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A CLASS ACTION Como instrumento de tutela coletiva dos direitos GIDI, Antoni. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletias em uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. A ideologia jurídica dominante nos sistemas de common law é avessa a abstrações e extremamente tolerante com a desordem e a incoerência lógica do sistema, com um preço a ser apgo pela possibilidade de realizar uma justiça individualizada em cada caso apreciado. O resultado é um sistema extremamente complexo – tão complexo quanto as relações sociais existentes – quie não se pretea a generalizações e sistematizações fáceis. As normas processuais americanas são redigidas em uma linguagem desconcertamentemetne ampla, deixando uma larga margem de discricionariedade ao juiz de primeiro grau. Essa flexibilidade é a marca registrada do direito americano e permite ao juiz adaptar o processo às peculiaridades de cada caso. Por um lado, isso faz o direito processual americano extremamente sensível às circunstâncias de cada caso concreto e essa pode ser considerada a razão do sucesso das ações coletivas. Por outro lado, pode deixar as partes reféns das convicçoes pessoais de cada juiz. (18)

Antonio Gidi - A Class Action Como Instrumeno de Tutela Coletiva Dos Direitos

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A CLASS ACTION

Como instrumento de tutela coletiva dos direitos

GIDI, Antoni. A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as

ações coletias em uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2007.

A ideologia jurídica dominante nos sistemas de common law é avessa a

abstrações e extremamente tolerante com a desordem e a incoerência lógica do

sistema, com um preço a ser apgo pela possibilidade de realizar uma justiça

individualizada em cada caso apreciado. O resultado é um sistema extremamente

complexo – tão complexo quanto as relações sociais existentes – quie não se

pretea a generalizações e sistematizações fáceis.

As normas processuais americanas são redigidas em uma linguagem

desconcertamentemetne ampla, deixando uma larga margem de

discricionariedade ao juiz de primeiro grau. Essa flexibilidade é a marca registrada

do direito americano e permite ao juiz adaptar o processo às peculiaridades de

cada caso. Por um lado, isso faz o direito processual americano extremamente

sensível às circunstâncias de cada caso concreto e essa pode ser considerada a

razão do sucesso das ações coletivas. Por outro lado, pode deixar as partes

reféns das convicçoes pessoais de cada juiz. (18)

Como o legislador e o Judiciário também não estão vinculados a

abstrações jurídicas artificalmente criadas, o direito positivo não limita as relações

sociais. Ao contrário, são as relações sociais que forjam a construção do direito.

Consequentemente, o direito está em constante evolução. A evolução jurídica é

tão rápida que um artigo, livro ou decisão podem ser considerados ultrapssados

em quatro ou cinco anos. Ao contrário do que acontece na tradição jurídica de

civil law, em que a autoridade de uma obra tem relação direta com sua idade, nos

Estados Unidos raramente citam-se artigos escritos há mais de cinco ou dez

anos. (19)

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1 Economia processual

O objetivo mais imediato das ações coletivas é o de proporcionar eficiência

e economia processual, ao permtir que uma multiplicidade de ações individuais

repetitivas em tutela de uma mesma controvérsia seja substituída por uma única

ação coletiva. (25-26)

As ações coletivas promover economia de tempo e de dinheiro não

somente para o grupo-autor, como também para o Judiciário e para o réu. Para o

grupo-autor, a economia proporcionada pela tutela coletiva é manifesta. Afinal

tanto o custo absoluto de litigar a controvérsia coletiva é reduzido à despesa de

uma única ação, como tais despesas podem ser reteadas proporcionalmente

entre os membros do grupo.

A possibilidade de julgar em um único processo uma controvérsia

complexa envolvendo inúmeras pessoas, por outro lado, representa uma notável

economia para o Judiciário, que se desembaraça de uma grande quantidade de

processos repetitivos.

Ainda que a ação coletiva seja julgada procedente, ela pode ser uma

solução muito mais econômica e menos desgastante para o réu do que ter de

enfrentar as despesas com as inúmeras ações individuais semelhantes

relacionadas à mesma controvérsia. Isso acontece principalmente no campo das

mass tort class actions, em que os valores dos danos individuais sofridos pelos

membros do grupo justificam financeiramente a propositura de ações individuais.

(26)

O simples fato de substituir milahres ou milhões de ações individuais por

apenas uma grande ação coletiva, por mais complexa que seja, já justificaria a

economia processual atingida pelas class actions. Há que se acrescentar, todavia,

a tendência das ações coletivas americanas em serem extintas através de

acordo, o que potencaliza ainda mais a economia atingida. (27)

2 ACESSO À JUSTIÇA

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Um segundo objetivo buscado pelas ações coletivas é o de assegurar o

efetivo acesso à justiça de pretensões que, de outra forma, dificilmente poderiam

ser tuteladas pelo Judiciário. Com efeito, abundam exemplos no quotidiano em

que um grupo de pessoas possui um direito no plano teórico, mas não dispõe de

um instrumento prático para efetivamente fazê-lo valer em juízo. Em tais casos, a

única forma de impedir a injustiça é através da concepção de um método eficiente

de controle social, adaptado às peculiaridades da controvérsia coletiva.

É lugar comum reconhecer que alguns direitos estão à margem da

proteção judicial do Estado. Isso acontece, por exemplo, quando uma pessoa

sofre uma lesão de reduzido valor financeiro ou é lesada de uma forma sem

repercussão financeira imediata, como acontece nos caos de aquisiçaõ de

produtos sem informação do prazo de validade ou da correta composição

química. Os custos financeiros e psicológicos de uma ação judicial seriam

desproporcionais ao dano efetivametne sofrido pela pessoa lesada. Em mutios

casos, nem mesmo um tribunal de pesquenas causa é alternativa

economicamente viável. Ademais, mesmo que a pessoa lesada saia vitoriosa,

esse resultado não obrigará ou incentivará a empresa ré a alterar a sua conduta

perante os demais membros do grupo. A vitória em uma ação individual é

comparável a uma mosca pousada nas costas de um elefante.

O equilíbrio da situação se altera, porém, quando centenas ou milhares de

pessoas em uma mesma situação podem se reunir com o objetivo de solucionar

toda a controvérsia coletiva através de um único processo e de uma única

sentença, que vincule definitivamente todos os interessados. A ação coletiva

coloca, portanto, ambas as partes (o grupo lesado e o réu) em uma posição de

igualdade.

Nos casos que envolvessem uma injunção contra a violação de um direito

indivisível de um grupo, por exemplo, todos os membros deveriam, em tese, fazer

parte do processo, para que o tribunal pudesse conhecer a controvérsia coletiva

em sua inteireza. Quando o grupo fosse numeroso demais, a ponto de tornar

impossível o litisconsórcio de todos os seus memmrbos em uma única ação, a

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tutela coletiva da pretensão coletiva indivisível seria inviáel, não fosse a

possibilidade de um deles representar o interesse dos demais.

Uma outra situação em que a importância das ações coletivas é manifesta

são as condutas ilícitas cometidas em larga escala, prejudicando um grande

grupo de pessoas de forma similar. Isso é verdade principalmente nos casos em

que, muito embora o valor total do dano causado ao grupo seja elevado, as

correspondentes pretensões individuais são tão dispersas e tão reduzidas, que a

propositura de ações individuais por cada lesado seria financeiramente inviável e

irrealista (small claims class actions). Esse tipo de violação em masa dos direitos

é extremamente corriqueiro no mundo moderno, em que uma siples decisão de

uma empresa pode prejudicar, de uma só vez, milhares ou milhões de pessoas,

principalmente nas áreas do consumidor, antitruste e mercado de valroes. Em

face da notória disparidade entre o indivíduo membro do grupo lesado e a

empresa violadora, em termos de informação, organização e capacidade

financeira, negar a possibilidade de tutela coletiva dos direitos lesados, em tal

situação, significa negar a tutela jurisdicional de tais direitos. (30)

A ação coletiva também pode proporcionar a proteção de interesses de

pessoas hipossuficientes, que nem mesmo sabem que seus direitos foram

violados ou não possuem a inicaitva, independência ou organização necessária

para fazê-los valer em juízo. Potenciais beneficiários são crianças, deficientes

físicos ou mentais, pessoas pobres ou de pouca educação ou simplesmente

ignorantes dos fatos ou de seus direitos. (31)

A ação coletiva também pode tutelar os interesses de pessoas temerosas

de enfrentar diretamente o responsável pela conduta ilícita, com receio de

represálias ou porque mantêm com ele uma relação que não querem ou não

podem interromper. São os caos, por exemplo, das ações coletivas trabalhstas e

em proteção de franqueados numa relaçaõ de franchising. (31)

A ação coletiva também pode ser utilizada por minorias oprimidas da

sociedade, que, em razão mesmo de serem minorias, não têm acesso às

instituições representativas do regime democrático, como negros, mulheres e

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mossexuais. Dessa forma funciona como um instrumento alterantivo para aqueles

grupos que não podem fazer valer o seu interesse através das urnas. Assim, as

ações coletivas, conjugadas com outros instrumentos políticos, podem ser usadas

como instrumento catalizador de uma ampla alteração social. A ação coletiva é

um dos poucos instrumentos que o homem comum tem contra quem comanda o

status quo. A ação coletiva reestabelece o equilíbrio entre o indivíduo e as

instituições que o oprimem, como o governoe as grandes empresas, na medida

em que proporciona uma igualdade de armas e do poder de barganha. (32)

Takeshi Kojima – O objetivo das ações coletivas é amoldar o processo de

forma a refletir melhor a realidade da controvérsia em questão. Se uma empresa

pratica uma conduta ilícita contra um grupo de pessoas, a controvérsia existente

naõ é entre essa empresa e cada um dos consumidores separada e

individualmente, mas entre ela e todos os consumidores reunidos. Assim, o objeto

desse processo deve ser avaliar o dano total causado e o enriquecimento ilícito

obtido pela emrpesa com a sua conduta. O reestablecimento da igualdade

entreas partes é mera consequência. A ação coletiva seria, assim, simplesmente

um instrumento processual para resolver um conflito coletivo de ofrma coletiva.

(32)

3 EFETIVAÇÃO DO DIREITO MATERIAL

O terceiro objetivo buscado pela tutela coletiva dos direitos é o de tornar

efetivo o direito material e promover as políticas públicas do Estado. Isso é obtido

de duas formas. A primeira é através da realização autoritativa da justiça no caso

concreto de ilícito coletivo, o corrigindo de forma coletiva o ilícito coletivamente

causado (corrective justice). A segunda é realizada de forma profilática através do

estímulo da sociedade ao cumprimento voluntário do direito, através do

desestímulo à prática de condutas ilícitas coletivas, por meio da sua efetiva

punião (deterrence). Numa posição intermediária, entre compensação e

prevenção, está o cumprimento voluntário através da ameaça de realização

autoritativa: os acordos coletivos.

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O principal fator de estímulo à prática de ilícitos de pequeno valor contra

um grupo de pessoas em uma sociedade desprovida da tutela coletiva de direitos

é a sua alta lucratividade associada à certeza de impunidade. É um fato

incontestável que qualquer pessoa que esteja interessada em violar o direito de

outra está razoavelmetne imune ao poder controlador do Estado, desde que os

danos causados sejam relativamente pequenos a ponto de não justificar

financeiramente os custos com a propositura de uma ação civil ea conduta não

seja tipificada como crime ou regulamentada por alguma entidade governamental.

Anda em tais casos, o controle estatal pode se revelar insuficiente quando, por

exemplo, é realizado através de multas de valor incompatível com o lucro obtido

com a atividade ilícita. Ademais, o controle criminal ou administrativo não provê

compensação para os prejuízos efetivamente sofridos pelos membros do grupo.

Se essa pessoas estiver em posição de poder violar o direito de inúmeras

pessoas, de forma a somar todos os inúmeros pequenos prejuízos do grupo

violado, ela pode contar com a inércia dos lesados e obter, ilícita e impunemente

um lucro extremamente alto.

Exatamente porque se proporciona o acesso econômico e efetivo à justiaç

de pretensões de pequeno valor, estimula-se a aplicação voluntária e autoritativa

do direito material. (33)

A class actions é uma forma extremamente efetiva de realizaçaõ das

políticas públicas, uma vez que permite ao Estado conhecer e resolver a

totalidade da controvérsia coletiva em um único processo. Essa visão global e

unitária da controvérsia permite ao Judiciário levar em consideração todas as

consequências da sua decisão, na medida em que toma conhecimento de todos

os diversos interesses existentes dentro do grupo e não somente dos interesses

egoísticos das partes em uma ação individual. Ademais, obriga a parte que

cometeu o ilícito coletivo a responder em juízo pela totalidade da conduta ilícita

realizada contra a comunidade, o que potencializa a sua função de deterrence.

O direito americano moderno percebeu que a forma mais eficiente de

controlar o cumprimento (enforcement) de alguns tipos de leis com dimensões

socials (como as leis do consumidor, antritruste, civil rights, securities etc.) é

atribuir tal controle diretamente às pessoas interessaas, e não somente através

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do controle monopolístico do Estado. Essa concepção deu origem à private

attorney general litigation, ações de interesse social (cuja legitimidade, no Brasia,

seria tendencialmente atribuída ao Ministério Público), propostas de forma privada

diretamente pelas pessoas cujos direitos foram violados. O cidadão, ao lutar pelo

seu interesse pessoal, está tutelando o interesse da comunidade à qual pertence.

A legitimidade para agir é dada ao cidadão, mas a função da ação proposta é a

mesma daquela proposta pelo attorney general: a tutela do interesse público. É o

que também (34) poderia ser chamado de “administração privada do interesse

público”. (35)

Em vista da natural limitação do Estado e da desconfiança na atuaçaõ

competente e desinteressada dos funcionários públicos, a iniciativa privada é vista

como um importante e desejável complemento à ação estatal. Ao contrário da

concepção estatista europía, que privilegia a atividade pública regulamentadora

do Estado, nos Estados Unidos o processo civil em geral e as ações coletivas em

particular são considerados instrumentos centrais do processo regulatório da

sociedade (regulatory process), tanto através das ações injuntivas como das

ações indenizatórias. (35).

Essa é uma função educativa exercida pelas ações coletivas. Assim, ainda

que em determinada class action não haja benefício financeiro efetivo para os

memmrbos do grupo, isso não significa que o prosseguimento da ação seja inútil.

O que importa é punir aquele que praticou a conduta ilícita, sem deixá-lo

locupletar-se com os lucros obtidos com a conduta praticada (enriquecimento

ilícito), fazendo-o responder em juízo pelo prejuízo coletivo que casou e

desmotivando a prática (35) ilícita no futuro. Não importa muito para onde ou para

quem o dinheiro vai: se para pagar as despesas processuais, para o Estado, para

o representante, ou para os advogados, para os membros do grupo, para uma

instituição de caridade ou para um fundo desconhecido. O que é importante é que

nenhuma conduta ilícita fique impune pelo simples fato de que foi tão

inteligentemente perpetrada que não se sabe com calcular ou o que fazer com o

dinheiro da indenização devida. Seria permitir que o infrator se beneficie da sua

própria torpeza

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A simples possibilidade da tutela coletiva, e da consequente

responsabilidade civil em massa, faz com que potenciais infratores se sintam

desencorajados de praticar condutas ilícitas coletivas e resstam à tentação de

obter lucros fáceis em detrimento de direitos e interesse de uma coletividade que,

de outra forma, estaria competamente indefesa e vulnerável (deterrence). (36)

A função deterrence da responsabilidade civil, extremamente evoluída e

bem explorada pelo direito privado americano, é um aspecto negligenciado tanto

em nossa cultura, como em nossa doutrina jurídica e nossa política legislativa.

Ainda não aprendemos que não é possível ao Estado controlar a conduta de cada

cidadão e é mais efetivo incentivar o cumprimetno voluntário do direito, através do

exemplo e de incentivos e puniões. No Brasil, os elementos inibitório e dissuasor

do direito são identificados apenas no direito penal, ainda que, como sabemos,

sejam pouco efetivos na prática, em face da certeza da impunidade. É ilustrativo

que as expressões “deterrência” e “deterrente” não sejam sequer utilizadas no

discurso jurídico brasileiro. (37)

4 SOBREPOISÇÃO E CONFLITO ENTRE OS OBJETIVOS

Todos esses objetivos estão presentes, ao menos potencialmente, em toda

ação coletiva, havendo substancial sobreposiçaõ entre eles. Assim, na medida em

que as ações coletivas são um instrumento de economia processual, realizam o

iedal de acesso à justiça e, consequentemente, de efetivação do direito material.

A depender da situação fática envolvida no caso concreto, porém, um ou

outro desses aspectos pode ser mais ressaltado do que os demais. (37)

Em face dessa multiplicidade de objetivos divergentes e conlfitantes, as

ações coletivas jamais puderam consolidar uma teoria jurisprudencial uniforme e

invariável, aplicável em todas as situações. Portanto, a base interpretativa dos

diversos dispositivos das class actions, seja os requisitos, as hipóteses de

cabimento ou outros instrumentos procedimetnais, oscila de acordo com a

situação fática de o caso concreto pôr em evidência necessidade de um ou outro

objetivo.

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