. Esse império começou a tributar o reino do Norte e as cidades estados da Síria. Era a primeira atapa de vassalagem. O rei de Israel faz aliança com o rei de Damasco, capital da Síria, com o objetivo de barrar a expansão da Assíria.

Acaz, rei de Judá, é convidado a fazer parte deste grupo de aliados. A não aceitação Poe em ameaça Judá. O rei, com medo do ataque dos aliados, pensa em buscar aliaça com a Assíria. O profeta Isaias se opõe a aliança, e propõe que Judá permaneça neutro: Esta é a ordem de Javé. (7,3-9).

O final do oráculo é um apelo de fé “Mas, se vocês não acreditam, não se manterão firmes”. A fé é a base da vida do povo. Acaz tem de tomar uma decisão. Deus oferece ao rei a possibilidade de pedir um sinal, à sua escolha, para confirmar sua débil fé. O rei recusa a oferta de Deus, alegando religiosidade e respeito: “não vou tentar a Javé”. (7,10-12).

Na verdade Acaz não quer um sinal, porque também não tem fé. Ele tem medo de se aproximar de Deus. Diante de tamanha hipocrisia, o profeta não se contém e exclama: “escute, casa de Davi, será que não basta a vocês cansarem a paciência dos homens? Precisam cansar também a paciência do próprio Deus?” (7,13)

Isaias insiste para que confie em Deus e dá motivos para que tenha tal confiança: (7,14-17) A jovem aqui mencionada é interpretada como uma das esposas de Acaz, que ainda não havia gerado seu primeiro filho. Esse menino receberá um nome simbólico: “Emanuel”, que significa “Deus esta conosco”. Isso é o anuncio e a garantia da salvação diante do todos os povos. Javé cumprirá sua palavra com a casa de Davi, suscitando um rei bom e justo.

Apesar do esforço de Isaias, Acaz vai atrás da Assíria. Esta aliança para Isaias, terá como conseqüência a presença molesta do Egito e da Assíria comparada com insetos invasores (7,18-19). Para o profeta buscar socorro na Assíria é resolver um problema com outro problema maior. Para lutar contra o Leão, Acaz se joga nos braços do Urso.

19.5 - Segundo Isaías capítulos 40-55

Revendo a História: Em 597 a.C., o rei de Judá, Joaquim (598-597 a.C.), mantendo a política de seu pai, recusou-se a pagar tributo à Babilônia. Em respostas o imperador Nabucodonosor (imperador da Babilônia), cerca Jerusalém e ataca a cidade. Temos ai a primeira deportação, onde foram levados ao exílio a elite governamental,

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religiosa e social do país. Ele invade o Templo, levando suas riquezas, mas não o destrói. Nomeia Sedecias como Rei.

Não bastasse todo o sofrimento vivido por Judá, Sedecias, rebela-se contra o imperador Babilônico e novamente deixa de pagar tributos. A repressão não se fez esperar. E nessa ocasião foi mais violenta. O exercito babilônico cerca Jerusalém e após o cerco de um ano e meio, entra em Jerusalém e destrói toda a cidade e também o Templo. Nesta segunda deportação, além do rei e da nobreza, foi lavado ao exílio parte do pessoal mais simples: funcionários da corte, pequenos artesãos e comerciantes da cidade, alguns agricultores e vinhateiros. AS pessoas deportadas agora são tratadas como escravas, obrigadas a trabalhos forçados, vivendo em prisões, vítimas de muita violência. Provavelmente, a experiência relatada no livro de Segundo Isaías.

A profecia do Segundo Isaias busca fortalecer a fé e a vontade de viver entre essas pessoas que não tem mais motivos para crer e se alegrar com mais nada. São pessoas cansadas, enfraquecidas (40,29; 42,3), escravizadas, espoliadas, saqueadas e perseguidas (42,7-22; 47,6; 50,6), humilhadas, desprezadas (53,3), vivendo em situação de indigência (41,17;49,13; 55,1-2).

Para renovar a fé dessas famílias, o segundo Isaias faz memória do êxodo, mostrando que Javé é o Deus libertador, senhor da história, fiel a seu povo.

No segundo Isaias, a palavra servo se refere ao profeta (50,4-11), a Ciro (42,1-9) e a Javé (43,23-24). Mas na maiorias das vezes, acredita-se que o servo é o povo (40-48). E é com este povo que Deus quer fazer uma aliança. Veja a diferença, a aliança agora é com o povo, não mais com o rei. Entre Deus e o povo se estabelece uma relação de muito carinho: o povo se vê como o servo escolhido e amado de Javé.

19.6 - Terceiro Isaías – Capítulos 56-66.

Esta profecia foi escrita em Judá, no período do pós-exílio, por volta dos anos 520-400 a.C.. Provavelmente nessa época Jurusalém já esta reconstruída e a vida da comunidade judaíta também organizada em torno do Templo e da Lei. Está consolidada em Judá a teocracia (sistema de governo no qual o poder político, econômico e social está fundamentado no poder religioso, neste caso, no Templo e na Lei).

Que controla em Judá, este poder, são os sacerdotes e escribas, e o fazem de acordo com os interesses tributários do império persa. Eles se consideram os escolhidos de Javé. Os sacerdotem presidem o culto, os escribas interpretam a Lei e orientam o povo.Essa condição assegura ao grupo dos teoicratas grande influência e poder sobre o povo.

Por trás desta mentalidade, os interpretes manipulam a Lei e pregam a chamada Teologia da Retribuição. Esta teologia se basea na no princípio de troca entre os cumpridores da Lei e a recompensa da Salvação. A riqueza é sinal da benção de Javé; a pobreza, castigo por causa do pecado, e exige uma reparação no Templo através da realização de sacrifícios e a entrega de ofertas. Numa sociedade marcada pelo preconceito

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e pelas desigualdades sociais, essa maneira de pensar acentua ainda mais a exclusão dos grupos empobrecidos e marginalizados.

A mensagem da comunidade do Terceiro Isaias é construir uma nova sociedade, baseada na justiça e no direito, em que ricos e pobres sentam-se a mesma mesa (65,25 - 66-1). Certamente, suas palavras são conforto e esperança para muitos grupos oprimidos: eunucos e estrangeiros (56,3-6), pessoas pobres e humilhadas, feridas (57,15;61,1; 66,2) e injustiçadas (57,1-2). Apesar de submetidos a desumana violência e discriminação, permanecem fiéis à Palavra de Deus.

CAPÍTULO XX

O LIVRO DO PROFETA OSÉIAS

Introdução: O profeta Oséias exerceu sua atividade no reino do Norte, desde o final do reinado de Jeroboão II até a queda de Samaria (750-722 a.C.). Toda a pregação de Oséias está impregnada por uma experiência pessoal tão profunda, que se tornou para ele um símbolo (Os 1 e 3). Ele amava de todo coração a sua esposa, mas ela o deixou para se entregar a outros amantes. Esse amor não correspondido ultrapassou o nível de frustração pessoal para ser uma enorme força de anúncio: o profeta apresenta a relação entre o Deus, sempre fiel e cheio de amor, e seu povo, que o abandonou e preferiu correr ao encontro dos ídolos. Oséias torna-se, então, denunciador de todo tipo de idolatria, que ele chama de prostituição. Essa comparação será daí para frente uma constante nos escritos bíblicos. Tais «prostituições», segundo Oséias, não consistem somente em adorar imagens de ídolos, mas inclusive em fazer alianças políticas com potências estrangeiras que provocam dependência, exploração econômica e opressão (7,8-12; 8,9-10). «Prostituições» são também os golpes de Estado que preservam interesses de uma pequena minoria (7,3-7), a confiança no poder militar e nas riquezas (8,14; 12,9) e todo tipo de injustiças (4,1-2; 6,8-9; 10,12-13). Oséias, porém, não é só um acusador, mas também anuncia o amor fiel e misericordioso de Deus para com seu povo, se este se converte e volta a conhecê-lo. Para o profeta, o conhecimento de Deus não é uma atitude intelectual, mas uma adesão amorosa, através de uma prática que corresponda ao projeto

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de Deus, elaborado no deserto por ocasião do êxodo. Então sim: Javé receberá novamente seu povo como esposa, dispensando-lhe todo o carinho (2,4-25); ou tratando-o como filho (Os 11).

20.1 – Contextualização.

Após a morte de Jeroboão II, em 753 a.C., Israel do norte entro em grande crise: pressão assíria constante e golpes internos com sangrentos assassínios tornaram-se a característica fundamental destes 30 anos do reino de Samaria, época em que atuou Oséias.

Sem legitimidade perante o povo, a maioria dos reis abandonou o javismo e se apoiou em crescente baalização, medida necessária para quem estava submetido a determinações do grande império assírio e que, por isso, precisava explorar duplamente os camponeses com o recolhimento exorbitante do tributo para sustentar as elites internas e as exigências do império.

20.2 – A Mensagem.

A mensagem de Oséias coincide em parte com a de Amós. Por exemplo na denuncia das injustiças e da corrupção preponderante, bem como na crítica ao culto, pelo que este tem de superficial e de falso (6,4-5; 5,6; 8,11-13). Há, no entanto, toda uma série de aspectos novos.

Em primeiro lugar, Oséias condena com grande energia a idolatria, a qual se manifesta em duas correntes: cultual e política. A idolatria cultual conciste na adoração a Baal, com os seus ritos da fertilidade (4,12b-13), e na adoração do bezerro de ouro, instalado por Jeroboão I., quando o reino do norte se separou de Judá. A política, quando esta em jogo a sobrevivência da nação, os israelitas correm o risco de procurar a salvação fora de Deus na alianças com o Egito e a Assíria, grandes potencias militares do momento.

A primeira parte do livro, Os 1,1-3.5 é muito discutida. Não se sabe se estes capítulos iniciais falam de uma experiência real do profeta, que teria se casado, de fato, com uma prostituta, ou se temos aqui apenas uma parábola.

O interessante é que este início de Oseias já coloca programaticamente, através do simbolismo do matrimônio – mesmo que tenha sido real, ele é elevado aqui à categoria de símbolo -, todo o arcabouço semântico que organiza o livro: em um pólo estão o amor, a união e a fecundidade, no outro comandam o desvio, a ruptura e a morte.

20.3 – Influência de Oseias.

É Oséias um dos profetas que mais impacto tem causado, ao menos em certos ambientes. Três temas merecem atenção especial. O primeiro é a imagem do matrimônio, aplicada às relações entre Deus e o povo. De Oséias passará este tema para Jeremias, Ezequiel, Deutero-Isaias, até se transformar em algo típico da teologia bíblica, presente também no N.T. e na espiritualidade cristão.

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Segundo é a imagem paterna para expressar igualmente as relações de Deus e o povo; uma paternidade na qual acaba por vencer a misericórdia e o perdão, não obstante os pecado do filho. Sua mais perfeita expressão esta expressa na parábola do filho pódigo (Lc 15,11-32)

O terceiro é a idéia tão profética de que Deus prefere a misericórdia aos sacrifícios.

CAPÍTULO XXI

O LIVRO DO PROFETA DANIEL

Introdução: O livro de Daniel é de feição única no Antigo Testamento. Todos se fascinam com sua linguagem e imagens que, em geral mal compreendidas ou tomadas ao pé da letra, podem levar às mais fantásticas fabulações, estas sem nenhum fundamento na realidade. Com este livro irrompe e vez um novo gênero literário, o apocalipse – termo grego que significa revelação. Todavia, revelar o que? Aqui entram a imaginação e a fantasia, esticando pretensos significados para todos os lados. Vamos, então, começar esclarecendo um pouco qual é a identidade desse tipo de escrito.

Um livro apocalíptico: Os apocalipses são escritos típicos de tempos difíceis. Aparecem quando o povo é dominado por uma potência imperialista que o ameaçava de todos os modos. A dominação se faz em três vertentes básicas: a opressão política, diminuindo ou até cancelando a liberdade; a exploração econômica, diminuindo o recurso aos bens da vida; a vigilância ideológica, procurando a todo custo conter a consciência crítica do

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povo dominado, a fim de que este não se rebele e ameace o poder imperialista dominador. Essa vigilância ideológica costuma influir grandemente na cultura e na religião do povo dominado, pois este sempre vai encontrar na sua história e religião motivos e modelos de resistência e luta.

Podemos então perceber que os apocalipses são livros subversivos em relação ao poder imperialista. É a literatura dos dominados, dirigida a despertar o senso crítico, estimular a resistência e incentivar à luta contra o imperialismo. Tal gênero vinha há tempos se formando entre os judeus, à medida que os sucessivos impérios do Oriente Médio faziam sentir progressivamente o seu peso sufocante. As primeiras raízes do gênero já são encontradas nos livros dos profetas como, por exemplo, Joel 3-4; Zacarias 12-14; e outros. Contudo é Ezequiel, o profeta do exílio, que firma as bases de um novo modo de escrever. Em pleno império babilônico, Ezequiel começa a recorrer extensivamente às imagens e alegorias falando de modo a ser entendido pelos exilados, mas não pelos detentores do poder imperialista. Dessa forma corria menos perigo.

Um apocalipse é, antes de tudo, um livro de ficção. Que não se entenda mal: a ficção é usada pelo autor para falar de modo cifrado e situações perigosas e de projetos ousados, que poderiam facilmente acarretar ameaças para ele próprio e para seus leitores. Usa então o recurso de escrever um livro que pode simplesmente ser entendido como ficção, mas que os destinatários saberão decifrar e aplicar à realidade.

O livro de Daniel, o autor emprega estes recursos e outros:

Pseudonimia:- Um autor de apocalipse costuma não assinar seu livro. Usa um pseudônimo, em geral o nome de um personagem famoso do passado. Isso possibilita a projeção, pois o dominador vai pensar que se trata de livro antigo.

Antedatação:- decorre do pseudônimo. O autor retrocede ao passado e escreve sobre a sucessão histórica, como se estivesse profetizando, até chegar ao presente.Como o forte de um apocalipse é exatamente a análise e interpretação da história, esse recurso tem especial importância: ensina a ler a história de modo critico. Quando o livro fala do futuro, acaba restando apenas um aceno: depois do fim, com o julgamento e o estabelecimento do reinado de Deus, inaugurando uma era nova na qual, é claro, não haverá imperialismo.

Sonhos:- Trata-se de sonhos cuidadosamente calculados e montados, em vista da interpretação que os refere à realidade histórica. São poderosos meios de comunicação, pois podem facilmente ser retidos na memória e, uma vez que se tenha a chave da interpretação, tornam-se profundas análises da realidade.

As Visões:- Como os sonhos elas são construídas cuidadosamente, de modo a descortinar um panorama de interpretação de fatos e acontecimentos, quando não de projetos subversivos. Gozam de especial reputação pois, como os sonhos, são apresentados como revelações feitas diretamente por Deus. Em geral às visões e aos sonhos acrescenta a figura do interprete – quase sempre um anjo. As visões, portanto, fazem parte da linguagem cifrada do autor, principalmente para falar de análises política e ideologicamente delicadas.

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Imagens: É mais fácil guardar de memória uma imagem do que um texto. Os autores usam abundantemente este recurso, em geral acompanhado-o de explicações para dar a chave da interpretação simbólica.

Os Números:- Nem sempre indicam quantidade. Podem indicar simbolicamente quanlidades, como totalidade (4,12), perfeição (7).

21.1. – Quem é o autor de Daniel.

O livro é muito complexo. Basta dizer que foi escrito em três línguas diferentes:

- Hebraico (1,1-2,4ª;8-12)

- Aramaico (2,4b-7,28)

- Grego (3,24-90; 13-14)

Isto aponta para um complicado processo de formação. Por outro lado, hámuitas contradições dentro do livro. Por Ex. em 1,18-19 o rei Nabucodonosor conhece Daniel e seus três companheiros; já em 2,25 não os conhece.

O fato das três línguas e das contradições fazem pensar que o livro surgiu graças à coleta e costura de várias histórias orais ou já escritas, que foram reunidas por um editor final. O nome Daniel é sem dúvida um pseudônimo inspirado no lendário Danel citado por Ezequiel 14,14.20, ao lado de Noé e Jô. Danel significa “Deus julga”, e Daniel quer dizer “Deus é meu Juiz”. O nome, portanto, teria base lendária, mas vem a calhar para um apocalipse que pretende apresentar o julgamento de Deus contra o imperialismo.

21.2 – Mantendo a própria identidade.

O primeiro capítulo de Daniel é uma espécie de introdução, mostrando as personagens e a situação histórica. Trata-se, contudo, de ficção, que deve ser lida não como um relato histórico, e sim como ficção, que deve ser lida não como relato histórico, e sim como ficção que se refere á história. Mai ainda, ficção que se refere ao tempo do autor, e não ao passado, como poderia parecer à primeira vista.

Quanto a assimilação da cultura estrangeira, tudo bem. Contudo, o regime alimentar causa problemas para um israelita fiel à tradição de seu povo. De acordo com o Levitico 11 e Deuteronômio 14, uma série bem extensa de alimentos eram proibidos como impuros. Para nós a questão parece sem importância. Contudo, trata-se de manter a própria identidade religiosa e cultural, que sempre fica ameaçada pela religião e cultura do dominador. (1,8-17).

21.3 – Um sonho trágico para o imperador (2,24-45)

Daniel interpreta o sonho , falando primeiro da supremacia de Nabucodonosor (2,37-38). A ponta crítica já aparece no fato de Daniel lembrar que o rei recebeu de Deus o poder. Significa que Deus está acima do rei e do império, e, conseqüentemente, de todos os imperialismos. Ele é o senhor da história, dirigindo o seu curso até o final.

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Ao dizer que Nabucodonosor é a cabeça de ouro, Daniel dá a chave de interpretação do sonho. A estátua de vários materiais se refere a reinos, a impérios. Assim teríamos:

Ouro = império babilônico

Prata = império medo

Bronze = império persa

Ferro/barro = império grego com Lágidas e Selêucidas.

Daniel mostra, portanto, o que é a história, ou melhor, a história superversiva: uma sucessão de impérios. O fato de ser uma estatua tem conotação bíblica e idolatria: “Os ídolos deles são prata e ouro, obras de mãos humanas” (Sl 115,4). Em outras palavras os impérios são idolátricos porque, acumulando riqueza e poder, têm pretensões absolutas, chegando a usurpar o lugar de Deus vivo.

A atitude de Nabucodonosor em relação a Daniel é como a de entregar o seu império nas mão dele, para que o projeto de Deus ocupe o lugar o projeto imperialista. (2,48). A recusa de Daniel é importantíssima: ele não quer ser o sucessor único de nabucodonosor. Seria o mesmo que manter vivo o imperialismo. Ele pede a descentralização, repartindo o poder com os seus três companheiro (2,49).

21.4 – Resistência à idolatria e martírio (3,1-97)

O trecho apresenta outra história, protagonizada agora pelos três companheiros de Daniel: Ananias, Misael e Azarias – respectivamente Sidrac, misac e Abdênago. Daniel esta ausente.

Os três jovens hviam recebido nomeação importante (2,49). Isso deve ter suscitado inveja e hostilidade entre os babilônicos, que não perderam tempo em denunciar os três jovens. Nabucodonosor parece ter esquecido sua anterior admiração e fica furioso.

Os Jovens martirizados, resistem (3,16-18). Eles confiam em seu Deus, que pode libertá-los da fornalha (como libertará o seu povo do Egito) e do poder do rei (como libertará o seu povo do poder do faraó). Contudo não colocaram Deus a prova. Ao contrário, expõem-se a si mesmo à prova. Deus os libertará se assim o desejar. Mas eles não dobrarão à intimidade feita pelo poder imperialista.

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CAPITULO XXX

LIVROS SAPIENCIAIS

Introdução:- «Sapienciais» é o nome dado a cinco livros do Antigo Testamento: Provérbios, Jó, Eclesiastes, Eclesiástico e Sabedoria. A esses são acrescentados dois livros poéticos: Salmos e Cântico dos Cânticos. Esses livros apresentam a sabedoria e a espiritualidade de Israel.

Em Israel, a sabedoria não é a cultura conseguida graças à acumulação de conhecimentos, mas o bom senso e o discernimento das situações, adquiridos através da meditação e reflexão sobre a experiência concreta da vida. Trata-se de algo que se aprende na prática e que leva à arte de viver bem. Assim, nos livros sapienciais encontramos reflexões que brotam dos muitos problemas que povoam o dia-a-dia da vida de qualquer pessoa que busca o caminho da realização e felicidade.

A sabedoria de cunho mais popular que encontramos no livro dos Provérbios e no Eclesiástico apresenta-se em forma de coleção de frases curtas, sentenças que ajudam a compreender e a encontrar uma saída nas diversas situações enfrentadas pelo homem comum. Já os livros de Jó, Eclesiastes e Sabedoria são estudos sobre problemas mais profundos e globais, como o sentido da vida, a morte, a justiça, a vida social, o mal, a natureza da sabedoria etc. O Cântico dos Cânticos trata da experiência mais fundamental da vida: o amor humano, símbolo do amor de Deus para com o seu povo.

A espiritualidade de Israel é apresentada no livro dos Salmos, uma coleção de 150 orações que refletem as mais diversas situações da vida do indivíduo e do povo. São verdadeiros modelos para aprendermos a fazer a nossa oração.

Os livros sapienciais mostram que a experiência comum do povo também é lugar da manifestação de Deus e da revelação do seu projeto: Deus fala através da experiência do povo. Estes livros, portanto, trazem o convite para também hoje darmos atenção a nossa vida cotidiana, a fim de aprendermos a articular nossa experiência da vida e da história.

O LIVRO DOS PROVERBIOS

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O livro dos Provérbios é o melhor retrato bíblico da sabedoria popular. Todavia, como já dissemos, o povo não escreve. Ele vive, enfrenta problemas e situações, faz inúmeras experiências, e intui um sentido que vai orientando o discernimento do seu caminho na vida e na história. Quem escreveu o livro foram os sábios profissionais, que se debruçaram sobre a sabedoria popular, trabalharam sobre ela e, com muito refinamento, deram-lhe a forma pela qual hoje a conhecemos (Ecl 12,9-11). Esses sábios eram os intelectuais orgânicos daquele tempo. A quem serviam eles? Só podemos saber isso analisando profundamente o que ficou por escrito, tentando descobrir a quem este ou aquele texto se dirigia ou beneficiava.

O livro levou aproximadamente seiscentos anos para chegar à forma em que o conhecemos hoje. Tempo suficiente para comprovar a sua respeitabilidade e atrair a nossa atenção. Como a experiência da vida é universal, podemos nos servir dele para comparar e, quem sabe, confirmar a experiência dos antigos com a nossa experiência, ou vice-versa. Contudo, podemos também aprender a técnica de expandir o discernimento e aplicá-la à sabedoria do nosso povo, aqui e agora. Talvez então compreendamos mais profundamente o que tanto se costuma repetir: “A voz do povo é a voz de Deus”. E acrescentar: “E quem lhe dá ouvidos se torna sábio”.

30.1 – Provébios para que?

“Provérbios de Salomão, filho de Davi e rei de Israel” (Pr 1,1). Provérbio é uma sentença curta, penetrante, pitoresca e em geral figurativa. A palavra hebraica correspondente é mashal, que significa propriamente “semelhança, comparação”. O mashal tem significado mais amplo que o nosso provérbio, e inclui também o sentido de sentença profunda e misteriosa, metáfora, parábola, alegoria, enigma, sátira, declaração solene, poema didático, discurso de exortação etc. – Materiais todos que encontramos cá e acolá no livro dos Provérbios. O sentido predominante, porém, é o de uma frase incisiva, que penetra profunmdamente um aspecto ou uma situação da vida e desentranha o seu significado.

A visão patronal que atribui o Pentateuco a Moises e os Salmos a Davi é também responsável pela atribuição dos escritos sapienciais ao rei Salomão. Salomão é o patrono da Sabedoria em Israel, o que não quer dizer que ele tenha escrito pessoalmente os provérbios.

O LIVRO DA SABEDORIA

Considerado em linha cronológica, o livro da sabedoria é o último escrito do A.T. na Bíblia católica. Foi redigido originalmente em grego, e isso faz supor data bastante tardia. O título “sabedoria de Salomão” não deve nos impressionar. Mais uma vez temos um livro bíblico atribuído a uma personagem do passado e, como se trata de livro sapiencial, atribuído ao rei Salomão, reputado como o patrono da sabedoria em Israel.

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A contribuição de Israel as nações, não poderia vir certamente da cultura filosófica e artísticas, própria dos gregos. Mas da Sabedoria, que Israel acumulou desde o inicio da sua história. Tal Sabedoria, dom de Deus, é o discernimento para o senso de justiça, aprendido com Deus, e que pode levar a liberdade e a vida para todos, que é o projeto do próprio Deus.

O livro todo poderia ser resumido em 1,15: “A justiça é imortal”. Com efeito, o autor identifica a sabedoria com a justiça, e mostra que a justiça é que leva à vida imortal. Dessa forma, é a sabedoria que dá sentido a vida (1,16-5,23). Apresenta a natureza da sabedoria (6,1-9,18) e faz uma longa meditação sobre o êxodo (10,1-19,21). No êxodo do Egito, a terra da escravidão, Israel descobriu a justiça de Deus, a qual comunica ao povo a verdadeira sabedoria. Doravante, toda sabedoria, para ser verdadeira, implica o exercício da justiça, e este leva à libertação.

30.2 – Os Justos e os Injustos (1,16-5,23)

O livro da Sabedoria considera apenas duas categorias de pessoas: os Justos e os injustos. Por trás dessa classificação está a visão da fé como fator determinante: quem conhece o Deus bíblico e é fiel a ele, é justo; quem não o conhece ou não lhe é fiel, é injusto. O elemento decisivo, portanto, não é o conhecimento de Deus, mas a fidelidade a ele. E fidelidade testemunhada pela vivência e pela prática da justiça.

No capitulo 2,1-9 temos a filosofia de vida dos injustos, mas no capítulo 3,1-4,19 o retrato do justo.

30.3 – A natureza da Sabedoria (6,1-9,18)

O poder e o domínio são próprios de Deus, e não da humanidade. Os homens, quando muito, podem exercer esse poder e domínio apenas como função realizada em nome de Deus, a quem representam, isto é, tornam presente e visível. A função da autoridade é a de preservar e promover a justiça: julgar com retidão, observar a lei, proceder conforme a vontade de Deus. Sobre o exercício da autoridade, portanto, pesa um julgamento rigoroso (6,5-8). Todos serão julgados diante da prática ou ausência de prática da justiça.

30.4 – Como aprender a sabedoria (6,12-21)

A palavra chave é o amor, amor pela sabedoria. Esse amor se extravasa em desejo e busca – e o encontro com ela se realiza imediatamente, pois a própria sabedoria se antecipa aos que a procuram, vindo ao seu encontro em casa e pelos caminhos, ou seja, na dimensão pessoal e social.

Contudo, em que consiste a sabedoria? Podemos dizer que é o bom senso que nasce, se desenvolve e se aprofunda em meio as ambigüidades – os opostos contrários -,

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através do exercício contínuo do discernimento. Supõe a ultrapassagem da parcialidade, da unilateralidade, para atingir a visão penetrante e global que o próprio Deus tem da realidade. Como chegar a isso? O ponto de partida é o desejo de aprender; o ponto de chegada ultrapassa qualquer previsão, pois a perfeição da sabedoria é o próprio discernimento de Deus. É por isso que a caminhada da sabedoria leva à imortalidade, à comunhão com o próprio Deus.

30.5 – A oração da autoridade (8,17-9,18):

“Refleti sobre essas coisas e meditei no meu íntimo: a imortalidade está na união com a sabedoria, e na sua amizade existe alegria perfeita; na obra de suas mãos existe riqueza inesgotável, na relação assídua com ela se adquire a prudência, e na participação de suas palavras se encontra a fama. Assim sendo, eu ia por toda a parte procurando os meios de conquistá-la para mim. Eu era um jovem de boas qualidades e tive a sorte de ter uma boa alma, ou melhor, sendo bom, vim a um corpo sem mancha. Sabendo que jamais teria conquistado a sabedoria, se Deus não a tivesse concedido a mim - e já era sinal de inteligência saber de quem vinha o dom - voltei-me então para o Senhor e lhe supliquei, dizendo com todo o meu coração: «Deus dos pais e Senhor de misericórdia, tudo criaste com a tua palavra! Com a tua sabedoria formaste o homem para dominar as criaturas que fizeste , para governar o mundo com santidade e justiça, e exercer o julgamento com retidão de alma. Concede-me a sabedoria, que está entronizada ao teu lado, e não me excluas do número de teus filhos.

Eu sou teu servo, filho de tua serva, homem fraco e de vida breve, incapaz de compreender a justiça e as leis. Mesmo que alguém fosse o mais perfeito dos homens, se lhe faltasse a sabedoria que provém de ti, ele de nada valeria. Tu me escolheste como rei do teu povo e juiz dos teus filhos e filhas. Tu me mandaste construir um templo sobre o teu santo monte, um altar na cidade onde fixaste a tua tenda, cópia da tenda santa quetinhas preparado desde o princípio. Contigo está a sabedoria, que conhece as tuas obras e que estava presente quando criaste o mundo. Ela sabe o que é agradável aos teus olhos e o que é conforme aos teus mandamentos.

Manda a sabedoria desde o céu santo e a envia desde o teu trono glorioso, para que ela me acompanhe e participe dos meus trabalhos, e me ensine o que é agradável a ti. Porque ela tudo sabe e tudo compreende. Ela me guiará prudentemente em minhas açõese me protegerá com a glória dela. Assim, as minhas obras serão agradáveis a ti, eu poderei governar com justiça o teu povo, e serei digno do trono de meu pai.

Quem pode conhecer a vontade de Deus? Quem pode imaginar o que o Senhor deseja ? Os pensamentos dos mortais são tímidos e nossos raciocínios são falíveis, porque um corpo corruptível torna pesada a alma, e a tenda de terra oprime a mente pensativa. Com muito custo, podemos conhecer o que está na terra e com dificuldade encontramos o que está ao alcance da mão. Mas quem poderá investigar o que está no céu? Quem poderá conhecer o teu projeto, se tu não lhe deres sabedoria, enviando do alto o teu espírito santo? Somente assim foram endireitados todos os caminhos de quem vive sobre a terra. Somente assim os homens aprenderam aquilo que te agrada. Eles foramsalvos por meio da sabedoria».

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O LIVRO DE JÓ

Introdução: Mais que uma meditação sobre o sofrimento, o livro de Jó nos propõe uma reflexão sobre os caminhos de Deus, e ele conservou para nós os traços de verdadeiro drama da fé. Com efeito, o destino típico de Jó e os diversos poemas que o interpretam, põem em jogo e questionam diretamente a imagem de Deus e a esperança do justo às voltas com desgraça imerecida.

Toda leitura do livro de Jô acaba levando a problemas maiores, com que o crente, mais cedo ou mais tarde, vai ter que se enfrentar: o mistério do mal e do sofrimento, o encontro com Deus mesmo no fracasso aparente de todo êxito humana, as dificuldades do diálogo com o homem que sofre e, finalmente, o sentido da própria vida, já que ela deve inserir-se na perspectiva da morte.

O tema central do livro de Jó não é o problema do mal, nem o sofrimento do justo e inocente, e muito menos o da "paciência de Jó". O autor desse drama apaixonante discute a questão mais profunda da religião: a natureza da relação entre o homem e Deus. O povo de Israel concebia a relação com Deus através do dogma da retribuição: Deus retribui o bem com o bem e o mal com o mal. Ao justo, Deus concede saúde, prosperidade e felicidade; ao injusto, ele castiga com desgraças e sofrimentos. Tal concepção arrisca produzir uma religião de comércio, onde o homem pensa poder assegurar a própria vida e até ditar normas para o próprio Deus. Contra isso, o autor mostra que a religião verdadeira é mistério de fé e graça: o homem se entrega livre e gratuitamente a Deus; e Deus, mistério insondável, volta-se para o homem gratuitamente, a fim de estabelecer com ele uma comunhão que o leva para a vida.

O livro de Jô, em seu teor atual, traz a marca de longa história literária, onde podemos distinguir quatro etapas:

1º - O conto primitivo. Reunindo as duas extremidades do livro, o Prólogo e o Epílogo, conseguimos recompor, com bastante facilidade, o conto popular, tal como pretendiam narra-lo sob as tendas, antes de haver penetrado no patrimônio sapiencial de Israel.

2º - Os diálogos poéticos. Na primeira metade do século V, o conto foi recheado com um monologo de Jô, um diálogo com os três visitantes e depois com o próprio Deus.

3º - Os discursos de Eliú. Acrescido ao conto por volta do ano 450 a.C.

4º - O poema sobre a Sabedoria (Capítulo 28). O poema de Jô 28 lança, assim, uma ponte entre os diálogos (4-27) e a segunda metade do poema, em que Jô, depois de haver protestado e confirmado sua inocência e depois de ter feito a Deus seu último desafio (29-31), verá, por sua vez, contestados seu poder e sua sabedoria.

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30.6 - Jô 3-11 – “Estou cansado da minha vida”

Começa o longo debate entre Jó e seus “amigos”. O foco da atenção é, a luz da teologia da época, centrada do dogma da retribuição, buscando compreender os motivos de tudo o que aconteceu com Jó.

O temperamento da personagem muda, o Jó paciente da lenda desaparece. Agora começa a ver o que se passa no interior dele: torna-se rebelde e questionador, alguém que luta com todas as forças para preservar o único bem que lhe resta: a integridade de caráter. Isto mostra a intenção do autor. Para ele, os três amigos representam uma nova investida de satã. A dúvida que eles vão levantar é se Jó é mesmo justo. Não é o que acontece sempre com o pobre e o doente? Não pensamos logo que eles são os únicos responsáveis pela sua própria situação lastimável?

O pesado silêncio é rompido, e Jó não amaldiçoa Deus, mas o dia do próprio nascimento (3,1). Longe de confessar puramente a sua fé, ele agora expressa apenas três desejos que se alternam: seria preferível nunca ter sidi concebido (3,3-10), ou ter sido um aborto ou morrido ao nascer (3,11-19), ou então morrer imediatamente (3,20-26).

Eis como reage interiormente o pobre e doente. Depois de sete dias e noites de mergulho em si próprio, a conclusão desesperadora é a que a vida não tem sentido, e a única alternativa seria a morte. Será essa a saída para ¾ da humanidade? Melhor que não existisse, ou que já tivesse morrido, ou que morresse agora mesmo?

Elifaz recorre a um artifício revelador (4,12-21), garantindo a absoluta santidade de Deus. (4,17). Com isso ele afirma que Deus é sempre justíssimo. Conseqüência ? Se o homem, e no caso Jó, cai na desgraça, isso é devido unicamente ao próprio homem, que “gera seu próprio sofrimento”(5,7). Por fim, recorrendo a própria experiência, dá um conselho a Jó:”Em seu lugar, eu recorreria a Deus, e poria a minha causa nas suas mãos dele”(5,8).Deus realiza maravilhas, e sempre faz justiça ao pobre e ao fraco, defendendo-os contra seus exploradores e opressores (5,9-16).

Em Elifaz, percebemos logo quão implacável é o dogma da retribuição. Para os que estão bem, tudo bem – ele é até interessante e tranqüilizador. Para os que estão na desgraça, não fica nenhuma escapatória. Como Deus é justíssimo, o mal é sempre culpa e produto do próprio homem mau. E quando nada se fez para merecer castigo? – De acordo com o dogma da retribuição, os empobrecidos e enfraquecidos sempre seriam os únicos culpados por sua desgraça, e esta seria sempre aplicada pelo Deus justo como castigo.

Baldad: Deus é justo (8) – Na visão de Baldad, o princípio explica os fatos: Deus está castigando Jó pelos crimes que seus filhos cometeram: os filhos morreram, mas jó foi agraciado com o tempo para se arrepender e, assim, reaver tudo o que possuía.. è o mesmo argumento de Elifaz. Contudo, o conselho, no fundo, é o de praticar uma religião interesseira, coisa que satã já havia denunciado.

Sofar: Deus conhece as pessoas falsas (11). Este apela diretamente para a sabedoria de Deus que “conhece as pessoas falsas e sem esforço discerne o

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crime”(11,11). Com isso ele afirma que Jó é falso e esconde cuidadosamente um crime (11,5-6).

Ate aqui o livro levanta três desafios: Ou o inocente não é tão inocente; ou os filhos dele são errados, ou ele próprio esconde um grande crime. Ninguém pensou na possibilidade de um inocente ser injustiçado. E não pensou, porque ninguém questionou de onde vem a injustiça. Se tudo vem de Deus, Deus seria injusto se castigasse um inocente. Mas será Deus mesmo? A injustiça não vem de outros que, de bom grado, atribuíam seu ato a Deus?

Ao final da história, quando tudo fica resolvido, os parentes e amigos voltam... (42,11). Esse fato, contribui para levantar a questão humana mais fundamental do livro: a solidariedade. Além de Deus, quem estaria disposto a se solidarizar com os pobres e fracos, marginalizados e difamados? Esse é o desafio que Jó deixa em aberto. O mesmo desafio que ¾ da humanidade fazem.... O livro não apresenta uma conclusão, mas levanta vários questionamentos: Existe religião gratuita? Ou seja, um relacionamento gratuito com Deus, sem nada lhe pedir ou cobrar, ou seja, baseado na graça.Deus e oferece como graça pura, e o homem lhe responde gratuitamente, com fé pura.

Religião é conhecimento ou experiência? A quem serve o conhecimento? Depende de quem manipula o conhecimento, distorcendo-o a favor de quem.É claro que o pobre e o fraco devem suspeitar de todo conhecimento, seja ele profano ou religioso, que não os leve a liberdade e a vida. A experiência da verdadeira religião não brota do conhecimento estabelecido, por melhor que lê seja. A experiência de Deus leva a um novo conhecimento de Deus, fundamentando uma nova religião. Não mais o Deus que justifica a exploração e a opressão, mas o Deus que liberta e leva á vida, e isso não como um dom suplementar.

Quem se esconde por trás do dogma da retribuição? A economia, a política, a ideologia do explorado uma religião interesseira.

O pobre e o fraco são culpados ou vítimas?

LIVRO DOS SALMOS

 

O livro dos Salmos é uma coleção de poesia hebraica, inspirada, que mostra a adoração e descreve as experiências espirituais do povo judaico. Nos Salmos, vemos o homem falando com Deus, descobrindo o seu coração em oração e elogio, e falando sobre Deus, descrevendo e exaltando-O pela manifestação dos seus gloriosos atributos.Nos

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Salmos vemos que Deus pode ser louvado em todas as circunstâncias da vida, e isto, por causa da sua fidelidade no passado, que é uma garantia da sua fidelidade no futuro.

Na Bíblia hebraica, os Salmos estão divididos em 5 livros:

1. - Salmos de Instrução (Salmos 1 a 41 ) – sobre o carácter dos homens bons e maus, sua felicidade e sua miséria (Sl 1); sobre a excelência da lei divina (Sl 19, 119); sobre a futilidade da vida humana (90); sobre os deveres dos que governam (82); e sobre humildade (13).

2. - Salmos de Louvor e Adoração (Salmos 42 a 72 ) – reconhecimento da bondade e do cuidado de Deus (23, 103), do seu poder e da sua glória (8, 24, 136, 148).

3. - Salmos de Acções de Graças (Salmos 73 a 89 ) - agradecimento pelas misericórdias para com cada homem em particular (18, 34) e para com os israelitas em geral (81, 85).

4. - Salmos Devocionais (Salmo 90 a 106 ) - – São os sete Salmos de arrependimento para com Deus (6, 32, 38, 51, 102, 130, 143); os que expressam confiança debaixo da aflição (3, 27); os que embora expressando extrema aflição, não estão faltos de esperança (13, 77); orações em tempo de grande aflição (4, 28, 120); orações feitas quando alguém foi privado de servir a Deus no templo (42); orações feitas em tempo de aflição e perseguição (44); orações de intercessão (20 e 67).

5. - Salmos Messiânicos (Salmo 107 a 150 ) - – que anunciam o Messias – 2, 16, 22, 40, 45, 72, 110 e 118.

6 – Salmos Históricos (Salmo78, 105 e 106) – Que narram as experiências do povo e momentos críticos da história de Israel.

A numeração dos Salmos em diferentes traduções dá-se a tradução grega que fundiu os salmos 9 e 10 num só salmo e o Salmo 11 da Bíblia Hebraica ficou sendo 10 na Bíblia Grega. A confusão vai até o Salmo 113 do hebraico, 112 do grego. O 113 do grego é a fusão do 114 e 115 do hebraico. Já o 116 do hebraico foi divido no 114 e 115 do grego. O 117 do hebraico é o 116 do grego e a diferença continua até o 146. O 147 do hebraico foi dividido no 146 e 147 do grego. Do 148 ao 150, os números são os mesmos.

Bíblia Hebraica Bíblia Grega

1 a 8 1 a 8

9 e 10 9

11 a 113 10 a 112

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114 e 115 113

116 114 e 115

117 a 146 115 a 145

147 146-147

148 a 150 148 a 150

As Bíblias protestantes seguem a numeração hebraica. As Bíblias católicas seguiam a numeração grega, mas, ultimamente, trazem a numeração hebraica, colocando a grega ao lado, entre parêntesis.