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"Véu do Passado" Antônio Carlos psicografia de Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Copyright - 1997 - 2ªEdiÇão 10.000 Exemplares Lúmen Editorial Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 946 São Paulo - SP - Oli25-000 - Fone: 283.2418 Editoração Eletrônica e Capa - Ricardo Baddouh Revisão - Valeska Perez Sarti Foto da Capa - Renato Cirone Fotolito da Capa - Binhos Fotolito Ltda. Fotolitos - Fototraço Ltda. Impressão - Gráfica Palas Athena Fale com a Lúmen: e-mail [email protected] SUMÁRIO I- A Ceguinha 9 II - O Menino que Adivinhava , 18 III - O Passado de Rose 31 IV- As Dificuldades de Kim 41 V - No Convento 57 VI - Frei Luís 66 VII - O Regresso 84 VIII - Desencarnação 97 IX - A Procura de um Amigo 107 X- O Socorro 127 XI - O Filho de Onofre 142 XII - Levantando o Véu do Passado 151 XIII - O Casamento 169 Véu do Passado 7 A lembrança de nossas individualidades anteriores te- ria gravíssimos inconvenientes. Poderia, em certos casos, humilhar-nos extraordinariamente; em outros, exaltar o nosso orgulho, e, por isto mesmo, entravar o nosso livre- arbítrio. Deus nos deu, para nos melhorarmos, justamente o que nos é necessário e nos basta: a voz da consciência e nossas tendências instintivas, tirando-nos o que nos poderia prejudicar. Acrescentemos ainda que, se tivéssemos a lem- brança de nossos atos pessoais anteriores, teríamos igual- mente a dos atos alheios, e esse conhecimento poderia ter os mais deploráveis efeitos sobre as relações sociais. Não havendo sempre motivos para nos glorificarmos do nosso passado, é quase sempre uma necessidade que um véu ,seja lançado sobre ele. (1)

Antônio Carlos - Véu Do Passado

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Literário

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  • "Vu do Passado"

    Antnio Carlos

    psicografia deVera Lcia Marinzeck de Carvalho

    Copyright - 1997 - 2Edio10.000 ExemplaresLmen Editorial Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho, 946So Paulo - SP - Oli25-000 - Fone: 283.2418

    Editorao Eletrnica eCapa - Ricardo BaddouhReviso - Valeska Perez SartiFoto da Capa - Renato CironeFotolito da Capa - Binhos Fotolito Ltda.Fotolitos - Fototrao Ltda.Impresso - Grfica Palas Athena

    Fale com a Lmen:

    e-mail [email protected]

    I- A Ceguinha 9II - O Menino que Adivinhava , 18III - O Passado de Rose 31IV- As Dificuldades de Kim 41V - No Convento 57VI - Frei Lus 66VII - O Regresso 84VIII - Desencarnao 97IX - A Procura de um Amigo 107X- O Socorro 127XI - O Filho de Onofre 142XII - Levantando o Vu do Passado 151XIII - O Casamento 169

    Vu do Passado 7

    A lembrana de nossas individualidades anteriores te-ria gravssimos inconvenientes. Poderia, em certos casos,humilhar-nos extraordinariamente; em outros, exaltar onosso orgulho, e, por isto mesmo, entravar o nosso livre-arbtrio. Deus nos deu, para nos melhorarmos, justamenteo que nos necessrio e nos basta: a voz da conscincia enossas tendncias instintivas, tirando-nos o que nos poderiaprejudicar. Acrescentemos ainda que, se tivssemos a lem-brana de nossos atos pessoais anteriores, teramos igual-mente a dos atos alheios, e esse conhecimento poderia teros mais deplorveis efeitos sobre as relaes sociais. Nohavendo sempre motivos para nos glorificarmos do nossopassado, quase sempre uma necessidade que um vu ,sejalanado sobre ele. (1)

  • (1) Livro II Captulo VII parte da questo 391, em O Livro DosEspritos, de Allan Kardec.

    8 Antnio Carlos

    869 - Com que objetivo o futuro est oculto ao homem?- Se o homem conhecesse o futuro, negligenciaria opresente e no agiria com a mesma liberdade de agora, porqueseria dominado pelo pensamento de que, se uma coisa deveacontecer, no adianta ocupar-se dela, ou ento procuraria im-pedi-la. Deus no quis que fosse assim, a fim de que cada umpudesse concorrer para a realizao das coisas, mesmo daque-las a que desejaria opor-se. Assim que tu mesmo, sem o sa-ber, preparas os acontecimentos que sobreviro no curso da tuavida.

    (2) Livro III -Captulo X, em O Livro dos Espritos, de Allan Kardec.

    Vu do Passado 9

    A CEGUINHA

    Pula, Ceguinha! -exclamou Ivone, uma coleguinha.Por favor, Ivone-disse Rose, a me da garota. -Elachama-se...

    - Desculpe-me! J sei, chama-se Regina, que umnome lindo, de fadas, de rainhas-respondeu Ivone.

    - Regina significa rainha- corrigiu a menina. -Gostodo meu nome.

    Um, dois e... um, dois e... - contava mentalmente epulava.

    As meninas pulavam corda. Brincadeira de crianas, queconsiste em duas baterem a corda e a outra, ou as outras, pula-rem. Regina tanto batia com presteza, como pulava igual as ou-tras. No seria nenhuma proeza, se Regina no fosse cega.

    A menina era cega de nascena, seus olhos negros eramparados, sem vida e menores do que os normais. Era bonita,cabelos negros, lbios finos, nariz arrebitado e com duas covi-nhas no rosto, que se acentuavam quando ria. E a garota estavasempre sorrindo. Parecia muito com o pai, Afonso. Por maisque a me pedisse para cham-la pelo nome, muitos insistiam ea chamavam pelo apelido: "Ceguinha".10 Antnio Carlos Vu do Passado 1

    A brincadeira continuou. Ivone puxou Regina pela mo ea colocou no lugar que teria de ficar; ps a corda em suas mose esta bateu com presteza.

    Regina morava nos arredores de uma cidade pequena,em uma pequena chcara onde os pais, alm de criar aves, cul-tivavam frutas e verduras. Tinha uma irm menor, de quatro anos,Isabela, que era linda. Puxara a me, loura, cabelos cacheadose com os olhos castanhos claros. Regina estava com doze anos.Gostavam muito uma da outra. E Isabela, embora mais nova,ajudava muito a irm que, ainda que cega, era dotada de um

  • temperamento forte e tentava fazer tudo o que os outros faziam;esforava-se para ser auto-suficiente e independente.

    Com eles morava Vov Xandinho, pai de Rose. Sr. Ale-xandre, que todos carinhosamente chamavam de Xandinho, erauma pessoa muito boa, trabalhava ajudando o genro, era com-preensivo e estava sempre auxiliando todos. Amava os netos.Tinha duas filhas: Rose e Mariana. Mariana morava perto, naencosta da montanha, num pequeno stio onde o genro criavaum pequeno rebanho de gados. E ela lhe dera trs netos: Martinho,Onofre e Joaquim, o seu preferido Kim.

    De sua casa, Xandinho podia ver as montanhas, no eramaltas e em alguns lugares havia muitas pedras.

    Estava aps o almoo sentado a descansar, olhava asmeninas brincarem. Sentiu muita pena da neta cega.

    - Hora de ir para a escola! - gritou uma das mes e abrincadeira acabou.

    - Vov! O senhor est aqui?-gritou Regina.- Sim, aqui, menina!Regina caminhou guiada pelo som da voz do av. A fam-

    lia tinha cuidado para no deixar nada estranho, nenhum objetolanado pelo caminho, pela casa ou arredores, e a menina cami-nhava normalmente.- Vovzinho...

    Sentou-se perto do av e colocou a cabea no seu colo.Aps uns minutos de silncio, Regina indagou:

    - Kim vir hoje? Sinto falta dele.- Dever vir...- Como ele, vov?- loiro como minha filha Mariana, mas os cabelos

    tm reflexos avermelhados. Tem algumas sardas douradas pelorosto-o que lhe d um ar travesso e inteligente-e os olhos soverdes. um garoto bonito! Por que pergunta? Sabe l, meni-na, como so as coisas, as pessoas?

    - No sei explicar como e por qu, mas sei - respon-deu Regina. -Embora nunca tenha visto Kim, consigo imagin-lo. Como tambm imagino Isabela e eu. Me vejo. S que svezes, vov, me vejo como moa, com roupas compridas, retase claras. Tambm sou morena, cabelos cortados retos e muitonegros...

    (1) Para escrever esta histria verdica, pesquisei com pessoasdesencarnadas e encarnadas que foram e so cegas. Cada umasentiu a cegueira de um modo. O esprito no cego, nunca defi-ciente, mas o perisprito, que modificvel, pode no ser perfeito. ele, o perisprito, que normalmente d a deficincia ao corpo fsi-co. Mas h casos que, por deciso do indivduo, pode ele ter operisprito perfeito e ter o corpo com alguma anomalia. E para apessoa privada de um dos sentidos, no nosso caso, a viso, seumodo de senti-la depender muito de ter ou no o perisprito defi-ciente. Se o corpo perispiritual for perfeito, desprendendo-se docorpo fsico pelo sono, v tudo e consegue muitas vezes passarpara o crebro fsico somente algumas imagens. Porque, se cegode nascena, o crebro no registra a luz, cores e formas. J paraas pessoas que tm tambm o perisprito deficiente, torna-se muitomais difcil imaginar o mundo colorido e as suas mltiplas formas.Regina, nossa personagem, no tinha o corpo perispiritual defici-ente e, como era muito sensitiva, conseguia imaginar pessoas e

  • objetos quase que com acerto. (N.A.E.)12 Antnio Carlos Vu do Passado

    - L vem voc de novo... Entendo, minha netinha, eu aentendo... -disse Xandinho com carinho.

    Sr. Xandinho foi trabalhar e Regina com Isabela ficaramna frente da casa brincando. Afastaram alguns metros e Isabelaia descrevendo o caminho.

    - Estamos a alguns metros da estrada, nossa esquer-da est a cerca da horta, estamos frente dos canteiros de alfa-ce. Cuidado, Regina, aqui tem buraco...

    Mas avisou tarde. Num tropeo, Regina caiu, no ma-chucou, mas irou-se. Bateu com as mos fechadas no cho v-rias vezes.Desculpe-me -pediu Isabela, lamentando-se.-Noa guiei direito.- Voc no tem culpa! Sou uma burra!- Voc no burra, ceguinha! - falou a irm triste-mente.

    - No se lamente, Isabela. Eu que alm de ser cegasou distrada. Por que tenho que ser cega? Por qu?!

    Continuou deitada no cho de bruos e bateu novamenteno solo. Isabela pacientemente esperou a irm se acalmar. A,novamente vieram algumas lembranas. Regina se viu adulta,m, colocando algo txico, um pozinho, num pote de pomadaque um homem usava para passar nos olhos. Ele passou, sentiuqueimar seus olhos e ficou cego, tendo muitas dores.

    Levantou-se assustada, colocou a mo no ombro da irme disse:

    - Leve-me para casa, Isabela!Nos arredores do seu lar, deixou Isabela e gritou pelo

    av, que veio rpido.- Que houve, Regina?- Ca...- Machucou-se?-indagou o av, preocupado.

    13

    - No! S que vi de novo, vov. Eu era a mulher boni-ta e m. Foi s ficar nervosa e indagar o porqu de ser cega, vitudo de novo.

    - Conte-me tudo, Regina.A menina acomodou-se perto do av. Suspirou triste.

    Depois mais calma, falou:- No sei explicar o que acontece comigo. Recordo,

    mas nas minhas recordaes vejo. Tenho a certeza de que sou amulher, a moa. Sou pobre, mas muito bonita, quero casar comum jovem rico s pelo dinheiro. Fao de tudo para conquist-lo, mas o pai dele desconfia das minhas intenes e comea aatrapalhar meus planos. Sabia que este senhor, o pai do meupretendente, tinha uma doena nos olhos e que passava umapomada neles todas as noites. Planejei uma vingana. Pagueicaro por um p a uma mulher que fazia remdios, venenos, comervas. Fui casa do pai dele, num horrio em que sabia que eleno estaria; conversei amavelmente com meu namorado e pedipara ir ao quarto de banhos. Mas me dirigi rpida ao quarto domeu futuro sogro e coloquei o p no seu remdio. Voltei salacomo se nada tivesse acontecido. Nestas lembranas, as coi-

  • sas, os objetos, so muito diferentes do que so agora. Estemeu vestido vai at o joelho; l, vejo-me usando uma roupa queia at os ps, reta, e fazia muito calor. Tal como planejei, noiteeste homem passou o remdio nos olhos e teve uma queimaduraterrvel, sentiu muitas dores e ficou cego. Desconfiaram de mim,mas nada provaram. O filho deste homem acabou no me que-rendo, eu continuei m e fiz muitas coisas erradas. Vov, quan-do tenho essas lembranas, me vejo perfeitamente, meu nariz,boca, meus olhos, tudo, s no vejo o rosto do homem queceguei. No vejo seu rosto!

    - No sei lhe explicar o que acontece com voc, Regi-na - disse o av. - melhor no falar isto a ningum, no enten-

    14 Antnio Carlos

    dero. Talvez um dia venhamos compreender tudo isto e ficarmais fcil.

    - Vov, por que tenho medo do papai? Tenho receiode que ele me castigue, porm nunca o fez. Ele to bonzinho!

    - No sei... - respondeu o av, coando a cabea,pensativo.

    Um tanto desolada, Regina caminhou de volta a casa; emvez de entrar, sentou-se num banco encostado na parede, debai-xo da janela da cozinha. Ali ficou quieta a cismar. Ouvindo seuspais na cozinha conversando, prestou ateno na conversa.

    - Rose-disse o pai-, preocupo-me muito com Regi-na. Gostaria de ajud-la, s que no sei como. Se pelo menos omdico tivesse dado alguma esperana...

    - Voc j faz demais, Afonso - respondeu a me. -Foi com muito sacrifcio que ajuntou o dinheiro para lev-la capital do nosso estado e pagar a consulta daquele mdico im-portante. S eu sei o tanto que trabalhou, aqui na nossa chcarae no emprego provisrio, com o nosso vizinho.

    - E por ela faria e farei mais! Se pudesse, trocaria meusolhos pelos dela. Trocaria feliz, ficaria de boa vontade cego nolugar dela.

    - Voc um excelente pai, Afonso - disse a me. -Regina o ama!- No sei - respondeu o pai -, s vezes ela me pareceto arredia...

    Mudaram de assunto. Regina escutou quietinha e as lgri-mas escorreram pelo rosto. Meses atrs tinha ido com seu pai auma cidade grande. Ficou contente com o passeio, com a via-gem. Embora estivessem todos esperanosos, ela no se entusi-asmou, tinha a certeza de que continuaria cega. O mdico foimuito atencioso e respondeu tentando ser o mais agradvel pos-svel, quando ela indagou se voltaria a enxergar.

    Vu do Passado

    "No, Regina, seus olhos no tm vida, no h qualquerpossibilidade de voc voltar a enxergar."

    No se importou. Sabia, sentia que no teria chances. Masseu pai chorou, o mdico a deixou com a enfermeira e foi con-versar com ele.

    Gostou do hotel, s que em lugares estranhos no cami-nhava sem auxlio e teve que aceitar a ajuda do pai. Estava con-

  • formada, sempre esteve, e queria viver da melhor forma que lhefosse possvel. Mas sentia a sinceridade do pai, quando diziaque ficaria, se possvel, cego em seu lugar. Emocionou-se.

    Novamente as lembranas vieram...Estava em frente de um homem, pai do seu pretendente, e

    este lhe falava:"Se voc no o ama, largue-o...""Amo-o e ele me ama" - respondeu cnica."No acredito, farei tudo para separ-los."Olhou-o bem, agora vira o rosto, sabia quem era. De-

    pois, viu-o cego, com os olhos brancos, sem vida, cicatriz dequeimadura.

    Regina sentiu que tudo isto havia passado h muito, muitotempo. Sentindo remorso por este erro, procurou o homem quecegou, encontraram-se. Ele lhe disse bondosamente:

    "J a perdoei, tudo isto passou h tanto tempo... Naquelaencarnao, no fiquei cego por acaso. Minha cegueira tambmteve motivos. Colhi o que plantei. No melhor voc, em vezde sofrer a cegueira, trabalhar fazendo o bem? Resgatar seuserros com o trabalho edificante?"

    "H muitas encarnaes que planejo, antes de reencarnar,fazer o Bem e me perco. Fao planos de ser boa, de fazer oBem e, na carne, deixo para depois; envolvo-me nas ilusesmateriais e volto triste e derrotada. Tive muitas oportunidadesde fazer o Bem, todos ns temos, s que no fiz. Agora, volto16 Antnio Carlos

    cega. No s resgato meu erro, como tenho a certeza de que acegueira me far mais humilde e prestativa. Sentindo esta defici-ncia, quem sabe aprendo a ser mais benevolente."

    "Sendo assim, reencarnarei e a receberei por filha, mas...voc poder esquecer..."

    "No. Preparei-me para recordar"-disse ela, resoluta."Sente-se forte para isto?"-indagou ele com carinho."Tenho que tentar, j perdi muitas oportunidades. Mas, ten-

    do-o por pai, eu me sentirei mais forte.""Eu no lembrarei...""Mas continuar bondoso"-ela falou.Antes de reencarnar, quando estava no Plano Espiritual,

    recordou todo seu passado, muitas de suas reencarnaes. Sentiumuito remorso por ter feito algum ficar cego. Procurou a pes-soa que atingiu e pediu perdo. Foi recebida com carinho, esteh muito havia perdoado e quis ajudar o desafeto do passado,atando laos de carinho e amor, tornando-se, assim, um grandeafeto.

    - Regina, que faz aqui? Est quase na hora do jantar-indagou o av, que viera do quintal para a casa.

    - Vov, vovzinho-disse a menina-, lembrei... Ago-ra sei quem era o homem que ceguei, era meu pai.

    - Seu pai! -exclamou o av. - Regina, embora o FreiManoel negue, porque a Igreja dele no aceita, tenho pensadoque Joo pode ter razo. Joo de uma religio, a Esprita, queacredita que Deus nos criou dando oportunidades de voltarmuitas vezes num corpo de carne, como este agora. Ele diz quesomos espritos eternos e que no vivemos uma vez s. Ele mepareceu coerente. Que uma vida de quarenta ou sessenta anosperto da eternidade? Viver aqui estes pouquinhos anos e... de-

  • pois... ou o cu, ou o inferno. Segundo ele, nascemos e morre-mos muitas vezes em corpos diferentes. Isto se chama reencar-

    Vu do Passado 17

    nao. E disse mais: que Deus muito justo e bondoso, criou-nos perfeitos; ns, com nossos erros, que atramos as dificul-dades e deficincias. E que muitas religies, principalmente asorientais, de outros pases muito longe daqui, acreditam nestefato.

    - Este Sr. Joo me parece certo. Ao ouvi-lo falar, mepareceu que isto verdade. Faz sentido! Quero crer nisto, mais humano. Se isto a, a reencarnao, existir mesmo, entono estou louca e nem imagino. Errei no passado e Deus bon-doso no me mandou para o inferno. Deve existir uma causajusta para ter nascido cega. Vov, converse mais com este se-nhor, preste ateno e depois me fale tudo. Tambm no voudesconfiar mais do papai. Ele bondoso!

    - Seu pai mesmo bondoso e muito honesto. Talvezsua desconfiana fosse porque voc lhe fez mal no passado etemia que ele revidasse. Mas Afonso superou isto. Vamos en-trar, o jantar est pronto.

    - Est parecendo que chorei?-Regina indagou.- No.- Meus olhos so mortos, mas choram...Entraram e o jantar foi servido. Regina alimentou-se quie-

    ta, o pai se preocupou, porque ela estava sempre sorrindo econversando. Ele indagou:

    - Alimentou-se direito, Regina?- Sim, paizinho. Comi tudo. -Num impulso, levantou-

    se, aproximou-se dele e o beijou. -Amo o senhor! .Afastou-se e Afonso, que nunca recebera um agrado da

    filha, a olhou emocionado, com lgrimas nos olhos.18 Antnio Carlos

    II

    O MENINO QUE ADIVINHAVA

    Kim subiu correndo a encosta da montanha, com seu en-tusiasmo de garoto de oito anos. Ia ao encontro de seus irmos,j moos, que naquela hora estavam trabalhando no pasto. Se-guia contente e nem reparava na belssima paisagem, pois tudoaquilo fazia parte do seu cotidiano. Nascera ali e conhecia todosos lugares e habitantes.

    Chegara da escola, almoou rpido e teve a permisso dame para ir visitar o av, mas antes tinha que levar o almoo aosirmos.

    Tropeou, escorregou e quase caiu.- Ah! Se estivesse chovendo! -exclamou alto. -Bem,

    se chovesse, no correria assim!Sentou-se por instantes numa pedra e j ia continuar a

    corrida, quando viu sua frente seu pai discutindo com umhomem mal-encarado e barbudo, que lhe era completamentedesconhecido. Seu pai estava nervoso e com medo. Kimolhou-o bem e o viu jovem, parecido com seu irmo Onofre.Na discusso, o barbudo pegou um enorme punhal e avan-

  • ou ameaadoramente para seu pai. Os dois rolaram e obarbudo caiu em cima da terrvel arma. Seu pai, apavorado,

    Vu do Passado 19chorou, enterrou o barbudo e colocou em cima uma pedra,aquela em que estava sentado.

    Kim levantou-se rpido, observou tudo e, pronto, no viumais nada; no tinha nada ali, nem o pai, nem o barbudo e nema p. Esfregou os olhos, olhou tudo novamente.

    "Que vi?! Ser que aconteceu ou vai acontecer?"Quis chorar, desistiu, no sabia por qu. Mas no cho-

    rava, no conseguia. Talvez por ser homem, pensou, homemno chora, diziam-lhe sempre. Mas no era por isto que no ofazia. Chorar, como dizia o av, do ser humano e no impor-ta que este ser humano seja homem ou mulher. Tinha mesmoque falar com o av e com Regina, eles o entendiam. Temiapor seu pai, mas como preveni-lo? Ainda lhe doa a surra queo pai lhe dera quando contou ao Sr. Jos, o dono do armazm,que foi Dona Mariquinha que furtou o par de tamancos. Tam-bm, recordou os conselhos de Dona Leoccia, sua bondosaprofessora, depois que descobriu que foi Reinaldo quem que-brou a carteira.

    "Joaquim, no d uma de cigano! No fica bem para omelhor aluno da classe delatar colegas. Se voc descobrir algo,mesmo que seja errado, cale-se, o melhor."

    - Ah! - suspirou ele, falando alto. - Se ela soubesseque estudo, sim, que gosto de aprender, mas que sei tudo o quevai cair nas argies... Talvez no mais me chamasse de inteli-gente. melhor no falar nada ao papai, vigiarei ele e o defen-derei deste homem mau.

    Kim pensou no seu pai, este estava envelhecido, quaseno falava e nunca ria.

    Correu, entregou o almoo aos irmos e rumou para acasa dos tios. Chegando foi gritando pelo av.

    - V Xandinho! V Xandinho!Encontrou primeiro a prima Isabela. Adorava esta prima,

    20 Antnio Carlos

    que para ele era linda como a flor mais bonita que existe. Queriaque ela fosse sua irm. A pequena, ao v-lo, correu ao seu en-contro.- Kim, machuquei o meu dedinho!

    Pelo olhar da menina, podia ver que o amor era recpro-co. Os dois se queriam muito bem. Kim a pegou, beijou e so-prou o dedo machucado.

    - Coitadinha! - exclamou Kim carinhoso. - Isabela,onde est o vov?

    - L no quintal.- Kim! Voc no vem me cumprimentar?Regina estava na porta. Kim colocou a pequerrucha no

    cho e foi at a outra prima.- Oi, Ceguinha! Como vai, Regina?- Bem, e voc?Kim no respondeu, no estava nada bem, no quis pre-

    ocupar a prima, tambm gostava muito dela. E sempre que po-dia a ensinava. Ela queria muito aprender, ir escola, mas no

  • podia; para no deixa-la triste, o que aprendia tentava passarpara ela.

    - Vou ensinar voc a contar at cem hoje. Volto logo,vou conversar com vov.

    Isabela olhava Kim maravilhada. Para ela, o primo eratudo; acompanhou-o com os olhos e Kim foi para o quintal,chamado pelo av.

    - Aqui, menino! Pare de gritar!- Vov-foi logo falando-, vi algo impressionante. No

    sei o que fazer!- Voc de novo!Suspirou. "Ora", pensou Xandinho, "por que tenho dois

    netos to diferentes? To esquisitos?" Parou com o trabalho,abriu os braos amorosamente e o menino refugiou-se neles.

    Vu do Passado 2

    - Vov...O av era o nico amigo em quem podia confiar. Regina

    tambm o entendia. Mas aquele assunto era srio demais parauma menina. O av o escutava, no o chamava de mentiroso eaconselhava. E ele no sabia como agir, ningum via as coisascomo ele.

    Xandinho arrependeu-se de ter dito "voc de novo". Pelasegunda vez, naquela semana, havia dito para Kim e Regina.Seus netos no tinham culpa, pelo menos naquela existncia.No momento no faziam nada de errado. Se tivessem culpa,deveria estar l no passado, que ficou para trs... Se ele os amava,embora sem compreender o que ocorria, tinha que ajud-los.

    - No se aborrea, meu neto. Conte-me tudo! Acre-dito em voc e o ajudarei. Vem, sentemos aqui nesta sombra.

    Xandinho deixou a enxada de lado, escutou o neto, queagora mais calmo contou a viso que tivera perto da pedra.

    - E agora, vov, que fao? Corro o risco de falar elevar outra surra. Se no falo, papai pode ser morto ou matar.

    - Voc no viu seu pai jovem? Ento j aconteceu. Pro-feta tambm v o passado.

    - Prof-t? Qu?-perguntou o menino.- Nada, esquece, chamo-o assim porque gosto. Me

    deixe pensar uns momentos.Kim pegou um pauzinho e se ps a rabiscar o cho, seno

    teria notado que o av ficara nervoso. Xandinho ps-se a re-cordar.

    Fora um episdio triste e acontecido com o genro h mui-tos anos. Foi quando acampou perto da cidade um bando deciganos. E um deles, Ivo, apaixonou-se por sua filha Mariana,que j era casada com Sebastio e me de dois filhos pequenos.Assediou-a, deixando todos inquietos.

    Quando partiram, todos ficaram aliviados, mas o tal ciga-22 Antnio Carlos

    no voltou para raptar a moa. No a achando em casa, subiu amontanha pensando encontr-la; porm encontrou foi com Se-bastio, discutiram e este morreu. Aconteceu como Kim disse-ra, como o garoto vira. S sabiam disto ele, a filha e o genro.Agora, pensou, necessitava tranqilizar o neto.

    - Kim, meu neto, preste ateno no que vou lhe falar.

  • O que voc viu j aconteceu. Seu pai no um criminoso, de-fendeu-se somente, h tempo

    Contou-lhe tudo. O bondoso velhinho preferiu falar todaa verdade ao neto. Nada como compreender a verdade. Kimescutou silencioso, prestando muita ateno.

    - Pobre papai! O cigano no lhe d sossego.- Por que diz isto, Kim? - indagou o av. - O que

    voc sabe?- Nada, vov, s pressinto. Papai triste, calado, esofre.

    verdade. Porm digo a voc que agiria como eleagiu. Eu o abeno por ter ele defendido minha filha. O queaconteceu foi um acidente. Voc entendeu? Ningum, ningummesmo, nem Regina pode saber.

    O av sabia que ele e Regina, amigos confidentes, noescondiam nada um do outro.

    - No falo a ningum, nem ao papai, nem a mame,eles no precisam saber que adivinhei. Vov, tem ainda perigode papai ser preso?

    - No sei - respondeu Xandinho preocupado. - Operigo maior o bando saber e querer vingar do seu pai. Ciga-nos so ruins.

    - Em todas as raas h bons e maus - respondeu omenino. - O senhor lembra da histria do Baro que viveu nes-tas terras? Ele era rico, dizia ser de raa pura, sangue disto edaquilo, e foi to mau, to ruim.Vu do Passado 23

    - verdade. Kim, voc me promete no contar a nin-gum o que viu?Prometo!- Amanh vou passear na cidade. Quer ir comigo?Pedirei a seu pai.Quero! At logo, vov. Agora vou ensinar Regina.

    Saiu correndo, Xandinho ficou preocupado, mas voltouao trabalho. Pensou; "Vou pedir ajuda ao Frei Manoel, o ni-co que conheo que tem mais instrues. Tenho que ajudar es-tes meus dois netos."

    Kim foi brincar um pouco com Isabela, depois foi paraperto de Regina, que j o esperava.

    - Irei hoje ensin-la a contar at cem. Trouxe as pedri-nhas que faltavam-disse Kim.

    - H bem mais nmeros do que cem, no h? - inda-gou a menina, querendo aprender.

    - Se h! Tem tantos nmeros que no acabam, so in-finitos, porque sempre se pode colocar mais um e aumentar acontagem. Haja pedras!

    - Ora, s imagin-las.- mesmo! -disse Kim suspirando. -Estas cem nos

    bastam. Voc inteligente! Pegue-as! Vou ensinar as formas.Est redonda, igual ao zero, a letra "o"; e a letra "a" s prum rabinho.

    - Que rabinho? Eu tenho?- Bem, s quando a tia lhe prende os cabelos. Na letra

    "a" um trao curvo. Vamos contar...Kim cursava o segundo ano da escola. Tudo que apren-

    dia tentava ensinar prima cega. Inteligente, ela ia aprendendo.Aps ter ensinado prima, Kim foi para casa. Naquele dia pres-

  • tou ateno nos pais, eles no eram alegres como os tios; cala-dos, quase no falavam, s os trs conversavam, ele e os dois24 Antnio Carlos

    irmos. Olhou bem a me, ela preparava o jantar, estava tristecomo sempre. Achou-a envelhecida. O pai chegara do campo.Triste e calado como de costume, sentou-se numa cadeira, es-tava cansado. Num impulso, Kim foi para perto dele e o beijou.- Amo-o, papai!O pai ensaiou um sorriso e passou a mo em sua cabea.

    "No", pensou, "no vou contar a mais ningum, no queroo meu pai preso, o melhor esquecer o que vi."

    No outro dia cedo, sbado, no tendo aula, o av foibusc-lo para passear na cidade conforme combinaram. Foramna velha charrete do av. Num solavanco a charrete empinoupara um lado.

    - Vov Xandinho, o senhor precisa consertar isto a. -Kim mostrou a armao que sustenta a charrete. - Ela vai virarcom o senhor.

    - No sei fazer isto, j tentei consert-la e no conse-gui. Gosto desta charrete, no quero me desfazer dela, trans-portei nela sua falecida av e minhas filhas. Voc est vendoalgum acidente? Irei cair?-perguntou o av.

    - Sim, vejo-o cair da charrete, mas no ir morrer.- Ento no tenho com que me preocupar.- Tem sim, seu brao, vov, com o acidente ficar imo-

    bilizado, no ir mais mexer com ele -disse Kim, srio.- Ora - disse Xandinho -, no me aborrea, vamos

    falar de outra coisa. Este assunto muito srio para um garotode oito anos.

    Embora acreditando no neto, Xandinho resolveu continuarusando a charrete. No tinha dinheiro para consert-la e nem paracomprar outra. Depois, gostava muito de ir at a casa paroquialconversar com seu amigo Frei Manoel, e, a p, cansava muito.Chegando, dirigiu-se casa do amigo e deixou o neto vontade.Este correu para um grupo de meninos e foram jogar bola.

    Vu do Passado 26

    A casa paroquial era simples, seu amigo sacerdote erapobre. Bateu e foi Frei Manoel que lhe abriu a porta. Cumpri-mentaram-se contentes.

    Sentados na sala, Xandinho foi direto ao assunto que lhetrouxera ali.

    - Frei Manoel, estou preocupado com meus netos,Regina e Kim. A menina diz que v e cega. Nas suas vises elase v adulta, recorda coisas que seria impossvel ela saber. Des-creve cenas incrveis como se ela realmente j tivesse vivido emoutros lugares. Joaquim um profeta. Diz o futuro com facilida-de. Agora mesmo me disse para ter cuidado, seno irei cair dacharrete. Ele me viu caindo, como tambm disse que no voumorrer com o acidente, porm ficarei com o brao imobilizado.

    - Ora, acho que est se preocupando demais. Reginafala o que talvez tenha escutado, ela me parece muito fantasiosa.E qualquer um pode prever um acidente com sua charrete, elaest velha e nossas estradas, ruins.

    - E o caso dos tamancos? Ele soube quem os furtou-

  • disse Xandinho preocupado.- Isto ... -falou o frei pensativo.- um profeta!- Profeta, meu caro Xandinho, aquele que prediz o

    futuro. Denomina-se mais aquele que prediz fatos religiosos. NaBblia h inmeros profetas.

    - isto que me preocupa, todos foram mortos ejudiados, falou Xandinho.- Nem todos... -rebateu Frei Manoel.Quase todos. Kim um menino que profetiza,adivinha.Talvez seja melhor o termo adivinha. Esquea o pro-feta- falou o frei.Quando ocorreu o roubo do tamanco, ele estava em

    26 Antnio Carlos

    sua casa. J recomendei a ele no falar mais nada do que v.Coitada da mulher! Passou uma vergonha- disse Xandinho.- Porm roubou! -replicou Frei Manoel.- Ele tambm adivinha o passado!

    - Adivinha o passado?! - falou Frei Manoel, estranhan-do. - Adivinhar no s o futuro? O passado passou.

    - Bem, que ele viu com detalhes um fato que ocorreuh anos atrs, antes dele nascer. E me contou direitinho.

    - Que fato este? Conte-me-pediu o padre.- No posso, segredo de famlia.- um fato incomum?- ...- Ocorreu em um lugar um tanto deserto?- O frei con-

    tinuou indagando.- Foi!- Ele deve ter escutado de algum.- Impossvel...- falou Xandinho convicto.- Bem, talvez ele tenha feito uma psicometria. Leu no

    Plano Astral de um objeto ou lugar que se passou. Entendeu,Xandinho?

    - No- respondeu Xandinho aborrecido.- No tem importncia, o assunto mesmo complica-

    do e nem eu entendo direito. Parece que existem pessoas queestudam isto. Dizem que tudo que acontece fica gravado e hpessoas que podem ler.

    - E normal pessoas fazerem isto? - perguntouXandinho, curioso.

    - No-respondeu o frei srio.- Ento, meu neto no normal. Isto assunto muito

    complicado. No quero v-lo morto como os profetas.- Os tempos so outros, embora dizer a verdade nem

    sempre agrade a todos. Kim no anormal, ele s deve ter algo

    Vu do Passado 27

    que no comum. Aconselhe-o, como tambm Regina, a nofalarem o que vem.- Aconselho-os a mentir? -perguntouXandinho.- A mentir no, a no dizerem o que vem.

    - Voc, Frei Manoel, no est me ajudando muito. O

  • menino j levou surras por isto. E Regina, alm de cega, sofrepor ver coisas. Talvez o Joo, aquele que Esprita e diz queexiste l uma tal de reencarnao, que vivemos muitas vezes emcorpos diferentes, tenha uma certa razo.

    - Ora, Xandinho, voc no deve acreditar nisto.- Ser que no prefervel do que acreditar num Deus

    carrasco que fez minha neta inocente ser cega? Por qu? -pergunto. Ele a fez num dia de mau-humor? Foi o acaso? Ele afez cega e no se apiedou pela menina ser privada da viso?Isto l justia? Acharia Deus mais justo, se no castigasseinocentes, e se no deixasse este "acaso" acontecer a torto e adireito. Agora, se Deus bom e justo, Regina deve terreencarnado muitas vezes, ter feito algo bem errado e nestavida ter tido a cegueira como resultado. S que, por algummotivo, ela recorda...

    - Ora, Xandinho, para tudo devem existir explicaes.No v procurar o Joo. Vou pesquisar o caso deles, tiro con-cluses e acharei soluo.

    Conversaram mais um pouco e Xandinho despediu-se,fez suas compras e voltaram para casa.Kim estava contente com o passeio. Amava muito o av.

    - Kim, vou lhe pedir algo, ficarei muito feliz se vocfizer. Quero que tudo que vir conte primeiro a mim, eu decidireio que fazer. Voc j um homenzinho, estudioso e inteligente,mas no entende muito das coisas como eu. Frei Manoel vai nosajudar, vamos acabar com estas coisas estranhas que aconte-cem com voc. No quero que o castiguem por isto. Enquanto28 Antnio Carlos

    voc tiver estas vises, ou o que for que sejam, conte para mim,eu o ajudarei.

    - Vov, Frei Manoel no ir me ajudar. Acho que nonecessito da ajuda que ele pode me dar. Isto coisa minha!

    - Como sabe, Kim?-perguntou Xandinho, srio.- Acaso, vov, no sabemos o que nosso? Isto meu!Abaixou a cabecinha pensativo. Xandinho procurou dizer

    algo que animasse o neto, porm calou-se, no soube o quedizer. Talvez, concluiu o bondoso senhor, o garoto tivesse razo;sabemos o que possumos, s vezes, no queremos aceitar, massabemos.

    Mudaram de assunto e a alegria voltou a brilhar no rostinhode Kim.

    Passaram sete dias e l vem correndo Kim atrs do av.- Vov, vov, acuda-me... Onofre quer me bater.- Que aconteceu?Xandinho largou rpido o que estava fazendo e Kim abra-

    ou suas pernas. Onofre chegou, no falou nada, como tambmno teve coragem de pegar o garoto.

    - Que houve, Onofre?-perguntou Xandinho preocu-pado. - Por que quer bater no menino?

    - Vov -disse Onofre-, no quero bater nele, s que-ro que me explique.

    - Eu vi! Eu vi! - gritou Kim.- Como, moleque? Como?-falou Onofre nervoso. -

    Vov, Kim me disse ter visto Rafaela abraada a outro homem.Rafaela nega com veracidade. Quero que ele me explique. Sementiu, bato nele. Rafaela me ama, vamos noivar e casar. Em

  • quem devo acreditar, vov, em Rafaela ou em Kim?Calma! - apaziguou o av. - Sentemos aqui. Kim,

    me responda: -Onde voc viu Rafaela com outro homem? Ondeestavam?

    Vu do Passado 29

    - Na frente da casa dela. Tinha muitas pessoas em vol-ta, todos alegres e com roupas novas. Rafaela estava com floresna cabea. Estava bonita!

    - Vov-disse Onofre-, Rafaela no usa flores na ca-bea e por estes dias no houve aglomerao de pessoas suaporta. Depois, ningum viu.

    - Calma, Onofre! - disse Xandinho. - Kim, me res-ponda: - Voc tambm viu Onofre entre estas pessoas?

    - Acho que no! No sei! -respondeu Kim sincero.- Voc sonhou? Viu mesmo? Foi passado ou futuro? Ser

    que no era o casamento deles?-continuou indagando o av.- No sei, vov, no sei... - Kim aconchegou-se no

    colo do av e este o abraou.- Onofre, preste ateno - disse o av. - Quando

    moa coloca flores na cabea porque vai casar. Kim a viuvestida de noiva. Ele apenas sonhou, como pequeno no sabedistinguir sonho da realidade. No brigue com ele! Esquea!

    - Se ela vai casar e se est abraada com outro, noser comigo-disse Onofre, triste.

    - Ora, sonhos so sonhos! -exclamou o av, tentandotranqiliz-lo. -Voc casar com ela, com certeza. Agora fa-am as pazes e esqueam deste assunto.

    - Est bem - disse Onofre. - No estou mais bravocom voc, Kim. No tem culpa. Se viu, est visto. esperarpara ver. Como ruim saber o futuro...

    Levantou-se e foi embora.Kim, que mais viu que no me contou? - indagouo av.

    - Vi mame doente e uma grande avalanche de terras epedras cair da montanha.

    - No pedi para no dizer nada do que v? Quase queOnofre lhe bate-disse o av.30 Antnio Carlos

    - Vov, s contei a ele porque vi!- Voc viu o futuro, Kim, no tem o direito de contar.

    Onofre ama Rafaela, est sofrendo antecipadamente.- No quero que Onofre sofra! - disse o menino triste.

    -No quero que ningum sofra!- Isto passa, logo ele esquece. Profeta pequeno no

    sabe distinguir passado, presente e futuro.Profe... o qu? - perguntou Kim. - Por que me cha-mam disto?No vou cham-lo mais! Esquea voc tambm esteassunto.

    - Vov, no quero mais ver isto. Queria ser igual aosoutros meninos. No quero ver mais nada. Por que vejo, vov?Por qu?

    Xandinho alisou seus cabelos avermelhados, beijou suatesta.

  • - Vou ajud-lo, Kim. Vou tentar...Kim foi brincar com as primas. Xandinho os olhou com

    amor.Ainda bem, pensou, que Regina estava calma naqueles

    dias. Depois que teve aquelas vises, estava em Paz e muitoamigado pai, que pelos carinhos da filha estava muito feliz.

    - Ah, meu Deus! -exclamou Xandinho alto. -Inspire-me para que possa ajudar meus netos!Vu do Passado 31

    III

    O PASSADO DE ROSE

    Kim passou a ver os acontecimentos que ocorriam suavolta com mais freqncia. Mas, obedecendo ao av, passoutambm a evitar de coment-los.

    Na escola, sabia sempre o que ia cair nas avaliaes, comotambm quem fazia isto ou aquilo. Evitando confuses, apren-deu a calar-se, mas s vezes, na sua inocncia, acabava falandoalgo que gerava alguns desentendimentos. Por isto, passou aprestar mais ateno no que falava. Seus amigos eram Isabela,Regina e o seu av.

    Regina, depois que lembrou dos acontecimentos, dasaes que resultaram na reao de sua cegueira, estava maiscalma e por nada reclamava. Entendera que ter sido privada daviso fora por justia e que ningum a estava punindo. Comotambm passou a ser mais espontnea e carinhosa com o pai,acabara o medo que sentia dele. Aprendia com Kim o que esteestudava na escola. Era uma garota alegre e conversadeira. Eraconhecida de todos, mas s vezes tinha por l os curiosos, que-rendo saber como ela fazia isto ou aquilo. Respondia com es-pontaneidade, era agradvel e todos gostavam dela.

    Num domingo, saram para passear. A tarde quente con-32 Antnio Carlos

    tribuiu para que as mes reunissem e levassem os filhos, todascrianas para brincarem perto do rio. Era um lugar bonito, asguas eram limpas e no local que foram havia um pedao com amargem de areias claras, que era chamado de prainha. Logoque chegaram a garotada foi brincar. Regina divertiu-se comeles, mas, quando entraram na gua, ela ficou sentada junto coma me e as outras senhoras. Tinha medo d'gua e a me temiaque por no enxergar a garota se afogasse.

    Ficou quieta escutando as mulheres conversando, falandode vestidos, enfeites, assuntos femininos. Regina ento viu suame. Ela teve uma viso da encarnao anterior de sua me.Viu-a muito enfeitada, orgulhosa de sua beleza, a danar, a can-tar e sair com muitos homens. Empolgada com a viso e com oassunto que escutava, comentou alegre:

    - Me, a senhora se lembra dos seus vestidos decota-dos? Aqueles que usa para danar e para sair com aqueles ho-mens? A senhora fica linda toda enfeitada. A senhora dormecom aqueles amigos?

    - Regina!!! - gritou a me apavorada. - Que diz, me-nina? Por que mente assim?

  • - Ora, s vi...Regina assustou, nem se deu conta direito do que disse. A

    me veio furiosa para perto dela e lhe deu duas fortes bofetadasno rosto.Mentirosa! Quando me viu sair assim enfeitada e comoutros homens?

    Rose comeou a chorar. As senhoras calaram apreensivase Regina no sabia o que dizer. Ficou quieta e comeou a chorarbaixinho. Rose aos gritos chamou por Isabela, que veio correndo.

    - Vamos embora! Regina me mata de vergonha. Meni-na mentirosa!

    - No ligue, Rose- disse uma das senhoras. -Talvezseja pela cegueira. Ser cega duro, no culpa dela inventarcoisas.

    - bem estranho inventar isto! Quem ser que lhe fa-lou isto?-comentou outra senhora.

    Rose nervosa pediu para Isabela guiar Regina e foramVu do Passado 33

    para casa.- Mato voc de bater-disse Rose chorando.Isabela tentou amenizar, mas no sabia o que havia acon-

    tecido. Ficou quieta e tratou de obedecer me. Regina ficoucom medo, os tapas da me doam e nem conseguia entender oque sucedera.

    Quando chegaram, Isabela com medo da me surrar Re-gina, gritou aflita pelo pai e pelo av que vieram correndo. Es-pantaram-se ao ver Rose chorando sentida. Entraram em casa.

    - Agora vou bater em Regina-gritou Rose, pegando acinta.

    O pai intercedeu:- Rose, acalme-se. Conte-nos primeiro o que aconteceu.- Afonso, que vergonha! Preciso dar uma lio nesta

    menina mentirosa. Sabe o que ela disse na frente de todas mi-nhas amigas? Que eu me enfeito, uso roupas decotadas, saiocom outros homens e que durmo com eles.

    Chorou mais alto ainda.- Regina- disse o pai-, porque disse isto?- Porque vi e achei que poderia falar-disse a menina,

    chorando tambm.- Como viu, Regina? -indagou o pai. - Primeiro voc

    no enxerga, segundo, sua me honesta, ouviu bem? Nunca usouroupas indecentes e nem se enfeitou. Por Deus! Sair com homens?

    - Ela no merece apanhar?-Rose falou continuando achorar. -Voc, Afonso, precisava ver os olhares desconfiadosde algumas de minhas amigas. Morro de vergonha! Logo eu que34 Antnio Carlos

    me orgulho de ser honesta e direita. Por nada deste mundo iriatrair voc. Meu lar me sagrado. No tenho nada com a vidade outras pessoas, a mim no importa se algum quer ser deso-nesto. Mas no eu! Sou honesta e quero ser sempre. (1)- Bata nela-disse Afonso-, mas no exagere!

    Rose bateu em Regina. Magoada, envergonhada, tevenaquele momento o mpeto de corrigir a filha. Para ela, Reginamentiu de maneira maldosa. Xandinho ficou quieto e, quandoRose olhou para ele, este chorava. Ela parou, s dera umas trs

  • cintadas. Dirigiu-se ao pai:- Foi o senhor que disse estas besteiras a Regina?- No foi ele-disse Regina. -Continue a bater, se qui-

    ser. Peo-lhe perdo! No fiz por mal, no queria envergonh-la.- Est bem, espero que tenha aprendido a lio e que

    minhas amigas esqueam-Rose falou triste.- Filha - disse Xandinho -, sua conduta a resposta.

    Talvez algumas delas a vigiem. Continue a proceder como sem-pre. Elas vo entender. E Regina dir a elas que inventou tudo.

    - O senhor tem razo! No vou mais bater em voc,Regina. Mas, se inventar outra, corto-lhe a lngua. A ficar cegae muda!

    Regina chorava e Isabela tambm. O av as acalmou, deu-lhes gua. Abraaram-se.

    - Vem, Regina-disse Xandinho-, vamos l no quin-tal. Voc fica, est bem, Isabela?

    - O senhor tambm ir surr-la? - perguntou apequerrucha, desconfiada.

    (1) Rose em sua encarnao anterior tinha sido uma prostituta e sofre-ra muito. Desencarnada, fez um propsito firme de voltar aencarnar e ser honesta. Conseguiu. Com estes acontecimentos,sentiu em seu ntimo o medo de voltar a errar. Mas quando quere-mos, podemos. Rose nesta existncia foi honesta, conseguiu ven-cer suas ms tendncias. (N.A.E.)Vu do Passado 35

    No, Isabela, s vou conversar com Regina. Vamos,menina!

    Regina j mais calma acompanhou o av. Tanto os tapascomo as cintadas lhe doam. Sentaram-se embaixo de uma r-vore e Regina abraada ao av chorou sentida. Xandinho acari-ciou e esperou que a menina extravasse seus sentimentos.

    - Vov, foi injusto! Nem sei por que mame ficou tobrava. Foi a primeira vez que apanhei.

    - Ser a ltima, Regina. O que voc disse foi muitograve. Descreveu sua me como se ela fosse uma prostituta.

    - Que isto?Xandinho explicou tudo neta, que voltou a chorar.- Ah, vov! Por que fui dizer aquilo tudo?- Regina, se voc viu seu passado, deve ter visto tam-

    bm o de sua me. Talvez Rose em existncia anterior fosseuma meretriz e agora se esfora muito para ser honesta, e seorgulha de ser. Talvez tudo isto tenha marcado muito nossa Rose.Regina, evite confuses, tudo que v, no fale. Aja nestas oca-sies como se fosse muda.- E assim que vou ficar. Mame disse que me cortara lngua.Ela nunca iria fazer isto. Mas ficou magoada.

    No falo mais nada. Posso ver, mas no irei falar mais.Juro por Deus que no falo!- Estjurado!-falou o av.-JurouporDeus,estjurado!

    Regina foi para casa, entrou na sala e pelas vozes perce-beu que o pai estava sentado ao lado de sua me. Foi paraperto deles e disse chorando:

    - Mame, peo-lhe perdo de novo! No sei por quefalei aquilo tudo! Veio na cabea. Prometo no falar mais bes-

  • teiras. Vou desmentir, direi a todas que sonhei.- Regina- disse o pai -, onde voc escutou isto?

    36 Antnio Carlos

    - No sei, papai, veio na cabea. No escutei de nin-gum.

    - No disse?-falou Afonso. -No disse, Rose, queRegina talvez seja vtima do diabo? Ele est tentando nossamenina. Vamos, Regina, vou lev-la para Frei Manoel benz-la.- Sim, senhor.

    E l foram Afonso e Regina para a casa paroquial. Afon-so explicou rpido o acontecido e pediu para Frei Manoel ben-zer a filha. Este o fez. Orou e jogou gua benta na menina, di-zendo:

    - Regina, no d importncia a estas vises ou seja l o quevier na cabea. Se as tiver, no fale a ningum. Certo? Promete?

    - Sim, senhor, prometo!- Sua filha vai ficar boa, Afonso, podem ir sossegados

    -falou Frei Manoel.Afonso foi embora esperanoso e Regina calada. Quan-

    do chegaram, a menina pediu ao pai:- Papai, posso ficar aqui fora?- Pode!Regina planejou ir ao rio. Logo que escutou barulho do

    pai entrando em sua casa, pegou o pau, quase uma bengala, queseu pai fizera para que tateasse o cho. Este objeto ficava en-costado na parede perto da porta da entrada. Regina no gos-tava de us-lo, mas era uma emergncia. Andou depressa, aoredor de sua casa, conhecia tudo e podia andar rpido. Depoisfoi devagar, tateando o solo com o pau.

    "Vou at a prainha, encontro a turma e digo j que menti eque arrependi, peo a todos que esqueam e que me descul-pem. Assim evitarei que mame passe mais vergonha ainda" -pensou Regina.

    Nunca tinha ido longe sozinha, mas achou que seria fcilachar o caminho. E andou sem problemas.Vu do Passado 37

    Kim estava com a famlia sentado na frente de sua casa.Descansavam na tarde do domingo. Os trs irmos conversa-vam e os pais, de vez em quando, falavam algo dando algumpalpite.

    De repente... Kim arregalou os olhos, levantou-se e ficouassim por instantes.

    - Regina! - gritou Kim - Meu Deus! Regina est sozi-nha perto do rio.

    - Impossvel - disse Mariana. -Como a menina esta-ria sozinha l?

    - Vou l!Gritou e saiu correndo. Martinho e Onofre correram atrs

    dele gritando que esperasse, mas Kim afobado correu em dis-parada.

    - U! - exclamou Regina alto. - Sinto cheiro do rio, esinto seu barulho, estou perto das guas, mas no escuto vozesda turma. Ser que vim parar em lugar errado? Talvez a prainhaseja logo adiante. Mas para que lado? Vou por este...

    - Regina! Regina! Pare a! No d mais nenhum passo!

  • - Pare! Pare!Regina parou e no se moveu. Logo todo ofegante Kim

    chegou perto dela.- Regina, por que est aqui? D-me sua mo!Onofre e Martinho chegaram tambm ofegantes pela corrida.- Regina, menina louca! Que faz aqui neste lugar peri-

    goso do rio?-indagou Onofre.- Perigoso? Mas no estou na prainha?-perguntou

    Regina, assustando-se.- Queria ir prainha?- falou Martinho. - Pois veio no

    lugar errado. A prainha mais para l. Venha, seguro voc evamos por ali, aqui cheio de pedras, perigoso.38 Antnio Carlos

    - Perigoso?! - falou Regina com medo.- , Regina - disse Kim -, aqui onde o rio mais

    fundo e tem muitas pedras escorregadias. Se andasse algunsmetros para frente, rumo ao rio, poderia escorregar e cair nele.Mas ande, venha!

    Andaram, saindo das pedras, e os trs ofegantes senta-ram para descansar.

    - Meu Deus! - exclamou Regina ainda assustada. - Secasse no rio, iria morrer! Como souberam que estava aqui?

    - Foi Kim - disse Martinho. -Ele a viu e correu, cor-remos atrs. Teve l outra esquisitice. Mas foi uma boa esquisi-tice, pudemos salv-la. Como foi que tia Rose a deixou vir aquisozinha?

    - Bem, eles no sabem. Resolvi vir e vim.- E quase morreu! -disse Onofre. -Regina, porque

    fez isto? errado!- uma longa histria. Mas como vo saber mesmo,

    vou lhes falar. Depois do almoo, vim com a turma na prainha.A, tive uma viso e falei, s que ofendi a mame. Resolvi virpedir desculpas s amigas dela e dizer que inventei.

    - Sua me a surrou?-perguntou Kim com d dela.- Levei uns tabefes!

    Coitadinha! - exclamou Kim sentido, e abraouRegina.- Masque disse para que a tia lhe batesse? - pergun-tou Onofre.

    - Falei que ela se enfeitava e saa com outros homens.- Exagerou, menina! - comentou Martinho. -Isto

    grave!- Mas ela veio se desculpar- defendeu-a Kim.- E quase morre! - retrucou Martinho.- Agora j descansamos, vamos embora - disse

    Onofre, levantando-se.- Queria ir prainha -pediu Regina.- J tarde, Regina-comentou Onofre. -Quem foi

    prainha deve ter voltado. Logo escurece. Vamos para casa, le-varemos voc. Os tios devem estar preocupados.

    Regina colocou as duas mos nos ombros de Kim e estea guiou. Na casa dela no tinham ainda percebido sua falta.Quando Afonso chegou, foi contar o acontecido na Igreja es-posa e ao sogro. Regina gostava muito de ficar pelo quintal eeles acharam que ela, aborrecida, estava em algum canto emredor da casa e no se preocuparam. Assustaram quando viram

  • os quatro chegando.- Tio Afonso-explicou Onofre-, estvamos em casa,

    quando Kim gritou que Regina estava perto do rio e saiu cor-rendo. Martinho e eu corremos tambm. Achamos Regina lnas pedras e estamos trazendo-a de volta.

    - Regina, minha filha! -exclamou Afonso. -Que fazia l?- Achei que podia ir prainha, queria me desculpar e...- Regina- Rose correu e a abraou-, no precisava

    se desculpar assim. Que perigo! Poderia ter morrido se casseno rio. No faa mais isto! Se sair de novo sem avisar, surrovoc!

    - No saio mais! -falou Regina timidamente.- Obrigada, Kim! - falou Regina comovida.

    - Vamos para casa, Kim - disse Onofre. -Mame deveestar preocupada. Samos correndo de l.Os trs irmos foram embora, contaram o acontecido aospais, desta vez ningum ralhou com Kim.

    A pedido de Regina, Isabela a levou casa de todos queestavam na prainha. E ela humilde e envergonhada desmentiu

    para todas as amigas de sua me. Terminava dizendo:- S queria chamar a ateno e inventei tudo.

    40 Antnio Carlos

    Escutou de tudo.- Entendo voc, Regina, no precisa se desculpar.- No precisa chamar mais ateno; por ser cega, cha-ma demais.

    - Que lhe sirva de lio! Rose no merece que umafilha invente tudo isto. A coitada j sofre muito tendo voc cega.

    Muito triste, Regina voltou para casa j na hora de dor-mir. No outro dia cedo, foi conversar com o av.

    - Regina, sinto muito tudo o que lhe aconteceu. Nolhe recomendei que no dissesse o que v?

    - Vov, jurei no falar mais e no falarei!- Isto, Regina! No falando evitar confuses. tarde Kim foi v-la.- Obrigada, Kim, voc me salvou.- Sabe, Regina, ontem foi a primeira vez que me ale-

    grei por ver o que acontece ao longe. Talvez no seja to ruimisto que acontece comigo.

    - Eu jurei e vou cumprir: no falo nunca mais nadadoque vejo.Nem a mim?-perguntou Kim.Nem a voc. No falo nunca mais, acontea o queacontecer.- Eu no jurei e nem voujurar.- E as surras? - indagou Regina.

    - Di, mas passa. Se voc tivesse morrido por eu noter falado, a dor no ia passar.

    - Kim, tente evitar confuses - pediu Regina.- Vou tentar entender o que posso ou no dizer. Vov

    ir me ajudar.Foram brincar. Os meses passaram rpido e o episdio

    desagradvel do passado, da encarnao anterior de Rose, foiesquecido.

    Vu do Passado 41

  • IV

    AS DIFICULDADES DE KIM

    Dois anos se passaram, Xandinho estava mais despreo-cupado. Pareceu-lhe que Regina sarara, nunca mais falou nadade esquisito; acharam que a benzeo de Frei Manoel fizeraefeito. Kim no dera mais problemas. Quando ele via algo, fala-va somente para o seu av, que tentava ajud-lo a convivermelhor com suas vises. Por isso nem foi procurar Joo, o Esp-rita. S que Regina continuou a ter suas vises, mas, de opinio,no mais as comentava.

    A horta de Afonso era bonita e bem cuidada e as pessoas dacidade iam muito l para adquirir verduras e aves. Regina ficava porali conversando e tentando ajudar a me e o av nas vendas.- Observe, Regina- disse Dona Tereza, uma compra-dora. - Pegue nos meus braos. Percebeu como so tortos?Regina passou a mo nos braos da senhora que queixava.- Tenho reumatismo, sinto muitas dores -continuou asenhora a explicar para a menina.

    Regina teve outra viso. Viu Dona Tereza como uma se-nhora poderosa, dona de muitos escravos. Andava sempre comum chicote nas mos, e estava sempre a chicote-los, quandosuas ordens no eram atendidas de imediato.42 Antnio Carlos

    Empalideceu e ficou segurando as mos de Dona Tereza.Acabou por indagar:

    - A senhora gosta de negros?- Ora, Regina, sou negra! - exclamou Dona Tereza. -

    Por que pergunta isto?Xandinho e Rose alertaram, largaram o que faziam e pres-

    taram, temerosos, ateno em Regina.- Regina! -disse a me preocupada.- porque, Dona Tereza- falou Regina rpido-, pen-

    so que negros so muito bonitos.- Ah! -exclamaram os trs juntos. Xandinho e Rose

    ficaram aliviados e foi Dona Tereza que respondeu:- No sei se negro mais bonito que branco. Tanto h

    negros e brancos feios ou bonitos. questo de gosto. Quandoera crana e mocinha, no gostava de ser negra, agora acostu-mei. Voc no enxerga, no pode entender e eu no sei comolhe explicar. Creio que deve continuar pensando que negros sobonitos. Voc, Regina, uma menina educada e boa. Continueassim. At logo!

    Xandinho ia comentar com a neta se esta viu algo, masno o fez, porque ela, ao escutar os elogios, sorriu alegre.

    De fato, Regina estava contente e pensou:" assim que tenho que agir. Se tivesse falado o que vi,

    certamente Dona Tereza no teria gostado e provavelmente medariam outra surra. Antes ouvir que sou educada e boazinha doque mentirosa. Que me importa se ela usou o chicote para cas-tigar? Agora negra e no gosta, j sofreu por isto; tem dores,braos e mos tortos. bem melhor no falar mais o que vejo.Assim, no arrumo confuses."

    Regina estava sempre vendo o passado dela e de quem

  • se aproximava. No comentou mais, nem com o av, nem comKim, seu melhor amigo.

    Vu do Passado 43

    Kim fez dez anos. Naquele dia, ao chegar escola umcolega foi correndo avisar:

    - Kim, seu av caiu da charrete e est no consultriomdico.

    A cidade no tinha hospital. Kim correu para o consult-rio do mdico. Junto do av estavam algumas pessoas que osocorreram. Ao chegar, escutou o av comentar:

    - Meu neto adivinhou e me alertou. verdade, Kimadivinha tudo! Ele me disse: "Vov, o senhor ir cair desta charretevelha, no ir morrer, mas seu brao no mover mais." Poristo, doutor, cuide do meu brao, mas duvido que fique bom.

    Kim entrou e abraou o av. Todos olharam curiosos paraele, o av entristeceu.

    - Desculpe-me, meu neto. Sempre o aconselhei a nofalar o que v e acabei falando.

    Kim foi para casa e todos comentaram o acidente e aadivinhao do menino. S no levou uma surra do pai, porqueXandinho no deixou.

    Por meses as pessoas o olharam de modo diferente, masesqueceram e tudo pareceu voltar ao normal. Xandinho que-brou o brao. Ao tirar o gesso no conseguiu mov-lo mais epassou a t-lo imobilizado. Ficou muito amargurado e arrepen-deu-se de no se ter desfeito da velha charrete.

    Kim comeou a ver o cigano. Primeiramente viu um vulto.No teve medo. Isto lhe pareceu natural, rotineiro, sentiu que jtinha visto muitos mortos do corpo, mas vivos em esprito. Diasdepois, viu-o e entendeu que era o cigano morto nas monta-nhas. Percebeu que podia tambm falar com ele, que o espectroo ouvia e respondia. Ivo, o cigano, estava sempre por ali, oracom sua me, ora com o pai. Era feio, tinha o peito ferido, queparecia estar sangrando, barba por fazer, as roupas rotas, as-pecto cansado e triste.44 Antnio CarlosVu do Passado 45

    - Que faz aqui?-perguntou o menino. -V embora!- No e no! - respondeu Ivo. - Matou-me sem d!Vou ficar com eles.

    Kim, sem saber o que fazer, contou ao av. Este se ps aorar para que o cigano tivesse e desse paz.

    Mariana, sua me, ficou doente; sua doena foi agravan-do e o menino ficou muito triste. Isabela era a nica que o faziarir. Ele a amava muito. Ia sempre casa do av, continuavaensinando Regina. Mas esta no gostava mais de escutar seusproblemas. Como jurou no mais falar, no quis escut-lo. Elerespeitou a prima e nada mais comentava com ela do que sepassava com ele.

    Kim passou a trabalhar ajudando a cuidar do gado. Masdava sempre um jeitinho para ir ver o av e Isabela. Naquelatarde de outono, o cu se carregava de nuvens. Kim conversavacom as primas, quando Rose as chamou para o banho. Ele ficousentado num banco na frente da casa.

  • "Vai ser depois de muitos dias de chuva que terras e pe-dras cairo da montanha!"

    Pensou e suspirou. Muitas vezes tivera esta viso. Sabiaque ia demorar, aconteceria dali a uns anos, pois se vira moo, acorrer aflito para o local. Mas no sabia por que ia para l e oque aconteceria aps.

    Viu um passarinho, esqueceu a viso que lhe parecia serdesagradvel e se ps a observar o pssaro.

    - Ol, passarinho! -exclamou baixinho. -Que faz asozinho?

    O pssaro voou em crculos. Kim levantou-se e olhou opequeno reservatrio d'gua, perto da casa, que chamavam delago. L estavam muitos pssaros. Certamente este que via per-tencia ao bando. Sabia que eles partiriam com a aproximaodo inverno.

    Boa sorte, meu pssaro! Boa sorte! - exclamou sen-tando novamente.Vu do Passado 45

    O pssaro trilou. No intimo Kim sentiu sua resposta."Obrigado, necessitarei de sorte, a travessia longa e tem-

    pestades podem nos amedrontar."- Por que no fica?- disse o menino baixinho."Meus companheiros vo. Temos que ir, sempre vamos.

    Tenho meus ovos para botar."- fmea?"Sim. No v minha cor e delicadeza? Sou mais bonita!"- Por que voc no vem para perto de mim? - pediu o

    garoto."Tenho medo! Os homens costumam nos fazer muito mal.

    Nos trancam ou nos matam."- Eu no faria mal a voc!"Adeus! Necessito ir. Partiremos em breve."Num vo mais alto, partiu para o lago em direo ao

    bando.Kim se ps a pensar, teria conversado com o pssaro ou

    imaginado?- Conversando sozinho ou com aquele passarinho?-

    indagou o av, que abrira a porta atrs do banco onde ele esta-va sentado.

    - Passarinha, vov, fmea.- De fato, pelo porte e cor fmea. sempre bom

    conversar com os animais.- Verdade, vov?- Sim, animais tambm so criao de Deus. E no fo-

    ram criados para serem maltratados. Eles gostam de homens,mas os temem. Necessitam de proteo.

    - O senhor conversa com eles?-perguntou o menino.- s vezes, porm no respondem.

    46 Antnio Carlos

    - Pois a mim essa passarinha respondeu.- Quando usamos o corao como intuio, at os

    pssaros nos respondem. Amor comunicao.- Vov, mame est falando to pouco! Estou triste

  • em v-la to doente.- Minha filha Mariana agoniza, como a tarde - falou

    Xandinho, triste. - Seu olhar doce e cheio de carinho.- No quero que ela v embora, vov, no quero!- No lamente! Quando algum morre s o corpo

    que some, a alma, o esprito emigra. como os pssaros, mu-dam de lugar, mas voltam. Sua me os ama e o Amor laoforte. Tenho a certeza de que ela olhar por vocs e, quem sabe,voltar um dia.

    Kim levantou-se e olhou o lago. No viu a passarinha,mas sabia que estava l. Seria assim com sua me? Iria mudarcom a morte, mas voltaria. Quem cria razes sempre volta.

    O garoto foi para sua casa. Dias depois Marianadesencarnou, deixando Sebastio mais triste ainda.

    Kim passou a ver o cigano com mais freqncia. No otemia e resolveu seguir o conselho do av, conversar mais comele. Ivo lhe contou sua vida e o menino escutou pacientemente.Terminou dizendo:

    - Vivemos muitas vezes, menino! Amei Mariana emmuitas encarnaes e esta ingrata sempre preferiu Sebastio,sempre este maldito. E nesta ele me matou!

    - Ivo - falou o garoto bondosamente -, no podemosforar ningum a nos amar. Mariana, minha me, quando o co-nheceu j era casada e tinha dois filhos.

    - Eu sei! Mas eu a queria. Se no fosse este malditoque me matou, ficaria com ela.

    Vu do Passado 47

    - Onde est seu povo, onde esto seus familiares? Novieram Procur-lo? -perguntou o menino.

    - Eles no tm parada, mudam sempre. No concor-daram comigo quando quis raptar Mariana, ento me separeideles. Nem sabem que morri. Minha morte no foi vingada, poristo vingo eu mesmo.

    Ivo afastou-se triste. E Kim no perdeu mais uma oportu-nidade de conversar com ele.

    - Voc se lembra, Ivo, de quem era o punhal que oferiu? - indagou o garoto certo dia.

    - Era meu! Lembro-me bem, gostava daquela arma.- Ento como voc foi ferido por ela?- Ora, Sebastio tomou-a de mim, roubou-me, no sei

    -respondeu Ivo, inseguro.- Como meu pai iria roub-la ou tom-la de voc? Ele

    sempre foi fraco e voc muito forte. Onde guardava seu punhal?- Na cintura - respondeu Ivo pensativo.- O que voc foi fazer na montanha?Quando as perguntas se tornavam inconvenientes para ele,

    Ivo sumia. Preferia acusar Sebastio e continuar odiando. Mas,com o menino perto de Sebastio, o cigano no conseguia ator-mentar sua vtima. O olhar sereno e calmo do garoto o incomo-dava. Depois passou a gostar dele, pois lhe dava ateno, no otemia e orava por ele. Kim s falava sobre isto ao av, nocomentava nada em casa e seu pai no sabia deste fato. MasSebastio passou a ficar apegado ao filho caula. Perto dele sesentia melhor. Kim acabou o curso na escola. Agora, se quises-se continuar os estudos, teria que ir para uma cidade maior.

  • Como no era possvel, parou de estudar e passou a ajudarmais seus irmos e fazer companhia ao pai.

    Com isto, passou a ir muito pouco casa dos tios. Mas iasempre com alegria rever as primas, principalmente Isabela quecrescia, ficando, para ele, cada vez mais linda. Sempre a ajuda-va nas tarefas escolares e continuava ensinando Regina, que48 Antnio Carlos

    conseguia aprender muitas coisas, mas infelizmente no conse-guia ler e isto a entristecia.

    Onofre, seu irmo, ia casar com Rafaela. O dia to espe-rado chegou. Todos bem vestidos iam para a festa. Ali, naquelapequena cidade, todos os casamentos e batizados eram festas.

    Quando a noiva saa de sua casa para ir igreja, ia a p,pois morava a poucos metros desta. Muitos convidados a espe-ravam para acompanh-la. Ouviu-se um grito.

    - Rafaela! Rafaela! Minha irm querida!Era um irmo de Rafaela que h muitos anos havia partido

    para trabalhar longe dali e voltava sem avisar. Todos se emoci-onaram, principalmente os familiares da noiva, que se exalta-ram, festejando seu regresso.

    Kim se recordou da viso que tivera tempos atrs em queOnofre quase lhe surrara. Ele tinha visto Rafaela enfeitada comflores e abraada com outro homem. Aproximou-se de Onofre.

    - No tinha visto Rafaela abraada toda feliz com ou-tro homem?

    Onofre suspirou. Tinha sofrido tanto com a viso do ir-mo! O av aproximou-se e falou baixinho ao neto que ia casar:

    - Sofreu porque no confiou. Poderia Rafaela ter abra-ado o pai, irmo ou um faniliar qualquer, mas, dando "asas" aocime, preferiu pensar que ela abraaria outro pretendente.

    Onofre concordou com a cabea.Foi um casamento lindo.Sebastio ficou muito doente. Kim cuidava dele com ex-

    tremo carinho. E continuou a insistir com Ivo para que no ator-mentasse seu pai. No comeo queria se ver livre dele, depoispassou a gostar do cigano e querer que ele tivesse paz e quefosse feliz.

    Vu do Passado 49

    Ento, Ivo, me fala, o que voc foi fazer namontanha?Matar Sebastio! - confessou um dia. - E roubarMariana.

    - Vocs lutaram, no foi? Voc morreu, porque caiuem cima de sua prpria arma- insistiu o garoto.

    - A culpa foi dele!- Foi sua! Se no tivesse ido l, nada disto tinha acontecido.- Teria levado Mariana comigo e teria sido feliz.- Seria mesmo, Ivo? Mariana, minha me, no o que-

    ria, nunca o quis. Agora ela est to morta como voc. J a viu?- No -respondeu Ivo triste. - Ela no ficou por aqui.

    Partiu com os bons espritos.- Esquece esta vingana, homem! V embora! Por que

    no vai se reunir a seu bando?Ivo no lhe respondeu, mas estava muito pensativo. Um

  • dia veio despedir de Kim.- Vou embora, menino. Vou pedir auxlio no Centro

    Esprita. L eles socorrem pessoas mortas como eu. Adeus!De fato, Ivo pediu ajuda no nico Centro Esprita que

    havia na pequena cidade, onde Joo trabalhava com dedicaoe Amor, e foi socorrido por eles. Kim alegrou-se, sentiu agoraque Ivo ia ter paz.

    Martinho tambm ia casar. S esperava o pai melhorar,mas Sebastio piorou e no conseguiu sair mais do leito. Um diacedo, assim que se levantou, Kim viu sua me.

    - Mame! Mame! Que saudade!Correu para perto do vulto, quis abra-la, no conse-

    guiu. Mariana ficou perto dele e o beijou na testa. O menino aviu, mas no sentiu o beijo. Seu corao batia descompassada-mente. Alegrou com a preciosa visita.

    - Filho-disse Mariana-, tenho pressa.-Vim ajudarseu pai a partir. Tenha f, meu Kim, muita f e pacincia. Vocno como os outros, por isso tem que compreender mais.50 Antnio Carlos

    - Fica comigo, mame!- No posso!- Ento me leva com a senhora! -pediu o menino.

    - Tambm no posso! Cada um tem um perodo paraficar no corpo fsico. Temos que respeitar. No queira voltarantes do tempo, isto nos separaria para sempre. At logo, filho,devo ir com seu pai. Receba minhas bnos!

    Viu sua me ir para perto da cabeceira da cama de seu pai,ento percebeu que outros dois vultos ali estavam a mexer no cor-po dele. Logo depois todos sumiram. O menino aproximou-se apre-ensivo. O pai estava quieto, no respirava mais. Estava morto.

    - Martinho! Martinho! Acorda! Papai morreu! -gritouKim, acordando o irmo.

    Com a morte do pai, Martinho resolveu casar e morarcom a esposa na casa dos pais. O menino se alegrou, quando ostios e o av o convidaram a morar com eles. Ele gostou, aceitoue passou ento a residir com os tios e o av.

    Os tios gostavam dele, Regina e Isabela ficaram conten-tes com a presena do primo. Ele passou a dormir no quarto doav. Xandinho andava com dificuldades, mancava de uma per-na e no mexia com o brao.

    - Voc no teve mais vises?-perguntou Xandinhopreocupado.

    - Pararam, talvez porque cuidava do papai.- Quem sabe voc no as ter mais.- Tomara, vov, tomara que no as tenha mais.Kim passou a ajudar o tio na horta, mas tambm auxiliava

    os irmos. Saa pouco de casa. Quando o fazia, era para acom-panhar o av, que ia conversar com Frei Manoel e sempre fica-va na praa esperando. Foi l, um dia, que presenciou a confu-so. Dois policiais corriam atrs de um homem que fugia apavo-rado. Pegaram o homem.

    51

    - Ladro! Roubou o Senhor Francisco! -esclareceuum dos policiais. - Senhor Francisco lhe deu esmola e ele rou-

  • bou sua carteira.- Roubar de quem o ajudou! -exclamou uma mulher

    indignada.Ento Kim viu. Senhor Francisco estava no carro distra-

    do, em vez de guardar a carteira no bolso, deixou-a cair e estaestava em um vo do banco.

    Um dos policiais revistou o suposto ladro, no a encon-trou e o ameaou.

    - D-nos a carteira! Diga onde a escondeu! Seno Olevaremos para a delegacia e a ir falar, sem dvida.

    Kim estremeceu tanto como o pobre homem. Sabia queiam tortur-lo. Olhou com piedade para o homem que tremia enem conseguia falar.

    "Falo ou no falo?"-pensou o garoto aflito. "Que fao,meu Deus? Prometi ao vov no falar nada sem consult-lo.Mas eles iro bater neste pobre inocente."

    - Esperem! Esperem! -gritou para os policiais que ar-rastavam o homem. - Ele no roubou! Procurem a carteira nobanco do carro, est l em um vo.

    Todos quietaram. No necessitaram perguntar como elesabia, todos o conheciam e sabiam de seus dons divinatrios.Caminharam para perto do carro do Senhor Francisco, queaguardava os acontecimentos em p ao lado do veculo. Os doispoliciais seguravam o homem pelos braos. Um deles pediu aoSenhor Francisco para procurar a carteira no vo do banco. Eleo fez e a achou. Ficou vermelho de vergonha, chamou o homeme lhe deu uma quantia razovel.

    - Aqui est, homem! Tome mais esta esmola. Nomachucaram voc, no ?

    O homem no respondeu, hesitou, mas acabou pegando

    o dinheiro e saiu quieto, envergonhado, pensando no filho doen-te e no remdio que ia comprar. Olhou simplesmente para Kim;este sentiu gratido naquele olhar. Era um cigano que estavaacampado perto da cidade.

    Todos os presentes comentaram o fato e Kim afastou-selogo, foi buscar o av.

    - Vov, por favor, vamos para casa!No caminho, o menino contou tudo a Xandinho, que o

    consolou.- Meu neto, voc est ficando moo, deve pensar como

    adulto. Agiu certo, no era justo deixar o pobre inocente sercastigado por algo que no cometeu. Praticou uma boa aocom sua adivinhao. Vamos esquecer este fato e espero quetodos aqui esqueam tambm.

    Kim pensou em sua me, lembrou do que ela disse ao v-la, quando seu pai morreu. Inquietou-se, sentiu que passaria pormomentos aflitivos.

    Dias passaram e o falatrio foi escasseando. Mas um acon-tecimento alarmou o local. Um menino, filho de um fazendeiroimportante, tinha desaparecido. Muitas pessoas da cidade sa-ram a sua procura. O menino era o nico filho varo deste se-nhor que era benquisto por todos. O garoto tinha oito anos, erauma criana boa, obediente e inteligente.

    As buscas resultaram em nada. Foi quando um dos queprocuravam se lembrou de Kim.

    - O menino que adivinha! Vamos at ele, certamente

  • nos indicar onde est o garoto.L foram. Muitas pessoas com a me aflita.Ele estava com o gado no pasto, quando o encontraram,

    e todos falavam ao mesmo tempo.Quero que veja onde est meu filho! - ordenou asenhora.53

    - No sei, no sei...Kim nada via. Esforou-se para ver, mas no deu nem

    para concentrar. Todos falavam ao seu redor. Depois, nuncafizera aquilo, nunca tinha antes tentado ver algo. Suas viseseram espontneas.

    - No consigo! No sei! -repetia nervoso.- No quer ajudar! -disse um deles.- Dizem por ai que, nestes casos, tem o vidente neces-

    sidade de sofrer para ver-afirmou outro homem.- Pois que sofra! -retrucou a me desolada. - Batam

    nele!Sentiu os socos e pontaps. Um outro teve a idia de

    coloc-lo de ponta-cabea. Dois homens o pegaram pelos pse l ficou desesperado e com muito medo, levando tapas e maistapas. Muita confuso, todos falando e a senhora insistindo:

    - Onde est meu filho?"Ai, meu Deus!"-pensou Kim aflito. "Ajude-me, me, a

    ver onde est este menino!"Estava atordoado, sua cabea rodava, sangue escorria

    pela boca, teve muito medo.- Parem! Parem com isto!Para seu alvio, o irmo Onofre e o tio Afonso vieram

    correndo, soltaram-no e o tio o abraou e disse aos gritos:- O que isto? Que barbaridade esta? Parece at que

    foi ele quem escondeu o garoto. Fiquem sabendo que ele s temvises espontneas e no quando ele quer. Alis, ele nunca quer.

    - Ignorantes! Quase matam o menino. Covardes! -gritou Onofre acariciando o irmo.

    A, Kim viu. O garoto sumido debatia-se preso nasmargens do rio. Estava em lugar perigoso entre as rama-gens das rvores, em um atoleiro, no barro que formavanaquela poca do ano.54Antnio Carlos

    - O menino est no rio, atolado perto da curva do olei-ro - falou ele com dificuldades.

    - mentira! - berrou a me. - O que meu filho estfazendo l?

    - Ora, vamos l depressa e verificaremos, no nos custa- disse uma senhora.

    - Vamos rpido! Se ele estiver l, morrer com o frioda noite! -falou um homem.

    - Eu no disse que dava certo faz-lo sofrer? - berrouo homem que teve a infeliz idia de surr-lo.

    Apressados, dirigiram-se ao local que o menino indicou.- Voc viu mesmo?- indagou o tio.- Vi agora-respondeu o garoto.- Vamos- aconselhou otio-,levo-opara casa. Sua

    tia cuidar de voc.

  • Kim teve vontade de chorar, mas as lgrimas no caram,os afagos do tio e de Onofre o acalmaram.

    Em casa levaram um susto. Regina e Isabela ficaram qui-etas e Xandinho revoltou-se. A tia se ps a medic-lo. Isabelabeijou-o, acariciando. Regina com receio de machuc-lo maisficou a passar as mos sobre seus cabelos; desejou tirar suasdores e o fez. Quando se quer, sempre se consegue, e usar asmos surte muitos efeitos. Regina doou energias, deu passemesmo sem entender este processo, simples e funcional, que doao de energias pelo passe.

    " por isto que nunca mais falo que vejo"- pensou Regi-na. "E no falarei mesmo, nunca! Seja o que for, ficarei quieta."

    noite, Onofre e Martinho foram ver o irmo.- Acharam o garoto no lugar que voc indicou-escla-

    receu Martinho. - O menino disse que foi pegar um pato e caiu.Perguntaram me dele se ela no vinha agradecer, sabe o queela respondeu? Quem nasce assim para servir e que voc nofez mais do que sua obrigao. Que ela no vinha e que vocbem que mereceu as palmadas, porque demorou para dizer. Eainda o chamou de sem-vergonha!

    - Palmadas! - exclamou a tia. - Machucaram tanto omenino!

    - Temos que tomar umas providncias-frisou Afon-so. - Meu sobrinho no deve mais sair sozinho e, quando virmuitas pessoas, corre e esconde.

    - E bem escondido - repetiu Isabela.-Promete,Kim,que esconde? No quero que batam mais em voc.

    - O mais importante - reclamou Martinho - que meuirmo no veja mais, que no tenha estas vises esquisitas.

    - Mas ele assim-disse Xandinho. -No pode mu-dar s porque quer, ou porque queremos. Sinto-me culpado.Lembrei as pessoas do dom dele, quando comentei que previuque eu ia cair da charrete.

    - Vov -conciliouKim-,o senhor no tem culpa. Fuieu que falei sobre a carteira.

    - No fale mais, meu irmo -reforouMartinho.-Nofale mais nada, seja o que for.

    - Voc acha certo, Martinho? - perguntou Xandinho.-E se o menino sumido fosse seu filho?

    - Bem, assim... - considerou Martinho, incerto.- Vamos proteg-lo - asseverou tio Afonso. - E ele

    nos prometer ser cauteloso e evitar de falar.- Certo - concordou o menino.Kim por tempo ficou com as marcas das pancadas e no

    saiu mais sozinho.Frei Manoel resolveu ajud-lo. Tendo que ir sede de

    sua congregao, exps ao seu superior o problema do garoto,tentando achar para ele a soluo. Que ingenuidade do velhofrade. Os freis do convento deram palpites, para uns eram coin-56 Antnio Carloscidncias, para outros o menino era paranormal. Quiseram vero garoto, fizeram o convite para que ele fosse passar uns dias noconvento, afirmando que pagariam todas as despesas.

    Frei Manoel ao regressar foi casa de Xandinho e levouo convite. Kim estava para completar treze anos.

    - Foi o que escutei dos meus superiores-afirmou FreiManoel. - Mas, se querem saber minha opinio, esqueam o

  • convite.Se posso acompanh-lo - disse Afonso -, no vejopor que no ir.

    - Cidade grande diferente - objetou Frei Manoel. -Se aqui bateram nele, que podero fazer l?

    - Aqui as pessoas so mais ignorantes - considerou atia. - Padres tm obrigao de serem bons. Acho que Kimque tem de resolver.

    - Bem - falou Frei Manoel -, pensem com calma.Xandinho acompanhou Frei Manoel porta e indagou sem

    que os outros percebessem:- Por que teme pelo garoto? No acha certo ele ir ao

    convento?- Meu amigo, queria ajudar seu neto e no consegui.

    Ser que os freis do convento conseguiro? Querem v-lo, fica-ram curiosos. Mas ser que iro querer mesmo ajud-lo? Con-seguiro? Arrependi-me. No deveria ter falado sobre o garotopara eles. Mas espero que vocs resolvam o melhor para omenino.

    Todos acharam que Kim deveria ir. Seria por poucos diase Afonso o acompanharia. Ele tambm achou que deveria dis-trair, viajar, nunca tinha sado de sua cidade. Ganhou at pre-sentes das pessoas amigas, roupas novas para a viagem. Partiucom o tio para ficar dez dias no convento.

    Vu do Passado 57

    NO CONVENTO

    Kim gostou da viagem, para ele tudo era novidade. Achoutudo muito bonito e diferente. Foram de trem e prestou atenoem tudo. Foram da estao ao convento a p. Encantou-se como movimento da cidade grande.

    - Veja isto, tio Afonso - disse entusiasmado. - Isabelairia gostar, se pudesse compraria para ela.

    - Voc s pensa nela - falou o tio.- Penso em todos, tio, gosto de todos.Chegaram ao grande e fechado convento. Como j eram

    esperados, um frei os atendeu e os levou para uma parte reser-vada aos visitantes. Deram-lhes dois quartos contguos. O me-nino admirou o tamanho e o conforto dos quartos. Gostou detudo com entusiasmo.

    - Tio, o quarto parece maior que nossa casa!Foi servido o jantar no quarto mesmo, porque j era tar-

    de, e logo aps a alimentao foram dormir.No outro dia cedo, logo aps o desejum, foram levados

    ao gabinete superior do convento. Frei Marco gentilmente lhesdeu as boas-vindas.

    Afonso saiu logo aps, tinha que tratar de negcios e Frei

    58 Antnio Carlos

    Fernando levou Kim para conhecer o convento. O menino achouo local muito grande e bonito. Tudo era muito limpo e organiza-do. Nunca vira tantas portas e janelas.

    - Aqui a sala de refeio - disse o frei que o acom-panhava. - Aqui a sala...

  • Tantas salas que o menino se confundiu todo. Qualquerpessoa se perderia fcil naquele local to grande. Gostou mes-mo foi do jardim, do pequeno chafariz, da horta e do pomar. Acozinha era enorme e as panelas to grandes que o menino pen-sou que caberia fcil dentro delas. A capela era muito linda,toda pintada, tendo barrado em ouro. Os mveis de todo Oconvento eram de madeira escura e em vrias janelas havia cor-tinas bonitas e longas. Foi apresentado a todos os frades, mass aos poucos os foi conhecendo e tornou-se amigo de muitos.Tambm, s depois de muitos dias aprendeu a andar pelo con-vento. Podia ir por toda parte, s no entrava nos aposentosparticulares, quartos dos freis, e nem ia ao poro. Este lhe pare-ceu assustador e no quis conhec-lo.

    Gostou do convento. Logo no dia posterior ao de suachegada, tarde, conheceu a sala onde faria os testes. Frei Marcodisse a ele:

    - Aqui, meu menino, faremos testes e veremos o queacontece com voc.

    - Iro me curar?-indagou o garoto.- Sente-se doente?-perguntou Frei Marco.- No, s esquisito! No gosto destas vises...-Vamos ver o que o atrapalha-respondeu Frei Mar-

    co, acalmando o menino.Seriam trs freis a estud-lo. Foram gentis com ele e o

    menino gostou das novidades.Os que iam pesquis-lo eram: Frei Marco, filsofo, estu-

    dioso dos fenmenos ocultos. Sentiu-se atrado pelo que acon-

    Vu do Passado 59

    tecia ao menino, resolveu estud-lo, achando que se tratava deum caso raro de paranormalidade; outro, Frei Fernando, des-crente, diria at que era ateu; duvidava de tudo e de todos, tal-vez julgasse os outros desonestos e enganadores, comparando-os pelas prprias aes. Interessou-se pelo garoto, tentandodescobrir que truque usava aquele falso-humilde de to poucaidade; o terceiro, Frei Lus, srio, bondoso, teve pena do meni-no, porque ele mesmo era portador de alguns fenmenos que areligio que seguia com tanto amor no conseguia lhe explicar.Via muitas pessoas que para todos eram mortas, e com elasconversava. Era querido de todos e invejado.

    Os testes comearam logo tarde. Eram exerccios sim-ples. Vendavam-lhe os olhos e pediam para localizar objetosque estavam em cima da mesa a sua frente. Sem o tampo,deveria adivinhar cartas de baralho viradas. Kim achou interes-sante, era como brincar, e divertiu-se. No comeo acertou pou-co, mas logo no quinto dia, j mais familiarizado, passou a acer-tar muito, deixando os trs freis admirados.

    Oito dias passaram e eles no chegaram a concluso ne-nhuma. Pediram para que Kim ficasse mais tempo. Conversa-ram com Afonso.

    - Senhor Afonso - props Frei Marco -, o meninonecessita ficar mais tempo conosco. Peo-lhe sua autorizao.Ele ficar bem conosco. Foram poucos dias para um estudo tosrio. Assim que entendermos o que se passa com ele e achar-mos uma soluo, ns o levaremos de volta, como tambm elepoder regressar quando quiser.

  • - Se ele quiser ficar, tem a minha autorizao -respon-deu Afonso.

    Kim estava gostando, nunca comera tantas coisas gosto-sas. E estava se divertindo com os testes.60 Antnio Carlos

    - Quero ficar, tio. Ser s por mais uns dias. Tenho umdinheirinho guardado, se Frei Marco permitir, comprarei pre-sentes para meus familiares e o senhor, tio, os levar.

    - Claro que permito. Pedirei ao Frei Leonel paraacompanh-lo e tem mais, vou dar a voc um dinheiro para fa-zer estas compras.

    - No precisa- disse Afonso -, os senhores j fazemmuito nos hospedando.

    - Senhor Afonso, meu irmo me deu h tempos estedinheiro para que comprasse algo para mim. Mas no precisode nada e darei de bom grado ao menino.

    Feliz, Kim saiu com Frei Leonel e fez compras. No es-queceu de ningum, comprou presentes para todos e um bemespecial para Isabela.

    Quando voltaram, passaram na frente de uma casa deapostas. Brincando, Frei Leonel indagou:

    - Voc capaz de saber que nmero ser sorteado?O menino pensou por momentos e veio um nmero sua

    mente. Disse sem hesitar.- Puxa! - exclamou o frei. - Espere-me aqui, vou l e

    volto rpido.Kim ficou admirando o movimento da rua. Frei Leonel

    entrou na casa, mas no pde jogar, porque j haviam encerra-do as apostas daquele dia.

    Voltaram para o convento. Kim escreveu bilhetes e colo-cou nos presentes. No outro dia, Afonso regressou. O meninono se entristeceu com sua partida, seria s por mais uns dias.Depois, estava se deliciando com os testes e lhe era agradvelficar ali.

    No outro dia, Frei Leonel voltou para conferir o resultadodo jogo e dera o nmero que o menino falara. Foi imediatamen-te falar com Frei Marco e este dobrou o interesse pelo garoto.

    No teste seguinte, Frei Marco falou entusiasmado aosoutros companheiros que estudavam o garoto:

    - Frei Fernando, Frei Lus, Kim acertou o nmero quefoi sorteado ontem. espantoso! Podemos melhorar nossas fi-nanas com ele.

    Vu do Passado 61

    Isto desonesto! -respondeu Frei Lus. -No de-vemos fazer isto!

    - Para fazer caridade tudo lcito. Nossos pobres se-ro beneficiados-disse Frei Fernando.

    - Que pobres?-indagou Frei Lus.- Frei Lus tem razo - respondeu cinicamente Frei

    Marco. - Esqueam as apostas, vo tentar ajudar este menino.Mas assim que Frei Lus saiu, Frei Marco se reuniu com

    Frei Leonel e Frei Fernando.- Vamos usar o garoto para enriquecer. Faremos de

  • um jeito que o menino no perceba e nem Frei Lus. Aumenta-remos nossas finanas. Afinal, no prejudicaremos ningum. Etrataremos bem, muito bem o menino.

    Kim passou a acertar mais nos testes, e discretamenteFrei Marco e Frei Fernando pediam que visse o nmero a sersorteado. Acertava muito e, medida que treinava, acertavamais.

    O menino quase no saa do convento e os dias passavammontonos, embora os freis no deixassem que lhe faltasse nada.Fez muita amizade com Frei Lus e estava sempre conversandocom ele, quando este estava de folga. Frei Lus trabalhava mui-to. Era ele que fazia todo servio do convento: fazia pagamen-tos, atendia confisses, dava extrema-unes, atendia as pes-

    (1) Este jogo era regional, ainda realizado em muitos lugares aqui noBrasil. Era um jogo feito discreta, mas ilegalmente. Kim conseguiaadivinhar por ser feito na cidade. muito difcil uma adivinhao anvel maior. (N.A.E.)62 Antnio Carlos

    soas pobres que iam ao convento procura de alvio para suasdificuldades. Atendia todos com bondade.

    Um dia, Kim viu muitos frades sarem com Frei Marco, osuperior, e perguntou ao Frei Lus:

    - Aonde vo?- Dar extrema-uno.- No o senhor que faz isto?- que um senhor rico, que ajuda muito o convento,

    est para morrer- respondeu Frei Lus, gentil.- Faz diferena um dar ou muitos?-perguntou Kim

    curioso.- Para Deus o que importa o Amor no corao. Deus

    no necessita de dinheiro e nem de oraes pagas.Se estivesse para morrer, gostaria que fosse o senhora me encomendar.

    - Encomendar, ah! - exclamou Frei Lus. -Como seisto fosse possvel. Para Deus o importante ser rico de boasaes. - Sorriu mudando de assunto. - J conhece nossa bibli-oteca? Voc me disse que tem uma prima cega. Pergunte aoFrei Leopoldo, o bibliotecrio, e ele o poder informar sobre oque temos para ensinar cegos a ler.

    Foi entusiasmado para a biblioteca. Frei Leopoldo amavademais os livros, gostou do interesse do menino e por ter quematender. Mostrou-lhe tudo sobre o assunto e falou excitado:

    - Lus Braille, professor francs que, apesar de privadoda vista desde a idade de trs anos, inventou a escrita em relevopara uso dos cegos. Ele nasceu em 1809 e faleceu em 1852.

    - Fantstico! - exclamou o menino admirado. - Foicego, professor e inventor!

    - Posso at dar a voc alguns livros que temos dupli-cado. Ajudo voc a explicar sua prima Isabela, para que elaensine a outra, a cega.

    Kim alegrou-se. Passou a ir muito na biblioteca e FreiLeopoldo, como prometera, o ensinou e tambm o ajudou aescrever, para que ensinasse Isabela.

    O menino tinha muitas saudades de todos, escrevia muito,os irmos respondiam raramente. Quem estava sempre lhe es-

  • crevendo era Isabela e ela lhe dava muitos recados de Regina.Frei Marco lhe dava sempre dinheiro para que ele fizesse

    suas despesas e foi com muita alegria que o menino colocou nocorreio o primeiro livro em Braille para sua prima.

    Tudo parecia normal na cidade de Kim. Os irmos ca-sados agora se preocupavam mais com as esposas e filhos.Afonso, Rose e Xandinho achavam que o garoto estava muitobem e at queriam que ele se tornasse um frade. Regina conti-nuava alegre, esforava-se ao mximo para tornar-se auto-suficiente. Recebeu o presente do primo com gratido e ale-gria. Realizaria seu maior sonho: ler. Isabela com dedicaoaprendeu e ensinou a irm. Kim foi enviando livros, artigosque Frei Leopoldo lhe dava e, em poucos meses, Regina apren-deu e at escreveu para Kim, em Braille, uma cartinha agrade-cendo e dizendo am-lo muito.

    Vu do Passado 63

    Que alegria! O garoto ficou radiante. Com as pontas dodedo tentou imaginar-se cego a ler.pensou."Valeu a pena s por isto ter vindo ao convento!" -

    Isabela sentia muita falta dele, era a nica que no queriaque ele ficasse no convento. Escrevia contando tudo o que acon-tecia com ela e com todos.

    Os testes diminuram, os freis j no tinham tanto interes-se em estud-lo ou mesmo ajud-lo, eram poucos os exercci-os. Mas faziam questo da adivinhao dos nmeros. O meninono tinha muito que fazer e estava inquieto. Numa sesso detestes, ele falou normalmente:64 Antnio Carlos

    - Vamos ter visitas! Um senhor de chapu preto e gran-de, com outros senhores.

    - o nosso superior! - espantou-se Frei Marco. -Obrigado, Kim, agora volte para seu quarto, temos muito tra-balho.

    Por trs dias no fizeram testes com ele. Corriam arruman-do tudo e, no quarto dia, os portes foram abertos ao frei superi-or e comitiva, para uma visita surpresa de inspeo. Mas, comoforam advertidos, tudo foi fiscalizado e nada de anormal foi cons-tatado. Partiram deixando contentes os fiis do convento.

    Os frades passaram a agradar mais o menino. Mudaram-no para um quarto maior e os testes continuaram. Foi ensinadoa concentrar, a forar a ver o que queria, ou melhor, o que elesqueriam. Passaram tambm a indagar sobre seus assuntos par-ticulares.

    - Concentre-se, meu rapaz, isto dar certo?- Tal pessoa estar em casa esta hora?- Haver perigo?Isto tudo era feito escondido de Frei Lus. Pediam sem-

    pre para no falar nada a ele. Kim obedecia porque, conformelhes diziam, era para no chate-lo, pois ele no podia partici-par de todos os testes e tinha muitas tarefas para fazer.

    Mas o menino cansou do convento e estava saudoso. Fazianove meses que estava sem ver os seus parentes. Compreendeuque os freis no iriam cur-lo, alis, estava era piorando. Quis ir

  • embora e foi falar com Frei Marco.- No v garoto! O que lhe falta? Diga, que compro

    (2) muito difcil ver o futuro, porque ele pode ser mudado pelas cir-cunstncias e pelo livre-arbtrio dos envolvidos. Mas existemacontecimentos que seguem seu curso normal, planejado. Nestecaso, a viagem deste frei superior estava programada por ele e Kimviu isto, a programao do outro, do frei superior. (N.A.E.)

    Vu do Passado 65

    para voc. No quer uma bicicleta? isto, vou comprar umabicicleta bem bonita, a mais linda para presente-lo. Hoje mesmopedirei ao Frei Leonel para sair com voc. Tambm irei adquiriroutros livros em Braille, escreverei a uma editora e darei paravoc. Assim poder mandar sua priminha. Gostamos de voc eestamos estudando como ajud-lo. Voc, meu rapaz, no querser padre? Seria muito bom se se tornasse frade como ns.

    - No sei -respondeu o garoto. -Nunca pensei nisto.No sei se quero ser padre.

    - Pois bom que pense. Agora vamos procurar FreiLeonel para que possam comprar para voc uma linda bicicleta.

    tarde l estava Kim ajudado por Frei Leonel, apren-dendo a andar de bicicleta. Dias depois, l estava a correr peloscanteiros do jardim do convento.

    Querendo que ficasse, Frei Marco procurou distrair maisKim. Mandava sempre um frei lev-lo a passear pela cidade edava-lhe muitos presentes. E, como prometera, dava-lhe sem-pre livros diferentes em Braille para que enviasse a Regina.

    Outros seis meses se passaram.66 Antnio Carlos

    viFREI Lus

    Um dia, quando faziam os testes, os freis foram chamadose saram apressados. Kim escutou do frei que fora cham-los:

    - Venham acudir Frei Felipe, que est passando mal.O menino saiu atrs deles sem ser visto. Desceu as esca-

    das com o corao batendo forte; apressados, os frades nemolharam para trs. Atravessaram um corredor e chegaram aoporo. Desceram uma outra escada estreita. Kim olhou curiosoo poro. Nada parecia ter de diferente, estavam num corredorcom muitas portas. A frente de uma delas estava um novio, queindagou aflito:

    - Agora posso ir embora?O menino se escondeu embaixo da escada onde existia

    um vo e esperou. Assustou-se com a voz alta, sinistra, de al-gum dentro do cmodo que tinha a porta semi-aberta. Nopde distinguir se era de homem ou de mulher. A voz lhe pare-ceu muito soturna.

    - Quer ir embora, seu candidato a padreco! Seumedroso!

    - Pode ir agora-disse Frei Marco ao novio.O novio, moo ainda, saiu quase a correr, subiu as esca-

    Vu do Passado 67

  • das e saiu do poro. Os trs frades entraram e deixaram a portaencostada. Kim aproximou-se, ficou encostado na parede per-to da porta a escutar curioso o dono da voz, que falou em tommais baixo:- O trio novamente!

    Cautelosamente, Kim espiou. O cmodo era um quartopequeno e simples. Sentado no leito estava um outro padre, queo menino sups ser Frei Felipe. Era magro, aspec